Teologia natural, teodiceia e metafísica teológica.docx

June 14, 2018 | Author: winsaro | Category: Atheism, Divinity (Academic Discipline), Agnosticism, Existence Of God, God
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Evolução histórica e semântica do termo teologiaTeologia significa, literalmente, estudo sobre Deus, do grego θεóς (Theós, Deus) e λóγος (Logos, palavra, por extensão “estudo, tratado, discurso”). A teologia como vocábulo e como conceito apareceu no pensamento grego e só posteriormente, entre resistências e modificações, será adaptada no âmbito cristão para aplicá-la à ciência de Deus. A expressão teologia foi usada pela primeira vez por Platão, no diálogo A República, para referir-se à compreensão da natureza divina por meio da razão, em oposição à compreensão mitológica própria da poesia feita por seus conterrâneos. Mais tarde, Aristóteles empregou o termo em numerosas ocasiões, com dois significados: I. II. Teologia, como o ramo fundamental da ciência filosófica, também chamada filosofia primeira ou ciência dos primeiros princípios, mais tarde chamada de metafísica por seus seguidores. Teologia, como denominação do pensamento mitológico imediatamente anterior à filosofia, com uma conotação pejorativa e, sobretudo, utilizada para referir-se aos pensadores antigos não filósofos (como Hesíodo1 e Ferécides de Siro2). Na Grécia antiga consideravam-se teologias os poemas e fábulas que narravam a origem e a vida dos deuses e seus autores eram teólogos. Marco Terêncio Varrão3 define tais narrações como “teologia mítica” e Cícero4 como teogonias5, hoje as denominamos mitologia6. Junto a esta “teologia mítica” existia uma “teologia política ou legal”, que era a religião oficial do Estado, suas instituições e culto, a popular idolatria. Os filósofos, entretanto, tomaram uma atitude crítica frente às fábulas mitológicas e aos oráculos dos sacerdotes idólatras. E aos poucos foi se formando uma teologia oposta à mítica e à legal: uma teologia natural ou física (=naturalis) porque se baseia na compreensão racional da physis ou natureza dos deuses (natura deorum) Um dos cuidados que mais a peito tiveram os filósofos do pensamento clássico foi purificar de formas mitológicas a concepção que os homens tinham de Deus. Bem sabemos que a religião grega, como grande parte das religiões cósmicas, era politeísta, chegando a divinizar até coisas e fenômenos da natureza. As tentativas do homem para compreender a origem dos deuses e, nestes, a do universo tiveram a sua primeira expressão na poesia. As teogonias permanecem, até hoje, o primeiro testemunho desta investigação do homem. Os pais da filosofia tiveram por missão mostrar a ligação entre a razão e a religião. Estendendo o olhar para os princípios universais, deixaram de contentar-se com os mitos antigos e procuraram dar fundamento racional à sua crença na divindade. Embocou-se assim uma estrada que, saindo das antigas tradições particulares, levava a um desenvolvimento que correspondia às exigências da razão universal. O fim que tal desenvolvimento tinha em vista era a verificação crítica daquilo em que se acreditava. A primeira a ganhar com esse caminho feito foi a concepção da divindade. As superstições acabaram por ser reconhecidas como tais, e a religião, pelo menos em parte, foi purificada pela análise racional. Foi nesta base que os Padres da Igreja instituíram um diálogo fecundo com os filósofos antigos, abrindo a estrada ao anúncio e à compreensão do Deus de Jesus Cristo. (FR 36) Séculos depois, graças a Santo Agostinho o significado filosófico original do termo teologia, aquele de Platão e Aristóteles, é resgatado e sobrevive. O Santo Doutor tomou o conceito teologia natural duma obra de 1 2 Poeta grego (século VIII a.C.) autor da Teogonia, poema no qual recolhe e organiza os mitos sobre a origem e vidas dos deuses gregos. Filósofo grego pré-socrático, descrito por Aristóteles como um “teólogo” porque misturava filosofia e mitologia (Metafísica 1091 b 8). 3 Prolífico e erudito escritor romano (séc. II-I a. C) admirado por Cícero e outros sábios da época. Santo Agostinho cita uma de suas obras (Antiguidades) quase cem vezes na Cidade de Deus. Das suas estimadas quinhentas obras, apenas duas existem hoje: um tratado sobre agricultura, chamado De re rustica, e outro sobre a língua latina, De lingua Latina. 4 Escritor, político e orador romano (106-43 a.C.). Em seu diálogo filosófico De natura deorum (Sobre a natureza dos deuses) descreve as teologias de diversos filósofos gregos e romanos. Apreciado por Santo Agostinho. 5 Literalmente “origem dos deuses”, assim se chamavam os relatos mitológicos de diversos poetas como Hesíodo e Homero. 6 Mito, do grego mythós, narração ou história baseada em tradições ou lendas, passadas oralmente de geração em geração, que tentam explicar o universo, a origem do mundo, etc., recorrendo a seres e forças divinas ou sobre-humanas, e que constituem o núcleo de várias religiões antigas. O termo “mito” é, por vezes, utilizado de forma pejorativa para se referir a crenças consideradas sem fundamento objetivo ou científico. O mito sói se estabelecer em contraposição com o termo Logos em quanto este último significa discurso racional. Mitologia se refere ao inteiro corpus dos mitos presentes em uma determinada cultura, usa-se também para indicar o estudo dos mitos. 1 Varrão hoje desaparecida, Antiquitates rerum humanarum et divinarum (Antiguidades das coisas humanas e divinas), nela o autor teria descrito, em forma de enciclopédia, acontecimentos históricos e costumes religiosos de grande relevância, e distingue os três gêneros de teologia: mítica, a narrada pelos poetas; política, a relativa às instituições e cultos oficiais do Estado e a natural ou da natureza da Divindade. O Bispo de Hipona considerou a theologia naturalis (teologia natural) como a única verdadeira dentre os três gêneros apresentados por Varrão, acima desta situou uma theologia supernaturalis (teologia sobrenatural), baseada nos dados da Revelação cristã e, portanto, superior. Com a prevalência desta acepção, caem em desuso não só as velhas teologias mitológica e política, anteriormente resenhadas, mas também a teologia natural dos grandes filósofos gregos, e “teólogo” se dirá, até hoje, do cultivador da teologia sobrenatural. Entretanto, como para os teólogos escolásticos o conhecimento filosófico de Deus é válido, deve reconhecer-se como válida também una teologia natural ou filosófica distinta da teologia sobrenatural –a Sagrada Teologia fundada na Divina Revelação– da que difere em gênero. Deste modo, o termo teologia veio a significar duas ordens ou quase espécies de conhecimento de Deus, o natural e o sobrenatural, ainda que por força do uso e pela primazia qualitativa do conhecimento sobrenatural, os termos “teologia, teólogo, teológico”, sem mais determinação, se entendem na ordem da Fé. Uma questão de nomes: Metafísica teológica, Teologia natural ou Teodiceia A teologia natural é hoje a parte da metafísica que pretende demonstrar racionalmente a existência e os atributos de Deus. Para isso, usa apenas a razão humana, sem a revelação de origem divina. São diversos os nomes que recebe esta ciência7, todos os quais de alguma maneira visam indicar que o estudo de Deus que ela desenvolve é baseado em princípios filosóficos e não em dados sobrenaturais ou da revelação divina. Como tal a teologia natural oferece as necessárias bases racionais sobre as que devem apoiar-se a fé e a teologia sobrenatural Este fundamento racional receve o nome de “preâmbulos da fé” 8 (preambula fidei). No entanto, é comum a designação teodiceia que provém do grego θεός e δίκη (diké) que significa “justiça ou justificação de Deus” para expressar o aspecto apologético do estudo da existência de Deus e de sua bondade providente frente ao problema do mal. O termo foi cunhado em 1710 pelo filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz num trabalho intitulado Ensaio de Teodiceia sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal, contra as objeções do filósofo iluminista Pierre Bayle no artigo Rorarius de seu Dicionário histórico e crítico. O propósito do ensaio era demonstrar que a presença do mal no mundo não entra em conflito com a bondade de Deus, ou seja, não obstante as diversas manifestações de iniquidade no mundo, este é o melhor dos mundos possíveis, segundo Leibniz. Prevê que existe um Deus que nos dá livre-arbítrio, ou seja, opção de escolha. As escolhas, porém, não sendo feitas com responsabilidade, conduzem o homem ao mal natural ou o mal moral. Christian Wolff divulgou esta denominação. Kant preferiu, de acordo com seu apriorismo idealista, distinguir a teologia transcendental, que operaria com puros conceitos transcendentais9, da teologia natural que operaria (ineficazmente, segundo ele) com conceptos derivados do mundo observável. Rosmini10 propôs o nome de teosofia11 em vez de teologia natural; mas este nome não prosperou pelo sentido ocultista, pseudo-místico e a-científico com que se identificou. 