APOSTILA 5 poderes da adm.pdf

April 28, 2018 | Author: Anonymous | Category: Documents
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Direito Administrativo Pós-Graduação a distância Formação de manifestação do estado Poderes de administração: regulamentar, disciplinar. Profº. Caio Piva Sumário Aula 1 ................................................................................................................... 5 CLASSIFICAÇÃO DOS PODERES .............................................................................................5 PODER VINCULADO ............................................................................................................5 Aula 2 ................................................................................................................... 6 PODER DISCRICIONÁRIO ......................................................................................................6 Aula 3 ................................................................................................................... 6 Aula 4 ................................................................................................................... 7 ALCANCE DA DISCRICIONARIEDADE .....................................................................................7 Aula 5 ................................................................................................................... 9 Aula 6 .................................................................................................................. 10 Aula 7 .................................................................................................................. 12 Discricionariedade na evolução do Estado ............................................................................... 12 Aula 8 .................................................................................................................. 14 Fundamentos da discricionariedade ...................................................................................... 14 Aula 9 .................................................................................................................. 16 Discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados ............................................................ 16 Aula 10 ................................................................................................................. 19 Aula 11 ................................................................................................................. 20 PODER HIERÁRQUICO ......................................................................................................... 20 Aula 12 ................................................................................................................. 21 PODER DISCIPLINAR ........................................................................................................... 21 Aula 13 ................................................................................................................. 22 PODER REGULAMENTAR ....................................................................................................... 22 Aula 14 ................................................................................................................. 23 Teoria acerca do Poder Regulamentar do Executivo .................................................................. 25 Teoria tradicional .............................................................................................................................. 25 Aula 16 ................................................................................................................. 26 Teoria crítica ..................................................................................................................... 26 Aula 18 ................................................................................................................. 28 Análise de jurisprudência .................................................................................................... 28 Aula 20 ................................................................................................................. 30 ADI 487 (MC) ..................................................................................................................... 30 Aula 21 ................................................................................................................. 31 Questão Orçamentária (ADI 1287) ........................................................................................ 31 Aula 21 ................................................................................................................. 33 Política tarifária para fins de redução de consumo de água (AgrRE 201.603) ....................................................................................................................................... 33 Política econômica (RE 203.954) .......................................................................................... 34 Aula 23 ................................................................................................................. 35 O Decreto Autônomo e o Supremo ........................................................................................ 35 Aula 24 ................................................................................................................ 37 Controle Prévio das Leis ....................................................................................................... 37 INTRODUÇAO .................................................................................................................... 39 PODER DE POLÍCIA ........................................................................................................................... 39 AULA 26 ............................................................................................................... 39 PODER DE POLÍCIA: NOÇÕES BÁSICAS .................................................................................. 39 AULA 27 ............................................................................................................... 41 PODER DE POLÍCIA E PRINCÍPIOS ......................................................................................... 41 AULA 28 ............................................................................................................... 42 PODER DE POLÍCIA E ESTADO .............................................................................................. 42 AULA 29 ............................................................................................................... 44 UMA NOVA VISÃO DO PODER DE POLÍCIA............................................................................... 44 AULA 30 ............................................................................................................... 47 LIMITES DO PODER DE POLÍCIA ........................................................................................... 47 AULA 31 ............................................................................................................... 48 Poder Legislativo e Executivo ...........................................................................................48 AULA 32 ............................................................................................................... 49 AULA 33 ............................................................................................................... 51 ANATEL E O PODER DE POLICIA ............................................................................................ 51 AULA 34 ............................................................................................................... 51 ADIN 1.668-5/DF - O PODER DE BUSCA E APREENSÃO DA ANATEL ............................................ 51 AULA 35 ............................................................................................................... 52 LEI N.º 11.292/2006 RESTABELECE O PODER DE APREENSÃO. ................................................ 52 AULA 36 ............................................................................................................... 55 LEI COMPLEMENTAR 97/99 ................................................................................................... 55 AULA 37 ............................................................................................................... 56 AULA 38 ............................................................................................................... 58 Polícia administrativa do tráfego aquaviário ............................................................................ 58 AULA 39 ............................................................................................................... 60 Óbice ao exercício do poder de polícia do tráfego aquaviário ...................................................... 60 AULA 40 ............................................................................................................... 65 Poder de polícia de segurança da Autoridade Marítima .............................................................. 65 www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 5 Aula 1 Os Poderes Administrativos são inerentes à Administração Pública e possuem caráter instrumental, ou seja, são instrumentos de trabalho essenciais para que a Administração possa desempenhar as suas funções atendendo o interesse público. Os poderes são verdadeiros poderes-deveres, pois a Administração não apenas pode como tem a obrigação de exercê-los. CLASSIFICAÇÃO DOS PODERES Poder Vinculado Poder Discricionário Poder Hierárquico Poder Disciplinar Poder Regulamentar Poder de Polícia PODER VINCULADO É o Poder que tem a Administração Pública de praticar certos atos “sem qualquer margem de liberdade”. A lei encarrega-se de prescrever, com detalhes, se, quando e como a Administração deve agir, determinando os elementos e requisitos necessários. Poder Vinculado, também denominado de regrado, é aquele que a lei confere à Administração Pública para a prática de ato de sua competência, determinando os elementos e requisitos necessários à sua formalização. Nesses atos, a Administração Pública fica inteiramente “presa” aos dispositivos legais, não havendo opções ao administrador: diante de determinados fatos, deve agir de tal forma. Assim, diante de um Poder Vinculado, o particular tem um direito subjetivo de exigir da autoridade a edição de determinado ato. Como exemplo do exercício do Poder Vinculado, temos a licença para construir. Se o particular atender a todos os requisitos estabelecidos em lei, a Administração Pública é obrigada a dar a licença ou a prática de ato (portaria) de aposentadoria de servidor público. Diz-se “vinculado” o poder porque este se cinge à norma jurídica que o regra, e é por ela restringido. Em termos mais rigorosos, todo e qualquer poder que a Administração detém é vinculado; o que eventualmente varia é a intensidade e a especificação desse vínculo. Com efeito, assevera Celso Antônio Bandeira de Mello, em seu “Curso de Direito Administrativo”: “...nenhum ato é totalmente discricionário, dado que conforme afirma a doutrina prevalente, será sempre vinculado com relação ao fim e à competência, pelo menos”. Hely Lopes Meirelles, por seu turno, sustenta que: “Elementos vinculados serão sempre a competência, a finalidade e a forma (do ato administrativo).” Todavia, num sentido mais estrito o poder vinculado apresenta, além desses componentes genéricos, outros que o diferenciam do poder discricionário. Convém, no entanto, consignar a especificação de Caio Tácito, de que não seria o mais correto falar em ato vinculado ou discricionário como um todo orgânico; “não há, usualmente - diz ele -, nenhum ato totalmente vinculado ou totalmente discricionário. Existem variações de predominância, mais ou menos acentuados, dando relevo à parte livre ou subordinada da manifestação administrativa... se nos detivermos na análise de sua criação - prossegue o autor -, poderemos concluir que a vinculação ou a discrição se manifesta no tocante a cada um dos elementos essenciais do ato (competência, finalidade e forma).” Caracterizando de maneira mais precisa o poder vinculado, podemos afirmar que ele se manifesta quando, “para a prática de alguns atos, a competência da administração é estritamente determinada na lei, quanto aos motivos e modo de agir”; nesse caso, o Poder Público fica inteiramente restrito www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 6 ao enunciado da norma jurídica em todos as suas especificações, as quais, se não retiram à Administração toda a liberdade de atuação, limitam-na sobremodo. Para Celso Antônio Bandeira de Mello “não resta para o administrador - no Poder Vinculado - margem alguma de liberdade”. Por critérios rígidos, afasta-se a elasticidade de ação do Poder Público, compreendida nos conceitos de oportunidade e conveniência - esses típicos do poder discricionário -, para vinculá-lo a uma previsão legal que, uma vez verificada no mundo dos fatos, objetivamente, desencadeia uma gama de efeitos determinados, sobre os quais não pode a Administração deliberar. Podemos apontar como exemplo a aposentadoria compulsória aos 70 anos, bem como a liberação de alvará de licença de edificação, quando devidamente preenchidos os requisitos legais. Reunidos os pressupostos fáticos previstos pela norma, resta à Administração apenas fazer cumpri-la; não há lugar, por exemplo, para se averiguar a conveniência ou não de fazê-lo, sob pena de nulidade do ato. O desrespeito às especificações da norma, concernentes à atuação da Administração, acarreta a ilegalidade do ato, bem como a sua conseqüente invalidade, que pode revelar-se como anulabilidade (se sanável o vício) ou nulidade (se insanável), ambas invocáveis pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário. Uma vez declarada a anulabilidade ou a nulidade do ato, os efeitos da declaração serão ex nunc para o primeiro caso - anulabilidade -, e ex tunc para o segundo - nulidade. Aula 2 PODER DISCRICIONÁRIO É aquele pelo qual a Administração Pública de modo explícito ou implícito, pratica atos administrativos com liberdade de escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo. A discricionariedade é a liberdade de escolha dentro de limites permitidos em lei, não se confunde com arbitrariedade que é ação contrária ou excedente da lei. Ex : Autorização para porte de arma; Exoneração de um ocupante de cargo em comissãPoder Discricionário é aquele que o direito concede à Administração Pública para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo. Distingue-se do Poder Vinculado pela maior liberdade de ação que é conferida ao administrador. Se para a prática de um ato vinculado a autoridade pública está adstrita à lei em todos os seus elementos formadores, para praticar um ato discricionário é livre, no âmbito em que a lei lhe concede essa faculdade. Como exemplo do exercício do Poder Discricionário, temos a nomeação para cargo em comissão, ato em que o administrador público possui uma liberdade de escolha, ou seja, pode nomear aquele que for de sua total confiança, não se exigindo nenhuma seleção prévia. O ato administrativo possui cinco elementos: competência, objeto, forma, motivo e finalidade. Nenhum ato será discricionário em relação a todos os elementos, pois no que se refere à competência, à forma e à finalidade, o ato será sempre vinculado. Já os elementos objeto e motivo podem ser vinculados ou discricionários, dependendo do ato analisado. Assim, a discricionariedade não alcança todos os elementos do ato administrativo, pois em relação à competência, à forma e à finalidade do ato a autoridade está subordinada ao que a lei impõe. Aula 3 No quadro abaixo, mostramos esta distinção. www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 7 ELEMENTOS VINCULAÇÃO DISCRICIONARIEDADE Competência X Objeto X X Forma X Motivo X X Finalidade X Segundo Hely Lopes Meirelles, “Poder Discricionário é o que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo.” Outrossim, é “a margem de liberdade conferida pela lei ao administrador, a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal.” A lei não prevê soluções para todos os problemas que podem surgir para o Poder Público, nem o poderia fazer; em razão disso, fundamenta-se a discricionariedade, garantindo de forma eficaz os fins a que se propõe a Administração. A lei pretende que seja adotada em cada caso concreto unicamente a providência capaz de atender com precisão à finalidade que a inspirou. Dada a multiplicidade e variedade de situações fáticas passíveis de ocorrerem é preciso que o agente possa proceder à eleição da medida idônea para atingir de modo perfeito o objetivo da regra aplicada. Se a lei, nos casos de discrição, comporta medidas diferentes, só pode ser porque pretende que se dê uma certa solução para um dado tipo de casos e outra solução para outra espécie de casos, devendo ser sempre adotada a solução pertinente. A compostura do caso concreto excluirá obrigatoriamente algumas das soluções admitidas in abstracto na regra e, eventualmente, tornará evidente que uma única medida seria apta a cumprir-lhe a finalidade. A sua importância reside em assegurar de forma justa os interesses públicos entregues à tutela administrativa, a qual os gerirá segundo a necessidade de cada momento. Nos atos discricionários, a lei deixa ao administrador certa liberdade para decidir diante das circunstâncias que o caso lhe oferece, sendo-lhe facultado, por isso mesmo, usar de critérios próprios para tanto, critérios esses subsumidos nas noções de oportunidade e conveniência do ato. Aula 4 Contrariamente à competência vinculada que, como o próprio nome já informa, o legislador conferiu ao administrador público a discricionariedade ou competência discricionária, que vem evoluindo no tempo e se tornando cada vez mais usual e corrente no ordenamento jurídico. Inicialmente, tratar-se-á da distinção entre a vinculação e a discricionariedade, depois, será exposto um breve histórico acerca de sua evolução nas diversas fases do Estado brasileiro, chegando ao Estado Democrático de Direito. Em seguida, delimitar-se-á a fundamentação da concessão da discricionariedade ao administrador público e, por fim, a relação que tem ela com os conceitos jurídicos indeterminados. Finalmente, de forma simplificada, concluir-se-á, demonstrando posicionamento favorável à prática da discricionariedade, optando por práticas que venham a melhorar a utilização de tal prerrogativa no exercício da função administrativa. ALCANCE DA DISCRICIONARIEDADE Distinção entre vinculação e discricionariedade www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 8 Segundo Carvalho Filho (2002, p. 02) “compõe-se o Estado de poderes, segmentos estruturais em que se divide o poder geral e abstrato decorrente de sua soberania”. Por expressa determinação da Carta Magna outorgada em 1988, tais poderes do Estado são o poder Legislativo, Executivo e Judiciário, os quais se apresentam harmônicos e independentes entre si, porém interligados, ou seja, qualquer “invasão” na esfera de outro poder deve resultar de previsão constitucional, em nome do princípio da separação dos poderes. Ao Executivo, portanto, atribui-se a função administrativa. Para que haja desempenho das funções estatais com vistas ao atendimento das finalidades previstas na lei, à Administração Pública se confere poderes. Como afirma Meirelles (2004, p.103), “o poder administrativo, portanto, é atribuído à autoridade para remover os interesses particulares que se opõem ao interesse público”. Desta forma, “o poder de agir se converte no dever de agir”. O gestor público, estando subordinado ao ordenamento jurídico, não pode escolher se age ou não, pois tal decisão lhe é imposta, assim o poder tem para o agente público o significado de dever para com a comunidade e para com os indivíduos, no sentido de que quem o detém está sempre na obrigação de exercitá-lo [...] o poder do administrador público, revestindo ao mesmo tempo o caráter de dever para a comunidade, é insuscetível de renúncia pelo seu titular. Tal atitude importaria fazer liberalidades com o direito alheio, e o Poder Público não é, nem pode ser, instrumento de cortesias administrativas. (MEIRELLES, 2004, p.103). Para Di Pietro (2003), tais poderes são concedidos também para garantir a posição de supremacia sobre o particular, sem os quais os fins da Administração não seriam atingidos. Dentre estes poderes, encontra-se o poder vinculado e o poder discricionário. O poder vinculado se verifica quando a lei determina que o administrador público deve agir de acordo com as previsões legais, ou seja, atrela a atuação administrativa à lei, não deixando nenhuma margem de liberdade de opção ao administrador. Carvalho Filho (2002, p.103) afirma que “quando o agente administrativo está ligado à lei por um elo de vinculação, seus atos não podem refugir aos parâmetros por ela traçados”. Deve, assim, o agente pautar sua conduta na determinação legal, sob pena de não atendimento ao interesse público, resguardado na lei. Diz ainda que “sendo assim, o agente não disporá de nenhum poder de valoração quanto ao motivo e ao elemento do ato, limitando-se a reproduzi-los no próprio ato”. Segundo Di Pietro (2003, p.204), na prática de ato vinculado “a Administração deve demonstrar que o ato está em conformidade com os motivos indicados na lei”, porque os atos vinculados, assim como os discricionários, devem se submeter ao princípio da legalidade. Tudo isso se afirma porque “a Administração somente poderá fazer aquilo que a lei lhe permite”, de acordo com ensinamento de Tourinho (2004, p.17 apud Mello, 2000, p. 30). Para Di Pietro (2003), a vinculação se apresenta quando a Administração deve agir de forma determinada, específica, diante dos requisitos previstos na lei e que é por esta razão que ela diz que “diante de um poder vinculado, o particular tem um direito subjetivo de exigir da autoridade a edição de um determinado ato, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se à correção judicial”. Afirma ainda que: a atuação da Administração Pública no exercício da função administrativa é vinculada quando a lei estabelece a única solução possível diante de determinada situação de fato; ela fixa todos os requisitos, cuja existência a Administração deve limitar- se a constatar, sem qualquer margem de apreciação subjetiva.(DI PIETRO, 2003, p.205) Medauar (2006, p.108), ao se referir à www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 9 competência vinculada, assevera que “o ordenamento confere ao administrador um poder de decisão, mas predetermina as situações e condições, canalizando-o a uma só direção”. Ou seja, ao administrador que vá exercer a competência vinculada, só é dada uma solução, estando ele obrigado a adotar aquela decisão. É por tal razão que, ela diz ainda que “na doutrina se diz que há matérias de reserva legal absoluta, em que o vínculo da Administração ao bloco de juridicidade é máximo”. Aula 5 No poder vinculado, o agente administrativo não se utiliza dos critérios de conveniência e oportunidade, que se apresentam a ele no exercício do poder discricionário, uma vez que lhe é imposta a adoção de medida determinada legalmente. Por tal adoção lhe ser obrigatória é que Soares (1999, p. 50) aduz que “a não- observância das exigências legais em relação ao ato vinculado, no que diz respeito ao motivo, à substância, à finalidade, ao tempo, à forma ou ao modo, importará na invalidação do ato administrativo [...]”. Mello (2003, p.393) conceitua atos vinculados como “aqueles em que, por existir prévia e objetiva tipificação legal do único comportamento da Administração em face de situação igualmente prevista em termos de objetividade absoluta, a Administração, ao expedi-los, não interfere com apreciação subjetiva alguma”. E exemplifica com a aposentadoria do funcionário que completou 70 anos ou do que completou 60 e tem 35 anos de contribuição. À Administração só cabe analisar a presença dos requisitos, não realizando nenhum juízo de valor. Em suma, existem casos em que a lei regula dada situação de forma a não deixar ao administrador público nenhuma margem de liberdade. A lei predetermina que a conduta a ser praticada deve ser tal e deve ser mesmo, sob de estar-se escapando das finalidades propostas pela lei, as quais visam ao atendimento do interesse da coletividade e ainda de estar violando princípios balizadores do nosso ordenamento, como o princípio da legalidade. Em tais casos, o administrador estará no exercício do poder vinculado ou no exercício da competência vinculada. Contraposta à competência vinculada, tem-se a competência discricionária, a qual decorre da impossibilidade do legislador de prever todas as situações que, eventualmente, venham a ocorrer e reclamem uma solução administrativa para bem do atendimento do interesse público. Meirelles (2004), inclusive, afirma ser esta a justificativa da atividade discricionária, qual seja a impossibilidade de o legislador arrolar na lei absolutamente todos os atos que a prática administrativa exige. E mais: o ideal seria que a lei regulasse minuciosamente a ação administrativa, modelando cada um dos atos a serem praticados pelo administrador; mas, como isto não é possível, dadas a multiplicidade e diversidade dos fatos que pedem pronta solução ao Poder Público, o legislador somente regula a prática de alguns atos administrativos que reputa de maior relevância, deixando o cometimento dos demais ao prudente critério do administrador. (MEIRELLES, 2004, P.118) Mello (2002, p. 33), corroborando de tal entendimento, aduz que “a única razão lógica capaz de justificar a outorga de discrição reside em que não se considerou possível fixar, de antemão, qual seria o comportamento administrativo”, mas não qualquer comportamento e sim aquele “pretendido como imprescindível e reputado capaz de assegurar, em todos os casos, a única solução prestante para atender com perfeição ao interesse público que inspirou a norma”. Destarte, a lei consagra a discricionariedade, outorgando-a aos administradores públicos, para que possam valorar a situação concreta e optar pela que for mais conveniente e oportuna ao interesse público respaldado na lei, já que vai haver no procedimento de avaliação a aplicação de um www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 10 juízo subjetivo pelo administrador, como se vê: [...] a norma legal só quer a solução ótima, perfeita, adequada às circunstâncias concretas que, ante o caráter polifacético, multifário dos fatos da vida, se vê compelida a outorgar ao administrador – que é quem se confronta com a realidade dos fatos segundo seu colorido próprio – certa margem de liberdade para que este, sopesando as circunstâncias, possa dar verdadeira satisfação à finalidade legal (MELLO, 2003, p.35). Di Pietro (2004, p.205) afirma que “a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas válidas perante o Direito”. Ocorre que isso não deve querer que, no exercício do poder discricionário, qualquer ato que o administrador praticar seja o mais conveniente e oportuno, mas que a escolha tem que ser pelo que melhor atenda ao fim proposto pela lei, como colocado por Mello (2003, p.33) quando confirma que “[...] o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei”. E assim o é porque existe vinculação da Administração à lei, podendo-se verificar que: no Estado de Direito e no modelo constitucional brasileiro – onde expressamente se estatui, no art. 5º, II, que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei – todo desempenho administrativo (e assim também o chamado “poder discricionário”) só pode existir como um poder “intra” legal e estritamente dependente da lei, estritamente subordinado à lei (MELLO, 2003. p.13) O poder discricionário conceituado por Carvalho Filho (2002, p.33) é “a prerrogativa concedida aos agentes administrativos de elegerem, entre várias condutas possíveis, a que traduz maior conveniência e oportunidade para o interesse público”. Diante de tal poder, a Administração pondera se aquele ato deve ser praticado ou não; se, com a sua prática, faz atendimento ao interesse público e se o momento de atuação é aquele ou tem outro que melhor atende. Tal análise se faz de acordo com os critérios da conveniência e oportunidade, uma vez que à Administração Pública se confere certa liberdade na solução do caso concreto. Aula 6 Gasparini (2004, p.95) assevera que “ante essa competência, a Administração poderá deferir, deferir com condições ou não deferir pedido que lhe fora feito por determinado administrado, já que se lhe permite avaliar a solicitação formulada segundo os referidos critérios [...]”