RESUMO Este trabalho apresenta a percepção de uma equipe de arquitetos sobre a consideração da componente Espaço Pessoal em projetos apresentados em publicações de arquitetura. O conceito da psicologia ambiental considera as sensações fisiológicas e psicológicas de conforto dos usuários no ambiente construído, visando contribuir para o conforto num sentido mais abrangente. A partir de revisão conceitual, identificou-se nos projetos os elementos que delimitam e personalizam os espaços habitados, evidenciando sua apropriação pelo usuário. Investigou-se ambientes de permanência temporária a prolongada, dos mais públicos aos mais privativos e em tipologias diversas. A pesquisa defrontou-se com a carência de figuras humanas nas publicações. Para este trabalho, selecionou se os projetos que melhor ilustram os diferentes elementos identificados, independente de sua localização geográfica. Verificou-se a sobreposição dos conceitos da psicologia ambiental de territorialidade e privacidade ao do Espaço Pessoal. Embora a arquitetura deva enfatizar as relações interpessoais que podem e são criadas a todo instante de interação entre as pessoas, a componente Espaço Pessoal, apesar de sua reconhecida importância, é talvez a que esteja menos evidente no projeto. 1. INTRODUÇÃO As sensações de conforto dos usuários no ambiente construído são mais do que reações fisiológicas, visto que desempenham também papel cultural, simbólico e sensorial. Heschong (2002) enfatiza como as sensações térmicas afetam a experiência do ambiente pelas pessoas, reforçando o significado deste, como abrigo ou proteção, na vida de seus usuários. As sensações de conforto luminoso e acústico - 135 - também ficam retidas na memória como qualidade avaliada a partir de um repertório de experiências espaciais acumuladas, associando-se à experiência completa do ambiente e contribuindo para sua identificação. Assim, as sensações de conforto traduzidas pelas reações fisiológicas do corpo humano associam-se às sensações de conforto psicológico, que se traduzem em reações de apego ou de desprezo ao lugar. Acredita-se que as pesquisas em conforto no ambiente construído devam procurar respostas que contribuam para a obtenção do conforto neste sentido mais abrangente. Esta pesquisa procura detalhar a percepção de uma equipe de arquitetos sobre a consideração da componente Espaço Pessoal em projetos apresentados em publicações de arquitetura, através de sua representação gráfica: desenhos, fotos e infográficos. Procurou-se encontrar nos projetos analisados situações tanto de permanência temporária quanto prolongada que evidenciassem a apropriação do espaço físico como Espaço Pessoal por parte dos usuários. Foram levantados alguns elementos arquitetônicos que contribuem para a delimitação do Espaço Pessoal, qualificando-o como ambiente confortável. 2. METODOLOGIA Neste trabalho estudou-se o Espaço Pessoal em duas instâncias: primeiramente foi realizada revisão bibliográfica a partir dos conceitos de Sommer (1969) e Hall (1981, 1ª ed. em 1966), dando-se continuidade ao trabalho de Gifford (1997) e outros autores recentes, estudando-se o Espaço Pessoal em situações sob a influência de fatores diversos - pessoais, sociais, físicos, religiosos, étnicos e culturais, a interferência do Espaço Pessoal no comportamento humano, e as teorias que decifram seu funcionamento. Num segundo momento, buscou-se a identificação dos elementos arquitetônicos que conduzem a ambientes confortáveis com relação ao Espaço Pessoal, selecionados por meio da análise de projetos apresentados em publicações de arquitetura nacionais e estrangeiras, cujas concepções arquitetônicas enfatizam as relações interpessoais. Para este trabalho, selecionou-se os projetos que melhor ilustram os diferentes elementos identificados, independente de sua localização geográfica. Analisou-se a contribuição de cada elemento identificado de modo a alimentar uma catalogação inicial desses elementos visando sua aplicação em futuros projetos. 3. REVISÃO CONCEITUAL Os conceitos de Espaço Pessoal, territorialidade, apinhamento (crowding) e privacidade estruturam grande parte dos estudos sobre o comportamento humano no ambiente construído pela psicologia ambiental. O Espaço Pessoal é um desses fundamentos comportamentais no arranjo dos espaços (GIFFORD, 1997). Retomando o conceito proposto por Sommer (1969), o Espaço Pessoal refere-se a uma área com limites invisíveis que cercam o corpo das pessoas, sendo um território portátil. Reflete dois usos: o primeiro refere-se à zona carregada emocionalmente ao redor de cada pessoa, a “bolha” que regula o espaçamento entre elas. O segundo uso refere-se aos processos pelos quais as pessoas delimitam e personalizam os espaços que habitam. De acordo com Hall (1981), o meio ambiente arquitetônico e urbano são expressões de um processo de filtragem-peneiramento dos dados sensoriais humanos. Esses filtros sensoriais são culturalmente padronizados. O autor criou o termo proxemia para se referir às observações e teorias interrelacionadas, relativas ao uso que o homem faz do espaço como elaboração especializada da cultura. Reconheceu quatro zonas de distância/ envolvimento entre os indivíduos e as atividades, relações e emoções associadas com cada uma delas: distância íntima, distância pessoal (ou espaço pessoal), distância social e distância pública. Segundo Gifford (1997), o conceito inicial da “bolha” de Sommer fora desafiado nos anos que se seguiram: o Espaço Pessoal é instável em dimensões, variando de acordo com as circunstâncias; é interpessoal, existindo apenas quando interagimos com outras pessoas; seu conceito deve enfatizar Arquitetos, ao se questionarem sobre o que é a Arquitetura, acabaram por refletir sobre a questão do espaço. Zevi (2) afirma que as quatro fachadas de um edifício constituem apenas a caixa dentro da qual está encerrada a jóia arquitetônica, isto é, o espaço. O autor coloca como o protagonista da arquitetura o espaço, o vazio. O referido autor considera o espaço e o vazio como sinônimos. Para ele, a arquitetura não provém de um conjunto de larguras, comprimentos e alturas dos elementos construtivos que encerram o espaço, mas precisamente deste vazio, do espaço encerrado, do espaço interior em que os homens andam e vivem. A relação entre a Arquitetura e o espaço é retomada também em Coelho Netto (3), que afirma que a Arquitetura não é somente a organização do espaço, mas também é o ato de criá-lo. Oliveira (4) em seu pensar, por uma via fenomenológica, sobre o que é a arquitetura, a encontra como a […] “instauração de uma espacialidade no mundo por um corpo polarizado por suas tarefas” (5). Segundo a autora, a arquitetura por ser atividade transformadora e ordenadora, podemos comparála a um jogo dado por meio de atos primordiais de ordenar e construir, atos como: adicionar-subtrair, alternar, antepor-pospor, apoiar, etc. Mas, qual é a definição deste principal elemento com que a arquitetura trabalha e que tanto referencia? Para responder ao nosso primeiro questionamento, se existe diferença entre o espaço e o lugar, recorremos às etimologias dos cognatos. Segundo a filósofa Chauí (6), na escrita alfabética ou na fonética, não se representa apenas uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve. Em Cunha (7) e Ferreira (8) encontramos a mesma definição para o termo espaço (do latim spătĭum), ele é a “distância entre dois pontos, ou a área ou o volume entre limites determinados” (9). Comparando com a do lugar (do latim locālis, de locus), este é o “espaço ocupado, localidade, cargo, posição” (10). Em Ferreira (11), encontramos como acréscimo para a definição do lugar, “1. Espaço ocupado; sítio. 2. Espaço. 3. Sítio ou ponto referido a um fato. 4. Esfera, ambiente. 5. Povoação, localidade, região ou país”. Segundo as definições e as origens das duas palavras, entende-se como relação entre os dois conceitos que o lugar é o espaço ocupado, ou seja, habitado, uma vez que uma de suas definições sugere sentido de povoado, região e país. O termo habitado, de habitar, neste contexto, acrescenta à idéia de espaço um novo elemento, o homem. O espaço ganha significado e valor em razão da simples presença do homem, seja para acomodálo fisicamente, como o seu lar, seja para servir como palco para as suas atividades. A palavra habitar tem como definição na língua portuguesa: “1. Ocupar como residência; residir. 2. Tornar habitado. 3. Ter hábitat em. T.c. 4. Habitar (1). T.i. 5. Morar (com alguém)” (12). Residir apresenta como algumas de suas definições: “2. Acontecer; estar presente; […] 3. Achar-se; ser; estar” (13). Estar presente, achar-se, ser e estar, neste contexto, referem-se ao homem e na sua capacidade de habitar. Para nós, o homem constrói para habitar e não habita para construir. Tuan (14) discursa que o significado de espaço freqüentemente se funde com o de lugar, uma vez que as duas categorias não podem ser compreendidas uma sem a outra. Segundo ele, o que começa como um espaço indiferenciado, transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. “O espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado” (15). “Quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar” (16). Tuan define os lugares como “centros aos quais atribuímos valor e onde são satisfeitas as necessidades biológicas de comida, água, descanso e procriação” (17). Através da dimensão temporal é que poderemos então conhecer um espaço, definindo-o e dotando-o de valor. Já dizia Zevi que além das três dimensões da perspectiva, e conseqüentemente da arquitetura, existia uma quarta. “Existe […] outro elemento além das três dimensões tradicionais, e é precisamente o deslocamento sucessivo do ângulo visual. Assim designou-se o tempo, quarta dimensão” (18). Tuan relaciona o Tempo e o Lugar de três formas: adquirimos afeição a um lugar em função do tempo vivido nele; o lugar seria uma pausa na corrente temporal de um movimento, ou seja, o lugar seria a parada para o descanso, para a procriação e para a defesa; e por último, o lugar seria o tempo tornado visível, isto é, o lugar como lembrança de tempos passados, pertencente à memória (19). De modo semelhante, diz o antropólogo Augé: “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar” (20). Augé defende a hipótese que a supermodernidade é produtora de não-lugares, e que eles “são diametralmente opostos ao lar, à residência, ao espaço personalizado. É representado pelos espaços públicos de rápida circulação, como aeroportos, rodoviárias, estações de metrô, e pelos meios de transporte – mas também pelas grandes cadeias de hotéis e supermercados” (21). Lugares que induzam a um rápido movimento associado a uma não personalização do espaço e do indivíduo seriam para o antropólogo um não-lugar. “O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude” (22). O autor baseia-se em Michel de Certeau (23) ao referir-se ao não-lugar, este seria uma espécie de qualidade negativa do lugar, de uma ausência do lugar em si mesmo. Na realidade, com a definição de Tuan acerca do Lugar (24), este pode existir em muitas escalas e modos de ser diferentes. No extremo de uma escala, uma sala de aula preferida é um lugar inserido num lugar maior que seria a sua escola, em outro, toda uma cidade. O geógrafo nos indica duas características válidas para o nosso estudo, as quais compõem o lugar, o valor a ele atribuído e o tempo, que seria o responsável pelas experiências vividas. O arquiteto Norberg-Schulz busca na filosofia grega uma reflexão sobre o conceito de lugar. Para os gregos cada lugar era regido por um deus, genius loci (25), ou o espírito do lugar. Os homens, a princípio, não conceberam os deuses como divindades zeladoras de toda a raça humana; pelo contrário, acreditavam que cada divindade pertencesse a um determinado povo e localidade. Nas religiões que vinculam o povo firmemente ao lugar, as divindades parecem ter em comum as características do lugar, conferindo a sua personalidade a este. Não têm poderes além dos arredores de seu domicílio particular; recompensam e protegem o seu próprio povo, mas fazem mal aos estrangeiros (26). Na realidade, este procedimento é uma tentativa de “antropomorfizar” o espaço, isto é, transformar o espaço “selvagem” em um lugar, fundando um microcosmos, um imago mundi (27). Eliade (28) reflete que o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo. Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo, ele apresenta roturas. Sendo assim, as sociedades antigas compreendiam o espaço qualificando-o nessas duas formas, o primeiro é o território habitado, é o mundo, o nosso mundo, é conhecido e sagrado (Cosmos), e o segundo, o espaço indeterminado que cerca o primeiro, é um outro mundo, é desconhecido e profano, é o Caos, habitado por figuras estranhas e monstros. Nenhum “Mundo” pode nascer no Caos da homogeneidade e da relatividade do espaço profano. Conferindo um caráter ao lugar, através do genius loci, o homem colocava-se em posição central no universo. Este exercício não era mais do que a repetição de um ato primordial: trabalhando a terra desconhecida, realiza novamente o ato dos deuses que organizaram o Caos, dando-lhe uma estrutura, formas e normas, interpretando-o para nele poder habitar. Norberg-Schulz afirma que o lugar é mais do que uma localização geográfica, ou seja, mais do que um simples espaço. “O lugar é a concreta manifestação do habitar humano” (29). O autor coloca que o mundo, como lugar, é constituído por elementos que transmitem significados. Em sua insatisfação por uma definição sobre o que é o lugar, ele a busca novamente na filosofia, mais precisamente no filósofo existencialista Heidegger (30). Este declara que o homem para ser capaz de habitar sobre a terra deve tomar consciência que habita entre dois mundos dicotômicos, o céu e a terra. “sobre a terra já significa sob o céu”, diz Heidegger (31). Por isso cabe ao homem não somente compreendê-los separadamente, mas, sobretudo, entender a relação existente entre eles. “Terra é o detentor servente, florido e frutífero, dispersando-se em rocha e água, erguendo-se em planta e animal […]. O céu é o caminho abobadado do Sol, o curso das mudanças lunares, o brilho das estrelas, as estações sazonais, a luz e o crepúsculo do dia, a escuridão e o brilho da noite, a bonança e a não-bonança do clima, as nuvens flutuantes e o azul profundo do éter” (32). O homem habita entre esses dois mundos completamente opostos, o primeiro tangível e acessível, o segundo não-tangível e inacessível. Mas para Norberg-Schulz, o habitar significa muito mais do que o abrigo, habitar é sinônimo do que ele chama de suporte existencial. O suporte existencial (que segundo ele seria o objetivo da arquitetura) é conferido ao homem através da relação entre este e o seu meio através da percepção e do simbolismo. O autor introduz o conceito de espaço existencial, que “não é um termo lógico-matemático, mas compreende as relações básicas entre o homem e o seu meio” (33), sendo dividido em Genius Loci em dois elementos complementares: o espaço (ou seja, a terra) e o caráter (ou seja, o céu), o que o autor entende, respectivamente, como a orientação e a identificação. Somente através destes dois elementos é que o homem terá o seu “suporte existencial”, ou seja, o seu Lugar sobre a terra é construído, o Caos é transformado em Cosmos. Na realidade, o arquiteto baseia-se na definição adotada por Heidegger; para este último, “O modo no qual você está e eu estou, o modo no qual nós humanos estamos sobre a terra, é habitar” (34). “Nós temos usado a palavra ‘habitar’ para indicar a relação total homem-meio. […] Quando o homem habita, ele está simultaneamente locado no espaço e exposto a um certo caráter ambiental. As duas funções psicológicas envolvidas, podem ser chamadas “orientação” e “identificação”. Para ganhar o suporte existencial o homem tem que ser capaz de orientar-se; ele tem que saber onde ele está. Mas também ele tem que identificar-se com o meio, isto é, ele tem que saber como ele está num certo lugar” (35). Norberg-Schulz (36) conclui que a estrutura de um Lugar, seja ele natural ou construído, é composta por duas categorias: o espaço (terra) e o caráter (céu), que sendo analisadas pela percepção e pelo simbolismo permitirão o suporte existencial, ou seja, a capacidade de habitar, ao homem. O espaço (terra), nesta estruturação, é o elemento mais estável, embora algumas de suas propriedades sejam suscetíveis a mudanças no decorrer do ano. O caráter (céu), o mais instável, é uma função do tempo, mudando com as estações sazonais, com o curso temporal diário e do clima. Segundo o autor, há cinco modos básicos para compreender o aspecto do lugar, natural ou construído, sejam eles: Elementos e Ordem cósmica (dados pelo elemento espaço: terra), Caráter, Luz e Tempo (dados pelo elemento caráter: céu). Todos esses modos são analisados segundo a percepção e o simbolismo (37). Na análise do elemento espaço (terra), Norberg-Schulz (38) o analisa através de suas características morfológicas, tais como: elementos constituintes (descrição e caracterização); relação interior x exterior (relação entre o lugar e o seu entorno); extensão (topografia); limites (fechamentos horizontais e os verticais, forma e volume do espaço); escala/proporção (macro, média, micro); direções (orientação solar, sentidos horizontal e vertical) e ritmo (tempo, caminhos, centro e domínio). O elemento caráter (céu) é analisado basicamente pelo autor (39) por dois aspectos: (a) constituição qualitativa (qualidade da luz, da cor e classificação) e (b) constituição quantitativa (quantidade da luz). Porém, em seu discurso acerca do elemento caráter (céu), é possível identificar características deste pertencentes não somente ao céu, propriamente dito, mas também à caracterização climática do ambiente. Ao comparar a descrição de dois ambientes distintos com o propósito de apontar diferenças quanto ao genius loci de cada um, é possível destacar alguns fatores e elementos climáticos que compõem o lugar. “A floresta nórdica […] O chão é raramente contínuo […] tem uma variedade de relevos; pedras e depressões, arvoredos e clareiras, arbustos e tufos […]. O céu é dificilmente experienciado como uma hemisfera global, pois ele é espremido por entre os contornos das árvores e pedras, e muitas vezes modificado pelas nuvens. O Sol é relativamente baixo e cria uma variedade de spots de luz e sombra, as nuvens e vegetação funcionam como “filtros”. A água está sempre presente como um elemento dinâmico […]. A qualidade do ar está em constante movimento, da neblina úmida até o refrescante ozônio” (40). Comparando com a descrição da paisagem do deserto do Saara, temos: “A infinita extensão da monotonia do chão árido; a imensa abóbada que abraça o céu sem nuvens […] o Sol escaldante que quase dá uma luz sem sombra; a secura, o ar quente […] O pôr-do-Sol e o amanhecer conectam dia e noite sem os efeitos transacionais da luz, e criam um simples ritmo temporal” (41). Na descrição do ambiente da floresta nórdica, o relevo, o céu modificado por nuvens, o Sol baixo, a qualidade da luz e da sombra, a vegetação, a água, a qualidade do ar e a neblina são totalmente diferentes da paisagem desértica, com o seu solo árido, a abóbada celeste sem nuvens, o Sol tostante, a secura do ar quente e a ausência dos efeitos transacionais da luz. Estes elementos destacados são definidos pela localização geográfica desses pontos em relação ao planeta Terra, em termos da latitude, altitude, longitude, proximidade ou não do mar, a relação entre as massas de água e terra, enfim, são os elementos e fatores que configuram o clima de um local. Desta forma, implícito no trabalho do arquiteto Norberg-Schulz (42), podemos dizer que o suporte existencial não seria conferido ao homem somente pela percepção e simbolismo do lugar; inseridas na percepção estariam as características climáticas da região. Por uma nova construção do lugar Com base em nossas reflexões, entendemos o conceito de Lugar em concordância com o arquiteto Norberg-Schulz, ou seja, “O lugar é a concreta manifestação do habitar humano” (43). Como diferenciação entre o espaço e o lugar, recorremos às etimologias dos cognatos. Procuramos aqui adotar a postura dos pesquisadores franceses ao recorrer às etimologias dos termos empregados. Espaço (do latim spătĭum) é a “distância entre dois pontos, ou a área ou o volume entre limites determinados” (44), e o Lugar (do latim locālis, de locus) é o “espaço ocupado” (45). O espaço só se torna um lugar no momento em que ele é ocupado pelo homem, fisica ou simbolicamente. Dentro deste universo de lugares, existem tipos de lugares qualitativamente diferentes. Tomando como exemplo a casa, que para Bachelard “é o nosso canto do mundo. […] abriga o devaneio, […] protege o sonhador, […] permite sonhar em paz” (46), ela seria o lugar primeiro do homem, o seu lugar de referência. Mesmo nela, podemos encontrar um lugar preferido, onde gostamos de ficar, o nosso canto, como diz ainda Bachelard: “não encontramos nas próprias casas redutos e cantos onde gostamos de nos encolher” (47). Ocorre ainda, tipos de lugares que possuem uma qualidade negativa, valores negativos, que segundo Certeau (48) seriam os não-lugares, uma vez que são lugares que não se definem nem como identitário, relacional e histórico. Quais elementos participam da construção de um Lugar?, seria o último de nossos questionamentos. Um espaço possui seus elementos físicos e estes têm uma relação entre si, mesmo que aleatória. Pensemos em uma paisagem. Eis o cenário: ela está lá, com todos os seus elementos, o céu, a terra, o mar, a vegetação, as montanhas, flores, etc., ou seja, todos os seus elementos físicos relacionados espacialmente. O clima também está presente, o Sol forte, as nuvens, as chuvas, etc., enfim, todos os elementos e fatores climáticos globais e locais. Contudo, este espaço não pode ser definido como um lugar, pois ele não está ocupado, não está habitado pelo homem. O clima e os elementos daquele espaço estão interagindo, porém ele não é um lugar, mas sim apenas um espaço. No momento em que o homem nele é inserido, esta paisagem é transformada em um Lugar. A simples presença do homem modifica e qualifica-a. Uma vez que o lugar é o espaço dotado de valor pelo homem, e este está contemplado naquele, em presença física e/ou simbólica, propomos como estrutura para o lugar a intersecção de três mundos, ou atributos: os espaciais, os ambientais e os humanos. Transitando nas esferas bioclimática e humana está o elemento tempo. Sejam alguns deles: Somente com a interrelação dessas três (3) esferas, um espaço torna-se um lugar. Sem os atributos humanos, o espaço não é um lugar, mas apenas um local onde todos os atributos espaciais e os ambientais agem, porém sem a interação humana, sem os valores humanos. Os atributos espaciais se referem às questões relativas ao espaço tridimensional, em termos de morfologia. A forma, as áreas, o volume, os planos constituintes e a proporção entre as suas dimensões, os elementos que dele fazem parte, as relações de configuração espacial que se fazem presentes e as características físicas dos planos e dos elementos do espaço quanto à cor e à textura. Os ambientais dizem respeito às características climáticas do espaço. A latitude, longitude e a altitude onde se localiza a região, a quantidade e a qualidade da luz natural, a caracterização do céu, a orientação solar, a incidência eólica, a temperatura do ar, a umidade do ar, as precipitações, os odores naturais, os sons naturais e etc. Por último, os atributos humanos são a interação do homem neste universo espacial, influenciando, modificando e concedendo valores aos atributos espaciais e os ambientais. Presente fisicamente ou simbolicamente, tem-se uma relação de escala entre o homem e o espaço que o circunda. À medida que se movimenta, seu corpo explora o ambiente espacial, o usufrui para as suas atividades e estabelece uma comunicação perceptiva. Concede valores e significados, apropria-se do espaço e o guarda em sua memória. O elemento tempo exerce influência sobre os atributos ambientais e os humanos. Por exemplo, ao longo do dia o ambiente visual de um espaço se modifica em razão da variação da luz; o movimento do corpo e a percepção cinestésica são regidos também em função do espaço disponível e percorrido (física, visual, acusticamente, e etc) e do tempo necessário para a execução destas tarefas; e etc. Quanto à essência (sentido originário) do lugar, Norberg-Schulz (49) informa-nos que os gregos entendiam que cada lugar possuía a sua identidade, o seu stabilitas loci. Com a inauguração da fenomenologia por Husserl, este a chama de eidos, que é aquilo “que se encontra no ser autárquico de um indivíduo constituindo o que ele é” (50), ou seja, seria a idéia fundamental deste ser. Esta definição é reforçada pela etimologia do cognato, cuja origem provém do latim: “essentĭa, a natureza de qualquer coisa” (51). Ser a natureza de algo significa o que de mais puro possamos obter deste ser. “Imaginamos a essência como uma espécie de estrutura inata dos seres, elemento indecomponível e incorruptível, substância plena impermeável às vicissitudes da experiência. Para sabê-la, precisaríamos despi-la dos acidentes que a existência lhe conferiu: estes véus que a encobrem, os adereços, as relações supérfluas, todas essas coisas que lhe retiram a leveza de uma idéia sem mácula. Conseguimos isso procedendo a combinações, subtrações, acréscimos, fazendo variar tudo aquilo que aparentemente lhe pertence, para descobrirmos o que não é mais aparência, mas, essência: um invariante” (52). Falar da essência não significa devotar-se a uma “compreensão mística” que permitiria a somente alguns iniciados ver o que outros não vêem, mas, ao contrário, ressaltar que o sentido de um fenômeno lhe é imanente e, portanto, que existe sempre nele e lhe é inseparável. Cada objeto que percebemos tem uma essência: árvore, mesa, casa, etc., e também as qualidades que atribuímos a estes objetos: verde, rugoso, confortável, etc. Mas a essência não é a coisa ou a qualidade e, no caso da Arquitetura, a tipologia arquitetônica; ela é o ser da coisa ou da qualidade. Dartigues (53) exemplifica-nos que se tomarmos a IX Sinfonia de Beethoven, a sua essência persistiria mesmo se todas as partituras, orquestras e ouvintes desaparecessem para sempre. Ela persistiria, não como uma realidade, como um fato, mas como pura possibilidade. É essa pura possibilidade que me permite nomeá-la e distingui-la de imediato de toda outra sinfonia. “A intuição da essência se distingue da percepção do fato: ela é a visão do sentido ideal que atribuímos ao fato materialmente percebido e que nos permite identificá-lo. [...] Se a essência permite identificar um fenômeno, é porque ela é sempre idêntica a si própria, não importando as circunstâncias contingentes de sua realização. [...] Esta identidade da essência consigo própria, portanto esta impossibilidade de ser outra coisa que o que é, se traduz por seu caráter de necessidade que se opõe à ‘facticidade’, isto é, ao caráter de fato, aleatório, de sua manifestação” (54). Assim como ao riscar sem o auxílio do compasso um menino dirá que a forma ligeiramente oval em seu caderno é um círculo, por muitos que sejam os desenhos de triângulos sobre os quadros-negros de todas as escolas do mundo, é sempre do triângulo que se trata, podemos dizer que, por numerosos que sejam os tempos e os espaços em que se fala do lugar, é pela impossibilidade de ser outra coisa, que é deste lugar que se refere, e a sua essência nos permite identificá-lo, nomeá-lo e distingui-lo de imediato de todo e qualquer outro lugar. notas 1 O presente trabalho foi registrado na Biblioteca Nacional conforme a referência a seguir: REIS-ALVES, Luiz Augusto dos. O conceito de lugar. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2004. il., 10 p. Mimeografado. ISBN 332544., e faz parte do seguinte trabalho: REIS-ALVES, Luiz Augusto dos. O pátio interno escolar como lugar simbólico. Um estudo sobre a interrelação de variáveis subjetivas e objetivas do confoto ambiental. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, FAU-UFRJ, 2006. 2 ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. Tradução: Maria Isabel Gaspar e Gaëtan Martins de Oliveira. 5ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1996. 3 COELHO NETTO, José Teixeira. A construção do sentido na arquitetura. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, (edição original s/d.) 1999. 