7 8 Também teologia racional e teologia filosófica. Nome que deu São Tomás a aquelas verdades intermédias ou fronteiriças que são ao mesmo tempo objeto (ou supostos) da Revelação e objeto possível da razão, especialmente, a existência de Deus. São também objeto em certa medida da teologia fundamental. 9 Transcendental para Kant significa conhecimento de ordem apriorística. Para o filósofo de Königsberg, Deus é um ideal da razão pura e um dos postulados da razão prática cuja existência não pode ser demonstrada empiricamente mas é o fundamento à ética. 10 Antonio Rosmini, sacerdote e teólogo italiano (1797-1855). Sua doutrina filosófica procurava conciliar a teologia católica com o pensamento político e social moderno. A sua obra As cinco chagas da Santa Igreja é considerada precursora dos temas do Concílio Vaticano II. Entre suas obras póstumas, destaca a Teosofia que é a expressão mais completa do seu sistema metafísico. Porém devido à novidade de algumas suas ideias sobre a reforma da Igreja a obra dele foi posta no Índex em 1849. Somente com João Paulo II ocorreu a completa reabilitação da sua figura. Mas os Papas desde João XIII o estimaram e até foi qualificado como profeta que antecipou a renovação conciliar segundo Paulo VI. 11 Literalmente sabedoria divina, é uma mistura de conceitos gnósticos e esotéricos que consideram o conhecimento como um dom puramente divino reservado a alguns iniciados. Este conceito vem desde a antiguidade (para os neoplatônicos indicava o conhecimento das coisas divinas, proveniente da inspiração direta por Deus) e pretende representar a verdadeira sabedoria divina escondida nas diversas religiões, filosofias e culturas. Em 1875, esse termo foi retomado pela escritora russa Helena Blavatsky responsável pela sistematização da moderna teosofia e co-fundadora da Sociedade Teosófica Sua obra combina ocultismo e crenças orientais, que supostamente estariam fundadas na inspiração direta por Deus. 2 Pouco a pouco a palavra teodiceia12 foi empregada para designar o conjunto das questões filosóficas relativas à existência e à natureza de Deus. É isto o que Aristóteles entendia sob o simples nome de teologia e os escolásticos sob o nome de teologia natural, isto é, ciência de Deus, obtida somente pelos recursos da razão natural. A teologia natural como ciência A teologia natural a é uma ciência (cognitio certa per causas). Embora para os adeptos do kantismo e do positivismo e materialistas a ciência limita-se às disciplinas naturais e experimentais; segundo eles a metafísica não preenche os requisitos de uma ciência. Mas se considerarmos a ciência como um sistema de conhecimentos adquiridos segundo um método e um objeto próprios, apresentado de forma ordenada, verificável por via racional ou experimental, podemos chamar a teodiceia de ciência. Definiremos então a teologia natural, metafísica teológica ou teodiceia como a ciência metafísica que pretende demonstrar racionalmente a existência, a essência e atributos de Deus, assim com a relação dele com o universo, valendo-se apenas da razão humana, sem a Revelação divina. Os temas basilares em que se divide o estudo da teologia natural são: I. II. III. A existência de Deus. A natureza e os atributos de Deus. Relações de Deus com o mundo. Método e importância da teologia natural Pelo fato de que Deus não é imediatamente acessível aos sentidos, a teodiceia não pode ser uma ciência física ou experimental. Ela é, por excelência, uma ciência metafísica, na proporção em que seu objeto ultrapassa a experiência sensível, e deverá, por conseguinte usar o método racional a fim de explicar e precisar com a inteligência todas as riquezas implicadas no conhecimento de Deus como causa e princípio universal. Porém como Deus só pode ser conhecido por nós através dos efeitos de seu poder, a teodiceia deverá partir da observação do ente, do ser em geral, tal como a ontologia no-lo apresenta em sua noção, suas propriedades, categorias e leis universais, para elevar-se daí até Deus, razão suprema de todo ente. Nosso método (indutivo/dedutivo) tem por tanto suas raízes na plena experiência, pois é no próprio nível sensível que a inteligência compreende o ser e suas raízes mais gerais. Estamos instalados desde o começo na plena realidade no mais estrito sentido da palavra- com os pés na terra, mas a cabeça nas alturas, bem ao contrário de tantas filosofias modernas e contemporâneas... É quase desnecessário assinalar a importância e a utilidade da teodiceia. A excelência de uma ciência está em razão da excelência de seu objeto. Ora, o pensamento não pode ter mais alto objeto do que Deus, o Ser supremo, o princípio primeiro e fim último de todas as coisas. É no conhecimento e no amor de Deus que reside nossa perfeição e, por conseguinte, nossa verdadeira felicidade. Por outro lado, nosso conhecimento do mundo e do homem jamais poderá ser completo, se não remontarmos a Deus como a causa de tudo o que existe, e a Ética não poderá ter fundamento sólido se não recorrermos a Deus, soberano Legislador. Enfim, a teologia natural, demonstrando a existência de Deus, fornece à Fé a primeira de suas bases racionais como já foi dito acima. I. A existência de Deus 1. Possibilidade e necessidade da demonstração da existência de Deus. O objeto de nosso estudo, de modo diverso que o das demais ciências, recebe um aparato crítico quanto a sua existência; isto por duas razões, porque Deus não é evidente para o homem, pois como sabemos nihil est 12 Porém este termo não é preciso porque não abarca todos os aspectos da teologia natural ou metafísica teológica. Feita esta ressalva o termo se emprega como sinônimo dos antes mencionados. 3 in intellectu quod prius non fuerit in sensibus. A outra razão é que historicamente surgira a negação tanto da existência de Deus, como da capacidade ou possibilidade do conhecimento humano ter acesso a Ele. De maneira que a questão da existência de Deus se torna então absolutamente fundamental, porque dela dependem não só a existência do cosmos como também a possibilidade de seu conhecimento. Assim, antes de abordar as provas da existência de Deus, é mister indagar se estas provas são necessárias e se são possíveis. Com efeito, de uma parte, os ontologistas sustentaram que não era necessário demonstrar a existência de Deus e, de outra parte, os fideístas e os agnósticos negaram que fosse possível fazer esta demonstração. Deus é o Absoluto inevitável à razão humana, Ele é evidente em si e para si mesmo, mas não é a sua existência para nós, já que não a alcançamos conhecer nele mesmo, sendo, pois, necessário que a demonstremos pelo que nos é mais conhecido, os seus efeitos; e assim penetrarmos algo do conhecimento de sua essência [Sum. Theo. I q.2, a.1, c]. A não evidência da existência de Deus não nega que exista em nós ou que esteja impresso naturalmente em nós algum conhecimento geral e confuso da existência de Deus, isto é, Deus como a felicidade do homem [Sum. Theo. I q.2, a.1, ad1], embora não a conhecemos como ela é em si mesma, mas a porta de entrada para o conhecimento da essência de Deus, naquilo que nos é possível conhecer, é a sua existência. Ora, porque a sua existência não é evidente para nós como o é para Deus, nossa razão deve procurar demonstrá-la pelos efeitos das obras de Deus. É possível demonstrar a existência de Deus como dissemos, porque se Deus não é evidente para nós, e se Ele existe, os efeitos de suas obras enquanto se revestem da materialidade do mundo criado, pode nos revelar algo do seu existir. Portanto, se a existência de Deus não é evidente para nós, pode ser demonstrada pelos efeitos por nós conhecidos. [Sum. Theo. I,q.2,a.3,c]. 