. A discricionariedade, para Medauar (2006, p. 111), “significa uma condição de liberdade, mas não liberdade ilimitada; trata- se de liberdade onerosa, sujeita a vínculo de natureza peculiar. É uma liberdade- vínculo”. Não se trata, portanto, de uma liberdade sem limites, uma vez que os fatos se encarregam de fixar limites à atuação no caso concreto, pois o fato de existirem várias condutas possíveis, não implica em dizer que qualquer uma delas pode ser aplicada em todos os casos. Assim sendo, “com base em habilitação legal, explícita ou implícita, a autoridade administrativa tem livre escolha para adotar ou não determinados atos, para fixar o conteúdo de atos, para seguir este ou aquele modo de adotar o ato, na esfera da margem livre”. Quando do exercício da atividade discricionária, é imperativo que o agente público avalie a situação prática de forma bastante criteriosa, não deixando de considerar que o objetivo precípuo da lei, o qual seja o atendimento do interesse público. Soares (1999, p. 60) ressalta que “a lei, ao proteger o interesse público, vincula o agente, mesmo naquilo que diz respeito à liberdade de atuação quanto à conveniência e oportunidade”. Diz ainda que: ao escolher www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 11 entre duas opções, a administração pública deve praticar aquela que mais convenha ao interesse público, a que represente a solução mais justa, mais adequada, mais eficaz e que se revele em consonância com a moral administrativa, e não a que seja mais conveniente e oportuna aos interesses pessoais de administrador público (SOARES, 1999, p. 61) Mello (2003, p. 395) define discricionariedade como “a margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica [...], a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal”. E mais: ao agir discricionariamente o agente estará, quando a lei lhe outorga tal faculdade (que é simultaneamente um dever), cumprindo a determinação normativa sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força da indeterminação legal quanto ao comportamento adequado à satisfação do interesse público (MELLO, 2003, p. 395) Certamente o legislador sempre vai conferir a atuação discricionária nos casos em que as circunstâncias reais, que exigem regulamentação, são dificilmente previsíveis, não podendo ele prever todas as situações sociais que devem ser resguardadas pelo Estado. O processo moroso de elaboração das normas no Brasil não pode receber mais essa função; as situações mudam numa rapidez incrível, os problemas sociais crescem a cada dia e, nesse diapasão, a coletividade precisa do acolhimento da lei. Desta forma, o poder discricionário é exercido num contexto em que se deve observar a conveniência e a oportunidade das soluções legalmente possíveis, como afirma Medauar (2006). A conveniência e oportunidade que norteiam a atividade discricionária compõem o mérito administrativo. Segundo Carvalho Filho (2002, p. 34) “são os elementos nucleares do poder discricionário, sendo que “a primeira indica em que condições vai se conduzir o agente; a segunda diz respeito ao momento em que a atividade deve ser produzida”. De acordo com Campos (2005), em seu artigo intitulado “Discricionariedade administrativa: limites e controle jurisdicional”, o mérito do ato administrativo “é o produto de um juízo de valor realizado pela autoridade pública, quanto às vantagens e conseqüências, as quais deverão ser levadas em conta como pressuposto da atividade administrativa”. Seguindo os ensinamentos de Mello, mérito é: o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada (MELLO, 2003, p. 823) Conceitualmente, ainda, Meirelles (2004, p.152 apud Campos, 2005) afirma que o mérito do ato administrativo “consubstancia- se, portanto, na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência e oportunidade e justiça do ato a realizar”. A discricionariedade só existe quando a lei permite, torna legítima a atuação administrativa. Di Pietro afirma que, normalmente, a discricionariedade existe:quando a lei expressamente confere à administração [...]; quando a lei é omissa porque não lhe é possível prever todas as situações supervenientes ao momento de sua promulgação, hipótese em que a autoridade deverá decidir de acordo com os princípios extraídos do ordenamento jurídico e, quando a lei prevê determinada competência, mas não estabelece a conduta a ser adotada (DI PIETRO, 2004, p. 206) Desta forma, como assegura Mello (2003, p. 399), a discricionariedade existe, única www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 12 e tão-somente para ajustar em cada caso concreto a opção pela melhor providência, ou seja, “daquela que realize superiormente o interesse público almejado pela lei aplicanda”. Não pode o administrador procurar atender seus interesses particulares e pessoais em detrimento do interesse de toda uma coletividade. Não é uma liberdade irrestrita, “não é uma liberdade para a Administração decidir a seu talante, mas para decidir-se do modo que torne possível o alcance perfeito do desiderato normativo”. Aula 7 Discricionariedade na evolução do Estado A primeira fase de Estado Moderno foi chamada de Estado de Polícia, onde se adotou o regime monárquico absolutista. A atividade administrativa era totalmente discricionária, não sendo necessário se pautar na lei, uma vez que a preocupação da época não era com a legalidade dos atos, mas sim com a conveniência. Para atender à coletividade, o administrador não encontrava limites na lei, nem em nenhum outro instrumento jurídico. Ele procurava atender às necessidades sociais e, para isso, podia fazer o que compreendesse suficiente para que tais fins fossem atingidos. Ocorre que essa prática não podia continuar. Era compatível com a Europa dos séculos XV a XVIII. As pessoas não podiam cobrar nada do administrador porque nenhuma lei embasava a luta pelos seus direitos, não tinham segurança, já que o ato era praticado e podia ser desfeito a qualquer tempo pelo administrador, não resguardando o direito do administrado. Surgiu, então, a necessidade de se limitar a atividade da Administração porque sem obedecer a nenhum regramento, as práticas eram arbitrárias, ferindo direitos dos administrados, que nada podiam reivindicar nem cobrar, pois nada estava positivado. Com a Revolução Francesa e a difusão dos três ideais (liberdade, igualdade e fraternidade) que lhe deram feição, começou- se a pensar nos direitos individuais dos cidadãos, os quais não podiam mais continuar desamparados, a mercê da ação política. Krell (2004, p. 17) aduz que “a partir da pragmática teoria da separação dos Poderes, começou-se a impor limites às atividades dos órgãos estatais, especialmente da Polícia, tudo em defesa dos direitos dos cidadãos”. Como afirma Soares (1999, p.13), “o ato inteiramente discricionário passa a ser repudiado nas diferentes legislações”. O ato que não precisava seguir nenhum parâmetro e, consequentemente, não se subordinava a nenhum tipo de controle, muito pelo contrário, era praticado, na maioria das vezes, para atender interesses pessoais dos administradores ou qualquer outra finalidade por eles determinada, mas que nem sempre refletia o interesse público. Não fazia mais sentido a atuação desregrada do Executivo, na medida em que as demandas individuais exigiam tratamento que tomasse como base os direitos individuais do cidadão propugnados com o advento da Revolução Francesa, como esclarecedoramente explica Medauar: [...] com a dinâmica estatal intervencionista, ampliam-se as atividades administrativas; um número crescente de medidas e decisões afeta direitos e interesses de indivíduos e grupos. O contexto político- institucional das décadas de 70, 80 e 90 apresenta-se muito diferente do contexto do início do século. A realidade atual registra a existência de inúmeros centros de interesse na sociedade e a ampliação dos direitos de indivíduos, de grupos e de direitos difusos. É notória a heterogeneidade de interesses, acarretando pressões de indivíduos e grupos sobre a Administração para atendimento de suas reivindicações [...] (MEDAUAR, 2006, p. 110). Surge, então, a segunda fase do Estado Moderno, que é o Estado de Direito. Carvalho Filho (2002) assegura que esse novo Estado www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 13 se baseia no fato de que, ao mesmo tempo em que ele cria o direito, deve estar sujeito a ele. Com essa afirmação, ele consigna o princípio da legalidade e, por essa razão, Medaur (2006, p. 111) ressalta que “hoje no âmbito de um Estado de Direito é impossível cogitar-se de poder discricionário fora do direito, subtraído a toda disciplina legal”, porém, existe um obstáculo a transpor. Compartilhando do mesmo entendimento, Mello (2003) vem afirmar que num Estado de Direito a Administração tem que se apoiar na lei e almejar sempre cumpri-la fielmente, uma vez que a Administração deve obediência à lei. Conforme Krell (2004, p. 17), “o grande desafio do jovem Estado de Direito era conciliar a tradicional liberdade decisória do Executivo com a observância do princípio da legalidade”. E isso era necessário diante das novas circunstâncias, pois a atividade plenamente discricionária era sinônimo de arbitrariedade, e meio através do qual os administradores públicos alcançavam seus interesses privados em detrimento do interesse público, que é o fim primordial da lei. Ocorre que, o poder cegava os administradores. Eles percorriam numa busca incessante apenas por suas satisfações pessoais, deixando a coletividade de lado, quando agiam ao arrepio da lei. Primordial nessa nova fase do Estado era tentar imprimir um caráter de segurança às condutas praticadas e às decisões tomadas pelo administrador público para evitar que o administrado fosse surpreendido com uma nova decisão a cada dia, de acordo com a conveniência do agente público. Afirmou Kelsen (2000, p. 346 apud Tourinho, 2004, p. 26) que “a expressão ‘Estado de Direito’ é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, que seria aquele capaz de satisfazer os requisitos da democracia e da segurança jurídica”, o que pode ser entendido como “uma ordem jurídica centralizada onde a jurisdição e a administração estão vinculadas às leis”. A lei baliza aquilo que pode e o que não pode ser feito, não podendo o exercente da atividade administrativa, olvidar do dever de observância das disposições normativas. Importa salientar que o Estado de Direito foi marcado por uma fase mais liberal; o princípio da legalidade de forma extensiva. Era dado ao administrador público não só fazer aquilo que a lei permitia, mas também aquilo que a lei não proibia, ou seja, continuava ele a fazer tudo que entendesse por bem, já que não havia vinculação. Devido à instituição dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade na Revolução Francesa, a preocupação era com as liberdades individuais, favorecendo o individualismo, porém o Estado continuava impotente diante dos conflitos sociais. Urgia, então, uma resposta prática a essa nova situação. Avançou-se para a fase chamada Estado Social de Direito. Segundo Tourinho (2004), foi fase marcada pela atribuição de buscar a igualdade, como forma de ajudar aqueles mais necessitados, ficando a igualdade sobreposta à liberdade, uma vez que se limitava o exercício dos direitos individuais em benefício do bem-estar coletivo. Assevera Tourinho (2004, p 28) ainda que, “nesta fase [...] instalou-se a idéia de socialização, que significa a busca do interesse público, em oposição ao individualismo que imperou no Estado Liberal”. Com nova concepção acerca do Estado, as finalidades que se buscava atingir com relação à sociedade que ansiava por soluções práticas e eficazes para suas demandas não seriam alcançadas se o olhar não fosse global, ou seja, se fosse privilegiada a resolução dos problemas de forma individualista. Nesta ocasião, à Administração não era mais dado fazer tudo o que estivesse determinado em lei e tudo o mais que a lei não proibisse. Só podia a atuação administrativa se pautar em previsões legais, o que quer implicar em que só se poderia fazer aquilo que a lei permitisse. A discricionariedade, então, encontrou limites www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 14 e não era mais encarada como prática arbitrária. O Estado Social de Direito foi incapaz de gerir todas as situações postas sob sua responsabilidade, vindo a fracassar. Inclinou- se, novamente, a retomada ao Estado de Direito que, agora, não poderia ser concebido sem as influências do ideal de democracia. A essa última fase dá-se o nome de Estado Democrático de Direito. Conforme Tourinho (2004, p. 29), “a democracia implantada pelo Estado Democrático de Direito é um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo, devendo ser exercido em seu proveito [...]”. Uma Administração Pública onde se busque atender interesses pessoais e particulares dos seus gestores públicos é completamente descabida, na medida em que se deve precipuamente atender às necessidades públicas, com o poder derivando dos próprios interessados e dos que devem ser os beneficiários. Soares (1999) ressalta que nessa atual fase do Estado, ele deve objetivar priorizar os direitos e garantias do cidadão, agindo não só em conformidade com a lei, mas sim com todo ordenamento jurídico, inclusive com os princípios constitucionais e os demais que regem a atuação da Administração Pública. E mais:o Estado Democrático de Direito pressupõe a garantia do cidadão diante do poder estatal, em face das normas jurídicas. A soberania popular ganha realce e não se pode conceber qualquer ato emanado da autoridade pública que seja desconforme a essa vontade popular, violando o princípio da moralidade administrativa (SOARES, 1999, p. 66). O desafio, portanto, era conciliar as liberdades individuais com as aspirações sociais e tudo isso aliado à participação do povo, uma vez que o que vigorava eram os seus direitos. O bem-comum haveria de ser tutelado nesse novo Estado. Outro não poderia ser o entendimento de Soares, o qual assinala que a Constituição elege, em seu preâmbulo, o bem-estar como um dos valores supremos a ser assegurado pelo Estado Democrático e, no seu art. 3º, assenta como objetivos fundamentais, entre outros, uma sociedade livre, justa e solidária, e o bem de todos. Os atos administrativos devem estar voltados à observância de tais princípios, atendendo ao fim maior do Estado, ou seja, a conquista e manutenção do bem- estar comum, a distribuição da justiça e da paz social (SOARES, 1999, p. 61). Aula 8 Fundamentos da discricionariedade Há divergência doutrinária quanto a quais sejam os fundamentos da discricionariedade administrativa. Di Pietro (2004) utiliza uma justificação que também é usada por Medaur (2006). Defende Di Pietro que a discricionariedade existe para evitar que a aplicação das normas tenha que ser de forma rígida, com as disposições já determinadas, o que transformaria a atuação dos agentes administrativos em algo mecânico, vez que ao legislador não é possível prever todas as situações da vida administrativa. Outrossim, Medaur afirma que as funções políticas e administrativas não obteriam êxito no seu desempenho se a lei previsse tudo de forma completa. Essa análise é feita por um ponto de vista prático, como denominou Di Pietro. Por outro ângulo, ainda segundo Di Pietro (2004), pode-se analisar o ponto de vista jurídico, também considerado por Tourinho (2004, p. 33), apesar de esta entender que tal ponto de vista se reflete no fato de que “caso fosse possível ao legislativo prever todas as possibilidades de ocorrência, guinado, minuciosamente, o administrador teríamos a substituição de um órgão do poder por outro”, e assim, o Legislativo daria ordens ao Executivo, que teria que cumpri-las, o que geraria violação ao princípio da separação dos poderes. www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 15 O fundamento jurídico para a existência da discricionariedade no entender de Di Pietro (2004) é a teoria da formação do Direito por degraus de Kelsen. Ela diz que no sistema jurídico brasileiro existe a Constituição que é a norma de grau superior, e que, a partir dela, outras são editadas até a aplicação no caso concreto; em cada uma dessas etapas, acrescenta-se um novo elemento, possível por causa da discricionariedade. É de acatar-se, portanto, que a norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma de escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de ter àquela que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu e, em grande parte, nem sequer podia prever (KELSEN, 2000 apud TOURINHO, 2004, p.32). Dessa forma, inegável é que a norma superior ofereça os limites para a aplicação do ato, os moldes dentro do qual ele poderá ser praticado. Latente também é que necessário se faz a presença de uma margem onde a apreciação pelo administrador seja livre, valorando o cabimento e o momento em que o ato deve ser praticado sem esquecer de observar o fim último da lei, qual seja o atendimento do interesse público. Nesse diapasão, Di Pietro (2004, p. 206) assegura que “a discricionariedade é indispensável para permitir o poder de iniciativa da Administração, necessário para atender às infinitas, complexas e sempre crescentes necessidades coletivas”, porquanto, “a dinâmica do interesse do interesse público exige flexibilidade de atuação”. A discricionariedade é prerrogativa imprescindível ao exercício da atividade administrativa porque só o agente público pode adotar a melhor solução no caso concreto, vez que, como afirmou Medauar (2006), é fundamental a maleabilidade conferida pela atuação discricionária porque se vive uma época de grandes transformações, desde problemas corriqueiros, porém que exigem solução rápida a grandes tragédias. Esse é mais um fundamento de alguns doutrinadores, mencionado por Mello (2003, p. 824) quando diz que é imperativa a liberdade de decisão da Administração no caso concreto, “tendo em conta sua posição mais favorável para reconhecer, diante da multiplicidade dos fatos administrativos, a melhor maneira de satisfazer a finalidade da lei nas situações empíricas emergentes”. Há ainda uma classe de fundamento que é o de ordem lógica e que, consoante Tourinho (2004, p. 32) vem a sustentar “a impossibilidade de o legislador fixar o alcance de todos os conceitos utilizados na linguagem normativa”, dizendo respeito aos conceitos jurídicos indeterminados, fluidos, vagos e imprecisos, que são aqueles que não apresentam sentido objetivo e preciso, mas sim incerto. É preciso, por conseguinte, buscar a essência do conceito jurídico indeterminado, sua parte de certeza, e, para tanto, no exercício da competência discricionária, como esclarece Queiró (1940, p. 24 apud Tourinho, 2004, p. 32) “é logicamente necessário que, nos limites da incerteza conceitual, o agente deva fixar- se, ele próprio, numa das interpretações possíveis, e, tendo-a fixado, deva agir consequentemente”. Em suma, Mello afirma que o fundamento da discricionariedade (ou seja, a razão pela qual a lei a institui) reside, simultaneamente, no intento legislativo de cometer ao administrador o encargo, o dever jurídico, de buscar identificar e adotar www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 16 a solução apta para, no caso concreto, satisfazer de maneira perfeita a finalidade da lei e na inexorável contingência prática de servir-se de conceitos pertinentes ao mundo do valor e da sensibilidade, os quais são conceitos chamados vagos, fluidos e imprecisos (MELLO, 2003, p. 826). Aula 9 Discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados Existem conceitos utilizados em normas jurídicas, portanto, conceitos jurídicos que, como a discricionariedade administrativa, precisam ser valorados, ou seja, necessitam que o administrador público analise a conveniência a oportunidade na hora de aplicá-los. Estes conceitos não oferecem um padrão de objetividade, mas de subjetividade, como assegura Tourinho (2004, p. 38) “possuem uma inequivocidade difícil de ser alcançada, ou seja, tem um campo amplo de significação, necessitando de uma atividade interpretativa para se obter o seu real sentido”. São chamados de conceitos jurídicos indeterminados. Conceitos jurídicos indeterminados são signos vagos, incertos, imprecisos, que podem ser analisados amplamente e que, por tal razão, podem ser aplicados nas mais diversas situações, nas quais se possa adequar o seu sentido. Adeodato (2002, p. 280 apud Krell, 2004, p. 33) afirma que “são opiniões mais ou menos indefinidas a que, ainda assim ou talvez justamente por isso, a maioria empresta sua adesão, ao mesmo tempo que preenche os inevitáveis pontos escuros e ambíguos com sua própria opinião pessoal”. Segundo Carvalho Filho (2002, p. 37), “são termos ou expressões contidos em normas jurídicas, que, por não terem exatidão em seu sentido, permitem que o intérprete ou o aplicador possam atribuir certo significado, mutável em função da valoração que se proceda diante dos pressupostos da norma” ou ainda “são aqueles cujo âmbito se apresenta em medida apreciável incerto, encerrando apenas uma definição ambígua dos pressupostos a que o legislador conecta certo efeito de direito”. Medauar (2006) assegura que não é o conceito que não se pode determinar, pelo contrário, pode-se aferir o seu significado; o que é impossível é adequar anteriormente os conceitos fluidos às situações vindouras, portanto, afirma Soares (1999, p.15) que “ao aplicá-los, o administrador terá de valer- se da exegese para precisar seu verdadeiro sentido e limites [...]”. Discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados não são a mesma coisa, embora apresentem semelhanças. Na discricionariedade, o legislador estabelece a situação jurídica e confere ao gestor da coisa pública a margem de liberdade de optar pela atuação ou conduta mais oportuna e conveniente, para atender àquela situação jurídica proposta; nos conceitos jurídicos indeterminados, a lei dá opções para o administrador adequar diversos fatos a uma noção subjetiva, que pode variar de acordo com a interpretação do aplicador da lei. Perfilhando de tal entendimento, aduz Carvalho Filho (2002) que enquanto o conceito jurídico indeterminado situa-se no plano da previsão da norma (antecedente), porque a lei já estabelece os efeitos que devem emanar do fato correspondente ao pressuposto nela contido, a discricionariedade aloja-se na estatuição da norma (conseqüente), visto que o legislador deixa ao órgão administrativo o poder de ele mesmo configurar esses efeitos (CARVALHO FILHO, 2002, p. 37). Diz ele ainda que o fundamento para a confusão que tem sido feita com relação à discricionariedade e aos conceitos jurídicos indeterminados é que eles fazem parte das atividades da Administração que não são vinculadas, vez que não oferecem padrão de objetividade e, por tal razão, implicando na adoção de uma atividade interpretativa. www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 17 Passou-se então a discutir a relação existente entre os dois institutos; formaram- se posicionamentos divergentes. A questão era saber se na utilização de conceitos jurídicos indeterminados, caberia a discricionariedade. É de observar-se que as discussões acerca dos conceitos jurídicos indeterminados não se iniciaram aqui no Brasil. Surgida na Áustria, no século XIX, a doutrina dos conceitos jurídicos indeterminados levou à verificação da presença da discricionariedade ou não nos referidos conceitos vagos. Nisso, divergiam os doutrinadores. Alguns, afirmavam não poder o Judiciário revisar as decisões dos órgãos competentes, a quem competia a delimitação do sentido do conceito empregado; outros, no entanto, afirmavam que era ao Judiciário que cabia tal interpretação. Hodiernamente, continua sendo controvérsia a possibilidade de existir discricionariedade nos conceitos jurídicos indeterminados. Enterría e Fernández (2000, p. 457 apud Tourinho 2004) afirmam que o essencial do conceito indeterminado é que sua indeterminação não se refere à aplicação. Por necessitar de uma atividade interpretativa para encontrar a solução adequada ao caso concreto, só tem cabimento uma única solução justa capaz de atingir o objetivo da lei. Mello (2002), adotando o posicionamento de autores germânicos, assegura que no caso concreto, não se pode falar em fluidez de conceitos, pois, diante da realidade, se deve determinar o sentido do conceito aparentemente abstrato, tornando-o inequívoco. Assim, os citados doutrinadores germânicos, admitem uma unidade de solução diante da situação concreta, posta, o que diferentemente se verifica na discricionariedade. Eles, segundo Tourinho (2004, p. 43) aduzem que “na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados não há um processo volitivo, como ocorre na discricionariedade, mas sim, um processo de aplicação e interpretação da lei”. Há quem diga, no entanto, que tal entendimento não deve ser extremado. Casos haverá em que realmente uma única solução será aplicável, vez que apenas ela atende ao fim propugnado na lei; em outros, não será possível a aplicação de um sentido determinado, como se verifica em Mello (2002, p. 22) quando afirma que “em inúmeras situações, mais de uma situação seria razoavelmente admissível, ao se podendo afirmar, com vezos de senhoria da verdade, que um entendimento divergente do que se tenha será necessariamente errado, isto é, objetivamente reputável como incorreto”. Em suma, entende o autor que, a depender da situação, pode ou não haver uso da discricionariedade na aplicação dos conceitos imprecisos, como denomina. Por outro lado, há quem afirme que a discricionariedade tem origem nos conceitos jurídicos indeterminados. Queiró (1940, p. 50 apud Tourinho 2004, p. 39) conceitua a discricionariedade como sendo “uma faculdade de escolher uma entre várias significações contidas num conceito normativo prático, relativo às condições de fato do agir administrativo”. Di Pietro (2004), igualmente, aduz que, nas hipóteses de conceitos de valor, como interesse público, medidas urgentes, moralidade, etc., poderia haver discricionariedade, embora limitada, já que os referidos conceitos apresentam um mínimo de certeza em seu conteúdo; tanto é assim que, conforme Rozas (2006), em seu artigo, intitulado “Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa”, nesses casos, o controle judicial é um contorno de limites, sendo dado ao Judiciário apenas verificar se a escolha feita pela Administração se manteve nos lindes do razoável. Outrossim, consoante afirmação de Oliveira, nessas hipóteses, caberá ao juiz adentrar ao exame das provas, a análise das controvérsias que lhe são submetidas, até onde tiver elementos seguros de interpretação [...] é possível ao magistrado afirmar que o administrador não atribuiu o www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 18 alcance correto de certo conceito jurídico indeterminado no caso concreto, sob pena de substituir, indevidamente, o administrador (OLIVEIRA, 1992, p. 85 apud TOURINHO, 2004, 44) Destarte, nem sempre que se estivesse diante de um conceito que não pudesse ser determinado ou que comportasse adequação a mais de uma situação, estar-se-ia exercendo a atividade discricionária, e se o Judiciário fosse definir cada um dos conceitos quando da sua aplicação, como teria que acontecer para haver vinculação, violar-se-ia o princípio da separação de poderes. Certo é que não pode afirmar que sempre diante de um conceito jurídico indeterminado haveria discricionariedade, como assevera Machado (2004, p. 116 apud Tourinho, 2004, p. 43), “ao aplicarmos um conceito jurídico indeterminado, estamos no domínio do princípio da legalidade, enquanto que no exercício da discricionariedade, já nos encontramos no setor regido pelo princípio da oportunidade”. Desta forma, ainda segundo ele, “a decisão tomada no exercício de um poder discricionário não pode confundir-se com a decisão tomada em aplicação de uma norma que exige preenchimento valorativo por utilizar conceitos indeterminados ou estar elaborada na fórmula de cláusula geral”, contudo, se em determinada situação real o administrador reputar, em entendimento razoável (isto é, comportado pela situação, ainda que outra opinião divergente fosse igualmente sustentável), que se lhe aplica o conceito normativo vago e agir nesta conformidade, não se poderá dizer que violou a lei, que transgrediu o direito. E se não violou a lei, se não lhe traiu a finalidade, é claro que terá procedido na conformidade do direito. Em assim sendo, terá procedido dentro de uma liberdade intelectiva que, in concreto, o direito lhe facultava. Logo, não haveria título jurídico para que qualquer controlador de legitimidade, ainda que fosse o Judiciário, lhe corrigisse a conduta [...] (MELLO, 2002, p. 23). Ora, com relação ao controle dos atos que comportem conceitos jurídicos indeterminados, pode-se dizer queo Judiciário tanto interpreta a lei – para corrigir atos que desbordem das possibilidades abertas pela moldura normativa – nos casos em que verifica se os conceitos vagos ou imprecisos foram apreendidos pela Administração dentro da significação contextual que comportavam, como quando, para os mesmos fins, verifica se a opção de conveniência e oportunidade se fez sem desvio de poder, isto é, obséquios às finalidades da lei [...] em ambos os casos o Judiciário pratica, desde logo, o ato de intelecção da lei, interpretando-a confrontando-a com o caso concreto, para aferi se foi bem ou mal aplicada [...] se for o caso, terá de concluir que o ato administrativo não é passível de censura porque a Administração atuou dentro da esfera legítima, isto é, dentro do campo de liberdade (intelectiva ou volitiva) que a lei lhe proporcionava, seja porque não excedeu a esfera de intelecção razoável de um conceito fluido, seja porque não se excedeu ao decidir que tal ou qual comportamento era o mais conveniente e oportuno, por ter se mantido dentro dos limites da razoabilidade (MELLO, 2002, p.27) Ainda perfilhando do entendimento esposado pelos autores que não concordam que discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados sejam a mesma coisa, Tourinho (2004) ensina que diante dos conceitos do valor, o intérprete da lei deverá exercer a sua atividade de interpretação, buscando alcançar o sentido que se aplique ao caso concreto, vez que a variação do mesmo ocorre de acordo com o tempo e o espaço, sendo sempre voltado para o entendimento da sociedade como um todo. E, a partir dessa análise, chegará a uma única solução possível, ressaltando a autora a distinção entre a discricionariedade, a qual se configura pela possibilidade de diversas soluções justas, de acordo com a conveniência e oportunidade, eleitas pelo administrador público. www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 19 Adverte ela, ainda, que “em se tratando de conceitos jurídicos indeterminados, obviamente que nem sempre o processo interpretativo da norma jurídica levará a uma solução indubitável”, ou seja, algumas vezes várias podem ser as soluções possíveis, embora nem nessas situações se possa afirmar estar diante de um caso de discricionariedade, visto que como bem esclarece Sousa (1994), às vezes, está-se perante uma situação existente (algo que já existe) que apenas tem de ser declarada (constatação de um “ser”) para legitimar uma atuação administrativa [...] à Administração não resta qualquer liberdade para criar seja o que for (característica de quem é livre), mas apenas lhe compete o poder-dever de constatar um realidade existente (SOUSA, 1994, p. 97 apud TOURINHO, 2004, p. 47) Aula 10 Há, entretanto, quem considere que deve ser observada a situação real e, a partir dela, constatar se tem cabimento a discricionariedade ou não. Assevera Medauar (2006, p. 115) que, “havendo parâmetros de objetividade para enquadrar a situação fática na fórmula ampla, ensejando uma única solução, não há que se falar em discricionariedade”. Em contrapartida, “se a fórmula ampla, aplicada a uma situação fática, admitir margem de escolha de soluções, todas igualmente válidas na noção, o poder discricionário se exerce”. Ocorre que aí estar-se-ia igualando a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados à discricionariedade, o que, como já discutido, não é o mais adequado. Para estes doutrinadores que acreditam que deve haver uma ponderação, parece que o mais coerente, no caso em comento, as duas atividades devem ser vistas como fenômeno interligado, conforme Mancuso (1992. p. 70 apud Krell, 2004, p.35), “visto que, muitas vezes, o órgão administrativo deve lançar mão desta para preencher aqueles”. Em suma, de acordo com Rozas (2006), em seu trabalho intitulado “Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa”, de um lado há aqueles que são adeptos da teoria da univocidade, quais sejam os que sustentam que na interpretação e aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, só há uma única solução justa e correta; de outro, há os adeptos da teoria da multivalência, os que pensam que, como na discricionariedade, existe pluralidade de soluções justas, corretas e aplicáveis, diante de um conceito vago ou ambíguo. E como tem se comportado os tribunais brasileiros no que respeita a tal discussão? Consoante a já mencionada autora, a jurisprudência brasileira tem entendido que a existência de conceitos jurídicos indeterminados não pode retirar do Poder Judiciário a função de controlar se a aplicação dos conceitos amplos desbordou dos limites impostos pela lei, quanto ao atendimento do interesse público, embora possa haver discricionariedade, senão vejamos: RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INDEFERIMENTO DE PEDIDO DE REMOÇÃO. INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO QUE DEMONSTRE O INTERESSE PÚBLICO. CRITÉRIO DE ANTIGUIDADE MANTIDO. RECURSO PROVIDO. 1.” O assento regimental nº 1/88, no art. 8º, estabelece o critério de antiguidade para a remoção de magistrado, no caso de mais de um interessado pleitear a remoção para uma única vaga. Critério não absoluto, haja vista a disposição: “salvo relevante interesse público, devidamente justificado”. 2. Viabilidade do controle do Poder Judiciário acerca de conceitos jurídicos indeterminados e do motivo do ato administrativo. 3. Ausência de demonstração de prejuízo ao serviço forense a justificar o afastamento do critério de antiguidade. 4. Recurso ordinário provido”. (STJ, 5ª Turma, RMS 19590/RS, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 02/02/2006). Com o objetivo de efetivar o controle, a jurisprudência vem utilizando critérios www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 20 diversos com variações no que respeita à linha de argumentação e à profundidade do controle dos tais conceitos jurídicos indeterminados, como bem reconhece Ohlweiler (2000, p. 40 apud Krell, 2004, p.36). Um exemplo disso é o atendimento dos três anos de atividade jurídica que se exige para que o bacharel em Direito ingresse na magistratura ou nas carreiras do Ministério Público, que ainda não foi regulamentado oficialmente pelos órgãos competentes, quais sejam o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público, mas que já são regulamentados por alguns concursos, seguindo julgamento de ADIN pelo STF, considerando constitucional a exigência da totalidade da atividade, ou seja, os três anos, depois do bacharelado e da comprovação desta no momento da inscrição. Enquanto isso, o que desbordar desses limites, será objeto do controle jurisdicional, confirmando a máxima que os atos administrativos, sejam eles praticados no exercício da atividade discricionária ou vinculada, devem ser controlados pelo Poder Judiciário, pois, “no momento em que o legislador utiliza-se desses conceitos, ele não está nada mais que legitimando o comportamento da Administração, cabendo a esta tão-somente realizar um trabalho de constatação, plenamente subordinado ao controle jurisdicional”, de acordo com Lucian (2004), em artigo intitulado “A discricionariedade administrativa e os conceitos jurídicos indeterminados”. Desta forma, Tourinho (2004), assegura que a posição adotada majoritariamente de se distinguir os conceitos jurídicos indeterminados da discricionariedade, harmoniza-se com os ideais do Estado de Direito de atender concretamente, através da lei, as vontades coletivas e não apenas os interesses individuais, fazendo-se necessário que as leis fossem precisas, duráveis e previsíveis, que possibilitassem certa segurança, uma vez que isso reduz o campo de discricionariedade. Afinal, de acordo com os ensinamentos do mestre Carvalho Filho (2002, p. 38), considerando-se “justamente a ausência de standards de objetividade tanto na discricionariedade quanto na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, surgem como mecanismos de controle os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade”, por meio dos quais, inclusive, será possível “evitar excesso de poder e adequação da conduta ao fim a que a norma se destina” Aula 11 PODER HIERÁRQUICO É aquele pelo qual a Administração distribui e escalona as funções de seus órgãos, ordena e rever a atuação de seus agentes, estabelece a relação de subordinação entre os servidores públicos de seu quadro de pessoal. No seu exercício dão- se ordens, fiscaliza-se, delega-se e avoca-se. Poder hierárquico é o de que dispõe o Executivo para organizar e distribuir as funções de seus órgãos, estabelecendo a relação de subordinação entre o servidores do seu quadro de pessoal. Inexistente no Judiciário e no Legislativo, a hierarquia é privativa da função executiva, sendo elemento típico da organização e ordenação dos serviços administrativos. O poder hierárquico tem como objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública. Ordena as atividades da administração ao repartir e escalonar as funções entre os agentes do Poder, de modo que cada qual exerça eficientemente o seu cargo, coordena na busca de harmonia entre todos os serviços do mesmo órgão, controla ao fazer cumprir as leis e as ordens e acompanhar o desempenho de cada servidor, corrige os erros administrativos dos seus inferiores, além de agir como meio de responsabilização dos agentes ao impor-lhes o dever de obediência. Pela hierarquia é imposta ao subalterno a estrita obediência das ordens e instruções www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 21 legais superiores, além de se definir a responsabilidade de cada um. Do poder hierárquico são decorrentes certas faculdades implícitas ao superior, tais como dar ordens e fiscalizar o seu cumprimento, delegar e avocar atribuições e rever atos dos inferiores. Quando a autoridade superior dá uma ordem, ela determina, de maneira específica, os atos a praticar ou a conduta a seguir em caso concreto. Daí é decorrente o dever de obediência. Já a fiscalizar é o poder de vigiar permanentemente os atos praticados pelos seus subordinados. Tal se dá com o intuito de mantê-los de acordo com os padrões legais regulamentares instituídos para a atividade administrativa. Delegar é conferir a outrem delegações originalmente competentes ao que delega. No nosso sistema não se admitem delegações entre os diferentes poderes, nem de atos de natureza política. As delegações devem ser feitas nos casos em que as atribuições objeto das primeiras forem genéricas e não fixadas como privativas de certo executor. Avocar é trazer para si funções originalmente atribuídas a um subordinado. Nada impede que seja feita, entretanto, deve ser evitada por importar desprestígio ao seu inferior. Rever os atos dos inferiores hierárquicos é apreciar tais atos em todos os seus aspectos para mantê-los ou invalidá-los. MEIRELLES destaca subordinação de vinculação administrativa. A subordinação é decorrente do poder hierárquico e admite todos os meios de controle do superior sobre o inferior. A vinculação é resultante do poder de supervisão ministerial sobre a entidade vinculada e é exercida nos limites que a lei estabelece, sem retirar a autonomia do ente supervisionado. Aula 12 PODER DISCIPLINAR É aquele através do qual a lei permite a Administração Pública aplicar penalidades às infrações funcionais de seus servidores e demais pessoas ligadas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração. A aplicação da punição por parte do superior hierárquico é um poder-dever, se não o fizer incorrerá em crime contra Administração Pública (Código Penal, art. 320). Ex : Aplicação de pena de suspensão ao servidor público. Poder disciplinar não se confunde com Poder Hierárquico. No Poder hierárquico a administração pública distribui e escalona as funções de seus órgãos e de seus servidores. No Poder disciplinar ela responsabiliza os seus servidores pelas faltas cometidas. Faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores, o poder disciplinar é exercido no âmbito dos órgãos e serviços da Administração. É considerado como supremacia especial do Estado. Correlato com o poder hierárquico, o poder disciplinar não se confunde com o mesmo. No uso do primeiro a Administração Pública distribui e escalona as suas funções executivas. Já no uso do poder disciplinar, a Administração simplesmente controla o desempenho dessas funções e a conduta de seus servidores, responsabilizando-os pelas faltas porventura cometidas. Marcelo CAETANO já advertia: “o poder disciplinar tem sua origem e razão de ser no interesse e na necessidade de aperfeiçoamento progressivo do serviço público.” O poder disciplinar da Administração não deve ser confundido com o poder punitivo do Estado , realizado por meio da Justiça Penal. O disciplinar é interno à Administração, enquanto que o penal visa a proteger os valores e bens mais importantes do grupo social em questão. A punição disciplinar e a penal têm fundamentos diversos. A diferença é de substância e não de grau. www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 22 Aula 13 PODER REGULAMENTAR É aquele inerente aos Chefes dos Poderes Executivos (Presidente, Governadores e Prefeitos) para expedir decretos e regulamentos para complementar, explicitar(detalhar) a lei visando sua fiel execução. A CF/88 dispõe que : “ Art. 84 - Compete privativamente ao Presidente da República: IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”; O direito brasileiro não admite os chamados “decretos autônomos”, ou seja aqueles que trazem matéria reservada à lei. Poder regulamentar é o poder dos Chefes de Executivo de explicar, de detalhar a lei para sua correta execução, ou de expedir decretos autônomos sobre matéria de sua competência ainda não disciplinada por lei. É um poder inerente e privativo do Chefe do Executivo. É, em razão disto, indelegável a qualquer subordinado. O Chefe do Executivo regulamenta por meio de decretos. Ele não pode, entretanto, invadir os espaços da lei. MEIRELLES conceitua que regulamento é ato administrativo geral e normativo, expedido privativamente pelo Chefe do Executivo, por meio de decreto, visando a explicar modo e forma de execução da lei (regulamento de execução) ou prover situações não disciplinadas em lei (regulamento autônomo ou independente). A preocupação central deste estudo é analisar as decisões do Supremo Tribunal Federal, doravante STF, sob a vigência da Constituição Federal de 1988, acerca da Poder Regulamentar do Executivo. Essa atuação regulamentar no Brasil é regrada pelos arts. 84 e 87 da Constituição Federal de 1988: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;” “Art. 87. “(...) Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei: (...) II – expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos;”. (grifos nossos). Porém, as demandas normativas do Estado contemporâneo são inflacionadas pelas necessidades econômicas e sociais, levando ao alargamento das atribuições do Poder Executivo, cuja atividade normativa extrapola a delimitação estabelecida nos arts. 84 e 87 da Constituição Federal, de maneira que “é preciso reconhecer que a amplitude dessa atividade e o seu volume são fatos”. E esse é o impasse que serve de mote a todo o estudo. Ter-se-á como hipótese de trabalho que a produção regulamentar do Executivo é uma necessidade diante das demandas atuais e o STF tem reconhecido esse poder regulamentar, com um conteúdo maior do que é admitido pela doutrina mais tradicional. Se esse reconhecimento do tribunal for comprovado, o estudo pretende confirmar o raciocínio de que a conseqüência lógica é a refutação das teorias tradicionais sobre o tema. Outra hipótese a ser verificada é a de que o STF não fundamenta esse reconhecimento de maneira consistente, esquivando-se da apreciação de um tema tão delicado e relevante para o Direito Público e dando solução aos casos específicos em demanda. O estudo pretende ir além e desenvolver o raciocínio segundo o qual essa postura do STF deriva da dificuldade do Tribunal em lidar com as questões tocadas pelo poder regulamentar. Para tanto, o estudo parte de um esforço de contextualização da produção normativa na sociedade contemporânea, feita com base www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 23 em artigos de periódicos de relevo na área do Direito Público Brasileiro, teses de doutorado e obras de teóricos do assunto em tela. Essa contextualização constitui o substrato sobre o qual se desenvolverá a análise posterior e central do trabalho, na exata medida da importância dos processos sociais para as transformações na estrutura do Estado e do ordenamento jurídico sobre o qual este se assenta. O passo seguinte é esboçar os principais posicionamentos teóricos acerca do tema. Construído esse panorama, segue-se a análise da jurisprudência do STF. O universo de análise consiste de decisões encontradas no “site” do STF que tratam da produção regulamentar do chefe do Executivo ou dos Ministros de Estado para a implementação de elementos de políticas públicas. O corte metodológico representado pela adoção de decisões que envolvem elementos de política pública foi feito com inspiração na teoria de Maria Paula Dallari Bucci, que apresenta como caminho para superação da concepção da norma geral e abstrata como referência central do aparelho burocrático do Estado a introdução, no mundo do direito público, do conceito de política pública como programa de ação. Ela sugere que as políticas (instrumentos de ação dos governos) são uma evolução em relação à idéia de lei em sentido formal, da mesma maneira que esta foi uma evolução em relação ao governo de homens, de maneira que “a visão liberal do direito como conjunto de normas cede lugar a compreensões baseadas na idéia de comunicação do direito com as expressões não- jurídicas da vida” Parece pertinente, então, fazer um paralelo entre essa teoria e a questão do Poder Regulamentar, na medida em que, se a concepção de políticas públicas para o direito pode envolver a superação da idéia de lei em sentido formal como balizadora do direito público, um viés de análise que contemplasse as decisões acerca de elementos de políticas públicas poderia permitir a verificação de indícios da aceitação de um Poder Regulamentar mais amplo do que o admitido pela doutrina tradicional, não condicionado e estreitamente limitado pela lei formal. Isso por que ao Poder Executivo da sociedade contemporânea cabe não só a implantação de políticas, mas a determinação das mesmas. Nas palavras de Maria Paula Dallari: “ A idéia de uma sucessão de atos no tempo, em que o Legislativo e o governo traçam primeiro as diretrizes da política para depois a Administração Pública executá-la, passa a ser mais um tipo ideal que um dado da realidade. “ Esse conflito revela não só a crise entre o Executivo e o Legislativo, em termos da titularidade da iniciativa legislativa, como, também, a superação de toda a organização formal do Estado liberal.”” Somente foram consideradas para o estudo as decisões que se posicionavam pelo conhecimento da ação proposta contra a atividade normativa do Executivo via poder regulamentar, pois somente nessas decisões seria viável verificar uma possível aceitação por parte do STF dessa atuação do Estado. Essa análise jurisprudencial é o foco central do trabalho e a possível contribuição que o mesmo possa oferecer à reflexão do assunto em tela. Aula 14 Transformações da estrutura do Estado e das atribuições do Executivo No Estado Liberal as funções estatais eram mínimas, em decorrência do combate ao Antigo Regime e em atendimento aos interesses da burguesia. A preocupação fundamental era proteger os indivíduos do arbítrio estatal, limitando ao máximo as prerrogativas do poder público. Essa limitação atendia aos interesses da burguesia na medida em que a referida classe detinha o poder econômico, mas não político, revestindo-se de importância ímpar tolher o poder público da possibilidade de controlar suas atividades econômicas em ascensão. Nesse intuito, consagram-se as liberdades www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 24 e garantias individuais, constituindo-se em valores desse Estado a garantia da liberdade, da segurança e da propriedade. Os modelos econômico e jurídico adotados no século XVIII e XIX espelham esses valores e princípios do pensamento liberal. A economia é marcada pela autonomia da atividade econômica em relação ao Estado, consagrando o princípio da livre iniciativa, em reação ao regime anterior que “editava regras reguladoras de preços e padrões de mercadorias, disciplinava o treinamento de aprendizes e controlava as inovações e concorrência, tudo com o objetivo de assegurar balança comercial positiva, reforçar reservas de ouro do país e gerar riquezas ‘taxáveis”. O modelo jurídico, por sua vez, é constituído pela idéia do império da lei, em oposição ao governo dos homens, em que se baseava o regime absolutista anterior. E as leis deveria atender aos valores do Iluminismo de preservação das liberdades e valorização da individualidade. Para tanto, além do conteúdo material garantindo as liberdades e garantias individuais, é consagrada a idéia de normas gerais e impessoais de forma a evitar o arbítrio dos detentores do poder, elaboradas de acordo com um processo formal, pelo Parlamento. Mas as crises econômicas e sociais que marcaram o século XIX impuseram transformações nesse modelo de Estado, exigindo uma atuação estatal mais ativa. No plano social, decorrência das crises e movimentos sociais os “sindicatos adquiriram força de pressão sobre o Estado. Por influência das idéias e dos partidos socialistas reivindicava-se intensamente que a igualdade formal se tornasse real, que as liberdades afirmadas nos textos constitucionais tivessem efetividade, que houvesse justiça social, que se assegurasse o suficiente para as necessidades básicas da vida”. Clamava-se por respostas do Estado a essas necessidades. No âmbito econômico, a crise de 1929, a desagregação econômica típica das épocas do pós-guerra, a urbanização crescente com o surgimento das grandes metrópoles e os problemas que acompanham seu surgimento e crescimento, entre outros fatores, constituíam situações que prescindiam da atuação estatal. O pressuposto liberal de que a sociedade e