178 p. 4 OLIVEIRA, Beatriz Santos de. O que é arquitetura? In: DEL RIO, Vicente; DUARTE, Cristiane Rose; RHEINGANTZ, Paulo Afonso (Org.). Projeto do lugar: colaboração entre psicologia, arquitetura e urbanismo. Rio Janeiro, Contra Capa/PROARQ, 2002, p. 135. 5 Idem, ibidem, p. 141. 6 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12ª edição. São Paulo, Ática, 2002. 7 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982. 8 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini-Aurélio século XXI escolar: O minidicionário da língua portuguesa. 4ª edição. Coordenação: Margarida dos Anjos e Marina Baird Ferreira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001. 9 CUNHA, Antônio Geraldo da. Op. cit., p. 320. 10 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., p. 433. 11 Idem, ibidem. 12 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., p. 359. 13 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., p. 601. 14 TUAN, Yi-fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução: Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1983. 15 Idem, ibidem, p. 151. 16 Idem, ibidem, p. 83. 17 Idem, ibidem, p. 4. 18 ZEVI, Bruno. Op. cit., p. 22. 19 TUAN, Yi-fu. Op. cit. 20 AUGÉ, Marc. Não-lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. 3. ed., Coleção Travessia do século. Campinas, Papirus, 1994, p. 73. 21 Idem, ibidem. 22 Idem, ibidem, p. 95. 23 CERTEAU, Michel de. L’ invention du quotidien. Paris, Gallimard, 1990. 24 TUAN, Yi-fu. Op. cit. 25 Genius loci é um conceito romano, do latim, que significa Espírito do lugar. Segundo os gregos cada ser “independente” tinha o seu genius, o seu espírito-guardião, que dava vida às pessoas e aos lugares, os acompanhava desde o nascimento até a morte e determinava as suas características e essência. (Paulys Realencyclopedie der Classischen Altertumswissenschaft, s/d. Apud. NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius loci. Op. cit.) 26 TUAN, Yi-fu. Op. cit. 27 “Etimologicamente, imaginação está ligada a imago, representação, imitação, a imitor, imitar, reproduzir”. Imago mundi seria a reprodução do ato primordial da criação (ou ordenamento) do Cosmos, originariamente feita pelos deuses, e agora pelos homens. Cf. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 16. 28 ELIADE, Mircea. Op. cit. 29 NORBERG-SCHULZ, Christian. Op. cit., p. 6. 30 HEIDEGGER, Martin. “Language”. In: Poetry, language, thought. 1971, p. 97-99. Apud NORBERG-SCHULZ, Christian. Op. cit., p. 10. 31 HEIDEGGER, Martin. Op. cit., 149. Apud NORBERG-SCHULZ, Christian. Op. cit., p. 10. 32 NORBERG-SCHULZ, Christian. Op. cit., p. 5. 33 Idem. 34 HEIDEGGER, Martin. Op. cit., 97-99. Apud NORBERG-SCHULZ, Christian. Op. cit., p. 10. 35 NORBERG-SCHULZ, Christian. Op. cit., p. 19. 36 Idem. 37 Idem. 38 Idem. 39 Idem. 40 Idem, p. 42. V Ao longo da história da Geografia, espaço geográfico foi concebido de diferentes maneiras, entretanto, não é nosso objetivo retomá-las. Tomamos como referência para nossas finalidades, o conceito expresso por Milton Santos (1997) no qual o espaço geográfico constitui "um sistema de objetos e um sistema de ações" que: é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como um quadro único na qual a história se dá. No começo era a natureza selvagem, formada por objetos naturais, que ao longo da história vão sendo substituídos por objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, depois cibernéticos fazendo com que a natureza artificial tenda a funcionar como uma máquina. A partir da formulação do conceito de espaço geográfico, considero que os geógrafos trabalharam e trabalham com conceitos mais operacionais, como os de paisagem, território, lugar e ambiente. Como já dissemos, não desconhecemos a existência de outros, porém em razão de nossos objetivos, nos deteremos nestes acima citados. Considero estes conceitos mais operacionais, pois visualizo neles uma perspectiva balizadora da Geografia sob diferentes óticas do espaço geográfico, ou seja, cada conceito expressa uma possibilidade de leitura de espaço geográfico delineando, portanto, um caminho metodológico. Trataremos cada um individualmente. Paisagem De uma perspectiva clássica, os geógrafos perceberam a paisagem como a expressão materializada das relações do homem com a natureza num espaço circunscrito. Para muitos, o limite da paisagem atrelava-se à possibilidade visual. Não obstante, é importante frisar que geógrafos também consideraram paisagem para além da forma. Troll (1950), ao referir-se à paisagem, concebia-a como o conjunto das interações homem e meio. Tal conjunto, para o autor, apresentava-se sob dupla possibilidade de análise: a da forma (configuração) e da funcionalidade (interação de geofatores incluindo a economia e a cultura humana). Para ele, paisagem é algo além do visível, é resultado de um processo de articulação entre os elementos constituintes. Assim, a paisagem deveria ser "estudada na sua morfologia, estrutura e divisão além da ecologia da paisagem, nível máximo de interação entre os diferentes elementos". Esta análise, em sua visão, poderia ser de ordem exclusivamente natural (paisagens naturais) ou de ordem humana (paisagens culturais). Georges Bertrand (1968), ao propor o estudo de Geografia Física Global, pensou a paisagem como "resultado sobre uma certa porção do espaço, da combinação dinâmica e portanto, instável dos elementos físicos, biológicos e antrópicos que interagindo dialeticamente uns sobre os outros fazem da paisagem um conjunto único e indissociável em contínua evolução". Contemporaneamente, Milton Santos (1997) concebe paisagem como a expressão materializada do espaço geográfico, interpretando-a como forma. Neste sentido considera paisagem como um constituinte do espaço geográfico (sistema de objetos). Para Milton Santos: "Paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre o homem e a natureza". Ou ainda, A paisagem se dá como conjunto de objetos reais concretos". Nesta perspectiva, diferencia paisagem de espaço: paisagem é "transtemporal" juntando objetos passados e presentes, uma construção transversal juntando objetos. Espaço é sempre um presente, uma construção horizontal, uma situação única. Ou ainda, paisagem é um sistema material, nessa condição, relativamente imutável, espaço é um sistema de valores, que se transforma permanentemente. De nosso ponto de vista, percebemos paisagem como um conceito operacional, ou seja, um conceito que nos permite analisar o espaço geográfico sob uma dimensão, qual seja o da conjunção de elementos naturais e tecnificados, sócio-econômicos e culturais. Ao optarmos pela análise geográfica a partir do conceito de paisagem, poderemos concebêla enquanto forma (formação) e funcionalidade (organização). Não necessariamente entendendo forma–funcionalidade como uma relação de causa e efeito, mas percebendo-a como um processo de constituição e reconstituição de formas na sua conjugação com a dinâmica social. Neste sentido, a paisagem pode ser analisada como a materialização das condições sociais de existência diacrônica e sincronicamente. Nela poderão persistir elementos naturais, embora já transfigurados (ou natureza artificializada). O conceito de paisagem privilegia a coexistência de objetos e ações sociais na sua face econômica e cultural manifesta. Território Sob o conceito de Território, tratamos o espaço geográfico a partir de uma concepção que privilegia o político ou a dominação-apropriação. Historicamente, o território na Geografia foi pensado, definido e delimitado a partir de relações de poder. No passado da Geografia, Ratzel (1899), ao tratar do território, vincula-o ao solo, enquanto espaço ocupado por uma determinada sociedade. A concepção clássica de território vincula-se ao domínio de uma determinada área, imprimindo uma perspectiva de análise centrada na identidade nacional. Afirmava Ratzel (1899),"no que se refere ao Estado, a Geografia Política está desde a muito tempo habituada a considerar junto ao tamanho da população, o tamanho do território". Continuando, "a organização de uma sociedade depende estritamente da natureza de seu solo, de sua situação, o conhecimento da natureza física do país, suas vantagens e desvantagens pertence a história política" (Ratzel, 1899). Álvaro Heidrich (1998), ao referir-se à constituição do território, nos diz "a diferenciação do espaço em âmbito histórico tem início a partir da delimitação do mesmo, isto é; por sua apropriação como território; em parte determinado pela necessidade e posse de recursos naturais para a conquista das condições de sobrevivência, por outra parte, por sua ocupação física como habitat. Neste instante, na origem, a defesa territorial é exercida diretamente pelos membros da coletividade. Noutro extremo, como já ocorre desde a criação do Estado, quando há população fixada territorialmente e socialmente organizada para produção de riquezas, cada indivíduo não mantém mais uma relação de domínio direto e repartido com o restante da coletividade sobre o território que habita. Neste momento, a defesa territorial passa a ser realizada por uma configuração social voltada exclusivamente para a organização e manutenção do poder". Observa-se que, historicamente, a concepção de território associa-se a idéia de natureza e sociedade configuradas por um limite de extensão do poder. Contemporaneamente, fala-se em complexidades territoriais, entendendo território como campo de forças, ou "teias ou redes de relações sociais". Segundo Souza (1995), não há hoje possibilidade de conceber "uma superposição tão absoluta entre espaço concreto com seus atributos materiais e o território como campo de forças". Para este autor, "territórios são no fundo relações sociais projetadas no espaço". Por conseqüência, estes espaços concretos podem formarem-se ou dissolverem-se de modo muito rápido, podendo ter existência regular, porém periódica, podendo o substrato material permanecer o mesmo. Em breves considerações, o que queremos frisar é a ótica analítica do conceito de território. Este norteou na Geografia perspectivas analíticas vinculadas a idéia de poder sobre um espaço e seus recursos; o poder em escala nacional: o Estado-nação. Mais recentemente, este conceito indica possibilidades analíticas que não deixam de privilegiar a idéia de dominação-apropriação(1) de espaço. Esta flexibilização do conceito permite tratar de territorialidades como expressão da coexistência de grupos, por vezes num mesmo espaço físico em tempos diferentes. Trata-se de uma dimensão do espaço geográfico que desvincula as relações humanas e sociais da relação direta com a dimensão natural do espaço, extraindo deste conceito a necessidade direta de domínio, também dos recursos naturais, como expressa-se na concepção clássica de território. A natureza, enquanto recurso associada à idéia de território, já não é mais necessária. Nestas territorialidades, a apropriação se faz pelo domínio de território, não só para a produção mas também para a circulação de uma mercadoria, a exemplo das territorialidades por vezes estudadas, como o território das drogas. Estas novas territorialidades apresentam-se como voláteis e constituem parte do tecido social, expressam uma realidade, mas não substituem em nosso entender a dominação política de territórios em escalas mais amplas. Devendo essas, para serem explicadas e não somente descritas, serem inseridas em espaços de dimensão relacional. Lugar O lugar é um outro conceito, de nosso ponto de vista, operacional em Geografia. Consistiria, a partir da Cartografia, a expressão do espaço geográfico na escala local; a dimensão pontual. Por muito tempo, a Geografia tratou o lugar nesta perspectiva e considerou-o como único e auto- explicável. Recentemente, o lugar é resgatado na Geografia como conceito fundamental, passando a ser analisado de forma mais abrangente. Lugar constitui a dimensão da existência que se manifesta através "de um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas, instituições–cooperação e conflito são a base da vida em comum"(Milton Santos, 1997). Trata-se de um conceito que nos remete a reflexão de nossa relação com o mundo. Para Milton Santos (1997) resgatando Serres (1990), esta relação era local-local agora é local-global. O conceito de lugar induz a análise geográfica a uma outra dimensão - a da existência"pois refere-se a um tratamento geográfico do mundo vivido" (Milton Santos, 1997). Este tratamento vem assumindo diferentes dimensões. De um lado, o lugar se singulariza a partir de visões subjetivas vinculadas a percepções emotivas, a exemplo do sentimento topofílico (experiências felizes) das quais se refere Yu-Fu Tuan (1975). De outro, o lugar pode ser lido através do conceito de geograficidade, termo que, segundo Relph (1979),"encerra todas as respostas e experiências que temos de ambientes na qual vivemos, antes de analisarmos e atribuirmos conceitos a essas experiências". Isto implica em compreender o lugar através de nossas necessidades existenciais quais sejam, localização, posição, mobilidade, interação com os objetos e/ou com as pessoas. Identifica-se esta perspectiva com a nossa corporeidade e, a partir dela, o nosso estar no mundo, no caso, a partir do lugar como espaço de existência e coexistência. Mas o lugar pode também ser trabalhado na perspectiva de um mundo vivido, que leve em conta outras dimensões do espaço geográfico, conforme se refere Milton Santos (1997), quais sejam os objetos, as ações, a técnica, o tempo. É nesta perspectiva que Milton Santos (1997) se refere ao lugar, dizendo: "no lugar, nosso próximo, se superpõe, dialeticamente ao eixo das sucessões, que transmite os tempos externos das escalas superiores e o eixo dos tempos internos, que é o eixo das coexistências, onde tudo se funde, enlaçando definitivamente, as noções e as realidades de espaço e tempo". Resulta daqui sua visão de mundo vivido local–global. Para o autor, o lugar expressa relações de ordem objetiva em articulação com relações subjetivas, relações verticais resultado do poder hegemônico, imbricadas com relações horizontais de coexistência e resistência. Daí a força do lugar no contexto atual da Geografia. Ambiente Em seu período inicial, referia-se a Geografia não ao ambiente, mas ao meio (milieu). Para Bertrand (1968), o conceito de meio se define em relação a alguma coisa, portanto, está impregnado de um sentido ecológico. Aliata e Silvestri (1994), em capítulo referente a passagem do conceito de paisagem ao de ambiente, indica que a idéia de ambiente ou meio apresenta raízes científicas. Para estes, a origem histórica desta noção está vinculada à biologia, tendo sido introduzida nesta área de conhecimento, pele mecânica newtoniana. Em seu desenvolvimento histórico, no entanto, o conceito perde suas raízes (a de veículo mediando um objeto a outro) e assume a concepção "de unidade de diversas manifestações entre si relacionadas, sistema, nos termos que o estruturalismo o redefiniu, organismo". (Aliata e Silvestri,1994). Nesta perspectiva, o ambiente pode ser lido como algo externo ao homem, cuja preocupação seria estudar o funcionamento dos sistemas naturais. Ou, incluir o homem, neste caso "em uma única esfera cuja chave principal de leitura está constituída por processos naturais" (Aliata e Silvestri, 1994). Para estes autores, a idéia de ambiente elimina por conseguinte "toda a tensão, toda a contradição e neste particular a tensão essencial qual seja a de ser o homem sujeito. O único sujeito em um mundo oposto a ele". Ambiente, para os autores acima referidos, contrapõe-se à paisagem, embora esta também tenha se transformado no tempo, tendo sido apropriada por outras definições como meio, habitat e ecossistema, todas elas designando o mundo exterior ao homem. A paisagem concebida, neste contexto, como integração orgânica, tem na sua origem um diferencial. Este diferencial está na sua marca inicial, a arte. Assim, a paisagem, na visão do artista, acentua a tensão. "Acentua, nas palavras de Adorno, essa profunda ferida com que o homem nasceu". (Aliata e Silvestri,1994). Historicamente, temos também em relação à Geografia uma naturalização do homem, seja no conceito de paisagem, como no de ambiente. Entretanto, Gonçalves (1989), em sua crítica ao conceito de meio ambiente, propõe uma visão de ambiente por inteiro, ou seja, considerá-lo nas suas múltiplas facetas. Não sendo mais possível conceber ambiente como equivalente a natural. O ambiente por inteiro como se refere, implica em privilegiar o homem como sujeito das transformações, sem negar as tensões sob as mais diferentes dimensões. Resta, no entanto, observar que na atualidade geógrafos compartilham de conceitos diferentes. A ótica ambiental, na perspectiva naturalista e naturalizante, ainda se auxilia de conceitos que não dimensionam a tensão sob as quais se originam os impactos, mas esta não tem sido a regra. Por conseguinte, podemos afirmar que a Geografia tem pensado o ambiente diferentemente da Ecologia, nele o homem se inclui não como ser naturalizado mas como um ser social produto e produtor de várias tensões ambientais. Uno e Múltiplo A partir desta exposição, cabem algumas considerações com a intenção de síntese. Partilhamos da idéia de que o espaço geográfico constitui o conceito balizador da Geografia. A formulação deste conceito apresentou e apresenta ainda hoje variadas interpretações. Ainda, no século passado, como vimos com Humbolt (1862), a Geografia constitui-se uma ciência natural. Este sugeria uma interpretação da natureza sub-dividida em Física e Geografia Física. (Figura 1) Os geógrafos, posteriormente, conceberam uma geografia que propunha a conjunção do natural e do humano, transformando o espaço geográfico em um conceito que expressa a articulação Natureza e Sociedade, ou seja constituíram um objeto de interface entre as ciências naturais e as ciências sociais (Figura 2). Em inúmeras obras geográficas, o conceito de espaço geográfico expressou-se através da concepção de paisagem, região, território, lugar. Já observamos que Humboldt (1862), ao falar em Geografia Física, referia- se à paisagem natural. Pensamos poder estabelecer diferenças entre esses conceitos. A expressão do geográfico encontra-se representada no conceito de espaço geográfico, conforme já nos referimos, adotando a conceituação de Milton Santos (1997). Este conceito expressa a articulação entre natureza e sociedade, conforme a representação da figura 2. Agora cabe perguntar: a que natureza se refere o autor? Trata- se, neste caso, de uma concepção de natureza denominada de natureza artificial ou tecnificada. Para Milton Santos (1997), o período atual, período "Técnico Científico Informacional" não nos permite pensar a natureza como primariamente natural, ou melhor como decorrente de processos que advém exclusivamente de sua auto organização. A presença do homem concretamente como ser natural e, ao mesmo tempo, como alguém oposto a natureza, promoveu/promove profundas transformações na natureza mesma e na sua própria natureza. Isto exige uma reflexão efetiva sobre o que é natureza hoje. Algumas proposições encaminham a discussão. Milton Santos (1997) qualifica a natureza denominando- a de natureza artificial ou tecnificada ou, ainda, natureza instrumental. Isto porque a técnica no seu estágio atual permite a intervenção, não só nas formas, como nos processos naturais. Alguns exemplos cabem para melhor ilustrar: a intervenção no ciclo cicardiano de maneira generalizada, seja entre os homens, onde a necessidade do relógio na vida diária constitui um exemplo expressivo, seja entre os animais e vegetais através da aceleração nos processos de produção e reprodução destes para o consumo humano. Além deste exemplo, cabe registrar a constituição de sementes transgênicas, assim como a transmutação de animais (ovelha Dolly), entre tantos outros mais comumente lembrados, o efeito estufa e a camada de ozônio (na Climatologia), as águas superficiais contaminadas (na Hidrologia) e os depósitos tecnogênicos (na Geomorfologia e na Geologia). Tratar-se-ia a natureza, nesta circunstância, não mais como uma dimensão de interface com a sociedade, mas como uma dimensão de transmutação e transfiguração. O termo transfiguração aqui adotado é entendido conforme apresenta Maffesoli (1995) "transfiguração é a passagem de uma figura para a outra. Além disso, ela é de uma certa maneira, mesmo que mínima, próxima da possessão" ( Maffesoli,1995). Assim, uma natureza possuída pelo homem transfigura-se , adquire uma outra dimensão. Retornando à nossa representação como interface e transfiguração, podemos pensar o espaço geográfico como um todo uno e múltiplo aberto a múltiplas conexões que se expressam através dos diferentes conceitos já apresentados. Estes, ao mesmo tempo em que separam visões, também as unem. Representamos esta interpretação na figura 3. Ela expressa no círculo a idéia de espaço geográfico aqui setorizado em quatro partes. Cada parte representa a visão analítica privilegiada por um ou outro geógrafo. Figura 3 Assim, temos nesta representação a expressão da possibilidade de diferentes leituras. Não obstante, o espaço geográfico é dinâmico. Sua dinâmica é representada pelo movimento, o girar do círculo. Este giro expressa a idéia: um todo uno, múltiplo e complexo. Esta representação é elaborada no sentido de expressar a concepção de que: o espaço geográfico pode ser lido através do conceito de paisagem e ou território, e ou lugar, e ou ambiente; sem desconhecermos que cada uma dessas dimensões está contida em todas as demais. Paisagens contêm territórios que contêm lugares que contêm ambientes valendo, para cada um, todas as conexões possíveis. Se de um lado ainda trabalhamos com o recorte do espaço geográfico, de outro acreditamos que esses recortes poderão mais unir o discurso geográfico, do que separar. Isto porque cada um deles enfatiza uma dimensão da complexidade organizacional do espaço geográfico: o econômico/cultural (na paisagem), o político (no território), a existência objetiva e subjetiva ( no lugar) e a transfiguração da natureza (no ambiente). Não obstante, nenhum deles prescinde das determinações expressas em uns e em outros. Por outro lado, acreditamos que conceber esta como uma das possibilidades analíticas da Geografia, tende a nos permitir a diferença de enfoques, ao mesmo tempo em que nos articula pelas conexões derivadas da fronteira tênue entre cada um desses conceitos. Costuma- se dizer na atualidade, que o objeto de estudo se constrói num contexto relacional (contém e está contido). Por conseguinte, as conexões que permeiam os conceitos que aqui denominamos operacionais, aproximam as nossas práticas geográficas, muito mais que nos dividem. Por último, cabe ressaltar que os trabalhos expressos nesta coletânea, analisam o espaço geográfico a partir do conceito de ambiente. Apresentam uma leitura do espaço geográfico, a partir da transfiguração do natural, do social. Dimensionam esta análise, a partir da perspectiva do lugar, enquanto locus da vida . Buscam resgatar um ambiente que não se confunda com impactos na natureza, mas que privilegia as derivações e transmutações destes lugares, a partir da construção da vida em sociedade com a natureza. Expressam também, uma análise do ambiente na perspectiva de um diálogo. Este se faz a partir do lugar. Por vezes, ele se dirige ao poder público, neste sentido busca compreender e repensar determinações verticais , ou seja, aquelas que emanam da macro-economia e da política. Em outros momentos, este diálogo busca compreender e repensar as determinações horizontais, neste sentido colabora para a articulação comunitária, a partir do reconhecimento do mundo vivido. Propõe, desta forma, uma possibilidade de participação. Estes dois eixos compõe em nosso entendimento a dimensão analítica do conjunto dos trabalhos aqui reunidos. Nota 1.Chamamos a atenção sobre o conceito de apropriação, ele expressa uma concepção diferenciada do poder sobre o território, tratar-se-ia de um domínio, originalmente como condição necessária a sobrevivência. Hoje está apropriação se faz sob os mais diferentes objetivos muitas vezes de ordem cultural. Trata-se conforme Heidrich (1998) em comunicação oral, uma discussão em aberto entre os teóricos da Constituição do Território. Bibliografia ALIATA. F y SILVESTRI, G.El paisage en el arte y las ciências humanas. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1994. BERTRAND, G. Paisage y Geografia Física Global. In MENDOZA, J.G.; JIMINES, J.M. y CANTERO, N. O. (Orgs) El pensamiento geográfico. Estudio interpretativo y antologia de textos (de Humboldt a las tendências radicales). Madrid: Alianza Editorial, 1982. GENRO, A. Fº . Marxismo Filosofia Profana. Porto Alegre: Tchê! Editora, l986. GONÇALVES, C.W.P. Os (Des)caminhos do Meio Ambiente. São Paulo: Contexto, 1989. GRIGG, D. 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RELPH, E. C. As bases Fenomenológicas da Geografia. Revista de Geografia, vol.4/nº7, AGETEO - Rio Claro, São Paulo, 1979. SANTOS, M. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: Hucitec, 1980. SANTOS, M. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. 2º Edição. São Paulo: Hucitec, l997. SOUZA, M. J. L. de. O território; sobre espaço e poder,autonomia e desenvolvimento. CASTRO, I. E. de; GOMES, P.C. da C. e CORRÊA. R. L. (Orgs). Geografia Conceitos e Temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. TROLL, C. El paisage geográfico y su investigación. MENDONZA, J. G. ; JIMENEZ, J. M. y CONTERO, N. (Org.) El pensamiento geográfico. Estudio interpretativo y antologia de textos (De Humboldt a las tendências atuales). Madrid: Alianza Editorial, 1982. TUAN, YI-FU. Space and Place: Humanistic Perspective. Progress in Geography. V l, nº 6, 1975. Espaço é um conceito mais abstrato que o de lugar. O que começa como espaço indiferenciado, transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. "Lugar é uma mistura singular de vistas, sons e cheiros, uma harmonia ímpar de ritmos naturais e artificiais (...) Sentir um lugar é registrar pelos nossos músculos e ossos" (TUAN, 1983, p. 203). Só nos familiarizamos com um lugar após algum tempo. Lugar é por sua vez definido por e a partir de apropriações afetivas que decorrem com os anos de vivência e as experiências atribuídas às relações humanas. Fonte: http://www.webartigos.com/articles/34813/1/Conceitos-Espaco-Lugar-eTerritorio/pagina1.html#ixzz13Zgp5bI7 Os conflitos e contradições inerentes às sociedades tem íntima relação com a constituição de territórios, pois segundo o autor "o território está, igualmente, presente em toda a espacialidade social – ao menos enquanto o homem também estiver presente" (SOUZA, 1995, p. 96), portanto está repleto desses conflitos e contradições das sociedades. Há certa volatilidade na composição dos limites territoriais, se tornam um tanto instáveis e estão em constante mudança: "criação da identidade territorial é apenas relativa, digamos, mais propriamente funcional do que afetiva" (SOUZA, 1995, p. 88). Souza (1995) faz algumas menções também sobre o conceito de espaço, lembrando que a Geografia Política define o espaço como sendo "concreto em si (com seus atributos naturais e socialmente construídos) que é apropriado, ocupado por um grupo social" (p. 84); isso no que se refere a território nacional e idéia de Estado Nação. Sendo assim, podemos concluir que os três conceitos trabalhados nessa disciplina são de fundamental necessidade para estudo da geografia urbana e para trabalharmos com a história das cidades. Dessa forma, as cidades seriam monumentos, registros vivos das mais variadas civilizações e grupos sociais que naquele espaço habitaram, referências de transformações impostas pela sociedade no espaço e as possíveis relações de afeto que marcaram os lugares e as pessoas. Referências: Tuan, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. 1930. Tradução de Lívia de Oliveira, São Paulo: Difel, 1983. CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo César da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato. (org'.s). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 15-47; 77-116. Fonte: http://www.webartigos.com/articles/34813/1/Conceitos-Espaco-Lugar-eTerritorio/pagCarácter