2. Doutrinas que negam ou questionam a existência de Deus 2.1 Ontologismo Este conceito abrange todas as correntes filosóficas que professam que Deus é objeto de um conhecimento intuitivo. Esta tese foi defendida de formas diferentes, desde a visão de Deus até a teoria da revelação de Deus na própria experiência religiosa. A denominação de ontologismo13 (bem poderia chamar-se teologismo) se deve a Vincenzo Gioberti14; embora quem pretendeu justificá-lo mais extensamente, a base do caráter eterno e necessário de nossas ideias claras e distintas, foi Malebranche; para estes autores nós temos a ideia de Deus na intuição do ser universal, donde o nome de ontologismo dado especialmente a esta doutrina. Esta teoria desenvolveu-se até a afirmação de que o primum cognitum –o primeiro conhecido– é o ser, entendido como o ser abstrato e universal, comum, antes que o modo de ser; teríamos uma intuição do ser que se identificaria com o Ser divino, sendo que a mesma condição sine qua non do conhecimento é esta intuição primordial do ser divino. O ser divino seria a primeira ideia captada, á luz da qual vemos todas as coisas. Antes mesmo de conhecer cada coisa e no mesmo ato de conhecê-las conhecemos automaticamente o ser divino, que é original e originário, fonte de todos os demais conhecimentos, dos que é base e sustentáculo, sendo assim totalmente desnecessária qualquer prova da existência divina posto que é imediatamente evidente, ela vale por si só. O ontologismo sustenta que a existência de Deus é evidente “a priori”, pelo simples fato de compreender o que significa a palavra Deus. Com efeito, segundo ele, a palavra Deus significa “o Ser que tem todas as perfeições”. Ora, a existência é uma perfeição (impossível pensar, sem cair no absurdo, num “Ser perfeito que não existisse”!). Logo, Deus existe. Seria, então, impossível conceber Deus sem apreender ao mesmo tempo sua existência. É este argumento famoso que foi chamado “argumento ontológico” por Kant na Crítica da razão pura e que segundo alguns autores deveria chamar-se argumento lógico. 13 Deve-se diferenciar claramente entre “ontologismo” e o “argumento ontológico” atribuído pelos modernos a Santo Anselmo e que será estudado mais adiante. Este último se apresenta como uma prova da existência de Deus. Ontologismo, entretanto, é a doutrina que afirma que Deus pode ser conhecido intuitivamente e por isso não é necessária nenhuma prova ou demonstração de sua existência. 14 Sacerdote e teólogo italiano (1801-1852), de ideias políticas nacionalistas, pensava que o catolicismo seria o elemento de unificação da pátria italiana. Seu ontologismo é de matiz platônico. 4 Descartes, para demonstrar a existência de Deus, partia duma ideia de perfeito e infinito presente em nós: nada há, dizia, em nós ou fora de nós que possa explicar esta ideia, porque somos finitos e imperfeitos e tudo o que conhecemos é finito. A ideia de perfeito e infinito, somente pode ser explicada pela existência de um Ser perfeito que a colocou em nós quando nos criou. Malebranche retomou este argumento, dando-lhe uma forma estritamente ontologista. A presença em nós da ideia de infinito –diz– revela a união imediata de nosso espírito com Deus, porque não pode ser algo de criado, visto como tudo o que é criado é infinito. Se temos então a ideia de infinito é porque vemos a Deus: a ideia de infinito é a forma mesma de nossa visão de Deus e de nossa visão de todas as coisas em Deus. Para Malebranche “vemos todas as coisas em Deus”. Todavia, acrescenta que não é a própria essência divina que vemos, ou pelo menos, não a vemos em sua simplicidade e seu ser absoluto, mas somente enquanto relativa às criaturas. Crítica do ontologismo Não é evidente para todos, mesmo entre os que admitem a existência de Deus, que Deus seja o ser absolutamente perfeito, e tal que se não possa conceber maior. Muitos filósofos pagãos disseram que o mundo era Deus; certos povos consideram como Deus o sol ou a lua. O ontologismo é sofistico. Mesmo supondo que a definição nominal de Deus seja para todos “o ser absolutamente perfeito”, o argumento ontológico constitui um verdadeiro sofisma, pois passa indevidamente da ordem lógica para a ordem real: eu não posso conceber um ser perfeito sem o conceber como existente (ordem lógica), mas isto não prova que este ser perfeito existe (ordem real). Nós não vemos a Deus. Todo o nosso saber vem, direta ou indiretamente, da experiência sensível, e Deus é e permanece sempre para nós, mesmo ao final de nossas investigações e de nossas demonstrações, um Deus escondido, de tal forma fica além de nossa apreensão direta e de nossa compreensão natural. Quanto à intuição do ser universal ou inteligível, não há de forma alguma a intuição de Deus ou do Ser infinitamente perfeito, mas a do ser em geral ou indeterminado. A existência de Deus não nos é, portanto, imediatamente evidente, e tem necessidade de ser demonstrada. 2.2 Agnosticismo A identificação do agnosticismo com o ceticismo filosófico, de um lado, e com o ateísmo religioso, de outro, deu ao adjetivo “agnóstico”, de uso muito amplo, uma pluralidade de significados que induz à confusão. O termo “agnosticismo” apareceu pela primeira vez em 1869 num texto de Thomas H. Huxley15, Collected Essays (Ensaios reunidos). E foi como naturalista que Huxley usou do vocábulo. Com ele, aludia à atitude filosófica que nega a possibilidade de dar solução a todas as questões que não podem ser tratadas de uma perspectiva científica, especialmente as de índole metafísica e religiosa. Com isso, pretendia refutar os ataques da Igreja contra o evolucionismo de Charles Darwin, que também se havia declarado agnóstico. O agnosticismo não é uma doutrina homogênea, mas toma diversos matizes tendo sempre a desconfiança na razão como característica principal. A definição de Huxley viria possibilitar diferentes concepções do agnosticismo. O propriamente filosófico seria o que limita o conhecimento ao âmbito puramente racional e científico, negando esse caráter à especulação metafísica. Tais concepções, que podem ser rastreadas já nos sofistas gregos, tiveram formulação precisa, no século XVIII, nas teses empiristas de David Hume, que negava a possibilidade de se estabelecer leis universais válidas a partir dos conteúdos da experiência.   Protágoras: “Sobre os deuses, ignoro se existem ou não, que figura tem e ainda que se conhecesse algo não poderia falar deles”. Propriamente não realiza uma negação, mas ignora o problema. Hume: Para ele todo conhecimento é sensível e fenomênico e “os únicos objetos das ciências abstratas ou de demonstrações são números e figuras”. Seu critério empírico de sentido impede que se conheça qualquer coisa que esteja além da manifestação sensível, pois tudo que vai além do empírico é um sem sentido já que não temos como conhecer uma realidade assim. Afirmava: “Examinemos nossas bibliotecas. Que estragos teríamos que fazer! Peguemos qualquer livro, por exemplo, sobre Deus ou sobre metafísica. Teríamos que perguntar-nos: Reflete sobre números ou tamanhos? Não. Reflete sobre algo de experiência ou fato de existência? Não. Então, joguemo-lo no fogo! Um livro assim não tem mais que fogos de artifício e mentiras”. 