Tudo Que Sei é Que Não Sou Marxista

June 7, 2018 | Author: Fellipe Dos Anjos | Category: Karl Marx, Marxism, State (Polity), Communism, Economics
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“Tudo que sei é que não sou marxista”Pronunciada em 1879, com certeza hoje Marx manteria essa frase, diante de tanto marxista de gabinete, de estado, de salão, de butique, de cátedra, apaixonados pelo poder ou filiados à hegemonia, burocráticos, academicistas, tantos marxismos em compota, patrulhas marxológicas e marxímetros acadêmicos. Depois de 150 anos de lutas, revoluções e infinitos volumes de teoria e debate, Marx insiste em fazer-se presente, apesar das ortodoxias. Estou falando de um Marx minoritário, um Marx das lutas, anticapitalista e antiestado, Marx da transição comunista, do perspectivismo da história, da luta de classe. Um Marx renovado que adere tranquilamente à crítica de um marxismo 1) economicista, 2) dicotômico, 3) utópico, 4) teleológico, 5) estatista, e 6) antropocêntrico. Abaixo, tento resumir pelo menos essas seis: 1) Economicista: “O Capital” é um livro escrito em polêmica aberta contra os economistas clássicos liberais e suas “leis econômicas” próprias, contra a ideia que a economia fosse ciência autônoma. Nele, Marx vai não só desmascarar os economicismos que costumam separar o mercado do estado, como dois polos opostos (Marx demonstra que são integrados e funcionais um ao outro), que sustentem uma “mão invisível” quase divina dos mercados, ou que pressuponham o homem burguês como protótipo do agente racional, calculador e autointeressado, isto é, o indivíduo econômico; como nessa obra Marx também vai subverter as teorias economicistas que tentam quantificar o valor de troca (operando a passagem da qualidade à quantidade), determinar alguma equivalência entre trabalho e salário (para Marx, não há medida justa da exploração!); ou reduzir o dinheiro a equivalente geral e neutro, ou seja, visto apenas como meio de pagamento, e não como relação criativa de poder, como crédito. 2) Dicotômico: em Marx, não dá pra falar em dois grupos pré- constituídos, duas camadas sociais, disputando o protagonismo da história. Isso seria a sociedade feudalista, que se divida por estamentos bem definidos. Na sociedade capitalista, muda a ideia de classe. Porque não existe simetria, proletariado e burguesia são dois termos incomparáveis, que não podem existir no mesmo plano. O Tudo pode dar errado. multiplicado. não vão sequer acelerar a sua derrubada. por sua afirmação como liberdade diante do capital. É muito diferente. desviado. mas constitui uma única: o proletariado. que não existe senão na luta. mais ou menos implicadas nos grupos com quem pesquisava táticas e estratégias de ação. essa análise possa colaborar para a transformação do mundo. Pelo contrário. que ao fim e ao cabo são recuperadas para . Marx não esculpia porcelanas teóricas. Thompson. mas o capitalista precisa do trabalhador. elas não fazem sentido. Marx não fazia hipóteses. do estado. P. Na sociedade capitalista. qualquer etapismo em direção a algum futuro glorioso da humanidade. que a destrói. nenhum otimismo antropológico. engendrando ansiedades. lutam pela abolição da sociedade capitalista. colocando-a com os pés no chão. em primeiro lugar. Marx não vê nenhuma tendência natural ao bem no homem. qualquer seta em direção a um irrefreável progresso. bizantinas. para fruição pessoal mas nenhuma pungência.trabalhador não precisa do capitalista pra existir. destruindo a si próprio como um polo dessa relação. luta por libertação por si mesmo. porque impotentes. 4) Teleológico: no prefácio do “Capital”. em Marx. se tornam opacas. quando se dá o conflito. estratificado em níveis inarticuláveis. A luta de classe não opõe. mas apostas políticas. sim. provocando crises. um sujeito que se constitui libertando-se do outro grupo a que também pertence. a sociedade capitalista e aqueles que. Isso não é dicotomia (dois lados num Fla-Flu). como lido por exemplo por E. sem um movimento real de lutas. tendem a não passar de paralogismos com pendores estetizantes. duas classes. As contradições do capitalismo não vão derrubá-lo por si próprias. Nada disso. já está colocado o desafio de virar a dialética aérea de Hegel de ponta cabeça. 