[email protected] da Arquitectura e do Lugar * A noção de “carácter” em Arquitectura tem tido várias interpretações, desde que o termo começou a ser utilizado na segunda metade do Séc. XVIII, tendo sido objecto de reflexão para alguns teóricos e arquitectos que, desde então, deram contributos relevantes para a Teoria da Arquitectura. No seu livro Form, Function and Design, em pleno apogeu do Movimento Moderno, Paul Jacques Grillo refere-se ao carácter como sendo “uma rara qualidade”, quando diz respeito ao Homem ou a um edifício. Qualidade que, ao longo da História da Arquitectura, se manifestou quando um edifício, devido à sua forte “personalidade”, se afirmou e evidenciou em determinado contexto construído.1 Para ele, o carácter resulta da perfeita materialização arquitectónica dum programa funcional dum tipo de edifício específico, a que chama “Group–character”, e diz respeito a edifícios públicos (escola, hospital, igreja, por exemplo), estruturantes do Lugar urbano. Existem edifícios que se evidenciam relativamente a uma arquitectura de acompanhamento, que sobrepõem determinadas barreiras, pelo seu desenho, que não podem ter uma abordagem tão objectiva como a simples expressão duma eficaz materialização funcional. Estes não só cumprem rigorosamente o seu programa, numa perfeita comunhão entre desenho, forma, materiais e função, mas estão ligados a um sítio como se fossem animais vivos, dando a impressão que a sua existência nesse lugar é intemporal. A sua perfeita relação com o sítio e o programa é de tal forma indiscutível que se torna impossível imaginar esse edifício em outro lugar diferente. A sua pertença ao Lugar é tão natural que quase chegam a atingir o anonimato de qualquer obra da Natureza.2 Como exemplos existem palácios, igrejas e lugares que o tempo da História elegeu como obras de arte notáveis de excepção, onde a importância dos elementos de detalhe ou o estilo arquitectónico passaram a ter menor relevo, prevalecendo o todo edificado e a construção do Lugar. A primeira leitura destes edifícios faz-se a partir da interpretação das suas fachadas, o que é insuficiente, fazendo sentir a necessidade duma abordagem espacial e temporal do espaço arquitectónico, do seu todo – interior e exterior – uma abordagem de cariz fenomenológico. Werner Szambien, no seu livro Simetria, Gosto, Carácter faz uma profunda reflexão sobre a noção de carácter em Arquitectura, assumindo-o como um dos “objectivos da concepção arquitectónica” 3, muito para além de um simples princípio estético. * A partir da sua Tese de Doutoramento em Arquitectura: Vilegiatura e Lugar na Arquitectura Portuguesa, defendiada na Faculdade de Arquitectura da UTL em Fevereiro de 2008. 1 Paul Jacques Grillo, Form, Function and Design, Dover Publications, Inc., New York, 1960, p.20. 2 Ibidem, p.20. 3 Werner Szambien, Symetrie, Goût, Caractère – Théorie et Terminologie de L’Architecture À L’Âge Classique 1550-1800, Ed. Picard, Paris, 1986, p.174. O termo carácter pode ser, de certa forma, equívoco, em Arquitectura. Usualmente refere-se à fisionomia humana que, de igual modo, é transposta para a caracterização do objecto de Arquitectura, assumindo-se o edifício construído como justificação da interpretação analógica ou mimética da Natureza, ideia recuperada de períodos importantes da História que, no Séc. XX, volta a ter um papel relevante no pensamento artístico de então. A disciplina de Arquitectura, ao ser questionada pelas novas tecnologias postas à disposição da criação arquitectónica no Séc. XIX, procurou uma nova especificidade ao desenvolver a doutrina da composição arquitectónica, aparecendo a Teoria do carácter como um instrumento de interpretação, preferencialmente direccionada para a arquitectura pública, onde se põe em evidência a especificidade de cada género arquitectónico num contexto cultural determinado. O objectivo da composição passava pela expressão de um uso inerente a uma determinada tipologia arquitectónica, onde os edifícios, pela sua disposição, pela sua estrutura e pela forma como são decorados, devem indicar, objectivamente, o seu uso e destino. Ao não o fazerem contrariam a expressão que se pretende que seja verdadeira e objectiva. Jacques-François Blondel (1705-1774), nos seus tratados dedicados à análise da obra de arte, emprega o termo carácter de forma algo ambígua, hesitando entre a “qualidade da própria obra” ou a sua “qualidade de expressão”. Para ele todas as diferentes espécies de produções de que dependem a Arquitectura devem ter impregnados os objectivos particulares a cumprir por cada edifício, todas devem ter um carácter que determine a sua forma geral e que anuncie “o tipo que o edifício quer ser”.4 O “carácter distintivo” definido por Blondel ultrapassa a disposição volumétrica e a escolha das formas em harmonia espacial – atributos da escultura, das Belas Artes – procurando a própria maneira de ser do edifício, cuja expressão pode até incorporar vários simbolismos na sua composição ou ornamentação, mas que emerge logo de inicio na própria concepção. O carácter expresso pelo exterior do edifício deixará bem claro o seu uso particular e será, também, uma manifestação de bom gosto.5 Claude-Nicolas Ledoux (1736-1806) e Étienne-Louis Boullée (1728-1799), com quem frequentou o curso para “arquitecto artista” na “Ecole deux Arts” de Blondel – professor e teórico de quem herdaram uma identidade cultural e filosófica que associava o papel do arquitecto na sociedade à criação arquitectónica baseada em dois factores indissociáveis: a “distribuição” e o “carácter”. O primeiro era associado a um nível de novas exigências funcionais e o segundo estava relacionado com os conceitos de “contraste” e “variedade”, que dão continuidade a uma tradição de pensamento clássico que se enquadra na “estética sensualista” do Séc. XVIII.6 Carácter da Arquitectura e do Lugar 108 4 Ibidem, p.179. 5 Ibidem, p.180. 6 Anthony Vidler, Ledoux, Ediciones Akal, S.A., Madrid, 1994, p.15. O conceito de carácter, considerado por Blondel um dos níveis ou mesmo o nível mais importante para a criação da “boa arquitectura”, quer se tratasse de edifícios públicos ou privados, condicionados mais pela sua expressão simbólica ou pela sua função utilitária, acaba por ser expresso quer na prática profissional como no discurso arquitectónico duma nova geração de arquitectos que integra Ledoux. Estes subscrevem e desenvolvem a teoria de Blondel de que tudo o que decorre da produção arquitectónica tem que ter em conta o destino particular de cada edifício, e todos os edifícios devem ter o seu próprio carácter, determinante da sua forma geral, devendo esta ser objectivamente indicativa da sua própria identidade.7 O termo carácter está directamente relacionado com a teoria geral da caracterização, comum a disciplinas como a Literatura, a Linguística e a História Natural, que se torna corrente no meio académico do ensino da Arquitectura da segunda metade do Séc. XVIII com Blondel, com a designação de caracterização. Esta acaba por ser a solução para contrariar a afirmação progressiva dos gostos individuais ou colectivos que substituem gradualmente as normas que até ali ainda poderiam ser consideradas inquestionáveis ou absolutas e que, no conjunto de novas necessidades institucionais ou sociais, obrigavam à criação de novas soluções funcionais, de novos tipos arquitectónicos. “Tanto na arquitectura como no terreno da ciência, o sentido da caracterização dividia-se entre o estudo de uma expressão adequada – os signos do carácter – e uma análise da organização ou da distribuição – a constituição do carácter. Entre ambos, para repetir os termos de Michel Foucault, ‘uma teoria da marca e uma teoria do organismo’. A maior ambição de Ledoux foi sempre superar esta divisão pretendidamente irremediável entre ‘necessidade’ e ‘representação’, com o fim de que o edifício se converterá, em suma, no signo perfeitamente transparente do seu próprio destino.” 8 A expressão do carácter próprio a cada edifício passou, então, a ser encarado como um problema de coerência ou mesmo de verdade em Arquitectura. A discussão dos critérios fundamentais da Arquitectura começa a ser feita a partir de factores relevantes como a distribuição – relacionada com a correcta adaptação funcional –, a integridade funcional – associada aos processos construtivos emergentes – e a linguagem das formas – que actuam como expressão inequívocas de carácter, dando origem à muito discutida linguagem dos caracteres criada por Ledoux como a forma de alcançar e de revelar a nobreza da Arquitectura, independentemente da sua função ou importância simbólica. A teoria do carácter é também desenvolvida pelo arquitecto parisiense contemporâneo de Ledoux, Le Camus de Mézierères (1721-1789), que faz uma abordagem à obra arquitectónica como um todo. “O carácter não reside somente no exterior dos edifícios públicos e privados mas, em primeiro lugar, se se considerar o espaço definido pelo autor, também o seu interior”.9 Entende este teórico e autor de obras importantes em París (segunda metade do Séc. XVIII) ARTiTEXTOS06. JULHO 08 109 7 Ibidem. 8 Anthony Vidler, Op. Cit., p.16. 9 Werner Szambien, Op. Cit., p181. que a vontade de caracterizar o espaço interior deverá ser sistematizada, que as proporções e o seu jogo de relações devem ser abrangentes ao todo da obra construída e que a percepção do seu espaço envolvente, da Natureza em que se integra, não poderão ser tratados de modo independente ou indiferenciado. A ordem inerente à organização racional do espaço interior revela uma lógica imperturbável, onde o sistema de caracterização próprio a um determinado programa, com origem numa concepção definida, faz revelar o carácter no interior. Cada elemento independente e participante na organização do espaço interior revela, também, o seu próprio carácter e faz associar a percepção e a vivência do espaço ao prazer do seu domínio sensorial e intelectual. O jogo de proporções criadas pela arquitectura interfere nas sensações inerentes à apropriação dos diferentes espaços, num usufruto progressivo e por vezes ritual, que resulta da utilização dos espaços – quase num domínio ideal –, onde vestíbulos e antecâmaras se multiplicam, contribuindo para a satisfação dos prazeres sociais: sala de comer, salão, bilhar, galeria, etc.10 O carácter está, no interior dos edifícios, tão omnipresente como nas sensações inerentes à percepção espacial, e pode manifestar-se de modo muito relevante na própria escolha e colocação do mobiliário e das obras de arte que compõem e organizam o seu espaço. A luz tem, também, um papel determinante na definição do carácter interior, sendo para Mézierères essencialmente o meio que põe em evidência as massas e volumetrias da Arquitectura. “Um edifício muito iluminado, bem arranjado, é, acima de tudo o resto, perfeitamente tratado, devidamente agradável e risonho. Menos aberto ele oferece um carácter sério. A luz, quanto mais intersectada, fá-lo misterioso ou triste.”11 Devido às utilizações diferenciadas do termo carácter e às várias interpretações possíveis no final do Séc. XVIII, Quatremère de Quincy (1755-1849) fez a distinção clara entre os “caracteres da arquitectura histórica” e os da “Arquitectura contemporânea”, entre o “carácter da ideia expressa” e o “carácter do género do edifício”, entre os “caracteres da arquitectura pública” e os da “Arte dos jardins”, introduzindo, assim, uma hierarquia que permitia formular os objectivos da Arquitectura do seu tempo.12 A noção de carácter aparece, então, classificada em diferentes categorias: “carácter distintivo”; “carácter essencial” e “carácter relativo” (“ideal” e “imitativo”).13 O “carácter distintivo” (ou de originalidade) encontra-se na arquitectura que expressa uma qualidade dominante, real e objectiva, de forma visível; que denota afirmativamente uma fisionomia resultante de um hábito ou hábitos gerais provenientes dum carácter cultural de um povo específico. Carácter da Arquitectura e do Lugar 110 10 Ibidem, p.181. 11 Ibidem, p.183. 12 Ibidem, p.184. 13 Ibidem, p.185. O “carácter essencial” da arquitectura é menos comum e é sinónimo de força, de grandeza e domínio. É o carácter por excelência e o mais directamente ligado à História da Arquitectura e à distinção entre civilizações. A sua conotação com a ordem dórica, devido à expressão de solidez, por vezes superior à solidez real, e ao emprego de formas geométricas e regulares, que produzem uma impressão de força e grandeza, permitem relevar a Arquitectura Grega Clássica como detentora de “maior força” relativamente à arquitectura Romana e associar à Arquitectura do Movimento Moderno uma perda ou mesmo falta de carácter.14 O “carácter relativo” está mais relacionado com a prática de concepção particular e objectiva de um edifício. Poderá partir da imitação ou interpretação de um modelo de inspiração e expressa-se na arte de caracterizar, de tornar sensível, pelas formas geométricas, as qualidades intelectuais e as ideias que se podem exprimir no edifício. Pode dar a conhecer as partes construtivas do edifício, a sua natureza e o seu destino, e as suas propriedades espaciais associadas a um uso particular. É fortemente expresso o talento ou génio de quem o concebe, como obra artística que se oferece a uma leitura interpretativa como um todo completo, em equilíbrio ideal. O “carácter relativo” subdivide-se em dois géneros: o ideal e o imitativo. O “carácter ideal” está mais direccionado para a poética da arquitectura, onde as regras são subalternizadas relativamente à formação simbólica do objecto criado. Como exemplo refira-se que, na Grécia Antiga, a arquitectura procurava materializar a variedade dos caracteres particulares das suas divindades nos templos construídos. O “carácter imitativo” está directamente relacionado com regras provenientes de modelos predefinidos e com o rigoroso conhecimento da natureza do edifício, do seu destino. A expressão do carácter próprio dos edifícios parte, indiscutivelmente, do conhecimento das qualidades particulares introduzidas no acto da sua criação, e cujo resultado estético e arquitectónico só é totalmente entendido pelo uso e fruição do seu espaço – interior e envolvente. A “Teoria do Carácter” parte de três pressupostos de percepção: o objecto natural que possui um determinado carácter e produz uma determinada sensação em quem o apreende; o objecto arquitectónico que possui o seu próprio carácter e produz no Homem uma sensação, e a inspiração do arquitecto nos caracteres da Natureza, com o pressuposto de dotar as suas criações dum carácter análogo que desperte as mesmas sensações interpretadas do meio natural.15 Boullée foi um dos apologistas de que se deve evitar, de forma consciente, atribuir o mesmo carácter a mais do que um tipo de edifício. Nesse sentido, a programas diferentes seriam associados caracteres diferentes: um templo expressava grandeza; um teatro, delicadeza; um palácio, magnificência; um palácio da justiça, magestosidade; e um monumento funerário, tristeza.16 ARTiTEXTOS06. JULHO 08 111 14 Werner Szambien, Op. Cit., p.185. 