a economia dispunham de mecanismos naturais de controle e equilíbrio eram refutados por dados inegáveis da realidade. Na ordem jurídica, à garantia dos direitos individuais reduzidos aos aspectos vida, propriedade e iniciativa privada, soma-se a garantia dos direitos políticos, econômicos e sociais. “Tais direitos passam e ser encarados não somente como direitos- liberdade, mas como direitos- exigência”. O Estado deixa de ser visto como apenas garantidor das liberdades individuais e passa a ser aceito como instrumento de correção de desigualdades econômicas e sociais. “ Gradativamente... foi-se tornando mais e mais arraigada a concepção de que muitas das necessidades sociais não são passíveis de serem atendidas por meio da livre contraposição das forças de oferta e de procura, o que exige, em diversos graus de intensidade, a instituição de normas destinadas a alterar o funcionamento aleatório dos mercados, com vistas ao atendimento de certos fins eleitos pela ordem jurídica”. Mais ainda, “amplia-se o sentido de Estado de Direto, que também passa a apresentar preocupações democráticas pluralistas no plano econômico, social, cultural e político” O Poder Legislativo, por sua vez, revelou- se inapto para atender às exigências normativas da sociedade contemporânea, em primeiro lugar, porque o tratamento de alguns setores da vida econômica e social passaram a exigir conhecimentos técnicos especializados; em segundo, a nova dinâmica social e econômica exigem rapidez para editar e alterar as normas. “Além disso, o processo legislativo convencional e a própria separação de poderes clássica foram concebidos para um ambiente www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 25 liberal, pressupondo a organização social e econômica mediante mecanismos capazes de produzir uma harmonia natural pela ação de agentes individuais e hipersuficientes, no qual ao Estado caberia a função de proteção (um não fazer ou prestações negativas) das livres forças sociais...o Direito era restrito ao mínimo de normas necessárias à manutenção dessas liberdades.” Daí não apresentar-se como estrutura apta a atender a inflação de exigências normativas. Diante dessa inaptidão do Legislativo, o Poder Executivo foi, paulatinamente, abarcando o papel de instituir essa normas demandadas. Hoje, a normatização de setores econômicos e sociais pelo Executivo tornou-se corriqueira. A atribuição dessas funções ao Executivo suscita diversos problemas de Direito Público, que precisam ser enfrentados por teóricos e pela jurisprudência. Aula 15 Teoria acerca do Poder Regulamentar do Executivo Teoria tradicional Um dos expoentes da doutrina brasileira tradicional do direito administrativo é Celso Antônio Bandeira de Mello, que relega ao regulamento mero papel de estabelecimento de critérios e procedimentos de atuação administrativa, dentro de limites rígidos fixados em lei. Dessa forma, o poder regulamentar visa dar procedimentariedade à lei, servido à sua fiel execução. Afirma que o princípio da legalidade no Brasil impõe ao regulamento o caráter de “ato estritamente subordinado, isto é, meramente subalterno e, ademais, dependente de lei”. Não admite regulamento sem lei anterior que o estipule e o limite. Assim, não tolera outra forma de regulamento no direito brasileiro que não os “regulamentos executivos” (estabelece fiel execução da lei pela Administração). Afirma que não há lugar sequer para os “regulamentos autorizados” ou “delegados” (atividade normativa desempenhada pelo Executivo mediante expressa autorização de ato do Legislativo, dentro de seus limites), muito menos para os “regulamentos independentes” ou “autônomos” ( atividade normativa autorizada implícita ou explicitamente pela Constituição ao Executivo) e julga que a função do regulamento em nosso sistema é muito modesta. Quanto a possibilidade de inovação do ordenamento jurídico, Bandeira de Mello só admite que seja feito por lei, enquanto o regulamento não o altera: “só a lei inova em caráter inicial na ordem jurídica”. Coerentemente com esse posicionamento, pode-se afirmar que nenhum tema tratado pela Constituição Federal poderia ser regulamentado diretamente pelo Executivo por decreto, mas teria que ser anteriormente tratado por uma lei e, se necessário, seria estabelecido um regulamento para “especificar com maior minudência a regência de situações cuja previsão e disciplina já tenham sido antecipadamente traçadas na lei, mas sem pormenores cujo agregado, por via administrativa, conquanto conveniente ou imprescindível, não afeta a configuração dos direitos e obrigações nela formados”. Aclamando o princípio da legalidade, o autor não admite que o regulamento inclua no sistema positivo qualquer regra geradora de direito ou obrigação novos. Interpreta o art. 5º, inciso II da Constituição Federal de forma muito restrita, argumentando que a disposição: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” determina a exigência de lei em sentido formal para que o Poder Público imponha obrigações aos administrados, de maneira a não tolerar que o Executivo, por meio de decreto, pudesse, por si mesmo, interferir na liberdade ou na propriedade das pessoas. Ainda defendendo a obediência ao princípio da legalidade, cita Pontes de Miranda :“Onde se estabelecem, alteram ou www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 26 extinguem direitos, não há regulamentos _ há abuso do poder regulamentar, invasão de competência legislativa. O regulamento não é mais do que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas sem que possa, com tal desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à categoria de lei”. Ao lado do art. 5º, II da Contituição Federal, Bandeira de Mello cita os arts. 84, IV e 37 da Constituição Federal para defender a subordinação total de todos os atos da Administração à lei, e defende que o acréscimo da expressão “nos termos da lei” em alguns dispositivos constitucionais se dá para “vincar ainda mais reiteradamente a diretriz consagradora da subordinação da Administração à lei”, tese que encontra oposição em alguns teóricos que argumentam seres os temas dispostos na Constituição de maneira expressamente subordinada à lei_ “nos termos da lei”, como a matéria tributária_ os que contam com reserva legal, devendo ser tratados em lei formal e nos limites desta. Essa posição de Bandeira de Mello é por ele defendida como forma de conter os arbítrios do Poder Executivo: “Pode parecer, até mesmo estranho que a Lei Maior haja se ocupado com tão insistente reiteração em sublinhar a inteireza do princípio da legalidade. Fê-lo, entretanto, a sabendas, por advertida contra a tendência do Poder Executivo de sobrepor-se às leis. É que o Executivo, no Brasil, abomina a legalidade e tem o costumeiro hábito de afrontá-la, sem ser nisso coartado, como devido. Daí a insistência constitucional, possivelmente na expectativa de que suas dicções tão claras e repetidas ad nauseam encorajem o Judiciário a reprimir os desmandos do Executivo”. Desse ponto de vista resulta a concepção de que finalidade e a natureza da competência regulamentar é a produção de normas requeridas para a execução das leis unicamente quando estas demandem uma atuação administrativa a ser desempenhada dentro de um espaço de liberdade que enseje regulação ulterior sob o argumento da preocupação de uma aplicação uniforme da lei pelos agentes administrativos, garantindo o respeito ao princípio da igualdade dos administrados. Tudo o que foi defendido por Bandeira de Mello em relação aos regulamentos é por ele aplicado às instruções, portarias, resoluções, regimentos e quaisquer outros atos gerais do Executivo de maneira mais vigorosa ainda, defendendo que “Tratando-se de atos subalternos e expedidos, portanto, por autoridades subalternas, por via deles o Executivo não pode exprimir poderes mais dilatados que os suscetíveis de expedição mediante regulamento”. Assim, esses atos dos órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta devem apresentar uma dependência e subordinação à lei, bem como uma limitação por esta, ainda mais rigorosa que no caso dos regulamentos do chefe do Executivo. Essa construção teórica, porém, vem se mostrando anacrônica diante da nova dinâmica social que enseja maior produção normativa e da atuação do Legislativo que não consegue atender a essa demanda. A realidade demonstra que a grande produção normativa via poder regulamentar do Executivo é um fato. Uma alternativa que se mostra mais viável é aceitar essa ampliação das atribuições do Executivo e elaborar mecanismos de controle que evitem os possíveis malefícios dessa atuação. Aula 16 Teoria crítica Exemplo de teoria crítica da doutrina tradicional é a obra de Eros Roberto Grau. No capítulo 10 de sua obra “O Direito Posto e o Direito Pressuposto”, formula sua concepção de poder regulamentar, partindo da crítica da forma como adotamos a doutrina da “separação de poderes”. Primeiro pontua que essa doutrina chegou até nós a partir da exposição de Montesquieu, e não da concepção norte-americana dos freios e contrapesos. Explica que, enquanto na obra de Montesquieu, a “separação de poderes” www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 27 é um mecanismo voltado para a promoção da liberdade do indivíduo, na construção dos federalistas norte-americanos a preocupação central é com a otimização das funções do Estado, priorizando a eficiência da atuação estatal. O próximo passo de sua construção teórica é explicitar que mesmo a teoria de Mostequieu é vista de forma enviesada. Isso por que adotamos a concepção de que esse teórico concebia os Poderes de forma estanque, impenetráveis um pelo outro, quando na verdade, no próprio capítulo VI do Livro IX de O espírito das leis, Montesquieu dá exemplos de intercâmbio entre os poderes, como na passagem em que discorre acerca da faculdade de estatuir_ direito de ordenar por si mesmo ou corrigir o que foi ordenado por outrem_ e faculadade de impedir_ direito de anular uma resolução tomada por outro (poder de veto)_ atribuindo a última ao Executivo em relação ao Legislativo: “O Poder Executivo, como dissemos, deve participar da legislação através do direito de veto, sem o quê seria despojado de suas prerrogativas.” Outro ponto enfatizado por Eros Grau é que já da exposição de Montesquieu é possível fazer a distinção entre Poder e função, na medida em que o teórico coloca os Poderes Legislativo e Executivo, de um lado, e as funções executiva e legislativa, de outro. Essa diferenciação é evidenciada, segundo Eros Grau, na passagem da obra em que Montesquieu afirma que o poder Executivo deve estar dotado de funções executivas e de parcelas de funções legislativas, pela titularidade da faculdade de impedir (poder de veto). Esse ponto é essencial para o desenvolvimento da teoria de Eros Grau. O autor observa que existe uma classificação orgânica ou institucional das funções compreendidas pelo poder estatal_ funções legislativa, executiva e jurisdicional_ atribuídas aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, compreendidos como centros ativos de funções. Ao lado dessa classificação, destaca outra, que leva em conta os aspectos materiais das funções estatais, estabelecendo as funções normativas (de produção de normas jurídicas), administrativa (de execução das normas jurídicas) e jurisdicional (de aplicação das normas jurídicas). Para a concepção de Poder Regulamentar, Eros Grau se atém a uma análise mais detalhada das funções legislativa (aspecto institucional) e normativa (aspecto material). Aqui é importante trazer a exposição de Eros Grau acerca das definições de norma e lei, baseada na obra de Alessi: “ Norma é todo preceito expresso mediante estatuições primárias (na medida em que vale por força própria, ainda que eventualmente com base em um poder não originário, mas derivado ou atribuído ao órgão emanante), ao passo que lei é toda estatuição, embora carente de conteúdo normativo, expressa, necessariamente com valor de estatuição primária, pelos órgãos legislativos ou por outros órgãos delegados daquele. A lei não contém, necessariamente, um norma. Por outro lado, a norma não é necessariamente emanada mediante uma lei.” Assim, a classe função legislativa advém de um critério formal. Na tentativa de conciliação dos critérios formal e organizacional, considera que a função normativa (material) compreende as funções legislativa, regulamentar e regimental (normatividade emanada do Poder Judiciário). O fundamento do poder regulamentar é situado, então, na atribuição de poder normativo contida explícita ou implicitamente na Constituição ou em lei formal. Dessa maneira, não há de se falar em delegação de poder, pois o Executivo não estaria exercendo a função legislativa (formal), mas normativa do tipo regulamentar, autorizada de forma explícita ou implícita pela Constituição ou pela lei, não delegada pelo Legislativo. Isso por que, nas palavras de Eros Grau, “o Legislativo não é titular de monopólio senão da função legislativa, parcela da função normativa, e www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 28 não de toda esta, como a recepção irrefletida da teoria da “separação” dos poderes, à primeira vista, indica”. Explicitada a construção teórica de Eros Grau para chegar à concepção de poder regulamentar, o próximo ponto importante é tratar das características dessa função do Executivo, para o autor, contrastando com a idéia tradicional. Essa exposição é relevante para posterior verificação do entendimento do STF acerca do assunto. Essa teoria crítica admite a inovação do ordenamento jurídico pela atuação regulamentar do Executivo na medida em que a considera uma parcela da função normativa do Estado e entende que a norma jurídica, fruto do exercício dessa função, consubstancia inovação de preceito primário no ordenamento jurídico. Outro ponto relevante é o exame do princípio da legalidade. Considerando o art. 5º, II, da Constituição Federal, Eros Grau defende que ocorre uma vinculação da Administração às definições decorrentes de lei, fixadas em virtude dela, configurando-se uma reserva da norma (que pode ser tanto legal quanto regulamentar ou regimental), e não reserva de lei. Afirma que o artigo em questão expressa uma reserva da lei em termos relativos apenas, significando uma reserva da norma. Em decorrência desse entendimento, concebe que ao Executivo possa ser atribuído, de forma implícita ou explícita, o exercício da função normativa do tipo regulamentar para impor a obrigação de fazer e não fazer aos particulares. Assim, admite outros tipos de regulamento no ordenamento brasileiro, além dos executivos ou de execução: os regulamentos autorizados, que decorrem de atribuição do exercício de função normativa explícita em ato legislativo e permitem ao Executivo, nos limites da atribuição, inclusive criar a obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa; e os regulamentos autônomos ou independentes, que decorrem de atribuição, implícita no texto constitucional, do exercício de função normativa ao Executivo para viabilizar a atuação administrativa de sua competência, permitindo também a criação de obrigações aos particulares. Por fim, cabe salientar que essa atuação do Executivo deve ser desempenhada nas questões conjunturais, sendo denominada capacidade normativa de conjuntura por Eros Grau. A natureza momentânea das situações que ensejam essa atuação permitiu ao autor o estabelecimento de um paralelo com a doutrina de Montesquieu, na medida em que este teórico preconizou que o “Poder Executivo deve permanecer nas mãos de um monarca por que esta parte do governo, que quase sempre tem necessidade de uma ação momentânea, é mais bem administrada por um do que por muitos; ao passo que o que depende do Poder Legislativo é, amiúde, mais bem ordenado por muitos do que por um só”. Assim, segundo Eros Grau, a importância do poder regulamentar é reconhecida diante da instabilidade de determinadas situações e estados econômicos que impõem o caráter flexível e dinâmico dos instrumentos normativos utilizados pelo Estado para corrigir os desvios ocorridos no desenrolar do processo econômico e no curso das políticas públicas que esteja a implementar. Aula 18 Análise de jurisprudência RE nº 121.140 Trata-se do Recurso Extraordinário nº 121.140, interposto pela prefeitura municipal do Rio de Janeiro para restabelecer, na sua plena eficácia, o decreto 7.046, de 28 de outubro de 1987, editado pelo prefeito do município do Rio de Janeiro com o objetivo de preservar conjunto arquitetônico histórico, com ênfase para a proteção ambiental de dois bairros do citado município. O acórdão recorrido concedeu a segurança pleiteada para excluir um dos imóveis sobre os quais incide o decreto municipal, sob argumento de que o decreto impôs indevidas restrições ao direito de propriedade www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 29 do requerente, a pretexto de proteção ambiental, sem respaldo em lei. O Recurso Especial foi julgado em 26 de fevereiro de 2002. Os ministros do STF, por maioria de votos, dão provimento ao recurso, restabelecendo a plena eficácia do decreto municipal. O fato de o decreto aceito pelo STF ter sido editado sem respaldo em lei representa uma aceitação do poder regulamentar do Executivo mais amplo do que o concebido pela doutrina tradicional, que só admitia recursos para fiel execução de uma lei, dependendo da existência desta, e fixando-se nos limites estabelecidos pela mesma. O relator Maurício Corrêa, em seu voto, defende que o município tem o dever de polícia na expedição de normas administrativas que visem a preservação da ordem ambiental e da política de defesa do patrimônio público. Trata-se de uma visão inovadora de poder polícia, em relação à doutrina tradicional do Direito Administrativo, que amplia a atuação do poder de polícia para além da fiscalização do exercício de atividades pelos particulares, abarcando também o poder de estatuir normas destinadas à regulação desse mesmo exercício. Essa atuação pode ser encaixada na concepção de regulamento autônomo ou independente, definidos por Eros Grau como aqueles que decorrem de atribuição, implícita no texto constitucional, do exercício de função normativa ao Executivo para viabilizar a atuação administrativa de sua competência. Essa atribuição implícita de função regulamentar ao Executivo pela Constituição é admitida, pelo Ministro relator_ que votou pelo provimento do recurso_ nas seguintes passagens de seu voto: “O patrimônio cultural é elevado pela ordem constitucional ao patamar dos valores fundamentais a serem protegidos, resguardados e preservados, e que impõe sejam promovidos pelos órgãos do Estado. Nos três estágios dos Poderes Públicos, tanto o municipal, o estadual, como o federal, atribuem-se-lhe as competências para a expedição de normas reguladoras para a garantia da intangibilidade desses bens públicos”. E ainda: “não se pode negar eficácia às disposições do Decreto nº 7.046/87, que teve o escopo primordial de regulamentar a exeqüibilidade da norma constitucional de conteúdo autoaplicável”. Também o Ministro Francisco Resek o admite: “Abstraiu o Tribunal (cujo acórdão é recorrido) o fato de que a autoridade do Poder Público, no caso, flui diretamente da Constituição”. E ainda: “A questão é uma só...saber se o Poder Público (o detalhe é importante: pela voz do Executivo) pode estabelecer posturas, endereçá-las a determinados prédios, em determinada área do cenário urbano; se ele pode fazê- lo, tirando sua autoridade da Constituição da República, ou se ele depende...de uma lei municipal... E a esse respeito me parece impecável a posição assumida pelo Ministro- relator. O Poder Público... não precisa de mais nada além daquilo que a Constituição estabelece”. Outro ponto relevante é que o decreto municipal cria certas restrições ao direito de propriedade dos moradores da área de preservação criada pelo mesmo veículo normativo, segundo o requerente do acórdão impugnado, “individualmente, direcionando as restrições a ele a aos outros proprietários citados, e não a todos os proprietários da região”. A concepção de regulamento autônomo de Eros Grau admite que este crie obrigações aos particulares. O acórdão do STF, no entanto, não aprecia essa questão de uma forma direta. O Ministro– relator apresenta a citação de Hely Lopes Meirelles, segundo o qual “limitação administrativa é toda imposição... condicionadora do exercício de direitos ou de atividades particulares às exigências do bem-estar social”, parecendo admitir a possibilidade de restrição de direitos pela própria administração, como no caso da www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 30 edição do decreto pela prefeitura do Rio de Janeiro. Em seguida, porém, cita Pontes de Miranda, segundo o qual a limitação do direito de propriedade, nos casos de edificações consideradas patrimônio público, é conseqüência de disposição constitucional, parecendo isentar, então, o Executivo de ter criado estas restrições, na medida em que a própria Constituição o determina. Essa citação parece não ser adequada, na medida em que destoa do corpo da decisão, por se tratar de um comentário à Constituição de 1967, além de conter a determinação de somente lei possa determinar os limites dessa instituição (propriedade): “Há de haver a instituição da propriedade, porém, no que consiste e até onde vai, só a lei o diz, e a lei, a esse respeito, tem todas as possibilidades.” (grifos nossos). Essas citações são elencadas pelo ministro para defender a tese de que não há afronta ao direito de propriedade diante das limitações impostas a esse direito em prol da proteção do meio ambiente urbano e cultural. Porém , não é enfrentada a questão dessa limitação ter sido imposta por decreto, e é esse o ponto que realmente interessaria. Quanto a possibilidade de criação de restrições à direitos, ou criação de obrigações via decreto, portanto, não é afirmado um entendimento preciso e claro, apesar de ter sido aceito um decreto que claramente o faz. Apesar da decisão aceitar uma atividade regulamentar mais ampla do que a admitida tradicionalmente, o não enfrentamento claro de algumas questões relevantes parece não oferecer grande impacto na doutrina tradicional do Poder Regulamentar. Esse ponto é reforçado pelo fato de o acórdão não tratar claramente do poder normativo do Executivo, mas de seu poder de polícia, não dando o relevo merecido para o fato de aceitar que esta engloba a capacidade de criar normas (na concepção não tradicionalista do Direito Público). Tanto que, numa análise inicial, menos criteriosa, esta decisão havia sido excluída do universo de análise do presente estudo por que não parecia pertinente ao mesmo, ao se ater ao poder de polícia do Executivo. Essa falta de enfrentamento da questão do Poder Regulamentar do Executivo via argumentos jurídicos, é emblemática nos argumentos usados pelo Ministro Francisco Resek para dar provimento ao recurso: “O proprietário não tem direitos ilimitados, e se ele os deseja maiores do que seria razoável, em lugar de especial interesse histórico, artístico, paisagístico ou o que o seja, ele que procure lugar onde a falta de qualidade seja irmã gêmea da desídia do Poder Público em estabelecer regras de controle. Isso é, efetivamente, a meu ver, uma equação simples. O proprietário que não quer restrição nenhuma ao seu direito de propriedade e deseja fazer do seu imóvel aquilo que à sua imaginação ou ao seu sentido de especulação pareça melhor, sem nenhuma espécie de regulamento do Poder Público, que procure (e não faltam no país) lugares condizentes com esse desejo de não enfrentar limites. Serão lugares que, pela sua modéstia em matéria de qualidade histórica, paisagística, ecológica, condigam com a miséria da disciplina urbana.” Aula 20 ADI 487 (MC) A medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade de nº 487, é investida pela Confederação Nacional da Indústria contra o Decreto nº 99.547 do presidente da República, de 25 de setembro de 1990. Esse veículo normativo visava proibir, por prazo indeterminado, o corte e a respectiva exploração da vegetação nativa da Mata Atlântica. O argumento da Confederação Nacional da Indústria é que tal proibição só poderia ter sido estabelecida por lei formal, diante do art. 225, § 4º da Constituição Federal: “Art. 225. (...) §4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato- Grossense e a Zona www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 31 Costeira são patrimônio nacional, e a sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.” (grifos nossos) A cautelar foi indeferida, por maioria de votos, mantendo o decreto presidencial. O ministro Sepúlveda Pertence pondera que uma possível interpretação desse dispositivo constitucional é que a utilização desse patrimônio nacional (Mata Atlântica), depende de lei que lhe demarque a possibilidade e lhe regulamente o exercício. Mas admite ser a questão bastante complexa, restando, no juízo liminar, a solução através de outro requisito das medidas cautelares. Assim, afirma que, entre a proteção do patrimônio ecológico nacional e os respeitáveis interesses privado, em termos de medida liminar, fica com o primeiro, indeferindo a medida. A argumentação do Ministro Paulo Brossard, que também se posicionou pelo indeferimento da medida liminar, consiste em elencar os processos de deteriorização das florestas pelo território nacional, citando os casos dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e da região Nordeste, cada qual com suas especificidades, para concluir: “Bom, Sr. Presidente, estou discrepando das normas processualisticas tradicionais, mas tudo isso é para dizer que a mim parece que não faz mal rejeitar a cautelar até o julgamento da ação.” O Ministro indefere a cautelar, embora afirme que não simpatize com a redação do citado decreto, que lhe causa inclusive certa repugnância. Outra ressalva feita é de que impressiona o fato da proibição constante do decreto ser por tempo indeterminado. Mas a preocupação central do Ministro consiste em que, deferida a cautelar, derrubando o decreto, não restem mais árvores quando do julgamento da ação. Os demais votos que indeferem a cautelar argumentam não haver “periculum in mora” ou conveniência em derrubar o decreto. Certamente, em medida cautelar, há o entendimento de que não é necessário decidir o mérito, qual seja, da retirada ou não do decreto do ordenamento jurídico diante do exame de constitucionalidade. Trata-se de resolver pedido de liminar, para suspender a vigência do diploma impugnado. Porém, o mérito não chegou a ser decidido, valendo o decreto impugnado, mesmo