15 Thomas Henry Huxley 1825 -1895) foi um biólogo britânico que ficou conhecido como “Buldogue de Darwin”, por ser o principal defensor público da teoria da evolução de Charles Darwin e um dos principais cientistas ingleses do século XIX. 5    Kant: A crítica kantiana a possibilidade de uma demonstração da existência de Deus por via teórica se fundamenta na sua epistemologia. Um conhecimento somente é tal se tem realidade objetiva ao que se corresponde, isto é, se foi captado sob as formas a priori de tempo e espaço sendo constituído em fenômeno o qual é categorizado como conceito pela unidade transcendental, o intelecto humano não podia chegar a conhecer o númeno ou coisa-em-si, isto é, a essência real da coisa. Comte: herdeiro do empirismo de Hume, afirma que “toda proposição que não é estritamente reduzível à simples enunciado de um fato, particular ou geral, não pode ter nenhum sentido real ou inteligível”. A evolução desde o estado teológico e metafísico ao estado positivo propugna a negação da possibilidade de chegar a noções absolutas e as causas, limitando-se somente a explicar os fatos e fenômenos. Wittgenstein, na herança do positivismo que se renova no século XX no neopositivismo, segue o principio de verificabilidade do Circulo de Viena. Afirma que o mundo está constituído pelo conjunto dos fatos fenomênicos, o conjunto das proposições constitui a linguagem. Assim somente tem sentido aquelas proposições que se referem a fenômenos, estes são os que fundamentam a ciência. Qualquer proposição metafísica não é verdadeira nem falsa, simplesmente não tem nenhum sentido. No seu segundo período Wittgenstein chega a admitir que se possa falar dessas realidades suprassensíveis, pois é inegável que são fonte de conhecimento, mas não de ciência. De Deus se pode falar como de uma experiência inefável, ou seja, que as palavras não conseguem descrever a linguagem mística. Afirma que “não existe um saber acerca de Deus, mas existe uma certeza sobre Deus”. No âmbito religioso, o agnosticismo tem sentido mais restrito. O agnóstico não nega nem afirma a existência de Deus, mas considera que não se pode chegar a uma demonstração racional dela; essa seria, em essência, a tese de Hume e de Kant, muito embora este considerasse possível demonstrar a existência de Deus como fundamento da moralidade. Por outro lado, já na Idade Média a chamada “teologia negativa” questionava a cognoscibilidade de Deus, se bem que para enfatizar que só era possível chegar a Ele pela via mística ou pela fé. Essa seria uma das bases da “douta ignorância” postulada no século XV por Nicolau de Cusa, e sua influência é visível em filósofos dos séculos XIX e XX, como o dinamarquês Søren Kierkegaard e o espanhol Miguel de Unamuno, os quais, embora admitam a necessidade de um absoluto, não aceitam sua personalização. Como se vê, a rigor não se pode falar de agnosticismo, mas de agnosticismos e, melhor ainda, de agnósticos, já que existe notável variedade tanto no processo intelectual pelo qual se chega às teses agnósticas, como na formulação dessas teses. Em essência, o agnosticismo emana de uma fonte profundamente racionalista, isto é, da atitude intelectual que considera a razão o único meio de conhecimento suficiente, e o único aplicável, pois só o conhecimento por ela proporcionado satisfaz as exigências requeridas para a construção de uma ciência rigorosa. E isso tanto no caso de doutrina que se mostre claramente racionalista –é o que ocorre em relação a Kant– como no caso de filosofias nas quais o racionalismo oculte-se sob a aparência de positivismo ou materialismo. Como consequência, o agnosticismo circunscreve o conhecimento humano aos fenômenos materiais, e rejeita qualquer tipo de saber que se ocupe de seres espirituais, transcendentes ou não visíveis. Não nega –nem afirma– a possível existência destes, e sim deixa em suspenso o juízo, abstém-se de pronunciar-se sobre sua existência e realidade e atua de acordo com essa atitude. Nessa ordem de coisas, ainda que admita a possível existência de um Ser supremo, ordenador do universo, sustenta que, científica e racionalmente, o homem não pode conhecer nada sobre a existência e a essência de tal ser. É isso que distingue o agnosticismo do ateísmo, pois este nega radicalmente a existência desse Ser supremo. Por outro lado, o agnosticismo se distingue também claramente do ceticismo, que, segundo a formulação clássica do grego Sexto Empírico (século III a.C.), não se limita a negar a possibilidade do conhecimento metafísico ou religioso, mas também a de tudo aquilo que vá além da experiência imediata. Assim, o ceticismo, pelo menos em seu grau extremo, não é compatível com a ciência positiva. No século XX, “agnosticismo” tende a ser interpretado como um posicionamento diante das questões religiosas. Nesse sentido, costuma-se distinguir entre um agnosticismo em sentido estrito e outro “dogmático”: o primeiro sustentaria que é impossível demonstrar tanto a existência quanto a inexistência de Deus; o segundo se manifestaria em favor da primeira, mas negaria que se possa chegar a conhecer alguma coisa a respeito do modo de ser divino. Esta última via é a habitualmente defendida pelos pensadores que postulam um caminho místico ou irracional de abordagem do absoluto. 6 2.2.1 Tipos de agnosticismo Fideísmo Doutrina que defende que Deus não pode ser conhecido pela razão, mas única e exclusivamente pela fé. A ideia central do fideísmo é que as questões religiosas não podem ser justificadas por meio de argumentos ou provas, mas apenas pela fé. Era a posição de Occam e do nominalismo. Lutero16 que, com seu principio da sola fides e seu desprezo pela filosofia escolástica, se ufanava de ser discípulo de Occam, acentua a posição agnóstica devido a seu pessimismo sobre a condição da natureza humana irreparavelmente estragada depois do pecado original. Esta doutrina foi condenada no Concilio Vaticano I. Os fideístas mais radicais, como o filósofo luterano dinamarquês Kierkegaard, defendem que justificar a nossa crença em Deus é impossível, pois a natureza divina está além de nossa compreensão, e também uma opção indesejável, pois ao fazê-la retiramos parte da essência da fé, que seria acreditar mesmo sem provas. Este tipo de fideísmo é muitas vezes qualificado como uma forma de irracionalismo (negação da razão). Por outro lado, Blaise Pascal e Santo Agostinho defenderam uma forma mais moderada de fideísmo segundo a qual, apesar de a fé ter um estatuto privilegiado em matérias religiosas, podemos apelar à razão para fundamentá-la. No século XVII, Miguel de Molinos adota una posição netamente fideísta com seu misticismo quietista. Nessa mesma linha estão Cornélio Jansénio e Blaise Pascal tão facilmente citado entre os agnósticos posteriores. No século XIX é Louis Eugène Marie Bautain17 quem mantém e sistematiza esta doutrina que é ele quem nomeia fideísmo em sua obra Philosophie du Christianisme. Em nosso século, o maior defensor do agnosticismo fideísta foi o teólogo luterano suíço Karl Barth (1886-1968). Com muita veemência, rejeita ele qualquer modalidade de teologia natural, pois segundo Barth, Deus não pode ser conhecido pela capacidade da razão humana, Ele também não se revela na natureza e nem na história. Para este teólogo protestante, os que acreditam demonstrar a existência de Deus, em realidade não chegam ao Deus da revelação, mas a uma projeção mental de seus discursos, caindo numa certa idolatria. Acentuando que a revelação de Deus aconteceu exclusivamente em Jesus Cristo, Barth combateu a doutrina católica da analogia entis18 (analogia do ser) que ele apelida de “invenção do anticristo”. Barth salientou que a correspondência (analogia) acontece somente numa relação de fé e só por iniciativa de Deus. Ela não acontece naturalmente. Por isso, ele acentuou a analogia fidei. Qualquer pretenso conhecimento racional de Deus vem a ser “culpada arrogância religiosa”. Segundo Barth, a analogia entis é o abominável caminho que vai de baixo para cima, com a presunção de que a partir da terra se penetre no mistério divino. O caminho correto seria o que parte da revelação de Deus –de cima para baixo– é o caminho da analogia fidei. É a partir da fé que o cristão compreende a verdade de Deus e não se baseando na sua própria razão. Quando a fé procura suportes racionais, ela deixa de ser fé. Tradicionalismo O tradicionalismo apareceu na França no século XIX, tese defendida por Lamennais 19, que ressalta que só existe uma regra de verdade que é o consentimento universal ou senso comum, o qual se baseia na tradição: o que recebemos e aprendemos é a verdade, verdade que está em todos aqueles conhecimentos que são compartilhados por todos os homens. O conhecimento de Deus é um desses, ainda mais, é um dos conhecimentos mais seguros, pois não há povo que o negue. Somente poderíamos negar sua existência negando o valor da razão, ou seja, do sentido comum. Esta tese nega a capacidade da razão de fazer verdadeira ciência, ou seja, conhecer as causas últimas. O consentimento universal não tem valor por si, mas unicamente pelas razões que o fundamentam. 