15 Ibidem, p.193. 16 Ibidem, p.196. Também para Boullée a “teoria do carácter” aplicava-se, essencialmente, à arquitectura pública. A sua visão poética da Arquitectura posicionava o carácter no seio de uma estética da percepção, quando esta assumia a tendência de aceitação dos princípios de imitação analógica da Natureza e reconhecia a ligação objectiva entre os determinados caracteres e os tipos de edifícios públicos específicos. Jean-Nicolas-Louis Durand (1760-1834) opunha-se frontalmente a estes princípios, tendo protagonizado uma Arquitectura utilitária onde o carácter passa a ter um efeito secundário na observação dos verdadeiros princípios da Arquitectura. Para Durand, a procura de produção de carácter em arquitectura é um falso problema. Nesse sentido afirma: “se eu disponho um edifício de maneira convincente ao uso a que este se destina, não se diferenciará ele de um outro edifício destinado a outro uso? Não terá ele, naturalmente um carácter, o seu próprio carácter?”17 Em Arquitectura é, ainda, utilizado o termo carácter na procura duma sistemática de qualidades expressivas, objectivas a determinado tipo de edifícios, a uma situação particular – Lugar – e a um destino atribuído – programa funcional. Os arquitectos modernistas tinham muitas dúvidas quanto aos princípios de composição propostos pelos académicos no início do Séc. XX. Estes princípios, ao não estarem directamente relacionados com a estrutura e a função arquitectónica, não poderiam ser aceites na concepção de uma arquitectura autêntica que deveria, antes, ser fundada por objectivos de ordem racionalista. A composição era conotada com o privilégio excessivo da aparência formal dos edifícios, de evidente e perigosa subjectividade. Consideravam que havia uma preocupação exagerada com os problemas formais da Arquitectura, que teriam que ser substituídos, no contexto cultural em que se vivia, por uma maior dedicação aos problemas de construção. Os autores dos livros de composição que circulavam em Inglaterra e nos Estados Unidos entre 1900 e 1930, apesar de reconhecerem a importância das disciplinas funcionais e estruturais na Arquitectura, procuravam, em primeiro lugar, atribuir ao edifício um verdadeiro significado que seria emergente duma estrutura organizada segundo os princípios da composição arquitectónica, tendo um conteúdo expressivo e simbólico que era descrito como carácter.18 Para eles, o êxito de um edifício adviria de uma boa composição e de um carácter apropriado, mas admitiam que a primeira poderia não dar origem, obrigatoriamente, ao segundo e vice-versa. Poderão mesmo existir edifícios com uma muito boa composição mas com uma expressão funcional desadequada – ex: fábrica com aparência de biblioteca – o que poderia levar o seu observador ou usufruidor a um completo engano de interpretação e reconhecimento. Para estes, só o esforço consciente do arquitecto é que conseguiria atribuir em simultâneo o carácter apropriado e uma boa concepção com base nos princípios de composição, o que daria, obviamente, origem a uma obra arquitectónica de destaque. Carácter da Arquitectura e do Lugar 112 17 Ibidem, p.198. 18 Colin Rowe, Manierismo y Arquitectura Moderna y Otros Ensayos, Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 1999, p.65. A expressão de carácter na Arquitectura não foi um dos atributos mais procurados para a definição do objecto arquitectónico ao longo da História da Arquitectura. O carácter foi definido muito raramente mas, em geral, referia-se em simultâneo à impressão de individualidade artística e à expressão funcional ou simbólica da finalidade a que o edifício estaria destinado. No campo estrito da Arquitectura, sempre se admitiu que qualquer edifício tem como origem uma composição, quer esta seja resultante de um procedimento mais ou menos correcto, e é evidente que qualquer edifício tem carácter, quer este seja intencional ou não. A expressão de carácter, apesar dos diferentes sentidos dados à palavra composição, representou um interesse comum a todos os arquitectos, nas diferentes épocas históricas. “Tal como carácter, também o termo composição só se tornou frequente a partir do final do Séc. XVIII. A atribuição de carácter à composição arquitectónica não era um objectivo expresso dos tratadistas. Para eles, o desenho de concepção abordava o todo arquitectónico, de acordo com o sentido dado por Vitrúvio, um processo que incluía ‘invenção’, ‘compartimentação’, ‘distribuição’ e ‘ordenamento’. Nesta época, o que era entendido por ‘artes da composição’ era o que os críticos anteriores costumavam descrever – com um sentido talvez distinto – como ‘artes do desenho’.” 19 Quando começou a aparecer o termo composição, no discurso sobre Arquitectura em Inglaterra, estava já implícita a noção de carácter, como é o caso da definição de Robert Morris (1734-1806) que definia a composição em Arquitectura como arte útil e ampla, baseada na “beleza”, “proporção” e “harmonia”, que também dividia a Arquitectura em três classes – “grave; jovial; encantadora”. No princípio do Séc. XIX, Edmund Aikin (1780-1820) trata o “contraste” e a “variedade” como “essência da beleza arquitectónica”, como qualidades que conferem carácter e expressão a qualquer composição, libertando-a da “monotonia da arquitectura comum”. 20 A concepção de carácter tem, também, que objectivar uma relação com a paisagem e mostrar uma identidade intencional. A palavra carácter pode ter várias conotações, ao ser empregue de um modo um tanto indiferente, quando faz referência a uma classe tipológica ou um estilo arquitectónico – ex: edifício de “carácter variado ou divertido”, ou edifício construído segundo o “carácter gótico”.21 “Em Arquitectura, como em fisionomia, o carácter deve-se a certas características distintivas – um edifício é destinguido imediatamente de outros do mesmo tipo. Pode existir uma grande quantidade de edifícios, como existe uma grande quantidade de seres que não mostram nenhum carácter peculiar. Por outro lado, pode haver edifícios que mostram, graças à exaltação das suas proporções gerais e à justa distribuição de todas as ARTiTEXTOS06. JULHO 08 113 19 Ibidem, p.66. 20 Ibidem. 21 Ibidem. partes, algo semelhante a nobreza de carácter. O que demonstra que o carácter de um edifício deve ser evidente e notável, e deve ser expresso mais numa só característica do que em várias.” 22 O carácter passou a ser associado ao belo em Arquitectura, evidenciando os edifícios, de forma clara e indiscutível, o uso a que eram destinados. Os tipos arquitectónicos mais comuns eram, correntemente, associados a estilos diferentes que caracterizavam a sua aparência externa. As variantes que resultaram da exploração formal de um único tipo arquitectónico, comum a diferentes programas funcionais, metodologia corrente na tradição académica, passou a considerar uma abordagem significativa e personalizada, específica e localizada a um determinado contexto cultural. A sobreposição do carácter, como valor arquitectónico dominante, à importância, antes indiscutível, do estilo arquitectónico, permitia apropriar os diferentes estilos consoante os propósitos predefinidos para o edifício a projectar. Mesmo os temas vernáculos, até aqui sempre subvalorizados, adquiriam legitimidade arquitectónica quando faziam parte de uma composição formalmente coerente. Apesar da sua conotação com um certo empirismo metodológico, a obrigatoriedade de atribuir determinado carácter a um edifício garantia uma certa racionalidade conceptual que se servia das heranças da História da Arquitectura e da Natureza como materiais para a construção do objecto arquitectónico funcional e significativo. O carácter afirma-se como expressão de uma cultura específica, de forma intencional, em importantes intervenções arquitectónicas de meados do Séc. XIX. Este era o produto de circunstancias particulares que surgia naturalmente, como evidência de uma interacção genuína entre as condições naturais, um certo ambiente cultural e o indivíduo, quer se tratasse de quem concebia arquitectura ou de quem a usufruía. O carácter deveria ser revelado pela arquitectura e ser extraído através da sua interpretação, mesmo que de modo implícito. Este perde a conotação de valor objectivo e empírico e passa a afirmar-se como um conceito novo enquanto forma de expressão e de revelação de valor da arquitectura, conceito teoricamente consolidado que punha totalmente de parte a antiga ideia de característico. O carácter, directamente ligado à técnica e à representação, passa a interagir com o carácter como algo intrínseco também ao estilo. Enquanto, por um lado, era exigido que se mostrassem as qualidades inerentes à substância da arquitectura do edifício, por outro lado assumia uma tradição que se mantinha presente na sua expressão formal e simbólica herdadas de uma cultura arquitectónica claramente afirmada. Nos finais do Séc. XIX, o carácter é, assumidamente, um dos objectivos da composição arquitectónica que associa os atributos poéticos desta a uma objectividade metodológica progressivamente mais racionalizada, expressando-se como signo exterior do comportamento racional identificativo das finalidades funcionais e espaciais da arquitectura. Carácter da Arquitectura e do Lugar 114 22 Ibidem, p.70. O termo composição não teve tantas e tão variadas interpretações como as dadas ao conceito de carácter. A tendência progressiva para uma arquitectura que aspirasse à abstracção – Séc. XX –, que defendesse o anonimato, que procurasse o que é típico, a norma, não o acidental mas sim a forma definida, deixa de necessitar ter como premissa a “exibição de carácter”. A preferência de soluções impessoais, neutras e estandardizadas do Movimento Moderno tornaram-se totalmente incompatíveis com uma ideia de “expressão característica”.23 Quando recentemente se afirmava que a arquitectura do Movimento Moderno tinha um problema de carácter, contrariamente ao que era evidente na Antiguidade Clássica, deveria reconhecer-se que, nas questões iniciadas pela implementação do conceito de carácter, questões praticamente irresolúveis para o Séc. XIX, se encontram as origens de muitas reflexões e contributos teóricos importantes sobre o modo de conceber e interpretar a arquitectura, sendo esta entendida como “Lugar” do habitar. O conceito de carácter está directamente relacionado com o conceito de Lugar por Christian Norberg-Schulz (1926-2000) em Espaço, Existência e Arquitectura e em Génius Loci. Para Norberg-Schulz, a abordagem da Arquitectura, de certa forma analítica e científica, do Movimento Moderno, leva à perda do carácter concreto da envolvente do edifício e das qualidades de identificação do Homem com o Lugar. Para o contrariar, ele cria o conceito de “Espaço Existencial”, um termo que compreende as relações básicas entre o Homem e o seu meio envolvente e que é composto por dois termos complementares – “Espaço e Carácter”, directamente relacionados com as funções básicas psíquicas de “orientação” e “identificação”.24 “Desde os tempos remotos tem-se reconhecido que diferentes lugares têm diferente carácter. Tal diferença de carácter é muitas vezes tão forte que é suficiente para determinar as propriedades básicas das imagens exteriores da maioria das pessoas presentes, fazendo-as sentir o que experimentam e que pertencem ao mesmo Lugar. [...] o espaço existencial não pode ser compreendido somente por causa das necessidades do Homem, mas antes unicamente como resultado da sua interacção e influência reciproca com um ambiente que o rodeia, que tem de compreender e aceitar.“ 25 A necessidade de compreensão qualitativa e fenomenológica da Arquitectura, depois de um período marcado pela teoria abstracta e científica, fazem-no desenvolver este discurso entendido como “dimensão existencial”. Esta não é determinada directamente pelas condições sócio-económicas do Lugar que, no entanto, podem facilitar ou criar o suporte para a realização de certas estruturas existenciais, ao oferecerem o espaço para a vida “ter lugar”, mas sem determinarem, obrigatoriamente, os seus significados existenciais. Significados que têm raízes profundas, determinadas por estruturas do nosso “estar-no-Mundo”.26 ARTiTEXTOS06. JULHO 08 115 23 Ibidem, p.81. 24 Christian Norberg-Schulz, Existencia, Espacio y Arquitectura, Ed. Blume, Barcelona, 1975, p.33. 25 Ibidem. 26 Christian Norberg-Schulz, Genius Loci, Towards a Phenomenology of Architecture, Ed. Rizzoli, New York, 1984, p.6. Norberg-Schulz recorre-se do conceito de habitar de Martin Heidegger (1889-1976), dando-lhe o sentido de apoio existencial como propósito fundamental da Arquitectura.27 “O Homem habita quando se consegue orientar ‘em’ e ‘identificar-se’ a si próprio com o meio envolvente ou, quando experimenta a envolvente como significativa”. 28 O habitar é entendido muito para além da noção primitiva de abrigo e ocorre em espaços com carácter distintivo (original), em lugares existencialmente identificativos. A identidade do Homem depende directamente da sua pertença a um Lugar e este é, por sua vez, a manifestação concreta do habitar do Homem. “A palavra habitar indica uma relação total Homem-Lugar. Esta implica a distinção entre espaço e carácter. Quando o Homem habita, ele é simultaneamente localizado no espaço e exposto a um certo carácer ambiental. As duas funções psicológicas envolvidas são a ‘orientação’ e a ‘identificação’. Para ganhar a sua identidade existencial este tem que ser capaz de se orientar, tem que saber onde está, mas também tem que se identificar com o ambiente, ou seja, tem que saber como está num certo Lugar.” 