3) Utópico: nenhuma análise faz sentido apenas como interpretação do mundo. mas conflito na imanência. Contrapondo-se ao séquito hegeliano à esquerda. em que. armas críticas que pudessem ser usadas. assim. nada a defender dalguma natureza humana. lutando. O esforço de Marx será por desmontar qualquer sentido da história dado. O desenvolvimento do capital procede aproveitando as contradições. Opõem-se. O proletariado é a luta que se liberta da burguesia. Tem-se. Sem sujeitos que. não se opõem dois grupos sociais. Nenhuma teodiceia ao Céu nem ao Inferno. encarnem as premissas das análises e suas linhas de desdobramento. precária e fragmentariamente. do poder. tudo pode ser revertido. mas ferramentas de luta. como se o Mal fosse abolir-se pelas próprias falhas. E tampouco qualquer pessimismo determinista. não foi porque eles eram contra o estado. Foi porque não eram contra o estado o suficiente. como aquilo que revoluciona a ordem das coisas. Nem mesmo na “ditadura do proletariado”. poder público e emancipação humana. mas seu eterno recomeço. em menos pontos. livro de juventude. seu kairós: é a revolução. a muito incompreendida proposta de radicalização da democracia operária. 6) Antropocêntrico: outra enorme lorota sobre Marx. 1. A maior derrota do marxismo talvez seja a possibilidade de falarmos em algo como um marxista-hegeliano. à lei estatal. o estado e o mercado que se reestruturam pela via da destruição criativa. como em W. Mas o maior golpe à modernidade . Isso não é o fim da história.fortalecer sua dominação. Benjamin. para o estado. especialmente nas elaborações posteriores. ao limitar o estado à autoridade. Já em “Questão judaica”. 5) Estatista: sem dúvida o maior golpe ao pensamento de Marx é torná-lo um pensamento do estado. mas não só. mostrando que há muito de teologia política nas ideias perfeitamente laicas de estado. ao aparelho coercitivo. entre crise e reestruturação. seu caráter essencialmente antiestado. entre estado/público e mercado/privado. As lutas ou são antidialéticas. a partir do estado. do “Capital”. Tornar a categoria do estado um alfa e ômega do marxismo congela a ontologia constituinte de Marx. Não eram radicais o suficiente. em que a crítica do fetichismo sugere um aspecto mágico do trabalho vivo. ou serão facilmente recuperadas. Sem entrar no mérito desses embates (particularmente vejo alguns pontos específicos em que fecharia com Bakunin e. Proudhon). Hegel é seu filósofo. O comunismo é a dialética destruída: o momento em que a história se liberta da História. na força demoníaca do fetichismo revolucionário (tão bem reapropriado pelo cinema de um Glauber Rocha). Se Marx polemizou com os teóricos anarquistas de seu tempo. A luta de classe está orientada pela abolição da dialética entre capital e trabalho. Também na Seção 4 do Cap. e homogeneização daquelas pacificadas e voluntariamente servis. que também são estado. ao enquadrar a multiplicidade das potências produtivas em valor econômico. Marx polemiza com os hegelianos de esquerda contra o humanismo secular (onde se inscrevem muitos ateísmos modernos). Marx nunca flertou com a ideia de estado como resolução de quaisquer dos problemas do comunismo. quando os sentidos escapam da dialética capitalista e se esgarçam à plenitude. Produtivista é o capital. da sociedade e da economia no capitalismo. dissolução das relações sociais dissidentes. Dialético e mefistofélico é o capital. deixando de lado a estrutura metafísica que condiciona a existência do indivíduo. No mesmo texto. no fundo. Talvez Marx. quando a fábrica vira “fábrica social” e as forças produtivas imediatamente difusas pelo “General Intellect”. que também era contra marxistas. brincasse que os críticos ao marxismo descrito acima. como fazem alguns que preferem chamar-se “marxianos”. um libelo anti-humanista em que Marx vai teorizar sobre a fábrica como coletivo maquínico de humanos e não-humanos. Marxismo de Marx. brotará a virada maquinocêntrica do marxismo. hoje. ou Antonio Negri (em “Marx além de Marx”). e assim. mas não há motivo para nostalgia. Nunca quis ser puro sangue. e sobre a relevância em organizar-se na ação política a partir desses novos arranjos híbridos da revolução industrial. Marx mostra uma tendência de generalização do maquínico pelo tecido social. marxismo insubmisso. porque imensamente potentes e produtivos também para a revolução.antropocêntrica está mesmo no “Fragmento sobre as máquinas”. renovam e reativam a sua força teórica. Desses delírios febris há 150 anos. um século depois. *** Hoje. esses críticos é que estão agora aderindo. Nem tempo para tornar-se paleomarxista atrás de algum elo perdido do marxismo original. através das entrelinhas recalcadas de seus desvirtuadores. como se falassem de algo ultrapassado e vulgar. debochados. insuspeitadamente. e defender e atacar o marxismo. marxismo selvagem. muitas vezes com ar superior. Eu acho que é preciso sujar as mãos e falar marxismo. Marx certamente não se diria marxista. e disputar marxismo. como em Gilles Deleuze e Felix Guattari (em “Anti-Édipo” e “Mil Platôs”). .


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