16 17 O heresiarca Lutero abominava a filosofia e a razão humana e apelidava a esta última de prostituta (die hure Vernunft). Sacerdote, teólogo e filósofo francés (1796-1867). As suas doutrinas foram condenadas pela Igreja. 18 Segundo o Doutor Angélico, há uma correspondência e até certa semelhança (analogia) entre Deus e suas criaturas, o que permitiria à razão humana aproximar-se ao mistério de Deus. 19 Hughes Félicité Robert de Lamennais (1782-1854) Sacerdote, filósofo e teólogo francês. Começou sendo defensor do ultramontanismo, mas depois foi partidário do socialismo e do republicanismo. Suas doutrinas foram condenadas pelo Papa Gregório XVI. 7 Crítica do argumento fideísta e agnóstico A posição fideísta ultraja a razão que encontra a sua mais perfeita expressão na arte da demonstração, que dos efeitos se eleva ao conhecimento das causas. São Tomás refuta o fideísmo assinalando que em qualquer hipótese nosso conhecimento da existência de Deus tem uma origem sensível, uma vez que toma por ponto de partida os efeitos sensíveis do poder divino. Sob este aspecto, não nos pode conduzir a conhecer Deus perfeitamente, pois não existe nenhuma proporção entre suas obras sensíveis e sua natureza. Mas a demonstração tirada dos efeitos sensíveis é suficiente para nos fazer conhecer a Deus como causa destes efeitos o que é o próprio objeto da demonstração. De resto, a melhor refutação dos argumentos fideístas e agnósticos consiste em expor as provas da existência de Deus de tal maneira que seu valor se imponha à inteligência e a domine pela evidência do verdadeiro. A posição agnóstica quebra a ordem das ciências e compromete a integridade do saber, pois, se não há ciência do que ultrapassa a experiência sensível, a ciência dos fenômenos da natureza se torna a ciência suprema e o conjunto do saber humano fica sem explicação derradeira. Enfim, a opinião fideísta e agnóstica censura como vaidade o esforço constante dos filósofos, mesmo os maiores, para demonstrar a existência de Deus. Seria inconcebível que este esforço procedesse de uma ilusão. 2.3 Ateísmo Ateísmo é a rejeição ou ausência da crença na existência de divindades e outros seres sobrenaturais. O termo ateísmo, proveniente do grego clássico ἄθεος (atheos) que significa “sem Deus”, foi aplicado com uma conotação negativa àqueles que rejeitavam os deuses adorados pela maioria da sociedade. Com a difusão do pensamento livre, do ceticismo científico e do consequente aumento do criticismo à religião, a aplicação do termo foi reduzida em seu escopo. Os primeiros indivíduos a identificarem-se propriamente como “ateus” surgiram no século XVIII. A definição de ateísmo como toda postura teórica ou de vida que negue a existência de Deus parece ter significado preciso. O certo, porém, é que a própria diversidade das concepções humanas sobre Deus envolve sua negação em um manto de inevitável ambiguidade. Tipos de ateísmo. Quando se trata apenas de atitudes, temos um ateísmo prático, é o daquela pessoa que se comporta como se Deus não existisse (etsi Deus non daretur) sem se importar com a questão de sua existência. O ateísmo prático se confunde muitas vezes com o indiferentismo. Já o ateísmo teórico é aquele no qual se nega a existência de Deus. Se é resultado de um processo discursivo que nega explicitamente a existência de Deus como conclusão de um processo intelectual, estamos diante do ateísmo teórico positivo. Esta concepção, que nega não só a existência de Deus, mas a de qualquer realidade que não seja a meramente física, é aquela que em geral se associa ao conceito de ateísmo, e, portanto constitui a melhor referência para assinalar as diferenças entre essa e outras doutrinas filosóficas. Quando se prescinde de Deus para elaborar uma teoria sobre o homem e o universo e simplesmente se nega a Deus sem nenhuma argumentação se dá o ateísmo teórico negativo. A diferença dos ateus de épocas passadas (versão sofística, materialista, racionalista, iluminista) o ateísmo contemporâneo é um ateísmo postulatório, isto é, a superfluidade de Deus seria o pressuposto para a possibilidade da plena realização do homem. Assim surge a negação de Deus como o ponto de partida para a afirmação do homem. Ateísmo e outras posturas filosóficas e religiosas. Em primeiro lugar, é preciso distinguir o ateísmo de outras duas doutrinas que frequentemente se confundem com ele: o agnosticismo e o cepticismo. Alguns pensadores não negam nem afirmam a existência de Deus, mas consideram que não é possível chegar a nenhuma conclusão sobre o tema. Esses pensadores são denominados agnósticos, e entre eles se podem incluir os positivistas, que só afirmam aquilo que é objeto da experiência. Outros, os cépticos, negam a possibilidade de se conhecer qualquer verdade e, por conseguinte, a possibilidade de se conhecer a existência de Deus. Desta forma, o ateu se diferencia do agnóstico no sentido de que não admite sequer a mera possibilidade da existência de Deus, e do céptico pelo fato de admitir a possibilidade de conhecimento, embora negue Deus. 8 Por outro lado, as doutrinas que afirmam a existência de Deus originaram três posturas básicas: o teísmo, característico das religiões monoteístas, afirma a existência de um Deus único, pessoal e transcendente; o panteísmo identifica Deus com o universo; o deísmo crê em um Deus que criou o mundo e lhe deu leis, mas que não intervém nos acontecimentos posteriores à criação, e do qual não é possível conhecer coisa alguma. Panteístas e deístas, contudo, foram frequentemente acusados de ateísmo pelos teístas. Ateísmo e panteísmo, é certo, compartilham a ideia da inexistência de um Deus transcendente. Mas o panteísmo, em sua variante mais comum, não tende a definir a natureza do universo, nem considera que sua natureza última tenha que ser necessariamente material, e até frequentemente lhe atribui um caráter espiritual. Nesse sentido, portanto, o ateísmo e o panteísmo diferem; mas não é menos certo que, do ponto de vista teísta, a assimilação dos dois se justifica, uma vez que ambos rejeitam a noção de um Deus pessoal criador do mundo. Parece muito menos lógico que possam ser considerados ateus os deístas, que admitem explicitamente a existência de um Deus supremo conhecido pela razão, embora prescindam de qualquer elemento sobrenatural e neguem sua comunicação com os homens. Ateísmo na filosofia ocidental Ao longo da história, o qualificativo “ateu” foi com frequência empregado de modo pejorativo contra pessoas ou comunidades que em nada correspondiam ao conceito moderno de ateísmo. Assim, Sócrates, cujas concepções influenciaram decisivamente o desenvolvimento da espiritualidade ocidental, foi acusado de ateu por não acreditar nas divindades atenienses. Sob outra perspectiva, o fato de uma pessoa que não admite a existência de um Deus único, livre e pessoal afirmar sua crença em alguma outra realidade transcendente, Deus ou Ser Supremo, muito possivelmente não abalará, no crente de uma fé monoteísta, a convicção de que essa pessoa é ateia. Portanto, a compreensão do ateísmo exige uma análise do significado histórico do termo, de suas relações com outras posturas –filosóficas ou religiosas– com as quais se identificou ou a que se opôs e, em indissolúvel ligação com isso, das diferentes formas de ateísmo. Antiguidade. A dificuldade de se aplicar o conceito atual de ateísmo a pensadores de outras épocas se patenteia já no caso do primeiro filósofo grego