29 Apesar da importância significativa da orientação, é a identificação com o ambiente que dá origem ao habitar. Estes dois conceitos são, de certo modo, independentes mas pressupõem uma relação de complementaridade inerente à apropriação e, até, à criação do Lugar. Podemos orientarmo-nos num espaço habitado sem termos que nos identificar com ele e identificarmo-nos com o Lugar sem termos o completo conhecimento da sua estrutura. As duas vivências em simultâneo permitem-nos o reconhecimento e interpretação do espaço e carácter que fazem o Lugar habitado. Ao identificarmo-nos com o Lugar assumimos, perante ele, um certo sentido de pertença e de identidade reforçados pela compreensão que temos do espaço para além deste, que nos é dado pelo sentido imprescindível da orientação. Qualquer tipo de acontecimento refere-se a uma determinada localização, o que faz do Lugar uma parte integral da existência humana. O Lugar, mais do que uma localização abstracta, é entendido por Norberg-Schulz como uma totalidade composta por coisas concretas, com substância natural, forma, textura e cor. Juntas estas determinam o “carácter ambiental”, o carácter do meio envolvente que é a essência do lugar.30 Um Lugar pressupõe sempre a afirmação de um determinado carácter ou atmosfera. Como fenómeno qualitativo e total, tem uma abrangência que vai muito para além das suas relações espaciais. Estas, apesar de muito relevantes, não são suficientes para a caracterização e interpretação da natureza concreta do Lugar. Carácter da Arquitectura e do Lugar 116 27 Martin Heidegger, Construir, Habitar, Pensar [Bauen, Wohnen, Denken], In Martin Heidegger, Vortrage und Aufsatze. Pfullingen: Gunther Neske, 1954. (Tradução do original alemão por Carlos Botelho) 28 Christian Norberg-Schulz, Genius Loci, Towards a Phenomenology of Architecture, Op. Cit., p.5. 29 Ibidem, p.19. 30 Ibidem, p.6. O carácter é determinado pela identidade própria dos objectos que constituem o Lugar, pelos fenómenos concretos que condicionam o habitar e a identificação do Homem com um ambiente espacial determinado. A compreensão do Genius Loci ou espírito do lugar, conceito herdado da Antiguidade, permite-nos reconhecer a realidade concreta a enfrentar e, através da Arquitectura, cumprir a sua principal tarefa de criar as condições ideais para habitar através da fundação de lugares significativos. “Genius Loci é um conceito romano. De acordo com as crenças romanas qualquer ser ‘independente’ tem o seu ‘genius’, o seu espírito guardião. Este espírito dá vida às pessoas e aos lugares, acompanhaos do nascimento até à morte, e determina o seu carácter ou essência. Mesmo os deuses têm o seu ‘genius’, um facto que ilustra a natureza fundamental do conceito. O ‘genius’ denota o que um objecto é ou o que este quer ser - usando um termo de Luis Kahn.” 31 Um Lugar estrutura-se a partir do meio envolvente, duma paisagem e duma ocupação humanizada. Pode subdividir-se, segundo Norberg-Schulz, em duas categorias – espaço e carácter. O espaço revela a estruturação tridimensional dos elementos que constituem o Lugar e o carácter denota as suas propriedades mais compreensíveis. Estas duas categorias associadas revelam-nos o espaço vivenciado, o espaço habitado e identificado com um colectivo humano. “A categoria de ‘espaço’ e ‘carácter´, baseadas na função psicológica fundamental de ‘orientaçao’ e ‘identificação’, introduzida por C. Norberg-Schulz para descrever a ‘estrutura do Lugar’, pode gerar maus entendimentos, justificando o ‘característico’ e o fácil ‘ambientamento’. De facto, quando se fala de carácter referimo-nos ao ‘saber local’ mais do que às funções do edifício”. 32 Podem existir organizações espaciais semelhantes mas que possuem caracteres muito diferentes, revelados pelo particular tratamento dos elementos definidores do espaço criado pelo Homem, do seu limite, e do seu ambiente natural envolvente. A própria organização espacial do Lugar põe certos limites à sua caracterização, o que torna os dois conceitos interdependentes. O espaço, para além da sua conotação com uma geometria tridimensional é, aqui, também, entendido como campo perceptivo, os dois são definidores daquele que podemos chamar, segundo Norberg-Schulz, “espaço concreto”33. Carácter é, ao mesmo tempo, um conceito mais geral e mais concreto do que espaço. Ele denota uma compreensiva atmosfera geral, a forma concreta e a substância dos elementos de definição espacial.34 Qualquer tipo de presença humana está ligada a um carácter particular que resulta, também, das exigências específicas das diferentes acções inerentes ao acto de apropriação no Lugar. ARTiTEXTOS06. JULHO 08 117 31 Ibidem, p.18. 32 Domizia Mandolasi, lL Luogo e la Cultura del Luogo Nell’Arquitectura Contemporánea, IL Luogo Come Principio di Ligittimazione del Progetto, Gangemi Editore, Roma, 1988, p.24. 33 Christian Norberg-Schulz, Genius Loci, Towards a Phenomenology of Architecture, Op. Cit., p.11. 34 Ibidem, p.13. Como exemplos de caracteres particulares associados directamente a tipologias arquitectónicas podemos referir os seguintes: 1. Habitação – protectora; 2. Espaço desportivo – festivo; 3. Igreja – solene; 4. Escritório – funcional. Num espaço interior o carácter está implícito no sentido de protecção e conforto dado pela luz e ambiente controlados, em contraste com o exterior agressivo e desconfortável. Ao interior é associada a existência de condições para a vida ter lugar. O ambiente urbano característico e particular a uma qualquer cidade histórica revela o seu próprio carácter, com o qual se identificam os seus habitantes. Qualquer paisagem também possui o seu carácter, de tipo particularmente original, o que é relevante na afirmação do carácter de qualquer Lugar. “O Genuis Loci demonstrou, em muitos casos, ser bastante forte para predominar acima dos ciclos das mudanças políticas, sociais e culturais. Tal resulta, por exemplo, para cidades como Roma, Estambul, París, Praga e Moscovo. Certamente, a ‘verdadeira grande cidade’ caracteriza-se por um Genius Loci especialmente pronunciado.” 35 O carácter do Lugar está, também, directamente relacionado com o tempo e expressa-se de forma diferente com a mudança das estações, com o passar do dia, com o clima e, associada a estes factores, com as condições diferentes da luz. A luz não é só o mais genérico fenómeno natural mas, também, o menos constante. As condições de luz mudam com o decorrer do dia – à noite o escuro preenche a totalidade do espaço e o mesmo é feito pela luz de dia. Esta está intimamente ligada aos ritmos temporais da Natureza. As estações mudam a aparência dos lugares, mais nuns sítios do que noutros, de forma diferenciada com as várias regiões onde se inserem. Os ritmos temporais não mudam os elementos básicos que constituem um Lugar natural mas, em muitos casos, contribuem decisivamente para a definição do seu carácter. A própria constituição morfológica do Lugar e os seus materiais aparentes são determinantes para a afirmação do seu carácter. Dos seus limites, onde estão também incluídos o Céu e a superfície que pisamos, depende a sua articulação formal e o modo como o Lugar é construído. A forma como um edifício se encontra no terreno, a sua relação com o Céu, os seus limites físicos, as suas fachadas, contribuem decisivamente para determinar o carácter da paisagem urbana. Quando nos referimos ao carácter de um conjunto ou família de edifícios que constituem um Lugar são, também, tidos em Carácter da Arquitectura e do Lugar 118 35 Christian Norberg-Schulz, Existencia, Espacio y Arquitectura, Op. Cit., p.33. consideração os motivos característicos que os compõem, como, por exemplo, tipos particulares de telhados, portas e janelas. Estes motivos podem funcionar como elementos convencionais que possibilitam o deslocar do carácter de um Lugar para o outro. O carácter depende, também, de como são construídos os elementos constituintes do Lugar, os seus edifícios, e é determinado pela própria realização tecnológica do construído, onde a tradição e a cultura do Lugar não são, de todo, alheias. Um Lugar criado pelo Homem pode ser entendido como um edifício que assenta no chão e se eleva para o Céu. O carácter desse Lugar é determinado pela forma como o assentar e o elevar-se é concretizado. Quando uma cidade nos agrada pelo seu carácter distinto, este é dado pela forma como a maioria dos seus edifícios se relacionam com a Terra e com o Céu. Eles expressam uma comum forma de vida, uma comum forma de estar na Terra, constituindo um “Genius Loci” que contribui para a identificação humana.36 O próprio carácter do Lugar natural é transportado pelos edifícios cujas propriedades individuais o manifestam de forma espontânea ou mesmo intencional. Os potenciais significados presentes no ambiente original são relevados na transformação de um sítio num Lugar como um propósito existencial de construir com a arquitectura. O tipo de construção usado na Arquitectura é, também, determinante para o seu carácter. Esta pode ser leve, aberta e transparente ou massiva e fechada, o que origina, também, diferentes significados e diferentes articulações formais. Estas são determinadas pelo modo como o edifício assenta na Terra e como se ergue para o Céu, como recebe a luz. A sua dominante horizontal agarra o edifício ao chão, se for vertical torna-o potencialmente leve, acentua a sua relação activa com o Céu e com o desejo de receber luz. Refira-se que a religião esteve, desde sempre, associada à verticalidade afirmativamente expressa na sua arquitectura. Como elementos determinantes da composição formal da arquitectura para a afirmação do seu carácter temos: 1. as aberturas que recebem e transmitem luz; 2. os materiais – elementos decisivos para a caracterização (ex: a madeira e a pedra têm diferentes presenças que expressam o modo como os edifícios interagem com o Lugar; 3. a cor – “a cor dum edifício pode ser clara e alegre; indicando festividade e recreação, outro edifício pode ter uma cor escura e austera, sugerindo trabalho e concentração”.37 O uso da cor pode ser assumido como uma vontade de independência no acto de fazer arquitectura. Esta pode ser significativa quando as paredes construídas estão pintadas com cores que têm uma mera função caracterizante. Uma liberdade ARTiTEXTOS06. JULHO 08 119 36 Christian Norberg-Schulz, Genius Loci, Towards a Phenomenology of Architecture, Op. Cit., p.63. O suporte geográfico e o contexto de um lugar são elementos marcantes na definição da sua identidade, dado que a relação estabelecida entre o seu meio natural e o seu meio artificial traduz-se como um traço identitário. Em adição, as formas e elementos físicos definidores da arquitectura de um lugar, constituem a manifestação material da sua identidade, sendo uma expressão do carácter daquele lugar construído ou urbanizado. Estas vertentes morfológicas da identidade são valorizadas em arquitectura, constituindo um paradigma do acto projectual, consubstanciado na tentativa de descodificação e interpretação da identidade dos lugares.37 MUGA, Henrique Muga, Psicologia da Arquitectura, Colecção Ensaios, Ed. Gailivro, Vila Nova de Gaia, 2005, p.199.vv deste tipo é mais comum em espaços interiores e fechados, onde o contacto directo com o ambiente é mais fraco e onde o carácter implica uma reunião de significados distantes.38 Nos edifícios de Arquitectura de expressão Clássica, as suas partes constituintes têm a sua própria identidade individual e, ao mesmo tempo, diferenciam-se do carácter geral do todo. Cada carácter faz parte duma família de caracteres que pode, em muitos casos, estar directamente relacionado com uma qualidade humana. Na Arquitectura Clássica, as forças originais são, também, humanizadas e apresentam-se, a si próprias, como participantes individuais no mundo compreensivo e significante.39 Para Norberg-Schulz, o carácter no ambiente urbano produzido pelo Movimento Moderno distinguia-se por monotonia. Quando era encontrada alguma variedade, devia-se geralmente a elementos oriundos do passado. Os edifícios não afirmavam a sua presença de carácter, de modo intencional, e recorria-se às novas tecnologias de construção, como é o caso da fachada cortina, para afirmar um carácter abstracto e insubstancial, ou mesmo uma falta de carácter. Ao Movimento Moderno, que oferecia poucas surpresas e descobertas, ele contrapõe com a experiência das cidades antigas e com História como património indispensável na afirmação do carácter e consolidação do Lugar. Bibliografia GRILLO, Paul Jacques, Form, Function and Design, Dover Publications, Inc., New York, 1960. HEIDEGGER, Martin, Construir, Habitar, Pensar [Bauen, Wohnen, Denken], In Martin Heidegger, Vortrage und Aufsatze. Pfullingen: Gunther Neske, 1954. (Tradução do original alemão por Carlos Botelho) MUGA, Henrique, Psicologia da Arquitectura, Colecção Ensaios, Ed. Gailivro, Vila Nova de Gaia, 2005. NORBERG-SCHULZ, Christian, Existencia, Espacio y Arquitectura, Ed. Blume, Barcelona, 1975. NORBERG-SCHULZ, Christian, Genius Loci, Towards a Phenomenology of Architecture, Ed. Rizzoli, New York, 1984. NORBERG-SCHULZ, Christian, Intensiones en Arquitectura, Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 1998. MANDOLASI, Domizia, lL Luogo e la Cultura del Luogo Nell’Arquitectura Contemporánea, IL Luogo Come Principio di Ligittimazione del Progetto, Gangemi Editore, Roma, 1988. SZAMBIEN, Werner, Symetrie, Goût, Caractère – Théorie et Terminologie de L’Architecture À L’Âge Classique 1550-1800, Ed. Picard, Paris, 1986. VIDLER, Antony, Ledoux, Ediciones Akal, S.A., Madrid, 1994. ROWE, Colin, Manierismo y Arquitectura Moderna y Otros Ensayos, Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 1999. Carácter da Arquitectura e do Lugar 120 38 Christian Norberg-Schulz, Genius Loci, Towards a Phenomenology of Architecture, Op. Cit., p.67. 