diante da possível inconstitucinalidade do mesmo, por mais de dois anos, quando a ação perdeu objeto por conta da edição de outro decreto presidencial, em 10 de fevereiro de 1993, revogando expressamente o anterior. Diante desse fato, a decisão monocrática de 09 de agosto de 1994, julgou prejudicada a ação. Analisando essa postura do STF e a realidade fática, pode-se concluir que o STF aceitou a capacidade normativa regulamentar do Executivo na questão da preservação ambiental, embora a mesma exigisse lei, dado que o decreto surtiu efeitos durante mais de dois anos. O Tribunal parece ter se eximido de enfrentar a questão; ao menos não teve de sustentar juridicamente a vigência do citado decreto, o que representa um não embate da decisão com a doutrina tradicional do poder regulamentar. Essa manutenção do decreto também demonstra a delicadeza da questão, difícil de ser enfrentada, pois se o decreto fosse derrubado, havia a preocupação do desamparo da proteção da Mata Atlântica, que deveria ter sido regulada pelo Legislativo. Aula 21 Questão Orçamentária (ADI 1287) O acórdão trata do exame de constitucionalidade de dispositivos da Lei Orçamentária do Estado do Mato Grosso. A questão orçamentária consiste, em parte, na determinação dos recursos disponíveis para o Estado. E segundo a definição de políticas públicas adotada por Maria Paula Dallari Bucci, estas são programas de ação governamental visando a coordenar os www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 32 meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Parece, então, que a determinação dos recursos disponíveis para o Estado é um dos primeiros passos para a determinação das políticas públicas. Passando para a análise do caso, este consiste numa Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de medida liminar, proposta pelo governador do Estado do Mato Grosso contra dispositivos da Lei 6.615, de 28 de dezembro de 1994, que estima a Receita e fixa a Despesa do Estado para o exercício financeiro de 1995. Os dispositivos em questão autorizam ao Executivo atualizar as dotações orçamentárias mediante adoção de índice de inflação, ou seja, alterar o orçamento. A determinação orçamentária, porém, cabe ao Legislativo. O pedido da ADI invoca ofensa a princípio constitucionais, na medida em que defende que não pode o Legislativo, em Lei Orçamentária, delegar competência ao Poder Executivo para este, por decreto, alterar o “quantum” do orçamento, mediante adoção de índice de inflação. Na ementa, porém, consta a afirmação de que as alegações, embora “prima facie”, sejam relevantes, ficam abaladas pelas informações colhidas dos Poderes Legislativo e Judiciário do Estado. Ocorre que esse pedido de ADI tem como pano de fundo um conflito entre o Executivo e os demais poderes pelo repasse de verbas referentes a saldo financeiro fixado na Lei Orçamentária Estadual. O Poder Executivo Estadual do Mato Grosso, aplicando os dispositivos legais ora impugnados pelo próprio governador que os aplicou, editou o Decreto nº 4, de 10 de janeiro de 1995, atualizando a Receita prevista e a Despesa fixada no Orçamento. Porém, durante a execução orçamentária, o governo verificou que a estimativa de variação de preços constante no Decreto nº 4 não se realizou, estabilizando-se em patamares inferiores aos previstos. Essa diferença positiva da variação estimada no Decreto nº 4, diante da variação verdadeiramente ocorrida, teria como conseqüência um aumento real dos valores do orçamento do Estado. Diante disso, o Executivo do Mato Grosso, alegando a necessidade de trazer as contas do orçamento à verdade jurídica originalmente determinada pela Assembléia Legislativa, editou o Decreto nº 122, de 24 de abril de 1995, que “Dispõe sobre o equilíbrio da execução da Lei Orçamentária e dá outras providências”. Com a edição desse decreto o governo do Estado tentou estornar o excesso de “atualização”, que representava indevido aumento real do orçamento, dando aparência de redução dos valores constantes do mesmo. Porém, nas informações prestadas pelo presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, este acusa o Executivo do Estado de tentar contingenciar o repasse de verbas devidas ao Judiciário e acrescenta que a verdade dos fatos é que o governador , não tendo alcançado o fim colimado com a superestimação do orçamento_ ampliar a capacidade de endividamento do Estado_ busca anular os efeitos de sua irrefletida conduta, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta contra os dispositivos da Lei Orçamentária que atribuem ao Executivo competência para atualizar o orçamento. O presidente da Assembléia Legislativa do Estado, por sua vez, sustenta que o objetivo do Executivo, em superestimar em janeiro/95 o orçamento do Estado, prendeu-se a duas questões: a primeira foi de aumentar a capacidade de endividamento do Estado, pois, com maior receita prevista, poder-se-ia obter empréstimos maiores que pudessem fazer frente ao seu projeto de governo e, em verdade, atender aos anseios da população; a segunda, vinculada à primeira, foi de buscar o aumento da receita prevista e como sabiam que a mesma era superestimada, sem esperança de realizar- www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 33 se, contingenciaram-na, querendo com isso evitar o uso da parcela inexistente. Acrescenta que aí as coisas desandaram, eis que após a edição do Decreto nº 4 que atualizou o orçamento, o Poder Executivo deu-se conta que não poderia contingenciar o repasse constitucional aos outros Poderes. Haveria inadvertidamente aumentado o valor dos duodécimos aos outros Poderes. Conclui o raciocínio afirmando que o Poder Executivo usou de simulação ao editar o Decreto nº 4, que atualizou em demasia o orçamento estadual, e ora dizendo-se lesado, investe contra este mesmo instrumento do qual se utilizou. O Ministro Sydney Sanches, em seu voto, afirma que a Lei de Diretrizes orçamentárias do Estado, nº 6486, de 12 de julho de 1994, estabeleceu que a Lei orçamentária definiria a forma para atualização do orçamento, em dispositivos estes, da Lei de Diretrizes que não são impugnados. Prossegue afirmando que a Lei orçamentária, em face da Lei de Diretrizes, determinou que a atualização seria feita pelo Executivo e estabeleceu alguns parâmetros. Conclui então que e Lei orçamentária não deu uma carta em branco ao Executivo, o que constituiria delegação legislativa em sua visão e não vê evidenciada a inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados, pois, além da determinação de parâmetros, estes contam com autorização da Lei de Diretrizes. O Ministro admite então uma atividade regulamentar ao Executivo para este alterar o orçamento, o que foi feito por este Poder duas vezes, criando algumas dificuldades. Porém não aprecia a questão de poder ou não a lei ter atribuído essa função ao Executivo, se caberia a este Poder a alteração do orçamento. Aparece como de elevada relevância para a decisão as repercussões da mesma no plano político. Isso fica evidenciado na ponderação final: “...é preferível, por hora, manter-se uma atualização eventualmente incorreta, do que afastar-se, de pronto, qualquer atualização, em detrimento do funcionamento dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.” e em uma das afirmações que encerram o voto: “Enfim, diante de todas essas peculiaridades e antevendo que o conflito entre os 3 Poderes poderá ganhar, até, maiores proporções, se as expressões impugnadas vierem a ser suspensas, indefiro a medida cautelar”. O poder regulamentar, então, é tido como uma necessidade, pois o ministro admite que se fosse deferida a suspensão dos dispositivos impugnados, o governador poderia remeter projeto de lei à Assembléia Legislativa, para que esta procedesse à atualização, mas que haveria um lapso de tempo em que a desatualização permaneceria, oferecendo riscos. Assim também seria se o Legislativo tomasse para si desde início essa tarefa, pois, diante da realidade econômica extremamente dinâmica, que enseja uma normatização flexível e ágil, esse Poder não conseguiria proceder à atualização necessária em tempo hábil. Então o STF fica diante de um impasse entre admitir uma conduta do Executivo, que esse Tribunal não sabe se é a mais correta (constitucional) e não analisa de maneira mais detida, ou se proíbe a mesma, criando um vácuo de normatização em assuntos essenciais. Essa falta de embate direto com as questões constitucionais apresentadas, mantendo uma dubiedade em relação à constitucionalidade dos aspectos impugnados permite que os mesmos permaneçam no ordenamento jurídico, regulando as questões apresentadas pela sociedade atual. Os votos dos demais ministros acompanham o do relator, de maneira unânime, pelo indeferimento da cautelar, mantendo os dispositivos impugnados. Aula 21 Política tarifária para fins de redução de consumo de água (AgrRE 201.603) www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 34 Trata-se de agravo através do qual são atacados os fundamentos da decisão da ministra Ellen Gracie, quando este negou seguimento ao Recurso Extraordinário do ora agravante. A decisão fundou-se em jurisprudência do STF no sentido de que o serviço de fornecimento de água é submetido ao regime de preço público ou tarifa, e não taxa, portanto, trata o ajuste de carga impugnado como sobretarifa criada em momento de escassez desse produto, a ser paga por usuários que excedem quotas de consumo previamente estabelecidas. Entende a ministra que inexiste irregularidade da majoração da tarifa por decreto em lugar de lei. O agravante afirma, ao atacar a decisão, que o adicional da tarifa de água cobrado pela Companhia de Água e Esgotos de Brasília tem natureza jurídica de tributo e, portanto, não poderia ter sido instituída por decreto, exigindo a edição de lei própria. Assim, pede que se determine o prosseguimento do recurso extraordinário. Em seu voto no agravo, a ministra mantém o entendimento segundo o qual o ajuste de carga em questão não possui caráter tributário, mas, de preço público. Cita decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal nesse sentido e, em seguida, faz um paralelo do adicional da tarifa de água ora tratado com a sobretarifa de energia elétrica, afirmando que ambos foram criados com a finalidade de controlar consumo de produto essencial em período de desabastecimento. Lembra que o STF fixou entendimento no sentido de que o adicional de tarifa de energia elétrica, incidente sobre os consumidores que excediam as quotas previstas, para fins de política de redução de consumo, tinha caráter de contraprestação de serviço e não de tributo. Assim, entende dispensável lei para a instituição de ajuste de carga, de maneira que o decreto do governador do Distrito Federal não viola o art. 150, I, da Constituição Federal. Dessa maneira, mantém o despacho agravado, entendimento que é acompanhado unanimamente pelos demais ministros. Porém, fato que não é apreciado pelos ministros do STF, é que o art. 175 da Constituição Federal dispõe que o tratamento das tarifas pagas pela prestação de serviços também deverá ser por meio de lei: “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma de lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, ..., a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: (...) III – política tarifária” Assim, o STF admitiu uma grande amplitude ao poder regulamentar, ao permitir a disposição de política tarifária em decreto do Executivo, sem enfrentar a questão desta também exigir lei. Adotou a posição de que há algumas matérias que contam com reserva de lei, como a tributária, podendo as demais serem estabelecidas por normas (reserva da norma, para Eros Grau), mas não fez essa construção argumentativa. Não enfrentou o fato do decreto tem criado uma obrigação para os consumidores que excediam a quota prevista, qual seja, a de pagar a sobretarifa. Permitiu essa atuação, mas não tratou dela no acórdão. Adotou como fato que ao Executivo é atribuída essa competência, sem fundamentar com argumentos. Outro ponto é o caráter necessário dessa atuação diante do desabastecimento de água, estabelecendo o controle do consumo. Certamente uma medida do Legislativo não seria estabelecida de forma rápida, não servindo para fazer frente ao desabastecimento de água, se este não tivesse sido detectado preventivamente. Aula 22 Política econômica (RE 203.954) www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 35 O recurso extraordinário em questão versa sobre a proibição da importação de automóveis usados, ditada pela Portaria nº 08, de 13 de maio de 1991, do Ministério da Fazenda. Essa proibição é admitida pelos ministros, que a entendem consentânea com os interesses fazendários nacionais que o art. 237 da Constituição Federal teve em mira proteger, ao investir as autoridades do Ministério da Fazenda no poder de fiscalizar e controlar o comércio exterior. Argumentam os ministros que, no exercício dessa atribuição estabelecida pela Constituição Federal, o Ministério da Fazenda, por meio do Departamento de Comércio Exterior, proibiu a importação de bens de consumo usados, em seu art. 27, como medida de política econômica. Afirmam que, ao vedar a importação desse tipo de produto, a autoridade administrativa apenas teve em consideração a relevância dos efeitos negativos, para a economia nacional, dessa espécie de atividade, agindo estritamente no âmbito do exercício do poder de polícia previsto no art. 237 da CF. Da mesma forma que no acórdão do RE 121.140, não enfrentam a função normativa que este poder de polícia abarca, com o estabelecimento da proibição, via portaria do Ministério da Fazenda. Essa posição do STF representa uma aceitação do poder regulamentar com atribuições mais amplas que as permitidas pela doutrina tradicional, na medida em Bandeira de Mello admite que a atuação regulamentar via instruções, portarias, resoluções, regimentos deve ser mais restrita que a exercida através de decreto do chefe do Executivo, por que expedidos por autoridades subalternas em relação ao mesmo. Como Bandeira de Melo não admite que um decreto tire seu fundamento diretamente da Constituição, sem ser determinado por lei, para sua execução apenas, de maneira alguma permitiria que uma portaria o fizesse, estabelecendo uma proibição que se consubstancia em determinação de uma política econômica. Essa possibilidade é defendida de maneira enfática pelo ministro Maurício Corrêa: “É claro que, pelo art. 237 da Constituição Federal, a fiscalização e o controle do comércio exterior, ficam a critério do Ministério da Fazenda que por autorização constitucional poderá, evidentemente, até por portaria, impedir o ingresso de produtos desse tipo no território nacional”. O ministro Celso de Mello, por sua vez, afirma que a norma constitucional em questão, na verdade, atenuou o rigor do postulado da reserva de lei, ensejando ao Poder Executivo da União, em caráter absolutamente extraordinário, o exercício imediato de prerrogativas jurídicas inerentes à fiscalização e ao controle sobre o comércio exterior. Essa última afirmação é um espelho de outra conduta adotada pelo STF que foi a resolução do caso em questão, ou seja, a possibilidade da portaria do Ministério da Fazenda proibir a importação de bens usados, tirando essa competência muito específica da Constituição Federal, sem criar uma argumentação que permita estender o entendimento da decisão para os limites das portarias editadas pelos Ministérios do Estado, ou, de uma forma mais geral ainda, que servisse ao entendimento do poder regulamentar. Aula 23 O Decreto Autônomo e o Supremo De toda sorte, no que tange o reconhecimento, pelo Supremo, da figura do decreto (ou regulamento) autônomo, faz-se mister colacionar alguns julgados: Ação direta de inconstitucionalidade: objeto. Tem-se objeto idôneo à ação direta de inconstitucionalidade quando o decreto impugnado não é de caráter regulamentar www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 36 de lei, mas constitui ato normativo que pretende derivar o seu conteúdo díretamente da Constituição (Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.590—7/ SP, relatada pelo Ministro Sepúlveda Pertence perante o Plenário, com acórdão veicuiado no Diário da Justiça de 15 de agosto de 1997) AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA LIMINAR. DECRETO 1.719/95. TELEC0MUNIOAÇÕES: CONCESSÃO OU PERMÏSSÃO PARA A EXPLORAÇÃO. DECRETO AUTÔNOMO: POSSIBILIDADE DE CONTROLE CONCENTRADO. OFENSA AO ARTIGO 84- 1V DA CF/88. LIMINAR DEFERIDA (Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionali de n° l435—8/DF, relatada pelo Ministro Francisc Reek perante o Plenário, com acórdão veiculado no Diario da Justiça de 06 de agosto de 1999). (grifo nosso). Ação Direta de Inconstitucionalidade. Aumento de vencimentos por decreto que aprova tabelas em conformidade com índices firmados em acordo coletivo. Decreto 3.140, de 14.03.91, do Estado de Mato Grosso, É de conhecer-se da ação direta, porquanto, no caso, o ato normativo impugnado é um decreto autônomo, sendo que, inclusive, um dos fundamentos da ação é justamente o de Ler ele invadido a esfera reservada a lei pela Constituição Federal (Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 519-7, relatada pelo Ministro Moreira Alves perante o Plenário, com acórdão veicuiado no Diário da Justiça de 11 de outubro de 1991.). (grifo nosso). Ação direta de inconstitucionalidade. de liminar. Decreto n° 409, de 30.12.91. - Esta Corte, excepcionalmente, tem ação direta de inconstitucionalidade decreto, quando este, no todo manifestamente não regulamenta lei, assim, como decreto autônomo, o que seja ele examinado em face diretamente no que diz respeito ao princípio da (Medida Cautelar na Ação Inconstitucionalidade no 708—4 /DF, Ministro veiculado 1992) . (grifo nosso). Ação Direta de Inconstitucionalidade cio Decreto n° 99.300, do Presidente da República, que manda calcular, roporcionalmente ao tempo de serviço público, os proventos dos servidores estáveis, cujos cargos ou empregos forem extintos ou declarados desnecessários. Alegação de ofensa ao art. 61, parágrafo 1°, “c”, da Constituição Federal, por se tratar de ato normativo autônomo (não, assim, decreto regulamentar - art. 84, IV), sobre regime jurídico de servidores públicos, que exigiria lei formal, embora de iniciativa do Presidente da República (Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade no —7, relatada pelo Ministro Sydney Sanches pera it o Plenário, com acórdão veiculado no Diário da Jistiça de 14 de fevereiro de 1992). (grifo nosso). AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - OBJETO - DECRETO. Urna vez ganhando o decreto contornos de verdadeiro ato normativo autônomo, cabível é a ação direta de inconstitucionalidade (Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1396—3/SC, por mim relatada perante o Plenário, com acórdão veiculado no Diário da Justiça de 07 de agosto de 1998). (grifo nosso). Assim, parece que, o STF tem reconhecido a existência do decreto autônomo. Ocorre que, para que seja possivel o enfrentamento da matéria via Ação Direta de Inconstitucionalidade é preciso demonstrar que o decreto pretenda derivar o seu conteudo da própria Constituição e não tenha por escopo regulamentar lei. Isso porque, se o decreto apenas fere a lei, tratar- se-á de controle de legalidade e não de constitucionalidade: Não se tratando de decreto autônomo, o Decreto nº 2665/1993 não pode ser atacado em ação direta de inconstitucionalidade, que não é via adequada à mera declaração de ilegalidade de norma regulamentar (STF – ADI 1258/PR – Rel Min Néri da Silveira – DJU p. 322). Com efeito, o que é preciso demonstrar é que o decreto do Chefe do Executivo decorre www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 37 de competência direta da Constituição, ou tire seu fundamento da Carta Magna. Nessa hipótese, caso o regulamento não se amolde ao figurino Constitucional, caberá análise de constitucionalidade pelo Supremo. Caso contrário será mero vicio de inconstitucionalidade reflexa, afastando o controle concentrado em ADI – porque– como salienta Carlos Velloso: “é uma questão de opção. Hans Kelsen, no debate com Carl Schmitt, em 1929, deixou isso claro. E o Supremo Tribunal fez essa opção também no controle difuso, quando estabeleceu que não se conhece de inconstitucionalidade indireta. Não há falar-se em inconstitucionalidade indireta reflexa. É uma opção da Corte para que não se realize o velho adágio: “muita jurisdiçâo, resulta em nenhuma jurisdição”. (ADI 2387-0 DF – Rel Min Marco Aurelio). Aula 24 Controle Prévio das Leis A ideia de uma lei passar pelo crivo do Supremo Tribunal Federal, antes da sanção do presidente da República, vem sendo debatida há alguns anos no Brasil e tem ganhado cada vez mais defensores. Há quem sonhe em instituir no ordenamento jurídico brasileiro o chamado controle preventivo abstrato de constitucionalidade. Desde a década de 1990, o ministro Celso de Mello tem esse pensamento sobre o assunto. Em artigo publicado na Revista dos Advogados, em 2004, ele defendeu a discussão da matéria, “tendo por objeto atos normativos de caráter infralegal, como portarias normativas, instruções gerais e regulamentos editados pela Administração Pública”. Na prática, significa dizer que sofreriam controle preventivo de constitucionalidade todos projetos de lei, projetos de decretos legislativos — responsáveis pela aprovação dos tratados internacionais — e de qualquer proposta de Emenda à Constituição Federal. A medida, escreveu Celso de Mello no artigo, permite que a alta corte judiciária, “em decisão revestida de força obrigatória geral, possa neutralizar desvios no exercício inadequado do poder regulamentar”. O mesmo posicionamento havia sido manifestado pelo ministro antes de 2004, durante a Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil sobre Direitos Humanos, em 1997. Atualmente, a jurisprudência do Supremo vem rejeitando outro modelo, o de fiscalização preventiva mediante a ação direta. O entendimento se deu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 466, do Distrito Federal. Nela, o Partido Socialista Brasileiro tentou argüir a inconstitucionalidade de uma proposta de emenda que ampliava as hipóteses de pena de morte no Brasil. O controle preventivo é tratado por Luís Roberto Barroso em seu livro O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro (Editora Saraiva, 2009). Como explica o constitucionalista, o modelo tem como intuito prevenir que um ato inconstitucional passe a vigorar. “O órgão de controle, nesse caso, não declara a nulidade da medida, mas propõe a eliminação de eventuais inconstitucionalidades”, escreve. No Brasil, somente o Executivo e o Legislativo podem exercer essa prevenção. Um propondo veto a um projeto aprovado pela casa legislativo e o outro, atuando por meio das comissões de constituição e justiça, pode se manifestar no início do processo de elaboração da lei. Segundo Barroso, há outra modalidade de controle empregado no Brasil, em sede judicial. “O Supremo Tribunal Federal”, conta, “tem conhecido de mandados de segurança, requeridos por parlamentares, contra o simples processamento de propostas de emenda à Constituição cujo conteúdo viole alguma das cláusulas pétreas do artigo 60, parágrafo 4º”. Ou seja, não são objeto de deliberação propostas de emenda que tentem abolir a forma federativa de Estado, o voto como é conhecido hoje, a tripartição dos poderes e os direitos e garantias individuais. www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 38 Ele afirma que, em mais de uma oportunidade, a Corte reconheceu “a possibilidade de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade de propostas de emenda à Constituição que veicularem matéria vedada ao poder reformador do Congresso Nacional”. A realidade muda quando se fala em dois países da Europa continental. A França tem seu Conselho Constitucional, onde as leis são analisadas antes de começarem a valer. Em Portugal, acontece o mesmo: a Corte Constitucional analisa uma lei antes que ela entre em vigor. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Rui Manuel Gens de Moura Ramos, presidente do Tribunal Constitucional de Portugal, contou que o texto da Constituição só pode ser emendado com uma revisão. Com isso, ela foi revista apenas sete vezes, desde 1976. Por outro lado, qualquer cidadão português pode recorrer de uma decisão que ele julgue contrária à Constituição. “Quando o tribunal decide três vezes em casos concretos que a norma é inconstitucional, o Ministério Público pode pedir que o tribunal declare a inconstitucionalidade daquela lei para ela deixar de existir. Agora, sem ser em caso concreto, só o presidente da República, o Ministério Público e um grupo limitado de instituições é que podem questionar uma lei”, contou ele. Ao comentar a entrevista de Moura Ramos, o ministro do STF José Antonio Dias Toffoli defendeu o uso do modelo de controle prévio no ordenamento jurídico do Brasil. Para o ministro, essa poderia ser uma boa solução para os problemas enfrentados pelos jurisdicionados. O ministro acredita que a medida pode ser empregada nas normas tributárias e nas leis sobre remuneração de servidor. Essa última, explica, seria bem vinda dada a abundância de ações nas quais os aposentados e funcionários de outras carreiras pedem equiparação. “Estas duas espécies de leis, editadas em todos os entes da federação [União, estados, Distrito Federal e municípios], são as mais questionadas quanto à constitucionalidade. Evitaríamos inúmeras ações se o STF já pudesse definir sua validade”, diz. Esse modelo de constitucionalidade das leis também recebeu comentários favoráveis do ministro do STF, Gilmar Mendes. Durante a I Conferência Mundial de Cortes Constitucionais, o ministro citou alguns dos mecanismos de controle constitucional da corte, como o Mandado de Injunção e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. De acordo com ele, o Mandado de Injunção recebeu um novo entendimento. A saída é usada sempre que alguém é prejudicado por omissão do Legislativo para garantir um direito. “Antes, a corte apenas pedia a regulamentação de uma norma da Constituição, quando os poderes competentes não o fizeram. Agora, ela fixa uma medida, provisoriamente, para a situação, até que a norma seja regulamentada”, disse Gilmar Mendes. Gilmar Mendes, ao discorrer sobre a Corte Constitucional de Portugal em seu livro Controle Concentrado de Constitucionalidade (Editora Saraiva, 2009), adotou a visão de Jorge Miranda. O português escreveu: “A fixação dos efeitos da inconstitucionalidade destina-se a adequá-los às situações da vida, a ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; destina-se a evitar que, para fugir a conseqüências demasiado gravosas da declaração, o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela ocorrência de inconstitucionalidade; é uma válvula de segurança da própria finalidade e da efetividade do sistema de fiscalização”. Levantamento feito pelo Anuário da Justiça 2010 revela que uma lei inconstitucional permanece em vigor em média por sete anos. A partir de sua publicação, ela leva cinco anos para ser questionada e mais cinco à espera de julgamento pelo Supremo. O Legislativo ganha a corrida quando o quesito é quem mais produz normas inconstitucionais. Em 2009, apenas na esfera federal, das nove normas julgadas, seis foram tidas como www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 39 contrárias à lei maior do país. AULA 25 INTRODUÇAO PODER DE POLÍCIA “Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando o disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público...” (Código Tributário Nacional, art. 78, primeira parte)” A Administração Pública tem a faculdade de condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício do interesse público. A extensão é bastante ampla, porque o interesse público é amplo. Segundo o CTN “Interesse público é aquele concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, `a tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais” (Código Tributário Nacional, art. 78 segunda parte). A atividade de polícia merece novo enfoque, conforme as exigências do Estado Social, sobretudo na concretização dos direitos fundamentais de terceira geração. A atividade da Administração Pública que, dentro de parâmetros legais, impõe limites à liberdade e à propriedade dos indivíduos, em nome do interesse público, mais conhecida como poder de polícia, modificou-se ao longo do tempo acompanhando a evolução histórica do Estado. Entretanto, talvez pela manutenção de uma visão equivocada do exercício do poder de polícia, vinculada a um determinado momento histórico, em que o Poder era exercido de forma absoluta, muitos continuam a entender essa atividade como um ato do Poder Público que pode ser exercido com arbitrariedade e com demonstração de força, ao arrepio de preceitos legais e constitucionais. Nesse contexto, alguns autores da área do Direito Público passaram a defender um novo enfoque sobre o poder de polícia – havendo até os que sugerem a mudança de nomenclatura – que levasse em consideração uma sociedade organizada sob um Estado Democrático de Direito. Desse modo, constata-se que é relevante repensar essa atividade estatal e adaptá-la aos novos tempos, em que a Administração Pública deve ir além da observância da legalidade de seus atos para respaldá-los, também, em princípios constitucionais, e, sobretudo, assumir um papel de respeito e de incentivo à efetivação dos direitos fundamentais. AULA 26 PODER DE POLÍCIA: NOÇÕES BÁSICAS O termo poder de polícia significa, em síntese, a atividade da Administração Pública de impor limitações à liberdade e à propriedade dos indivíduos, em prol de um interesse público e sempre de acordo com a lei. Embora não configure atividade exercida exclusivamente na esfera tributária, encontra definição legal no art. 78 do Código Tributário Nacional: Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. A Constituição Federal também faz menção a essa atividade, em seu art. 145, inciso II, www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 40 que prevê a instituição de taxas “em razão do exercício do poder de polícia”. Sundfeld (2003) lembra que “os direitos são atingidos por duas espécies de atos estatais (...) de um lado os que condicionam o direito, de outro, os que sacrificam-no” afirmando que nisso consiste a atividade estatal denominada poder de polícia ou polícia administrativa. Bandeira de Mello (2007, p. 792) conceitua poder de polícia como “a atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos”. O renomado professor acentua, entretanto, que há um sentido amplo e outro restrito para expressão. No sentido amplo abrangeria um conjunto de medidas advindas não só do Poder Executivo, mas também do Legislativo. No sentido mais fechado, estaria relacionado somente às intervenções do Poder Executivo, sejam elas gerais e abstratas, sejam específicas e concretas. Gasparini (2005, p.123) entende o poder de polícia como a atribuição própria da Administração pública no sentido de “condicionar o uso, o gozo e a disposição da propriedade e restringir o exercício da liberdade dos administrados no interesse público ou social”. Lembra Pessoa (2003, p. 489/490) que a prestação de serviços públicos e o poder de polícia constituem as duas missões mais importantes da Administração Pública, e conceitua este último como “limitações administrativas à liberdade e propriedade. Ou seja, é uma atividade administrativa infralegal, expressa em atos normativos ou em provimentos concretos, pelos quais a Administração limita e condiciona o exercício de direitos e liberdades”. Di Pietro (2006) alerta para a diferença existente entre a conceituação do poder de polícia difundida no século XVIII e a que hoje é aceita. Ambos os conceitos o compreendem como atividade limitadora do exercício de direitos individuais, mas naquela época, a finalidade restringia-se à segurança, e atualmente visa assegurar interesses públicos em geral. Sob o título Atos coercitivos dos órgãos administrativos, Kelsen (1998, p. 398-399) escreveu em sua obra que: De acordo com a maioria das ordens jurídicas e, sobretudo, de acordo com as ordens jurídicas que reconhecem o princípio da separação de poderes, os órgãos administrativos estão autorizados a interferir no patrimônio e na vida do indivíduo em um processo sumário, quando tal interferência é o único modo de prevenir com rapidez danos à segurança pública (...) Tais interferências no patrimônio ou na liberdade dos indivíduos não são sanções, mas seriam delitos caso não fossem estipulados por lei. São exemplos do exercício do poder de polícia, citados por vários doutrinadores, a exigência de exibição de planta para licenciamento de construção, de porte de arma, de exame de habilitação para motorista, de colocação de equipamentos de incêndio nos prédios, a imposição de limitações administrativas à propriedade, interdição de hotel utilizado para exploração sexual de menores, a expedição de regulamento sobre o uso de fogos de artifício, autorização para explorar atividade perigosa, licença para funcionamento de casa comercial ou bancária, determinação de corte de árvores. Geralmente o poder de polícia é entendido como uma atividade negativa, que impõe uma abstenção ao particular, com o intuito de evitar um dano geral. Como exemplo, as limitações ao direito de construir. Há, porém, um caso peculiar de atuação do poder de polícia em que, na verdade, se exige uma conduta positiva do particular: quando atua no sentido de garantir o cumprimento da função social da propriedade. Outro aspecto que deve ser realçado sobre o poder de polícia é que o mesmo manifesta- se através de atos normativos de caráter genérico ou de atos concretos. Por vezes, a Administração necessita expedir normas para regular a atividade do www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 41 particular (sobre venda de bebida alcoólica, por exemplo), em outras ocasiões, basta dar cumprimento à lei, agindo efetivamente na esfera da vida privada (apreensão de edição de revista que dissemine em seu conteúdo algum tipo de discriminação, o guinchamento de veículo estacionado irregularmente). A atividade de polícia também pode ser executada de forma preventiva – fiscalização de restaurantes e da safra de açaí, vistoria de veículos –, quando então assume a primordial função de evitar “riscos e potenciais danos à coletividade” (Pessoa, 2003, p. 497). A atividade de polícia pode ser discricionária ou vinculada. Exemplo clássico de ato discricionário é o da autorização, em que a Administração, ainda que seguindo parâmetros legais, decidirá pela concessão de acordo com a conveniência e a oportunidade, e de ato vinculado, o da licença, cuja concessão só dependerá do preenchimento pelo particular dos requisitos estabelecidos em lei. Bandeira de Mello (2007, p. 813), afirma que “toda coação que exceda ao estritamente necessário à obtenção do efeito jurídico licitamente desejado pelo Poder Público é injurídica”, por isso a Administração, na atividade de poder de polícia, deve sempre apreciar a proporcionalidade de suas medidas, para não restar configurado o exercício abusivo de poder. São valores a serem protegidos pelo poder de polícia a segurança, a ordem pública, a tranqüilidade e a saúde públicas, o patrimônio artístico, histórico e paisagístico, as riquezas naturais, a moralidade pública, a economia popular, entre outros. Note-se que em uma sociedade complexa como a atual, as funções do Estado são ampliadas e com isso a sua atuação através do poder de polícia terá um leque muito maior de valores para assegurar. AULA 27 PODER DE POLÍCIA E PRINCÍPIOS Os princípios jurídicos são normas, integram o ordenamento jurídico, aliás, são fundamentos deste e no caso específico do direito público, formado por regras esparsas, são de grande utilidade para os operadores do direito, adquirindo relevante papel para a adequação das leis à realidade fática, principalmente na busca de ações e decisões mais justas.(3) O Poder Público, ao intervir na vida dos particulares, limitando-os a liberdade e a propriedade, no desempenho da atividade de polícia, constantemente terá que fazer uso de princípios jurídicos e sopesá-los em algumas hipóteses. A legalidade é princípio fundamental do Direito Administrativo, que legitima e deve direcionar toda atividade administrativa. A concepção de um Estado fundado na lei, como visto anteriormente, surgiu no final do século XVIII, com as chamadas revoluções burguesas, pondo fim ao antigo regime, o chamado Estado Absolutista, onde prevalecia a vontade do soberano, absoluta e garantida pela vontade divina. O Estado estabelecido sob uma ordem democrática só pode ser compreendido como aquele em que impera a vontade da lei e a ela todos devem se submeter, Administração Pública e administrados. Cumpre esclarecer, no entanto, que o princípio da legalidade comporta interpretação diversa para o particular e para o Poder Público, sendo que para aquele, vale a regra disposta no art. 5º, II, da Constituição Federal (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”), que permite fazer o que a lei autoriza e também o que não proíbe. Já para a Administração Pública o princípio deve ser interpretado de modo estrito, significando que suas atividades só terão validade se respaldadas na lei. Ainda em relação ao assunto, há de se falar do poder regulamentar, que é o poder da Administração editar atos administrativos (art. 84, IV, da Lei Fundamental). www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 42 O Poder Público, no exercício do poder de polícia, fará uso de regulamentos para interferir na vida dos administrados, mas, nos termos da previsão constitucional, deverá agir dentro dos parâmetros legais, apenas de forma a garantir-lhe a execução, jamais inovando na ordem jurídica. Dessa forma, infere-se que em um Estado de Direito, a Administração Pública deve estrita obediência à lei e o exercício do poder de polícia, uma das facetas da atividade administrativa, sempre deverá buscar apoio no ordenamento jurídico vigente. A lei é seu fundamento e sua limitação, no exercício do poder regulamentar ou de um ato discricionário. É interessante notar, entretanto, que a lei nem sempre conseguirá prever de modo completo e satisfatório todas as situação em que a Administração deverá exercer a atividade de polícia e nesse sentido será de primordial importância o uso de outros princípios para sopesá-los, como o da legalidade. Necessário se faz, pois, conferir-se valor normativo aos valores e princípios que adensam o princípio da legalidade, quais sejam, moralidade administrativa, boa-fé, boa-administração, razoabilidade, proporcionalidade, entre outros. Importa, contudo, que a invocação destes valores e princípios pela Administração, no intuito de restringir direitos e atividades, seja feita de forma motivada (Pessoa, 2003, p. 498) Assim, princípio que jamais deve ser afastado da prática do poder de polícia é o da proporcionalidade, sobretudo no momento em que o administrador seleciona o meio que empregará para a defesa dos interesses públicos, que não poderá ser mais enérgico ou gravoso que o fim pretendido. O princípio da moralidade administrativa também deverá ser observado, pois impõe à Administração Pública o dever de bem gerir, de bem administrar, de bem atender o interesse público. Em suma, o administrador, no exercício do poder de polícia, sobretudo no momento que agir discricionariamente, deverá resguardar- se que seu ato tem previsão legal, e ir além, adequando-o também aos princípios vigentes em nossa ordem jurídica, de modo a atender concretamente à satisfação dos interesses coletivos. AULA 28 PODER DE POLÍCIA E ESTADO A nova abordagem que vem sendo construída acerca do poder de polícia é fruto da atual configuração do Estado. Assim, para melhor elucidação do tema, é necessário fazer um breve relato da evolução histórica dessa instituição. A partir do momento em que o homem fixou-se em um território e passou a desenvolver uma atividade econômica, surgiu a necessidade de estabelecimento de regras de convivência, visando evitar ou minimizar os conflitos que esse novo modelo de sociedade gerava. Desse modo, ao longo do desenvolvimento histórico, surge o Estado como forma de organização social, que se mantém até hoje como elemento essencial da estrutura das sociedades modernas. Dalmo Dallari (1995, p. 44) esclarece que para alguns estudiosos a idéia de Estado, significando uma sociedade política dotada de certas características muito bem definidas, como a soberania, só surge a partir do século XVII. Note-se que durante o Absolutismo, o Estado, concentrado na figura do rei, era o detentor do poder de elaboração e aplicação das leis, um poder ilimitado, ao menos no plano terrestre, eis que sustentado numa vontade divina. A frase “O Estado sou eu”, atribuída ao soberano francês Luís XIV, resume a forma como o poder político era exercido nesse período. A origem moderna do Estado é fundamentada no pensamento de Jean Jaques Rousseau (1712-1778), que explicava www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 43 suas origens a partir de um contrato social, firmado entre os indivíduos de uma sociedade e o poder local, onde os primeiros, diante do reconhecimento de sua impotência para conter os conflitos, abdicam de uma parcela de sua liberdade individual em benefício de toda coletividade. Os estudiosos afirmam que a teoria contratualista está hoje superada como forma de explicar a origem do Estado, mas serviu de base para as revoluções burguesas, tanto na Europa como nos Estados Unidos, responsáveis pela formação do Estado Contemporâneo. A partir desse período foi construída a idéia de um Estado fundamentado na lei (nessa época surgem as primeiras constituições), um ente abstrato, que produz leis e as impõe aos indivíduos, mas que a elas também deve se submeter, denominado Estado de Direito. Esta nova noção de Estado passou a exigir mudanças nas relações entre o Poder Público e os particulares, que deveriam estar assentadas na lei, entendida esta como vontade geral. No processo de consolidação desse novo Estado também se desenvolveu a noção de separação dos poderes, ou seja, de repartição das funções do Estado (elaborar as leis, executá-las e aplicá-las na resolução de conflitos) entre órgãos independentes entre si, com a finalidade de evitar concentração de poder. Essa repartição de funções permitiu algo que não existia na outras concepções de Estado: o controle dos atos estatais através do Poder Judiciário. Outra idéia inerente ao Estado de Direito é o seu nascimento a partir de uma Constituição, lei fundamental que organiza o Estado politicamente. A Constituição, portanto, segundo a teoria de Kelsen (1998), é a lei maior de um país, e, portanto, todas as demais normas a ela devem se submeter, sendo expurgadas do mundo jurídico quando conflitantes com o novo ordenamento constitucional. Sundfeld (2007, p. 38-39) conceitua Estado de Direito como aquele: (...) criado e regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às demais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamente observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio Estado. A concepção de Estado ganhou novos contornos nesse século e hoje não é admissível um Estado simplesmente de Direito. Em um primeiro momento, ampliou-se aquele conceito, estabelecendo que o mais correto seria falar de um Estado Democrático de Direito, aquele que, em resumo, admite a participação do povo no exercício do poder. Alguns estudiosos vão mais além e afirmam que a concepção mais atual é de um Estado Social e Democrático de Direito, também chamado de Estado de Bem-Estar, e adotado hoje na maioria dos países, inclusive no Brasil. Medauar (1992), em capítulo específico de sua obra Direito Administrativo em Evolução, faz um excelente relato das transformações referentes ao Estado nos últimos anos. Lembra a doutrinadora que no Estado instalado no século XIX foram privilegiados direitos e garantias individuais, como liberdade e igualdade, embora nesse período já sejam estabelecidos limites em nome da segurança pública. No final do século XX já se desenha uma nova figura de Estado, que reconhece leis de proteção social, conquistadas por influência das idéias e dos partidos socialistas e da pressão dos sindicatos, sendo também fatores que contribuíram para essas mudanças a crise do pós-guerra, as transformações urbanas geradas pelo êxodo rural, que originaram as metrópoles e a concentração urbana, os avanços tecnológicos e científicos que proporcionaram melhores www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 44 condições de saúde, conforto pessoal e higiene à população. O estabelecimento desse novo modelo de Estado trouxe como conseqüência o reconhecimento dos chamados direitos sociais (direito à educação, ao trabalho, ao meio ambiente, à previdência social, ao lazer) e sua inclusão em textos constitucionais diversos. Na virada do século, por influência do neoliberalismo, o Estado ganha nova configuração e lhe é cobrada uma intervenção mínima na economia (Estado-mínimo), em detrimento de todas as conquistas sociais alcançadas no século anterior. Ribas (2007, p. 95), tratando do tema, assevera que: O Estado contemporâneo, resultado principalmente da globalização econômica, do neoliberalismo e de inúmeras privatizações, tem o seu perfil redefinido pela formação de blocos políticos e econômicos, pela perda de densidade do conceito de soberania e pela transferência de inúmeros serviços à iniciativa privada. Entretanto, a não intervenção do Estado na vida econômica, conseqüência da política neoliberalista, permitiu os mais diversos tipos de abusos por parte da iniciativa privada – notadamente contra o meio ambiente e contra os consumidores –, ficando evidente a necessidade da atuação estatal na esfera privada a fim de resguardar os interesses da coletividade. Sobre a importância do papel do Estado na sociedade atual Toscano (1999, p.147-148) enfatiza que: É pacífico o princípio de que se faz necessária a presença do Estado como regulamentador e executor de todas as medidas capazes de assegurar ao povo – enquanto totalidade – a prioridade de seus direitos sobre os interesses mais fortes ou sobre o jogo dos grupos de pressão que representam aqueles interesses (...) Uma escola, um hospital, um centro de recreação, empresados pela iniciativa particular, sem a vigilância do poder público, tendem, não raro, a se transformar em casas comerciais, onde os interesses máximos do cidadão, como são a sua cultura e a sua saúde, são vistos como ‘mercadoria’ (...) Isso significa que a força coercitiva do Estado é necessária para mantê-lo, garantindo a supremacia do interesse público, sem jamais afastar-se dos anseios da coletividade, sobretudo no que diz respeito à consolidação dos direitos fundamentais. Compreende-se, assim, analisando o processo histórico, a importância da presença do Estado na vida em sociedade, assim como fica evidente que as atividades por ele desenvolvidas – como o poder de polícia – serão reflexos do modelo adotado em cada momento dessa trajetória. AULA 29 UMA NOVA VISÃO DO PODER DE POLÍCIA Embora seja comum a associação da palavra polícia com a idéia de força, de poder repressivo do Estado, a origem do vocábulo remonta à antiguidade clássica, quando então designava todas as atividades da cidade- estado. “A expressão, ligada etimologicamente ao vocábulo política, pois ambas vêm do grego polis (= cidade, Estado), indicou entre os antigos helênicos, a constituição do Estado, o bom ordenamento”, ensina Cretella Júnior (1999, p. 521). Durante a Idade Média, os soberanos exerciam o jus polititiae, relacionado à boa ordem da sociedade civil sob autoridade do Estado. Note-se, entretanto, que em tal período esse poder era ilimitado e o ordenamento da sociedade não raramente era concretizado de forma abusiva. A locução poder de polícia (police power) foi utilizada pela primeira vez nos Estados Unidos, notabilizando-se após o julgamento do caso Brown x Maryland, em 1827, e designava “o poder dos Estados da federação norte-americana de editar leis limitadoras www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 45 de direitos, em benefício da coletividade” (Pessoa, 2003). Em razão dessa variação de significado que o termo sofreu historicamente e por ter prevalecido a associação do mesmo a um Estado opressor e antidemocrático, alguns doutrinadores iniciam a discussão acerca da nova postura estatal, quando do exercício da atividade administrativa denominada poder de polícia, defendendo a mudança de terminologia, por entenderem inadequada aos novos tempos. Verifica-se na obras recentes sobre a matéria denominações como poder ordenador, poder regulador e atividade interventora. Sundfeld (2003, p. 20) sugere a expressão administração ordenadora, que conceitua como “a parcela da função administrativa, desenvolvida com o uso do poder de autoridade, para disciplinar, nos termos e para os fins da lei, os comportamentos dos particulares no campo de atividades que lhes é próprio”. Para o autor, a locução poder de polícia comporta uma carga negativa, que ultrapassa o real sentido do termo que consiste em aplicar as leis reguladoras dos direitos. Bandeira de Melo (2007, p. 791) também não concorda com o termo, em razão de englobar “sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas a regimes de inconciliável diversidade: leis e atos administrativos”, embora reconheça que continuará a usá-lo em sua obra, quando relacionado ao seu significado mais abrangente (ao sentido estrito prefere referir- se como polícia administrativa). Resta evidente que a expressão poder de polícia remonta ao tempo do Estado Autoritário, período em que tal atividade confundia-se com o poder do soberano, e que “significava não só um poder ilimitado, mas resumia o conjunto da atuação do Estado” (Pessoa, 2003, p. 491). A expressão também pode conduzir o leigo a associá-la com a atividade da polícia judiciária, que se diferencia daquela por atuar na esfera do direito processual penal. Cumpre salientar, entretanto, que mais importante do que a questão terminológica é a nova abordagem que se deve dar ao tema. A atividade da Administração Pública de restringir direitos individuais, impondo atuações negativas ou positivas aos cidadãos, deve ser discutida em face da nova configuração do Estado contemporâneo. Conforme já relatado, o Estado atual ampliou suas funções, abarcando um número considerável de direitos a proteger, sobretudo após o advento do chamado Estado Democrático e Social de Direito. As idéias neoliberais fizeram renascer um modelo de Estado em que prevalecia a proteção dos interesses econômicos em detrimento do interesse social, um Estado que devia intervir o mínimo possível na vida privada, favorecendo assim a atividade capitalista. Em contraposição à política neoliberal, surgiu nos países desenvolvidos – e hoje é o modelo que se busca alcançar nas sociedades modernas – o chamado Estado do Bem Estar Social ou simplesmente Estado Social, que adotou uma nova postura em relação à proteção dos interesses sociais. Moraes (2002, p. 117), ressalta que o Banco Mundial, um dos organismos que mais contribuiu para a implantação daquele modelo neoliberal, sobretudo nos países em desenvolvimento, em seu Relatório do ano de 1997, já se posicionava no sentido de rever essa atuação voltada para os interesses do mercado e do capital, senão vejamos: Este relatório mostra que o fator determinante por trás desses acontecimentos é a eficiência do Estado. Um Estado eficiente é vital para as provisões dos bens e serviços – bem como das normas e instituições – que permitem que os Estados floresçam e que as pessoas tenham uma vida mais saudável e feliz (...) A nova mensagem é um pouco diferente: o Estado é essencial para o desenvolvimento econômico e social, não www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 46 como promotor direto do crescimento, mas como parceiro, catalisador e facilitador. Esse novo Estado, portanto, tem a perspectiva de valorizar o interesse de toda sociedade em detrimento de direitos isolados, e está comprometido com a efetivação dos direitos fundamentais (com destaque para direitos difusos e coletivos, também chamados de terceira geração), passando a atuar de forma positiva, e não somente abstendo-se de agir, para a concretização de tais fins. Desse modo, a Administração Pública moderna, no exercício de toda e qualquer atividade, seja na prestação de serviços públicos ou no exercício do poder de polícia, deve se pautar nas diretrizes desse modelo estatal desejado, respeitando direitos e garantias fundamentais.