conhecido, Tales de Mileto, que identificava o princípio vital com a água; dependendo de onde se põe a ênfase –se na noção de princípio ou na da água como entidade física– tal afirmação pode ser entendida como transcendente ou como meramente materialista. Entre os sofistas, Crítias denunciou as religiões como invenções dos políticos para controlarem o povo e, no século III a.C., Evêmero esboçou uma interpretação racionalista da religião, considerando os deuses como antigos heróis divinizados. Platão achava que a pior forma de ateísmo é a das pessoas más, que esperam poder propiciar a divindade mediante doações e oferendas que lhes justifiquem os descaminhos. Entre os ateus materialistas da antiguidade, foram particularmente radicais os gregos Demócrito e Epicuro20, assim como o romano Lucrécio. A Epicuro se atribui o célebre argumento: se Deus quer suprimir o mal e não pode, é impotente; se pode mas não quer, é invejoso; se não quer nem pode, é invejoso e impotente; se quer e pode, por que não o faz? Para os estoicos, Deus, Razão, Destino e Natureza constituem uma mesma coisa; mas seu panteísmo fundamenta certa religiosidade. Renascimento e racionalismo. Na Idade Média esboçaram-se indícios de algumas posições ateias, mas a organização política e social impediu que ganhassem formulação explícita. Foram as novas concepções do Renascimento, com seus interesses antropocêntricos, sua volta à avaliação de todas as coisas segundo a medida do homem, seu paganismo cultural, sua descoberta da natureza e do método científico, que diluíram a concepção teológica medieval e orientaram numerosos pensadores para o materialismo, o panteísmo ou o deísmo. Assim, entre os séculos XV e XVI, o italiano Pietro Pomponazzi negou a imortalidade da alma e, veladamente, a existência de Deus. Seu compatriota Maquiavel separou a política da religião e considerou esta última um instrumento do poder: Roma deve mais a Numa Pompílio, que lhe deu os primeiros regulamentos religiosos, do que a seu próprio fundador, Rômulo. Outro italiano, Giordano Bruno, foi queimado na fogueira em 1600, acusado de ateu por suas teses panteístas, nas quais identificava Deus com a unicidade infinita. No século seguinte, o judeu holandês Baruch de Spinoza foi acusado de ateísmo por assemelhar Deus à substância. 20 Deste filósofo já se explicou seu “ateísmo” sui generis. 9 Iluminismo. O movimento cultural do século XVIII conhecido como Iluminismo apresentava-se como continuação do Renascimento em seu racionalismo e antropocentrismo, embora a medida humana já não fosse a do sábio ou a do artista, mas a de todo cidadão, a quem se dirigia a Enciclopédia. Os ingleses adotaram o deísmo, uma religião racionalista, sem nenhuma revelação sobrenatural, que acredita racionalmente num Deus Criador – o grande Arquiteto do universo– mas que não intervém no mundo. David Hume, como empirista, rejeitou toda metafísica e, portanto, as provas racionais da existência de Deus, mas declarou aceitar, como homem, a irracionalidade da fé, gerada pelo medo do desconhecido. Os franceses seguiram duas correntes distintas: a mais radical, a do materialismo ateu, era representada por Denis Diderot, entre outros, e a corrente deísta foi significativamente exposta por Voltaire, para quem Deus era o “Geômetra Eterno”. Na Alemanha, Kant negou a possibilidade da prova metafísica da existência de Deus. A religião de Hegel era pura intelectualidade, tendo sido interpretada como teísta, como panteísta e como ateia. Ateísmo moderno A partir de meados do século XIX, o ateísmo se tornou mais explícito e militante. O alemão Ludwig Feuerbach subverteu a dialética hegeliana, concedendo primazia à sensação frente à razão. Paralelamente, inverteu a relação Deus-homem. Não foi Deus que criou o homem a sua imagem e semelhança; foi o homem que projetou suas melhores qualidades sobre a tela do conceito de Deus. Em suas teses sobre Feuerbach, Marx criticou o fato de que a filosofia se tivesse limitado a interpretar o mundo, em vez de tratar de modificá-lo. O estudo da história levou Marx à conclusão de que as estruturas sociais vão sendo construídas como muros protetores para evitar a mudança das relações de produção: a religião é o ópio, o consolo adormecedor do povo. Nietzsche, sob uma postura mais existencialista, não proclamou a inexistência de Deus, mas sua morte nas mãos dos homens, o que provocaria uma mudança de valores que prepararia a chegada do super-homem. Nietzsche leva o homem sobre si mesmo pregando o reino do super-homem que é somente humano. A base para que o homem possa livrar-se da escravidão das barreiras, inclusive do bem e do mal, é a morte de Deus, tão pregoada pelo mesmo Nietzsche. Sua afirmação “se existisse Deus, eu seria Deus, logo Deus não existe”, ou em outro momento, “Eu revelo todo meu coração, meus amigos. Se existisse Deus, como eu suportaria não sê lo?”. A morte de Deus, assassinado pelos homens, deixa o trono da divindade livre para que o homem possa ocupá-lo. A não existência de Deus é preenchida pelo homem que, com sua vontade de poder, deve elevar-se até a total autoafirmação, num indefinido acrescentamento de poder. O orgulho, a hybris, o “sereis como deuses” constituem a vida do homem que nessa inquietude progressiva e incurável deve viver e morrer. Já no século XX, o ateísmo seria expresso das mais diversas formas. Para Freud, a religião é uma projeção simbólica do inconsciente, na qual Deus ocupa a imagem paterna. Para o positivismo lógico do círculo de Viena, as proposições “Deus existe” ou “Deus não existe” carecem de sentido e sobre elas não é possível emitir juízo algum. Para Jean-Paul Sartre o ateísmo é um pressuposto existencial, necessário para preservar a liberdade humana, pois se não existe Deus tudo estaria permitido, segundo alega um personagem de Dostoievski 21, e que depois Sartre usaria para explicar seu ateísmo na sua famosa conferencia “L’existentialisme est un humanisme” (O existencialismo é um humanismo) proferida em Paris em 1945. Essa liberdade pura é o que quer Sartre ao afirmar que o homem “está condenado a ser livre”. Declara: “Ainda que se Deus existisse, isso não mudaria nada... Não é que acreditemos que Deus existe, mas pensamos que o problema não é sobre sua existência, mas que é necessário que o homem se encontre e se convença de que nada pode salvar-lhe”. Segundo Sartre Deus seria incompatível com o homem, pois o homem é pura liberdade e Deus seria a negação dessa liberdade pura, pois nos limitaria, nos determinaria, e sua vigilância constante nos impediria de sermos nós mesmos. Disto poderia argumentar que o homem existe, logo Deus não existe. Para Sartre o homem é uma existência que precede a essência, não existe a natureza humana. O homem é fundamentalmente desejo de ser Deus. 21 Fiódor Mikhailovich Dostoievski, 1821 – 1881. Célebre escritor russo, uma de suas mais famosas obras é a novela Os irmãos Karamazov, nela um dos personagens, Ivan, ateu racionalista, defendia que se Deus e as religiões não existissem, tudo passaria a estar permitido. 10 Algumas razões alegadas pelos ateus para não aceitar a existência de Deus Há quem diz que não acredita na existência de Deus porque não pode crer no que nunca viu. Esta não é uma razão convincente porque não é necessário ter visto uma coisa para saber que ela existe. Alguns exemplos:        Não vemos o vento, mas sabemos que ele existe, pois sentimos seu sopro na nossa pele, no chapéu que arranca das cabeças, no balanço do capinzal e dos galhos de árvores, nas telhas que arranca dos telhados, etc. Nunca se viu os homens antidiluvianos, mas a ciência afirma que tiveram presença na Terra porque os fósseis humanos descobertos e objetos trabalhados –pedra talhada, arma, vaso, etc.