39 Ibidem, p.74.ina1.html#ixzz13Zgzy1ef Neste trabalho faço uma reflexão teórica que procura reafirmar a idéia de lugar como conceito pertencente à disciplina Arquitetura, contribuindo com a manutenção e necessária ampliação do significado cultural da arquitetura como lugar da idéia, do projeto, da criação. Ao considerar o arquiteto fundamentalmente como criador de lugares, busco compreender o conceito de lugar e a sutil alteração nas suas interpretações ao longo do tempo - o que é fundamental para compreender os processos criativos da arquitetura contemporânea -, a partir da identificação de convergências e divergências deste conceito em relação a outras disciplinas, e da identificação na obra arquitetônica, em diferentes momentos históricos, da materialização do conceito de lugar. Na diversidade de tendências da arquitetura contemporânea se traduz a diversidade da idéia de lugar. O conceito de lugar na arquitetura surge, então, da superposição destas tendências com o panorama cultural que envolve o esgotamento do universo visual, a mediação tecnológica, o simulacro, a perda da noção de escala, e que coloca sob suspeita o estatuto ontológico da imagem e da própria criação artística, que tem avançado rumo ao tratamento das questões do habitar. A palestra no CAU/PUC-Rio e a entrevista do Electronic Shadow à revista Noz 2 impressionaram pelas imagens apresentadas e, também, pelo discurso que propõe um trabalho pautado pela interdisciplinaridade. Na exposição do Electronic Shadow, a arquitetura é referida sem especial enfoque em comparação com outros campos do saber. Entretanto, visto que a arquitetura é parte do trabalho deles, isso nos instigou a refletir a respeito do que seja arquitetura. Tomamos como base primeira o fato de que arquitetura não é só um resultado materializado, mas um processo que busca a criação de limites, os quais definem lugares que potencializam atividades humanas. A partir daí, buscamos o entendimento do conceito de lugar em duas de suas acepções mais discutidas hoje. O lugar, segundo o teórico norueguês Christian Norberg-Schulz, é a origem primária da arquitetura: “O propósito existencial do construir (arquitetura) é fazer um sítio tornar-se um lugar, isto é, revelar os significados presentes de modo latente no ambiente dado”1. Compreendendo a definição do lugar de acordo com sua localização e dimensão definível, Martin Heidegger afirma: “A fronteira não é aquilo em que uma coisa termina, mas, como já sabiam os gregos, a fronteira é aquilo de onde algo começa a se fazer presente”2. Com isso, vemos que o limite definidor de um lugar não deve ser visto com conotação restritiva, mas sim de identificação, tornando, nesse sentido, o lugar como algo propício a atos de pessoas, uma resposta as suas necessidades, ainda que não específicas. Com base nesta reflexão, Norberg-Schulz utiliza categorias como “espaço” para indicar a organização tridimensional dos elementos que formam um lugar, e “caráter” para denotar a “atmosfera” geral, propriedade mais abrangente de um lugar3. A criação de um lugar para o habitar por alguém é algo próprio da arquitetura e essa criação também se enquadra nos novos padrões da era digital. Software, sites, blogs, entre outros, são lugares ocupáveis no cotidiano do homem contemporâneo. A escala humana que explora determinado espaço imaterial delimitado e definido pela matéria física se reconfigura, tornando-se um feixe de conhecimento, informações, idéias que desenvolvem, criam, recriam lugares virtuais. Neste contexto, o ser humano se projeta como ser consciente e cognoscente, expondo um lado existencial não-palpável, abstrato. As relações indivíduo-lugar estão presentes tanto no lugar real quanto no virtual - porém, são diferentes. Hoje, pode-se dizer que: “Definir a 2 Op. cit., p. 450. 1 NORBERG-SCHULZ, C. O fenômeno do lugar. In: NESBITT, K. Uma Nova Agenda para a Arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p.454. Entre o real e o virtual: aspectos do lugar na arquitetura Francesco Bosch Valmir Azevedo Alunos do CAU/PUC-Rio 3 Op. cit., p. 449. NOZ 2 realidade virtual, os lugares de trânsito, os lugares de encontro, a maneira como acessamos a informação mediante um código espacial, utilizando material visual (uns e zeros), com um resultado que seja ou não similar às construções do mundo físico, é uma atividade própria da arquitetura”4. Sendo assim, não é incoerente afirmar que o fazer digital é muito semelhante ao modus operandi arquitetônico. Essa compreensão é o que o Dicionário Metápolis define como Arquitetura Avançada. A partir do entendimento de que a arquitetura contemporânea expande o seu campo de atuação na direção do lugar digital-virtual, outro ponto – ligado à produção deste lugar – entra em questão: a matéria, que, no entendimento mais elementar da arquitetura, está ligada ao que Vitruvius chamou de firmitas, ou seja, ao abrigo, à durabilidade, à tectônica, aos aspectos físicos do objeto arquitetônico. A materialidade na esfera digital é numérica, associada aos circuitos dos chips. Portanto, entendemos que ambas as operações em questão trabalham definindo lugares. Na descrição do seu trabalho, o grupo Electronic Shadow afirma: “Aplicamos essa maneira de pensar ao nosso trabalho e à nossa estrutura, que é completamente móvel. O nosso site na internet é o nosso único ‘ponto fixo’ [...]. Porque, paradoxalmente, quanto mais virtualizamos a relação com o espaço, mais viajamos, já que a estrutura física não corresponde necessariamente à abrangência da rede”5. O lugar digital é, pois, plenamente utilizado pelo grupo no seu modus operandi. No entanto, ao trabalhar entre os dois espaços, o físico e o digital, a proposta do Electronic Shadow, pode levar a simplismos perigosos. Ao apurar o olhar sobre os trabalhos por eles apresentados, como o projeto 3minutes, por exemplo, questionamos se há transformação do lugar. Qual o lugar defendido pelo grupo: o da tradição da arquitetura ou o da nova prática arquitetônica? A produção do grupo Electronic Shadow não apresenta o “espaço” virtual, mas sim imagens que utilizam essa espacialidade como meio. O espaço físico não se transforma em termos arquiteturais, pois as dimensões continuam as mesmas; os limites não são modificados. Em termos de “caráter” do lugar talvez haja uma mudança, visto que é um revestimento mutante que simula imagens sobre um plano, de cunho particular, gerador de diferentes percepções nos observadores, mudando a relação indivíduo-lugar mediante essa peculiaridade. Assim, imagens são produzidas em um tipo de lugar – o digital – e reproduzidas sobre planos de um lugar arquitetônico. A questão é que a transformação do “caráter” não se dá por um meio arquitetônico, mas por um caminho muito mais próximo ao da obra de arte. O que confirma esse argumento é a efemeridade da intervenção proposta, com uma temporalidade tão instável: o ato de desligar o interruptor desfaz a mutação e a suposta ligação entre lugares. Reafirmamos a pertinência dos dois fazeres – físico e virtual – como atos projetuais de índole arquitetônica que necessitam de tipos específicos de materialidade para a sua existência e produzem seus loci, de domínio do grupo Eletronic Shadow. O ponto em questão reflete a dificuldade dessa busca pela fusão dos dois lugares, que são de definições semelhantes, mas naturezas diferentes. Isso gera uma dúvida quanto ao uso do termo interdisciplinaridade, tão presente na proposta do Electronic Shadow. Entre o lugar digital e o lugar arquitetônico tradicional, o entre proposto pelo grupo não encontra definição nem potência. Corre o risco de tratar-se de lugar nenhum. 4 GUALLART, Vicente et al. Dicionário Metápolis de Arquitetura Avançada. Barcelona: Actar, 2000. p.62. 5 Entrevista: Nomads. usp_Eletronic Shadow. Disponível em: http://www. nomads.usp.br/site/virus01/ electronicshadow/entrevista. htm. Acesso em: 20 set. 2008. Entre o real e o virtualv Dentre as questões relativas aos valores fundamentais para a preservação de obras modernas mencionadas na chamada para o 2º DOCOMOMO N-NE, merece destaque a que investiga “Referenciais para a preservação da obra moderna”. Ali são questionados fatores que podem outorgar o mérito de validar a preservação “a determinadas realizações modernas em detrimento de outras”. Entre eles, se incluem, por exemplo, articulações espaciais, implantações e resoluções de adequação. A esses fatores, o presente trabalho se propõe acrescentar ainda mais outro, indagando: e, por que não, ressaltar as articulações com o campo psicológico? Focando a conotação à subjetividade como valor fundamental para o mérito da preservação? Pesquisando a percepção de um lugar urbano moderno, de modo a validar sua preservação? O trabalho se concentra em investigar a modernidade dos espaços projetados e se preocupa mais acentuadamente com o viés teórico de lugar, conferindo maior atenção às variações contemporâneas presentes em sua conceituação. Observa-se que a expressão “lugar”, curiosamente, não chega a ser usual nas discussões de natureza predominantemente espaciais do período áureo do urbanismo modernista. A tentativa de criação de espaços modernos, no entanto, é prática quase legendária em ArquiteturaUrbanismo, onde a idéia da busca da modernidade em projetar os espaços é uma prerrogativa permanente. Além disso, é um objetivo que transcende aos variados tempos do Movimento Moderno inclusive ao período áureo dos anos 1950s - e que, ainda hoje, consegue sobreviver com surpreendente resiliência. Àquela época, a idéia era a de que um espaço moderno deveria celebrar o “zeitgeist” do período, oferecendo espaços saudáveis e menos congestionados. São numerosos os exemplos de espaços projetados com a intenção de atingir uma situação de “modernidade”. Embora os extremados cuidados no desenho dos espaços modernos, nem sempre esses projetos conduziram à criação de verdadeiros lugares modernos, no sentido mais simbólico e filosófico da expressão. Quando isso aconteceu, é de todo válido batalhar por sua preservação. Para melhor demonstrar como o critério de lugar pode ser útil na detecção dos exemplares modernistas mais aptos à preservação, o trabalho irá buscar exemplares empíricos que ajudem a explicar o porquê de acreditar que o conceito de lugar possa ser tomado como um dos valores fundamentais para a preservação de obras modernas. Serão discutidos dois exemplares selecionados de lugares cuja preservação já esteja consagrada: o emblemático “Bund” (Xangai, China); e a região de “Ruhrgebiet” (Alemanha). Embora o conceito transpasse variados campos disciplinares (Psicologia, Geografia, Antropologia, etc.), na área de Arquitetura-Urbanismo, lugar é uma forma ambiental criada, impregnada de significado simbólico para seus usuários. Só que na presente transformação dos paradigmas do modernismo a uma situação que alguns denominam de pós-modernismo, a disciplina arquitetônicourbanistica passa a se reportar com enorme interesse às implicações psicológicas de lugar, trazendo ao conceito uma considerável força no sentido de justificar a preservação de algumas obras modernas. Lugar, então, move-se de uma antiga condição funcionalista para uma condição fenomenológica, a refletir seu importante papel existencial. Dessa maneira, os lugares, em geral, e os lugares modernos, Dentre as questões relativas aos valores fundamentais para a preservação de obras modernas mencionadas na chamada para o 2º DOCOMOMO N-NE, merece destaque a que investiga “Referenciais para a preservação da obra moderna”. Ali são questionados fatores que podem outorgar o mérito de validar a preservação “a determinadas realizações modernas em detrimento de outras”. Entre eles, se incluem, por exemplo, articulações espaciais, implantações e resoluções de adequação. A esses fatores, o presente trabalho se propõe acrescentar ainda mais outro, indagando: e, por que não, ressaltar as articulações com o campo psicológico? Focando a conotação à subjetividade como valor fundamental para o mérito da preservação? Pesquisando a percepção de um lugar urbano moderno, de modo a validar sua preservação? O trabalho se concentra em investigar a modernidade dos espaços projetados e se preocupa mais acentuadamente com o viés teórico de lugar, conferindo maior atenção às variações contemporâneas presentes em sua conceituação. Observa-se que a expressão “lugar”, curiosamente, não chega a ser usual nas discussões de natureza predominantemente espaciais do período áureo do urbanismo modernista. A tentativa de criação de espaços modernos, no entanto, é prática quase legendária em ArquiteturaUrbanismo, onde a idéia da busca da modernidade em projetar os espaços é uma prerrogativa permanente. Além disso, é um objetivo que transcende aos variados tempos do Movimento Moderno inclusive ao período áureo dos anos 1950s - e que, ainda hoje, consegue sobreviver com surpreendente resiliência. Àquela época, a idéia era a de que um espaço moderno deveria celebrar o “zeitgeist” do período, oferecendo espaços saudáveis e menos congestionados. São numerosos os exemplos de espaços projetados com a intenção de atingir uma situação de “modernidade”. Embora os extremados cuidados no desenho dos espaços modernos, nem sempre esses projetos conduziram à criação de verdadeiros lugares modernos, no sentido mais simbólico e filosófico da expressão. Quando isso aconteceu, é de todo válido batalhar por sua preservação. Para melhor demonstrar como o critério de lugar pode ser útil na detecção dos exemplares modernistas mais aptos à preservação, o trabalho irá buscar exemplares empíricos que ajudem a explicar o porquê de acreditar que o conceito de lugar possa ser tomado como um dos valores fundamentais para a preservação de obras modernas. Serão discutidos dois exemplares selecionados de lugares cuja preservação já esteja consagrada: o emblemático “Bund” (Xangai, China); e a região de “Ruhrgebiet” (Alemanha). Embora o conceito transpasse variados campos disciplinares (Psicologia, Geografia, Antropologia, etc.), na área de Arquitetura-Urbanismo, lugar é uma forma ambiental criada, impregnada de significado simbólico para seus usuários. Só que na presente transformação dos paradigmas do modernismo a uma situação que alguns denominam de pós-modernismo, a disciplina arquitetônicourbanistica passa a se reportar com enorme interesse às implicações psicológicas de lugar, trazendo ao conceito uma considerável força no sentido de justificar a preservação de algumas obras modernas. Lugar, então, move-se de uma antiga condição funcionalista para uma condição fenomenológica, a refletir seu importante papel existencial. Dessa maneira, os lugares, em geral, e os lugares modernos, em particular, protagonizam uma conexão tão importante com o contexto ambiental onde se situam, que tornam sua preservação um referencial imperativo para o registro e entendimento das manifestações modernizadoras.v