(4) Assim, é notório que: A função de garantia do Estado contemporâneo emerge de sua consolidada obrigação constitucional de protagonizar a efetivação de um extenso catálogo de direitos fundamentais (...). Nesse cenário emerge ‘’o direito fundamental a uma boa administração’’, previsto no art. 41 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia (Oliveira; Schwanka, 2008). Sob essa nova ótica, a atividade de polícia administrativa, deveria adquirir certo destaque uma vez que consiste justamente na intervenção estatal na esfera particular, privando o indivíduo de exercer certos direitos, em prol do interesse público, ordenando, assim o cotidiano da cidade, de modo a garantir a satisfação geral. Nesse aspecto, deve-se destacar que nas sociedades contemporâneas predomina o modo de vida concentrado nas grandes cidades – conseqüência do modelo capitalista de desenvolvimento –, que vem crescendo desenfreadamente, causando problemas que estão deteriorando a qualidade de vida da população, como a degradação do meio ambiente, a violência, a falta de civilidade nas relações pessoais. Diante de tais fatos, a Administração cada dia com mais freqüência deverá resolver questões que envolvem o direito individual de um lado e o interesse coletivo de outro, como por exemplo, o direito de propriedade e a função social da propriedade, o direito à liberdade de manifestação e o direito ao sossego e à tranqüilidade, o direito de explorar livremente uma atividade econômica e o direito de ter uma paisagem preservada. E a atividade de polícia, cumprindo a sua função de manter a ordem pública, deverá buscar atuar de forma mais eficiente e tendo em vista os anseios dessa sociedade que clama por soluções que viabilizem uma convivência mais justa, tranqüila e digna entre seus indivíduos. Sundfeld (2003, p. 57) encontra mais um motivo para rever a atividade poder de polícia: Hoje em dia se exige do titular de direito subjetivo que, usando da posição que este lhe assegura, colabore com a construção de uma nova realidade. Em uma frase, à administração ordenadora não basta que este indivíduo não perturbe, é mister que este indivíduo ajude, na medida das possibilidades propiciadas pelo exercício de seu direito” O exemplo que melhor se adapta a essa nova visão do poder de polícia, proposta pelo autor, é o da função social da propriedade, prevista no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal, uma vez que ao proprietário será imposta, pela Administração, uma obrigação positiva, de atuar conforme a previsão constitucional (arts. 182, § 2º e 186, CF), em prol do interesse coletivo, caso pretenda manter-se no exercício do direito. Vê-se, então, que a atividade da Administração Pública no sentido de impor condições ao exercício de direitos individuais – seja estabelecendo limites (obrigação de não fazer), encargos (obrigação de fazer) ou sujeições (obrigação de suportar) –, constitucionalmente protegidos, persegue (ou deveria perseguir, para ser legítima) um interesse que é de todos: garantir, em última www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 47 análise, a paz e a harmonia da vida em sociedade. Embora ao longo do processo histórico esses objetivos tenham sido desvirtuados, em razão do modelo estatal que então predominava, hoje, diante da tentativa de consolidação de um Estado Social, a Administração só tem esse caminho a trilhar, ou seja, exercer o poder de polícia dentro de tais parâmetros. Por derradeiro, faz-se mister ressaltar que o exercício do poder de polícia, sob esse novo enfoque, jamais poderá afastar-se da observância dos princípios constitucionais, devendo o administrador estar atento sobretudo para não exceder os limites de tal atividade, respaldando-se sobretudo na legalidade, proporcionalidade e razoabilidade. AULA 30 LIMITES DO PODER DE POLÍCIA Necessidade – a medida de polícia só deve ser adotada para evitar ameaças reais ou prováveis de perturbações ao interesse público; Proporcionalidade/razoabilidade – é a relação entre a limitação ao direito individual e o prejuízo a ser evitado; Eficácia – a medida deve ser adequada para impedir o dano a interesse público. Para ser eficaz a Administração não precisa recorrer ao Poder Judiciário para executar as sua decisões, é o que se chama de auto- executoriedade. Autoridade x liberdade Praticamente todo o Direito Administrativo trata de temas em que se colocam em tensão dois aspectos opostos: a liberdade individual e a autoridade da Administração Pública. Quando se trata de “poder de polícia”, de forma bem clara se colocam em confronto esses dois aspectos: de um lado, o cidadão que quer exercer plenamente seus direitos; de outro, a Administração Pública, que tem por incumbência condicionar o exercício daqueles direitos ao bem-estar coletivo, e ela faz isso usando seu poder de polícia. Direitos individuais e limites Os direitos individuais sofrem limitações e não há incompatibilidade entre os direitos individuais e os limites a eles impostos pelo poder de polícia do Estado. Guido Zanobini afirma que “a idéia de limite surge do próprio conceito de direito subjetivo; tudo aquilo que é juridicamente garantido é também juridicamente limitado”. As limitações simplesmente integram o desenho do próprio perfil do direito e são a fisionomia normativa dele. Fundamento O fundamento do poder de polícia é o princípio da supremacia do interesse coletivo sobre o privado. Através dele, limitam-se os direitos individuais das pessoas em benefício do interesse coletivo. O exercício e o uso da liberdade e da propriedade devem estar entrosados com a utilidade coletiva. Objeto O poder de polícia é exercido pela Administração Pública sobre direitos, bens e atividades que afetem ou possam afetar a coletividade. Assim, o objeto do poder de polícia administração é todo direito, bem ou atividade individual que possa afetar a coletividade. Como podem afetar a coletividade, tais direitos, bens ou atividades exigem regulamentação, contenção e controle pelo Poder Público. A lei também limita a autoridade administrativa, ainda que esta tenha um leque de opções. Aqui, observar-se-á o princípio da proporcionalidade dos meios aos fins, significando que o poder de polícia há de alcançar tão-somente o necessário para que o interesse público seja satisfeito; buscar-se-á o bem-estar social através bom exercício dos direitos individuais. O que se pretende, vale frisar, não é extinguir os direitos individuais com as medidas administrativas referentes ao poder de polícia, dada a nova ordem jurídica www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 48 vigente (é sempre bom lembrar: Estado Democrático de Direito), pelo que aplicar- se-ão os princípios da necessidade (o ato de polícia é a medida necessária a impedir uma ameaça ou perturbação do interesse público?), proporcionalidade (há uma justa proporção entre o limite do direito individual e o dano a ser evitado?), eficácia (a medida é adequada para impedir o dano?) e, finalmente, razoabilidade (o ato de polícia in casu é razoável?). AULA 31 Poder Legislativo e Executivo O poder de polícia reparte-se entre o Poder Legislativo e o Executivo. As limitações ao exercício de direitos individuais são previstas em lei. O Poder Legislativo cria, por lei, as chamadas limitações administrativas. A Administração Pública regulamenta as leis e controla sua aplicação preventivamente (através de ordens, notificações, licenças ou autorizações) ou repressivamente (através da imposição de medidas coercitivas – multas, embargos). O Poder Público, assim, compreende tanto as leis que delineiam o âmbito da liberdade e da propriedade, quanto os atos administrativos que lhes dão execução. Meios de atuação O Poder Público se manifesta tanto através de atos normativos de alcance geral quanto de atos concretos e específicos. Considerado o poder de polícia em sentido amplo (abrangendo as atividades do Legislativo e do Executivo), os meios de que se utiliza o Estado para seu exercício são: 1- atos normativos em geral: - Leis: Pela lei criam-se as limitações administrativas ao exercício dos direitos e das atividades individuais, estabelecendo- se normas gerais e abstratas dirigidas indistintamente às pessoas que estejam em idêntica situação; Atos normativos da Administração Pública: Disciplinando a aplicação da lei, o Executivo pode baixar decretos, resoluções, portarias, instruções. 2. Atos administrativos e operações materiais de aplicação da lei ao caso concreto, compreendendo: - Medidas preventivas com o objetivo de adequar o comportamento individual à lei (fiscalização, vistoria, notificação, autorização, licença); - Medidas repressivas com a finalidade de coagir o infrator a cumprir a lei (interdição de atividade, apreensão de mercadorias deterioradas). Polícia administrativa e Polícia judiciária O poder de polícia que o Estado exerce pode incidir tando na área administrativa quanto na área judiciária. A doutrina costuma apontar como diferença o fato da polícia administrativa ter caráter preventivo, pois tem por objeto impedir ações anti-sociais, e a polícia judiciária ter caráter repressivo, pois tem por objeto punir os infratores da lei penal. Afirma-se que a diferença não é absoluta, pois a polícia administrativa tanto pode agir preventivamente, como pode agir repressivamente. Diz-se também que a polícia judiciária, embora seja repressiva em relação ao indivíduo infrator da lei penal, é também preventiva em relação ao interesse geral, porque, punindo-o, tenta evitar que o indivíduo volte a incidir na mesma infração. Discricionariedade e Vinculação O Poder de Polícia será discricionário quando a lei deixa ao administrador certa margem de liberdade de apreciação quanto a determinados elementos.Nesses casos, a www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 49 Administração Pública terá que decidir qual o melhor momento de agir, qual o meio de ação mais adequado, qual a sanção cabível diante das previstas na norma legal. Na escolha pela Administração Pública da oportunidade e conveniência de exercer o poder de polícia, e na graduação das sanções aplicáveis aos infratores é que reside a discricionariedade do poder de polícia. Entretanto, será vinculado quando a lei estabelece que, diante de determinados requisitos, a Administração Pública terá de adotar solução previamente estabelecida, sem qualquer possibilidade de opção. É a livre escolha que tem o Policial de na oportunidade e conveniência de exercer o poder de polícia, assim como de aplicar as sanções e empregar os meios necessários para atingir os fins almejados, que é a proteção do interesse público. Assim desde que o ato de polícia esteja dentro dos limites legais e a autoridade tome opções dentro de suas atribuições, a discricionariedade é legítima. No entanto, se a autoridade é incompetente para a prática do ato, então sua conduta torna-se arbitrária. O ato de polícia passa a ser vinculado se a lei que o regula determina o modo como o ato deve ser realizado. Assim a autoridade só poderá praticá-lo atendendo a todas as exigências da lei. A discricionariedade é a liberdade de agir dentro dos limites legais, a arbitrariedade é ação fora ou excedendo a lei, abusando ou desviando o poder. O ato discricionário, quando cumpre os critérios legais, é legítimo e válido; o ato arbitrário será sempre ilegítimo e inválido. AULA 32 Coercibilidade As medidas de polícia adotadas pela Administração Pública se impõem de forma coativa. Todo ato de polícia é imperativo (obrigatório para seu destinatário). Não há ato de polícia facultativo para o particular, pois todos eles admitem coerção estatal para torná-los efetivos. A coerção é indissociável da auto-executoriedade.O ato de polícia só é auto-executório porque dotado de força coercitiva. É a imposição das medidas legais. Realmente, todo ato de polícia é obrigatório para seu destinatário, admitindo até o emprego da força para seu cumprimento, quando resistido. É o próprio Policial que determina e faz executar as medidas de força que se tomarem necessárias para a execução do ato resultante do exercício do poder de polícia. A coercibilidade do ato de polícia justifica o emprego da força física quando houver oposição do infrator, mas não legaliza a violência desnecessária ou desproporcional à resistência, onde tal caso poderá caracterizar o excesso de poder e o abuso de autoridade nulificando o ato praticado e ensejando em ações civis e criminais para reparação do dano e punição dos Policial. Auto-executoriedade É o poder da Administração Pública decidir e executar diretamente sua decisão, por seus próprios meios, sem precisar recorrer previamente ao Judiciário. A auto-executoriedade não existe em todas as medidas de polícia e para que a Administração Pública possa usá- la, é necessário que a lei a autorize expressamente, ou que se trate de medida urgente, sem a qual poderá ser ocasionado prejuízo maior para o interesse público. É a faculdade do Policial em decidir e agir diretamente através de decisão própria. O policial impõe diretamente as medidas ou sanções de polícia necessárias à contenção da atividade ilegal. Não seria possível condicionar os atos de polícia a aprovação prévia de qualquer outro órgão. Se o www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 50 particular se sentir lesado, poderá reclamar, ao Judiciário, que intervirá oportunamente para a correção de eventual ilegalidade administrativa ou fixação da indenização que for cabível. O que o princípio da auto- executoriedade autoriza é a prática do ato de polícia administrativa pelo próprio Policial, independentemente de mandado judicial. Assim, por exemplo quando uma pessoa encontra-se com as mesmas vestes, e traz consigo produtos semelhantes ao de um roubo que acaba de acontecer, assim o policial poderá abordá-lo. Limites Como todo ato administrativo, a medida de polícia, mesmo que seja discricionária, sempre esbarra em limitações impostas pela lei, quando à competência e à forma, aos fins e ao objeto. Competência e forma Devem se observar às normas legais pertinentes à competência (o agente deve ser competente, ter competência legal para a prática do ato) e à forma (o revestimento exterior do ato, o modo pelo qual ele aparece, deve ser o previsto em lei). Fins O poder de polícia só deve ser exercido para atender ao interesse coletivo e se seu fundamento é o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, o exercício desse poder perderá sua justificativa quando utilizado para beneficiar ou prejudicar pessoas determinadas. A autoridade que se afasta da finalidade pública incidirá em desvio de poder e acarretará a nulidade do ato com conseqüências nas esferas civil, penal e administrativa. O interesse público deve ser o alvo do poder de polícia. Conforme discorremos anteriormente, o fundamento do poder de polícia é a predominância do interesse público sobre o particular, representando o que uma autoridade não pode, sob pena de desvio de poder, ter interesses escusos e beneficiar-se em detrimento do interesse público. A atuação do Estado, no exercício de seu poder de polícia ostensiva, desenvolve- se em quatro fases: a ordem de polícia, o consentimento de polícia, a fiscalização de polícia e a sanção de polícia: Ordem de Polícia: A ordem de polícia se baseia num preceito que, necessariamente, nasce na lei, pois se trata de uma reserva legal ( Art. 5º, II/CF), e pode ser enriquecida discricionariamente, consoante as circunstâncias, pela Administração. Tanto pode ser um preceito negativo absoluto, quanto um preceito negativo relativo. Nesta segunda hipótese, o legislador admitirá, satisfeitas certas condições, que se outorgue um consentimento administrativo. Consentimento de Polícia: O consentimento de polícia, quando couber, será a ausência vinculada ou discricionária do Estado com a atividade submetida ao preceito negativo relativo, sempre que satisfeitos os condicionamentos exigidos. Se as exigências condicionadas estão todas na lei, tem-se um consentimento vinculado: a licença; se estão parcialmente na lei e parcialmente no ato administrativo, tem-se um consentimento discricionário: a autorização. Fiscalização de Polícia: A fiscalização de polícia é uma forma ordinária e inafastável de atuação administrativa, através da qual se verifica o cumprimento da ordem de polícia ou a regularidade da atividade já consentida por uma licença ou uma autorização. A fiscalização pode ser ex-ofício ou provocada. No caso específico da atuação da polícia de preservação da ordem pública, é que toma o nome de policiamento. Sanção de Polícia: Finalmente, a sanção de polícia é a atuação administrativa auto executória que se destina à repressão da infração. No caso da infração à ordem pública, a atividade administrativa, auto executória, no exercício do poder www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 51 de polícia, esgota-se no constrangimento pessoal, direto e imediato na justa medida para restabelecê-la. AULA 33 ANATEL E O PODER DE POLICIA O instrumento de poder polícia da Anatel, ou seja, a lei confere à agência o poder de adentrar em domicílio particular para realizar busca e apreensão no âmbito de sua competência, conforme prever o art. 19, XV da Lei nº 9.472/98: Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente: (...) XV - realizar busca e apreensão de bens no âmbito de sua competência; Ainda, o parágrafo único do art. 3º da Lei nº 10.871/2004, com a redação dada pela Lei nº 11.292/2006, prevê a possibilidade de apreensão de bens e produtos: Art. 3º São atribuições comuns dos cargos referidos nos incisos I a XVI, XIX e XX do art. 1o desta Lei (...) Parágrafo único. No exercício das atribuições de natureza fiscal ou decorrentes do poder de polícia, são asseguradas aos ocupantes dos cargos referidos nos incisos I a XVI, XIX e XX do art. 1º desta Lei as prerrogativas de promover a interdição de estabelecimentos, instalações ou equipamentos, assim como a apreensão de bens ou produtos, e de requisitar, quando necessário, o auxílio de força policial federal ou estadual, em caso de desacato ou embaraço ao exercício de suas funções. (Redação dada pela Lei nº 11.292, de 2006) Grifo nosso. Como o atributo da autoexecutoriedade confere ao ente estatal a prerrogativa de executar suas próprias decisões, inclusive com o uso da força, a doutrina pátria não tem divergido a respeito da necessidade de previsão legal desta medida excepcional. Embora caiba registrar o posicionamento de Zanella Di Pietro que defende ser prescindível a previsão em lei em situações de urgência, quando houver riscos de prejuízos maiores ao interesse público, senão vejamos: “A autoexecutoriedade não existe em todas as medidas de polícia. Para que a Administração possa se utilizar dessa faculdade, é necessário que a lei a autorize expressamente, ou que se trate de medida urgente, sem a qual poderá ser ocasionado prejuízo maior para o interesse público. No primeiro caso, a medida deve ser adotada em consonância com o procedimento legal, assegurando-se ao interessado o direito de defesa, previsto expressamente no art. 5º, inciso LV, da Constituição. No segundo caso, a própria urgência da medida dispensa a observância de procedimento especial, o que não autoriza a Administração a agir arbitrariamente ou a exceder-se no emprego da força , sob pena de responder civilmente o Estado pelos danos causados (cf. art. 37, §6º, da Constituição) sem prejuízo da responsabilidade criminal, civil e Administrativa dos servidores envolvidos.” [04] Grifo nosso. Assim, verifica-se que do ponto de vista formal, as medidas de busca e apreensão conferidas à Anatel, estão aptas a gerar efeito, vez que possuem escoramento legal nas Leis n.º 9.472/98 e 10.871/2004. AULA 34 ADIN 1.668-5/DF - O PODER DE BUSCA E APREENSÃO DA ANATEL Pouco tempo depois de sancionada a Lei Geral das Telecomunicações (Lei nº 9.472/98), foi proposta ADIN 1.668-5/ www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 52 DFquestionando a constitucionalidade de diversos dispositivos, dentre eles, o inciso XV do seu art. 19, que prevê o poder de busca e apreensão no âmbito das competências da Anatel, justificada, segundo o caput, no atendimento do interesse público. O Supremo Tribunal Federal, em juízo prelibatório, por entender que a referida medida de busca e apreensão atinge o devido processo legal assegurado no inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal [05], suspendeu os efeitos do referido dispositivo legal até a decisão final da ação declaratória de inconstitucionalidade. Entendeu o Ministro relator Marco Aurélio de Mello, no voto vencedor, que poder de polícia desta espécie, que atinge diretamente o patrimônio do particular, deveria ser apreciado previamente por órgão independente, ou seja, pelo Estado-juíz, senão vejamos: “Quanto ao inciso XV, exsurge a relevância do pedido formulado. A rigor, o que se tem, na espécie, é o exercício, pela Administração Pública, de maneira direta, a alcançar patrimônio privado, de direito inerente à atividade que exerce. Se de um lado à Agência cabe a fiscalização da prestação de serviços, de outro não se pode compreender, nela, a realização de busca e apreensão de bens de terceiros. A legitimidade diz respeito à provocação mediante o processo próprio, buscando-se alcançar, no âmbito do Judiciário, a ordem para que ocorra o ato de constrição, que é o de apreensão de bens. O dispositivo acaba por criar, no campo da administração, figura que, em face das repercussões pertinentes, a de ser sopesada por órgão independente e, portanto, pelo Estado-Juiz. Diante de tais premissas, defiro parcialmente a liminar para suspender, no artigo 19 da Lei 9.472, de 16 de julho de 1997, a eficácia do inciso XV, no que atribuída à ANATEL, isto é, à Agência Nacional de Telecomunicações, a possibilidade de empreender a busca e apreensão de bens. Entendo que a norma contraria o inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal, que encerra a garantia de que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” Grifo nosso. Assim, por força da suspensão deste dispositivo legal, a Anatel viu-se obrigada a propor medidas cautelares de busca e apreensão para, por exemplo, apreender equipamentos de rádio utilizados sem autorização legal (rádios piratas). Tendo o Superior Tribunal de Justiça reconhecido a legitimidade desta Agência para propor a referida cautelar, é o que se extrai do REsp 626.774: “PROCESSO CIVIL - MEDIDA CAUTELAR DE BUSCA E APREENSÃO - LEGITIMIDADE - NECESSIDADE. 1. O dispositivo legal (artigo 19, inciso XV, da Lei 9.472/97) que concedia à ANATEL a competência para, administrativamente, proceder à apreensão de aparelhos radiotransmissores em funcionamento ilegal foi suspenso pelo STF na ADin 1668- 5, necessitando a agência, para imediata cessação de funcionamento, recorrer ao Judiciário. 2. Seja pela via cível, seja pela via penal, pode a ANATEL acautelar-se, com o pedido de imediata apreensão de aparelhos clandestinamente instalados, sem que possa fazê-lo de modo próprio. 3. Recurso especial provido.” (REsp 626.774/CE, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/06/2004, DJ 13/09/2004, p. 220) Grifo nosso. AULA 35 LEI N.º 11.292/2006 RESTABELECE O PODER DE APREENSÃO. Como visto acima, o parágrafo único da Lei n.º 11.292/2006, decorrente da conversão da Medida Provisória nº 265, de 2005, alterou a redação da Lei n.º 10.871/2004, e trouxe novamente a previsão de apreensão de bens, como prerrogativa derivada do poder de polícia da Anatel. www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 53 Note-se que este dispositivo legal não prevê a possibilidade de busca, mas apenas apreensão de bens. Logo, os agentes de polícia administrativa devem saber previamente onde se encontram os bens a serem apreendidos, já que estão impedidos de procurar a aparelhagem no local da apreensão, em face da decisão cautelar do Supremo Tribunal Federal. Ainda assim, fica o questionamento: essa norma, que apenas revigorou o poder de apreensão, também terá sua eficácia suspensa pela decisão do Supremo? O legislador estaria impedido de legislar sobre matéria já julgada, ainda que em sede liminar, pelo STF? A primeira pergunta o próprio Supremo já respondeu, no acórdão da lavra da Ministra Carmen Lúcia, o pleno decidiu que os efeitos da ADIN 1668-5/DF não atingem o parágrafo único do art. 3º da Lei nº 10.871/2004, tendo em vista que a aplicação deste dispositivo não poderia ser questionada via reclamação constitucional, senão vejamos a ementa: “EMENTA: RECLAMAÇÃO. ALEGADO DESCUMPRIMENTO DO QUE DECIDIDO NA MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 1.668/DF. AGÊNCIA REGULADORA. DECISÃO JUDICIAL QUE DETERMINA A BUSCA E A APREENSÃO DE EQUIPAMENTOS RADIOFÔNICOS DE EMISSORA DE RÁDIO COMUNITÁRIA CLANDESTINA. 1. No julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.668/DF, entre vários dispositivos questionados e julgados, decidiu-se pela suspensão do inc. XV do art. 19 da Lei n. 9.472/97, que dispunha sobre a competência do órgão regulador para “realizar busca e apreensão de bens”. 2. Decisão reclamada que determinou o lacre e a apreensão dos equipamentos da rádio clandestina fundamentada no exercício do regular poder de polícia. 3. Ao tempo da decisão judicial reclamada, já estava em vigor a Lei n. 10.871/2004, na redação da Lei n. 11.292/2006, que prevê aos ocupantes dos cargos de fiscal dos órgãos reguladores as prerrogativas de apreensão de bens e produtos. 4. Ausência de descumprimento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.668-MC/DF. 5. Reclamação: via inadequada para o controle de constitucionalidade. 6. Reclamação julgada improcedente.” (Rcl 5310, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 03/04/2008, DJe- 088 DIVULG 15-05-2008 PUBLIC 16-05-2008 EMENT VOL-02319-03 PP-00454 RTJ VOL- 00205-01 PP-00155) Grifo nosso. De outro lado, verifica-se que esta decisão não examinou a constitucionalidade do referido dispositivo da Lei nº 10.871/2004, já que o Supremo reiterou seu entendimento de que a reclamação constitucional não pode ser utilizada como sucedâneo recursal. Logo, o referido dispositivo legal poderá ter sua constitucionalidade discutida futuramente seja no âmbito do controle difuso, seja no âmbito do controle concentrado. Até lá, o parágrafo único do art. 3º da Lei 10.871/2004 será considerado constitucional, em face do princípio da presunção de constitucionalidade das leis, que pugna pelo entendimento de que toda espécie normativa nasce de acordo com a Constituição e, como tal, deve ser preservada. Seguindo este princípio o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, enfrentou a questão e posicionou-se pela plena eficácia do referido dispositivo da Lei nº 10.871/2004, é o que se depreende: “3. A Lei nº 9.472/97 conferiu à ANATEL, entre outras, a competência para realizar busca e apreensão de bens no âmbito de sua competência (inciso XV do art. 19). Em 20/08/1998, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, na ADIN 1668- DF, concedeu medida liminar suspendendo, até a decisão final da ação, a execução e aplicabilidade do art. 19, inciso XV, da Lei 9.472/97. 