– servem de prova. Nunca se viu os dinossauros, mas acreditamos que existiram porque a ciência afirma que há fósseis e pegadas em várias partes do mundo que comprovam a existência daqueles animais no passado longínquo. Ao observarmos a arrumação de uma casa que se encontra temporariamente desocupada, concluímos que alguém morava ali, embora não tenhamos visto o morador. Vemos os corpos se moverem sob a influência da força da gravitação. Não vemos essa força mas não duvidamos da sua existência. Quem estiver no fundo de um vale, imerso numa bruma espessa, não vê o Sol; entretanto, pela luz difusa tem certeza da presença dele. Quando se observa uma obra de arte –uma escultura ou uma pintura– sabe-se que ela foi produzida por uma pessoa humana, mesmo não se tendo visto o seu autor. Sabe-se que ela não poderia ser o trabalho de um animal irracional ou pior ainda obra do acaso. Outros não creem na existência de Deus porque “se Ele existisse, dizem, não haveria tanto sofrimento humano”. Entretanto, a realidade é que, quase sempre, o sofrimento tem sua raiz no mal que há no coração do homem: Porque é do coração que provêm os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as impurezas, os furtos, os falsos testemunhos, as calúnias. (Mt 15, 19). A descrença em Deus não só revela falta de fé. Nossa vida moral encontra sua fonte na fé em Deus, que em toda a criação revela seu amor, São Paulo vê no desconhecimento de Deus o princípio e a explicação de todos os desvios morais (Rm 1,18-32). A incredulidade do ateísmo é uma negligência altamente culpável contra a verdade revelada e a recusa voluntária de lhe dar o próprio assentimento. 3. As provas da existência de Deus Entende-se por “prova” a operação mental com que se busca estabelecer a verdade de uma afirmação ou a validade de uma tese. A respeito da existência de Deus o crente não precisa provas, ainda que de vez em quando possa ser perturbado pela dúvida. A respeito da não existência de Deus o ateu pode cultivar dúvidas, mas não tem provas. A finalidade das provas da existência de Deus é, em primeiro lugar, submeter ao crivo da razão aquilo que já é plenamente reconhecido pela religião; têm elas, pois, o propósito de dar rigor racional àquilo que a consciência humana já reconhece, por meio da religião. Em segundo lugar, a finalidade das provas da existência de Deus é levar o ateu a Deus. O problema da existência de Deus é uma linha que atravessa toda a história da filosofia. Praticamente todos os filósofos abordaram seriamente esse assunto. Mas embora os pré-socráticos Xenofonte e Anaxágoras tenham se ocupado do tema, aquele que primeiro formalizou as provas da existência de Deus foi Platão, sendo seguido por Aristóteles. Estes deixaram uma marca indelével, que foi de ajuda a todos os filósofos posteriores, sobretudo aos filósofos cristãos, como Santo Anselmo de Aosta e São Tomás de Aquino. Este último desenvolveu e tornou universalmente conhecidas as cinco vias da existência de Deus. Podem-se distinguir dois grupos de provas da existência de Deus: o das provas metafísicas e o das provas morais, conforme essas provas partam da realidade objetiva do universo ou da realidade moral. De fato, toda prova de Deus é metafísica, uma vez que a existência de Deus não é propriamente objeto de apreensão intuitiva e não pode ser demonstrada, a não ser com a ajuda dos princípios metafísicos. 11 Para demonstrar a existência de Deus podem seguir-se três formas de argumentação: 1. A priori: quando da essência conhecida deduzo os atributos (entre eles a existência) ou da causa os efeitos. É próprio do ontologismo. 2. A simultaneo: quando se conhece ao mesmo tempo, pela mesma essência seus atributos. Seria o dito “argumento ontológico”. 3. A posteriori: quando se conhece a essência por mediação dos atributos, ou a causa por seus efeitos. A esta ordem pertencem as vias tomistas e é realmente a única válida. Santo Anselmo e o “argumento ontológico” Na Idade Média, além da construção de admiráveis catedrais, também foi desenvolvido um sistema escolar colossal e foram criadas as universidades e escritas grandes obras de filosofia, teologia e literatura. Santo Anselmo de Aosta é uma das figuras mais ilustres e atraentes deste fecundo período histórico que o agraciou com o título de Doutor Magnífico. O denominado “argumento ontológico” dele confirma a importância e profundidade do pensamento medieval. Santo Anselmo foi não somente um teólogo, mas também um formidável filósofo, porque, embora se procure em vão o termo “filosofia” em seus escritos, no entanto, o que há de argumentação, do ponto de vista racional, não falta, em especial no contexto das provas da existência de Deus apresentadas em suas obras mais famosas. Na exposição da doutrina sobre Deus tal como se encontra no Monologion, tratado sobre Deus que pelo largo uso da razão, constitui momento decisivo na gênese da teologia escolástica, Santo Anselmo segue de perto o De Trinitate de Santo Agostinho. Baseado no princípio de causalidade aplicado à multiplicidade dos seres e aos graus de bondade, Santo Anselmo conclui: 1. A existência de um Bem supremo, fonte única de todos os bens. 2. A existência de um Ser soberano que, existindo por si, produz todos os outros seres. 3. A existência de um Ser absolutamente perfeito que confere aos seres imperfeitos a sua relativa perfeição. Estes três atributos ou perfeições convergem num único e mesmo Ser, absoluto e necessário, que é Deus. No entanto, a complexidade destes três argumentos não satisfaz plenamente Santo Anselmo, que continua a ensaiar uma demonstração que não se baseie em qualquer outra e que seja suficiente para estabelecer ao mesmo tempo a existência de Deus, a sua natureza e, enfim, o conjunto de todas as verdades antecipadas pela fé. No Proslogion, que significa alocução, o mais célebre dos tratados de Santo Anselmo e um dos textos mais revistados do pensamento ocidental, desenvolverá, sob a forma de uma oração contemplativa, outro argumento que é uma prova quase a priori sobre a existência de Deus. É uma longa prece de quem busca entender o que crê, um diálogo entre a alma do fiel que reza e Deus. Trata-se de uma quarta reflexão argumentativa dentro da teodiceia anselmiana fundamentada na ontologia que compunha o pensamento metafísico daquele momento na Idade Média. O argumento era conhecido pelos escolásticos como argumento único (argumentum unicum) ou simplesmente a “razão de Anselmo” (ratio Anselmi). Será a Modernidade que o denomine de “argumento ontológico”. Hoje muitos estudiosos ainda o apelidam de ontológico, apesar de impróprio. Alguns porque o entendem à luz da crítica moderna, outros porque entendem que faz sentido dentro da filosofia do ser entre os medievais. Inicialmente Santo Anselmo intitulou esta obra de fides quaerens intellectum, depois abreviou simplesmente para Proslogion. Ela consta de vinte e seis capítulos, no primeiro ele começa com uma prece e, do segundo ao quarto capítulos, expõe o argumento. Já no Proêmio, S. Anselmo explica que não estava satisfeito com as provas expostas no Monologion e, portanto, buscava um argumento único que provasse a existência de Deus sem ter que recorrer a nenhum outro. Parece que S. Anselmo, depois de expor as três provas que partiam das criaturas para chegar ao Criador, teve receio de determinar o ser de Deus com relação às coisas. Parece ser próprio de S. Anselmo que, para falar dignamente de Deus, tem que tomá-lo em absoluto. Assim, e acolhendo os instantes pedidos dos seus irmãos monges que lhe pedem ajuda para encontrar razões da fé que não precisem apenas dos argumentos da autoridade ou da Escritura, acontece a S. Anselmo pensar na possibilidade de encontrar esse único argumento para demonstrar a existência de Deus, método contrário àquele, a posteriori, que seguira na sua anterior obra Monologion, onde seguira a concatenação de vários argumentos, mormente a dita via cosmológica, isto é, chegar a Deus através dos efeitos na criação, 12 (antecipando o que São Tomás apurará nas suas célebres quinquae viae). Começa, pois, por tentar elucidar a primeira das afirmações do Credo, a existência de Deus (Credo in Deum). Arrimado na Escritura, “se não acreditardes não compreendereis” (Is 7, 9), e em Santo Agostinho (crede ut intelligas, intellige ut credas), S. Anselmo faz tudo por fomentar uma atitude interrogante, uma atitude que ora interrogando e que interroga orando, fecundado assim o trabalho da inteligência com a fides qua22, ou seja, como a disponibilidade cordial para acreditar. Com efeito, S. Anselmo está seguro de que se não acreditar não compreenderá. Daí, então, a busca de um argumento que, para ser provado, não necessitasse de nenhum outro fora de si mesmo. “Comecei a pensar comigo mesmo se não seria possível encontrar um único argumento que, válido em si e por si, sem nenhum outro, permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente”. Preocupado desde há muito tempo com esse pensamento, estava a ponto de renunciá-lo, quando, de repente, e encontrando-se muito cansado, veio-lhe à mente aquilo que já pensava não mais encontrar. Surge, então, o argumento único que será a matéria da obra que Santo Anselmo denomina fides quaerens intellectum (a fé buscando o entendimento). San Anselmo parte de Dios, de un Dios oculto y que no se manifiesta al hombre caído. El punto de partida es religioso: la fe del hombre hecho para ver a D ios y que no lo ha visto. Esta fe busca comprender, hacer una teología: Fides quaerens intellectum ; pero aún no aparece la necesidad ni la posibilidad de demostrar la existencia de Dios; San Anselmo invoca el Salmo 13: Dixit insipíens in corde suo: non est Deus; dijo el insensato en su corazón: no hay Dios. Ante esta negación se cuestiona por vez primera la existencia de Dios, y tiene sentido la prueba, que carece de él sin el insensato […] En rigor, la prueba de San Anselmo muestra que no se puede negar que haya Dios. Y consiste en oponer a la negación del insensato el sentido de lo que dice. Lo que dice el insensato no lo entiende, y por eso precisamente es insensato; no piensa en Dios, y su negación es un equívoco; no sabe lο que dice, y en eso consiste la insensatez 23. É assim que no Proslogion ele formula uma demonstração baseada na presença imediata e irrecusável em toda inteligência humana da ideia de um Ser tão perfeito que não é possível pensar outro mais perfeito do que ele, tal ser só pode ser pensado sem contradição se existir simultaneamente no espírito e na realidade, a natureza da sua perfeição é tal que ela mesma contém a razão da sua existência. Assim, a partir de uma noção de Deus presente ao intelecto, id quo maius cogitari non possit (aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado), formula o autor um férreo argumento lógico a favor da existência de Deus na realidade (in re) e não apenas na mente (in mente). O termo “maior” que Santo Anselmo usa, não deve, claramente, se referir a algo espacial, mas se trata de maior na ordem do ser (poderíamos talvez, entendendo-a bem, usar a palavra “grandeza” para caracterizar o que Santo Anselmo chama de “grande”). Ou seja, um ser é tanto maior, quanto “mais ser” ele tem. Ou ainda, um ser é maior que outro se ele for mais perfeito. Assim, neste sentido, o homem é “maior” que qualquer planta. O “argumento ontológico” teve propugnadores ilustres ao longo da história da filosofia e também críticos entre filósofos de primeira linha. Trata-se de um argumento tipicamente platônico e, de acordo com muitos, está implícito nas obras do grande mestre da filosofia ocidental bem como nos neo-platônicos. A todas as tentativas de refutação deste argumento produzidas ao longo da história e fundamentalmente baseadas numa alegada passagem ilegítima do plano das ideias para o plano da realidade (do plano lógico ao ontológico) Santo Anselmo poderá sempre responder, como já respondera a Gaunilo, seu primeiro adversário, que o argumento só vale no caso único e privilegiado do Ser supremo e, por isso mesmo, incomparável. Gaunilo de Marmoutiers foi um monge beneditino, contemporâneo de Santo Anselmo. O argumento dele é também o daqueles que afirmam que se pode provar a existência de qualquer coisa com a ideia de ser mais perfeito. Assim, Gaunilo construiu um argumento para provar a existência de uma ilha perfeita. Como podemos conceber a ideia da mais perfeita das ilhas, então ela existiria. Mas o problema de Gaunilo é o 22 Termos técnicos de origem patrístico e medieval com que se denominam os elementos do ato de Fé. A fides quae indica o conhecimento do conteúdo das verdades da Fé, se funda na inteligência. A fides qua é a confiança e a aceitação amorosa destas verdades, se baseia na vontade. A primeira é o aspecto objetivo da Fé e a segunda o subjetivo que se complementam e constituem um único ato de Fé. 23 Julián Marías. Historia de la filosofía. Madrid: Revista de Occidente. 1956, p. 143-144. 13 conceito de “perfeito”. Com efeito, não há consenso sobre em que consista uma ilha perfeita: clima tropic al, ou pelo contrario, temperado? Deserta ou habitada? E assim, por diante. Outra objeção ao argumento de Gaunilo é o próprio uso “perfeito” a uma ilha: por definição, uma ilha é uma terra cercada de água por todos os lados. E só! Então, neste sentido, qualquer ilha é perfeita. Na realidade, Santo Anselmo trata de um ser necessário e isto basta para refutar Gaunilo, porque nenhum ser de nossa experiência no dia a dia é necessário. Só existe um! Kant rejeita-o porquê a existência não é um predicado demonstrável, mas sempre o suposto de toda a predicação e apoda-o de “argumento ontológico” precisamente porque pretende deduzir da existência de Deus in mente a existência de Deus in re. São Tomás24 simplesmente aclara que não se deve confundir a existência no mundo das ideias com a existência no mundo real Talvez quem ouve o nome de Deus não o entenda como significando o ser, maior que o qual nada possa ser pensado; pois, alguns acreditam ser Deus corpo. Porém, mesmo concedido que alguém entenda o nome de Deus com tal significação, a saber, maior do que o qual nada pode ser pensado, nem por isso daí se conclui que entenda a existência real do que significa tal nome, senão só na apreensão do intelecto. Nem se poderia afirmar que existe realmente, a menos que se não concedesse existir realmente algum ser tal que não se possa conceber outro maior, o que não é concedido pelos que negam a existência de Deus. (STh I. P, Q 2, a. 1, ad 2) Entre outros críticos, se devem citar David Hume, e mais modernamente, Gottlob Frege e Bertrand Russell. Alguns, com certo exagero, mas não sem uma ponta de razão, chegam a dizer que depois de Santo Anselmo, a história da filosofia se divide entre aqueles que aceitam a validade do argumento e aqueles que a negam25. E a verdade é que ele divide, de fato, alguns dos maiores pensadores. S. Boaventura o aceita como válido. Outros que assumiram o “argumento ontológico”, alterando-o, foram Descartes, Spinoza, Leibniz e Hegel Dentre os mais modernos, Norman Malcolm, Charles Hartshorne, Alvin Plantinga e Kurt Gödel.  São Boaventura: “Se Deus é Deus, Deus existe”.  Duns Scoto: Se não é contraditório Deus existe. É omniperfeito, tem a existência, existe.  Descartes: “Clara e distintamente vemos que a existência é perfeição própria de Deus, (logo) Deus existe”.  Leibniz: “Se Deus é possível, Deus existe”. Não somente é possível, mas reúne em si toda possibilidade, perfeição. Santo Anselmo é importante na História da Filosofia não apenas pelo argumento do Proslogion (a que muitos estudos parecem reduzi-lo), mas por contribuir, muito antes que a filosofia medieval conhecesse a totalidade dos escritos aristotélicos, para a instauração de um novo método de filosofar, método esse que faz interagir meditação e disputa, lógica e autoridade, filosofia e Sagradas Escrituras. Confiando na capacidade racional do homem, a reflexão anselmiana tem o mérito de mostrar que o rigor filosófico não é algo de segunda ordem, razão pela qual é não apenas lícito, mas necessário lançar-se ao esforço de empreendê-lo. 24 25 Também Summa contra Gentiles I, caps. 10-11 “Hasta hoy el argumento ontológico es el tema central de la filosofía, porque no se trata en él solo de una simple argumentac ión lógica, sino de una cuestión en la que va implicada la metafísica entera. Esta es la razón de la singular fortuna de la prueba anselmiana”. J. Marías, Historia de la Filosofía, Revista de Occidente, Madrid, 1980, p.141. 14


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