4. Esta Corte, entretanto, tem admitido a medida de apreensão do equipamento com fundamento no art. 3º da Lei nº 10.871, de 20 de maio de www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 54 2004, sem que tal medida importe em descumprimento da liminar deferida naquela ADIN. Precedentes desta Corte e do Eg. STJ. 5. Apelação provida.” (AC 200081000192670, Desembargador Federal Leonardo Resende Martins, TRF5 - Segunda Turma, 23/10/2009). Grifo nosso. Quanto à segunda pergunta, se estaria vedado ao legislador criar dispositivo de teor semelhante ao suspenso pelo STF, entendemos que não, uma vez que o efeito vinculante da ADIN não atinge o Poder Legislativo, mas sim a Administração Pública e o Poder Judiciário, conforme estabelece o parágrafo único do art. 28 da Lei nº 9.869/1999: “Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.” Grifo nosso. Ademais, segundo o Min. Cerzar Peluso, na Reclamação 2.617 Agr/MG, o Poder Legislativo não pode ser atingido pelo efeito vinculante sob pena da fossilização da Constituição. Se assim não fosse, tal concepção comprometeria a relação de equilíbrio entre o tribunal constitucional e o legislador, reduzindo este ao papel de subalterno perante o poder incontrolável daquele, com evidente prejuízo do espaço democrático-representativo da legitimidade política do órgão legislativo. [06] Por outro lado, Luciana Rolim Antunes, em trabalho monográfico sobre o poder de polícia da Anatel, elenca dois limites ao exercício da prerrogativa da apreensão de bens: proporcionalidade da medida (ar. 2º, Lei nº 9.784/99); inviolabilidade do domicílio (at. 5º, XI, da Constituição). [07] O primeiro limite decorre, em verdade, da própria essência do poder de polícia, que implica em limite ao exercício dos direito individuais. Logo, toda medida de polícia deve observar o princípio da proporcionalidade, para assegurar que a ação estatal não atinja o núcleo duro direito sacrificado, ou seja, proíbe-se o excesso da ação estatal. Já a segunda limitação, atinge especificamente o poder de apreensão, mitigando substancialmente sua eficácia, uma vez que a nossa Carta Republicana confere ao domicílio a prerrogativa da inviolabilidade, salvo nas situações de flagrante de delito, socorro ou determinação judicial. Ou seja, salvo se fato investigado constituir crime, os agentes da Anatel não poderão adentrar em domicílios para apreender bens e equipamentos sem prévia autorização judicial. Ainda mais porque o conceito de domicílio não se restringe à residência domiciliar. O Supremo Tribunal Federal elasteceu o conceito de casa do inciso XI, do art. 5º, da Constituição para abranger também a qualquer compartimento privado onde alguém exerce profissão ou atividade, senão vejamos: “Para os fins da proteção constitucional a que se refere o art. 5º, XI, da Carta Política, o conceito normativo de ‘casa’ revela- se abrangente e, por estender-se a qualquer compartimento privado onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, §4º, III), compreende os consultórios profissionais dos cirurgiões- dentistas. Nenhum agente público pode ingressar no recinto de consultório odontológico, reservado ao exercício da atividade profissional de cirurgião-dentista, sem o consentimento deste, exceto nas situações taxativamente previstas na Constituição (art. 5º, XI).” (RE nº 251.445-4/ GO – Relator Celso de Mello). Grifo nosso. Por outro vértice, quando o fato investigado constituir infração penal, havendo a certeza da sua execução, os agentes da Anatel terão amparo constitucional para entrar no local, por exemplo, na hipótese do recinto abrigar rádios piratas, vez que este fato configura crime tipificado no art. 183 da Lei nº 9.472/97: www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 55 “Desenvolver clandestinamente atividade de telecomunicações: pena – detenção de dois a quatro anos, aumentada até a metade de se houver dano a terceiro e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais).” Em verdade, qualquer do povo tem autorização constitucional para violar domicílio alheio em caso de flagrante de delito, porém os agentes da Anatel, regularmente investidos, ainda terão a prerrogativa de apreender bens e equipamentos utilizados para desenvolver clandestinamente atividade de telecomunicações. Assim, em síntese, percebe-se que o poder de apreensão foi restabelecido pela Lei 11.292/2006, não sendo alcançado pelos efeitos vinculantes da decisão cautelar da ADIN 1.668-5/DF, visto que o Legislador encontra-se imune a tais efeitos (ex vi, parágrafo único do art. 28 da Lei n.º 9.869/1999). No entanto, agora a autoexecutoriedade do poder de apreensão Anatel encontra-se mais limitado, vez que, além de não contar com o poder de busca suspenso pelo STF, também encontrará especial restrição decorrente do princípio constitucional da inviolabilidade de domicílio. AULA 36 LEI COMPLEMENTAR 97/99 A Lei Complementar nº 97/1999 estabeleceu atribuições subsidiárias das Forças Armadas e, quanto à Marinha, ao estabelecê-las, definiu o Comando da Marinha como “Autoridade Marítima”, designando- lhe a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas. O que se pretende é examinar a extensão desse dispositivo. Um esclarecimento é necessário. A expressão “autoridade marítima” decorre de dispositivo legal, o art.17, caput, incisos e parágrafo único da Lei Complementar nº 97/1999, que permitem definir “autoridade marítima” como o Comandante da Marinha no exercício de atribuições subsidiárias da Força. De tais atribuições subsidiárias da Força Armada, necessariamente, resulta o poder de polícia para executá-las e oportunizam-se questionamentos quanto à sua natureza e quanto à forma dele ser exercitado. Assim, é pertinente formular a seguinte pergunta: o poder de polícia da autoridade marítima brasileira tem fundamento, características e limites específicos ou se trata do poder de polícia em geral, exercido por agentes da autoridade marítima? O poder de polícia da autoridade marítima não tem natureza jurídica própria, tratando- se de meras competências para exercício de polícia administrativa especial e de polícia administrativa geral, nesta incluída a polícia de segurança, segundo a classificação de Cretella Júnior (1968, p.59-62). Essa hipótese, contudo, comporta as seguintes, secundárias: a) a polícia administrativa exercida pela autoridade marítima não é uma atividade militar e, portanto, deve ter fundamento na lei que a estabeleceu; e b) entretanto, a autoridade marítima, no exercício das tarefas que lhe estão atribuídas, tem âmbitos de atuação específicos, o que torna o seu poder de polícia, além de especial, característico, forçando à interpretação restritiva do comando legal que estabelece para a mesma autoridade uma atribuição genérica de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, o que se aplicaria à polícia de segurança, distinta, por fundamento e natureza, da atividade de polícia administrativa. A Lei Complementar nº 97/1999 atribuiu à autoridade marítima a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual quando se fizer necessário, em razão de competências www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 56 específicas. A Lei nº 9.537/1997, Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, dispõe em seu art. 3º que cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução de tal lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores, e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio. Por seu turno, a Lei nº 2.419/1955, que instituiu a Patrulha Costeira, atribuiu à Marinha, entre outras, as tarefas de, em colaboração com outros órgãos, defender a fauna marítima, defender a flora aquática, fiscalizar a pesca no litoral brasileiro, auxiliar os serviços de repressão ao contrabando e ao comercio ilícito de tóxicos, o que se insere na moldura do art. 17, IV, da Lei Complementar nº 17/1999. O Decreto nº 5.129/2004 alterou a denominação da Patrulha Costeira para Patrulha Naval, regulando a abordagem de embarcações em atividades ilícitas nas águas jurisdicionais brasileiras com tiros de advertência e tiros diretos, sintetizando tarefas da Lei nº 2.419/1955 na genérica fórmula de implementação e fiscalização do cumprimento das leis e regulamentos nas águas nacionais. Outras leis atribuem competências à autoridade marítima e estas competências parecem adequar-se à fórmula genérica da Lei Complementar ou da Lei de Patrulha Costeira, que atribui à Marinha a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos no mar e águas interiores, como são exemplos a Lei nº 9.605/1998, que trata dos crimes ambientais, e a Lei nº 9.966/2000, que dispõe sobre a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional. Para aplicação de tais normas, ocorre certa imprecisão conceitual. Entretanto, nada das atribuições antes mencionadas se confunde com o exercício de atividade militar stricto sensu. Há poucas obras dedicadas ao estudo aprofundado do tema. As leis mencionadas estabeleceram tarefas que eventualmente têm sido entendidas como atividades militares, quando, expressamente, a Lei Complementar 97/199 permite defini-las como atribuições subsidiárias da Marinha, configurando nítidas atividades de polícia administrativa ou de segurança. Deste modo, podem ocorrer entendimentos conflitantes quanto à natureza jurídica da atribuição da Marinha. É, pois, adequado que se pesquise a natureza jurídica do poder de polícia exercido pela Força, apontando seus limites. O assunto tem repercussão na fiscalização do tráfego aquaviário, na formação de tripulações para embarcações mercantes, na prevenção da poluição por parte de embarcações, na fiscalização da pesca, assim como na repressão aos ilícitos praticados em nosso mar territorial, na Zona Econômica Exclusiva, no alto mar e nos rios que fazem fronteira com outros países. AULA 37 A revogada Lei Complementar nº 69, de 23 de julho de 1991, dispunha sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, estabelecendo como atribuições subsidiárias da Marinha as descritas no art. 9º, a seguir transcrito: Art. 9ºCabem às Forças Armadas as seguintes atribuições subsidiárias: I - como atribuição geral: cooperar com o desenvolvimento nacional e a defesa civil; II - como atribuições particulares da Marinha: a) orientar e controlar a Marinha Mercante e suas atividades correlatas, no que interessa à defesa nacional; b) prover a segurança da navegação aquaviária; c) contribuir para a formulação e condução de políticas nacionais que digam respeito ao mar; e d) implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e águas interiores; e A Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, revogou a Lei Complementar nº www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 57 69/91, mantendo as mesmas atribuições subsidiárias da Marinha, e definindo a “Autoridade Marítima” [1] conforme se vê do seu art. 17, caput, incisos e Parágrafo único: Art.17 – Cabe à Marinha, como atribuições subsidiárias particulares: I – orientar e controlar a Marinha mercante e suas atividades correlatas, no que interessa à defesa nacional; II – prover a segurança da navegação aquaviária; III – contribuir para a formulação e condução de políticas nacionais que digam respeito ao mar; IV – implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual quando se fizer necessário, em razão de competências específicas. Parágrafo único. Pela especificidade dessas atribuições, é da competência do Comandante da Marinha o trato dos assuntos dispostos neste artigo, ficando designado como “Autoridade Marítima” para esse fim. Desta forma,é possível conceituar “Autoridade Marítima” como o conjunto de competências subsidiárias atribuídas ao Comandante da Marinha para formulação e condução de políticas nacionais a respeito do mar ou para execução da polícia administrativa do tráfego aquaviário, com a finalidade de salvaguardar a vida humana e garantir segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores; e de prevenir a poluição ambientalpor parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio, ou conforme a Lei nº 9.966/2000, art. 2º, inciso XXII: XXII – autoridade marítima: autoridade exercida diretamente pelo Comandante da Marinha, responsável pela salvaguarda da vida humana e segurança da navegação no mar aberto e hidrovias interiores, bem como pela prevenção da poluição ambiental causada por navios, plataformas e suas instalações de apoio, além de outros cometimentos a ela conferidos por esta Lei; Pode-se verificar que as Forças Armadas têm, na normalidade institucional, a específica destinação constitucional de defesa da Pátria e garantia dos poderes constitucionais, como expresso no artigo 142, caput, da CF/88: Art. 142 - As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. A missão clássica das Marinhas é “assegurar o uso dos oceanos para sua própria nação e estar em condição de tentar evitar que outras nações utilizem os oceanos de maneira desvantajosa para o seu país.” (BOOTH, 1989, p. 52). Todavia a missão da Marinha também é cumprida em tempo de paz, quando o que se executa não é uma atividade classicamente militar. Trata-se, então, do emprego da Marinha em tempo de paz. Conforme Lafayette Pinto (1989, p. 23-60), há interesses da Nação, presentes e futuros, que as normas jurídicas são insuficientes para assegurar. Daí, a necessidade do emprego ou demonstração de força para garantia desses interesses. É o que se dá com o Direito do Mar, especialmente na Zona Econômica Exclusiva e na plataforma continental, onde tais interesses podem ser a proteção aos pesqueiros nacionais, a segurança do tráfego marítimo, a proteção à pesquisa ou a manutenção da integridade das instalações marítimas, como terminais, portos e plataformas petrolíferas. De qualquer forma, quando se fala de atividade marítima, geralmente pensa-se em Marinha de Guerra. Isso é razoável em países menos desenvolvidos, nos quais a manutenção de uma Força Naval pode ser muito cara, levando à compreensão de que os custos podem ser amortizados pelo emprego www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 58 em atividades administrativas. Semelhante demanda também ocorre com as grandes Marinhas, pois, assim como é comum se ver navios de guerra de Marinhas menores prestando apoio a regatas, não é incomum ver navios de Marinhas maiores dedicando- se a recolher foguetes e cápsulas espaciais (LAFAYETTE PINTO, 1989. p. 57). De um modo geral, as Marinhas exercem várias tarefas subsidiárias, algumas de forma permanente, seja pelo interesse do Estado, seja pela falta de órgãos ou empresas pertinentes. As mais comuns e tradicionais se relacionam ao salvamento marítimo, combate ao contrabando, assistência às populações ribeirinhas, fiscalização da poluição, entre outras, que para algumas Marinhas assumem papel destacado. Entretanto, à medida que a tecnologia vai permitindo ampliar o campo de atuação humana no mar, os interesses marítimos aumentam e passam por sua vez a demandar mais as Marinhas. Por um lado requerem atividades que se enquadram como subsidiárias mas, por outro, passam também a exigir proteção e segurança, aí sim pertinentes às Marinhas de Guerra. Enquanto as subsidiárias podem e são em muitos casos atendidas por instituições ou órgãos afins, como as Guardas Costeiras, por exemplo, as relativas à proteção devem ser exercidas pelas Marinhas de Guerra. (LAFAYETTE PINTO, 1989. p. 58) Nos dias atuais, cada vez mais, a preservação dos recursos naturais e a prevenção da poluição ambiental são tão relevantes quanto o domínio do espaço marítimo. Assim, naturalmente, incumbe à Marinha a execução de tarefas que não se ajustam à concepção clássica de atividade militar, constituindo-se numa atividade de polícia administrativa especial. Por oportuno, cabe ressaltar que em países onde não há Marinha de Guerra, e que possuem organizações marítimas paramilitares, como por exemplo Guarda Costeira, é válido o raciocínio expresso quanto à necessidade de marcar presença em águas sob jurisdição nacional, para evitar atividades irregulares perpetradas por intrusos. Na prática, a polícia marítima, ou organizações semelhantes, acaba por desempenhar um papel similar ao das Marinhas, no que diz respeito à salvaguarda dos recursos naturais da Zona Econômica Exclusiva, à segurança do mar territorial e à fiscalização das atividades marítimas, chegando mesmo a exercer um controle da área marítima sob sua responsabilidade, ainda que em nível de polícia. (LAFAYETTE PINTO, 1989. p. 59) A constituição e a manutenção de um Poder Naval têm custo elevado e a sua implementação exige considerável esforço do país, o que deve ser retribuído com o adequado emprego da Força Naval. Por conseqüência, a Marinha não pode deixar de aplicar suas forças na proteção dos interesses marítimos nacionais, mesmo quando eles ainda não estão ameaçados, mesmo que se trate de atribuição subsidiária da Força. De outra parte, por exemplo, “defender um campo petrolífero no mar não significa dispor de um grupo de embarcações dedicadas exclusivamente a essa tarefa”. O importante é que, com o emprego freqüente das forças navais, logra-se a presença naval, que é dissuasória, e que, complementarmente, serve à proteção dos interesses marítimos, uma situação conveniente para Marinhas menores. (LAFAYETTE PINTO, 1989. p. 60). Trata-se, portanto, do típico emprego da Força com uma finalidade de proporcionar a segurança coletiva. Então, admitindo a validade do conceito de segurança coletiva ao início apresentado, há nessa atividade uma estrita vinculação legal. Não se trata de operação militar que admitiria um poder de fato, mas de atividade de polícia, onde se exerce poder de polícia com fundamento no bloco de legalidade. AULA 38 Polícia administrativa do tráfego aquaviário www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 59 Pelos motivos antes expostos, no nosso país, tradicionalmente, a Marinha é empregada em atividades subsidiárias, entre as quais a de polícia administrativa. Essa atividade era denominada Polícia Naval como constava do art. 59 do Decreto nº 5.798, de 11 de junho de 1940, que aprovou e mandou executar o Regulamento para as Capitanias de Portos: Art. 59. Por Polícia Naval deverá ser entendida a atribuição dada às pessoas vinculadas permanente ou temporariamente à Diretoria de Marinha Mercante, para fiscalizarem e exigirem a fiel observância e o cumprimento das leis, regulamentos, disposições e ordens referentes à navegação e à Marinha Mercante e ao que preceitua este regulamento. (PINTO; DIAS, 1959, p. 1791). O Regulamento para as Capitanias de Portos foi alterado pelo Decreto nº 50.114, de 26 de janeiro de 1961, que mudou a sua denominação para Regulamento do Tráfego Marítimo (RTM). Em seguida, o Decreto nº 50.330, de 10 de março de 1961, alterou o art. 59 do agora denominado RTM que passou a ter a seguinte redação: “Art. 59. Por Polícia Naval deverá ser entendida a atribuição dada às pessoas vinculadas permanente ou temporariamente à Diretoria de Portos e Costas, para fiscalizarem e exigirem a fiel observância e cumprimento das leis, regulamentos, disposições e ordens referentes a navegação e à Marinha Mercante ao que preceitua este regulamento inclusive estreita cooperação com as autoridades civis, e militares na repressão ao contrabando e ao descaminho” (BRASIL, 2009) Todavia, o Decreto nº 5.798/1940, o Decreto nº 50.114/1961, assim como o Decreto nº 50.330/1961 foram revogados pelo Decreto nº 87.648, de 24 de setembro de 1982, que aprovou o novo Regulamento para o Tráfego Marítimo, no qual a Polícia Naval passou a ser definida no art. 269, caput e parágrafo 1º: Art. 269 - A Polícia Naval é a atividade desenvolvida pela Marinha, através da Diretoria de Portos e Costas e sua rede funcional, com o propósito de fiscalizar e exigir a fiel observância e cumprimento das leis, regulamentos, disposições e ordens referentes à navegação, à poluição das águas e à Marinha Mercante, no que preceitua este Regulamento, inclusive a colaboração na repressão ao contrabando e ao descaminho. Parágrafo único - Para o exercício da Policia Naval, a Marinha utilizará o pessoal civil e militar lotado nas Capitanias dos Portos, Delegacias, Agências e Capatazias, devidamente credenciados para este fim. (BRASIL, 2009) Por último, o Decreto nº 511, de 27 de abril de 1992, alterou o Art. 269 e parágrafos do RTM, dando nova definição à atividade de Polícia Naval: Art. 269. Polícia Naval é a atividade, de cunho administrativo, exercida pela rede funcional da DPC, que consiste na fiscalização do cumprimento deste Regulamento, normas decorrentes, Convenções e Acordos Internacionais sobre navegação, ratificados pelo Brasil, e da poluição das águas causadas por embarcações e terminais marítimos, fluviais e lacustres. § 1° À Polícia Naval não compete a execução de ações preventivas e repressivas da alçada de outros órgãos federais, sem prejuízos da colaboração eventual, quando solicitada. (BRASIL, 1994) O que se observa é que a Polícia Naval era originalmente uma atividade de polícia administrativa, direcionada à fiscalização de normas reguladoras da navegação e da Marinha Mercante. Com a alteração do Decreto nº 50.330/1961, a atividade passou a incluir uma estreita cooperação com autoridades civis e militares para repressão ao contrabando e ao descaminho, o que, apesar da ambigüidade, revela uma atividade de polícia de segurança. Isto foi mantido no novo Regulamento para o Tráfego Marítimo aprovado pelo Decreto nº 87.648/1982. Com o Decreto nº 511/1992, excluiu-se do dispositivo a atividade de polícia de segurança pública, mas acrescentou-se à fiscalização da navegação a fiscalização www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 60 da poluição das águas causadas por embarcações e terminais marítimos, fluviais e lacustres, o que constitui atividade típica de polícia administrativa. Por último, foi editada a Lei nº 9.537/1997, Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional. Nessa lei, substituiu-se a expressão “Polícia Naval” por “Inspeção Naval”, definida no art. 2º, VII: “VII – Inspeção Naval - atividade que consiste na fiscalização desta lei, das normas e regulamentos dela decorrentes, e dos atos e resoluções internacionais, ratificados pelo Brasil, no que se refere exclusivamente à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores, e à prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas fixas ou suas instalações de apoio” (DUARTE NETO, 1998, p. 24) Essa mudança de denominação de “Polícia Naval” para “Inspeção Naval” teve o propósito de evitar possível confusão entre as atividades previstas na Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário e a repressão ao contrabando ou aos furtos e assaltos praticados em embarcações nos portos, como ficou registrado na tramitação da Câmara. Todavia, a Inspeção Naval, tal como era com a Polícia Naval, refere-se, enfim, ao exercício do poder de polícia administrativa atribuído à Marinha. (DUARTE NETO, 1998. p. 24-27). O que a lei atribui à Autoridade Marítima é uma competência geral de polícia administrativa especial, porque referida a um específico setor da Administração, na qual se inserem outras atribuições específicas, como a de lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo, do art. 70 da Lei nº 9.605/1998, ou as de fiscalizar navio, plataformas e suas instalações de apoio, e as cargas embarcadas, de natureza nociva ou perigosa, do art. 27 da Lei nº 9.966/2000, que dispõe sobre a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional. Nada mudou com a edição da Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário. Como se viu, o Regulamento para o Tráfego Marítimo ressalvava que à Polícia Naval não compete a execução de ações preventivas e repressivas da alçada de outros órgãos federais, sem prejuízo da colaboração eventual, quando solicitada e, nos termos da atual Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, a Inspeção Naval se refere exclusivamente à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores, e à prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas fixas ou suas instalações de apoio. De qualquer maneira, observa-se a preocupação do legislador em definir na Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário a atividade da “Autoridade Marítima” como uma atividade que não deve se confundir com a polícia de segurança, que incluiria, por exemplo, a repressão ao tráfico de drogas e armas, à pirataria, ao contrabando e ao descaminho. AULA 39 Óbice ao exercício do poder de polícia do tráfego aquaviário Para bem aplicar as noções desenvolvidas no Capítulo anterior, ao examinar as características e os limites do poder de polícia administrativa da autoridade marítima, é imprescindível pesquisar sua previsão legal. Desde a Constituição de 1988, as alterações do Regulamento para o Tráfego Marítimo, por Decreto, constituiriam ilegalidades. Tendo sido editada a Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, poder-se-ia aventar a hipótese de validação do Regulamento que, contudo, foi revogado por um Decreto que aprovou o novo Regulamento para o Tráfego Aquaviário. O relevante na comparação entre o revogado Regulamento para o Tráfego Marítimo (RTM) e Lei de Segurança do www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 61 Tráfego Marítimo (LESTA) está na técnica adotada. O RTM, em 29 de seus artigos, dispunha sobre infrações ao Regulamento, com previsão de sanções administrativas. Assim, por exemplo, o art. 45 estabelecia limites de multa para as infrações às regras do cerimonial Marítimo para a Marinha Mercante, o art. 57 previa multa para a existência de tripulante sem o competente atestado médico, o art. 64 previa multa pela falta de visto anual em Caderneta de Registro de aquaviário, o art. 137 previa multa e medida administrativa para inobservância de regras de quantidade e qualificação dos tripulantes das embarcações em tráfego, os art. 156, 157 e 258 previam multas para a inobservância de regras do Regulamento para transporte de carga, inflamáveis, explosivos e produtos agressivos, o art. 352 previa multas e medidas administrativas para inobservância de regras para habilitação de amadores e condição de embarcações de esporte e recreio. Era de esperar que a LESTA, editada no intuito de superar controvérsias quanto à recepção do RTM pela Constituição, adotasse as definições de infrações do tráfego aquaviário contidas no RTM, o que, entretanto, não aconteceu. A LESTA procurou apresentar-se com modernidade, reduzindo artigos, sintetizando disposições, mas, deixou de dispor sobre infrações à Lei. Esse é o óbice ao exercício do poder de polícia da autoridade marítima para fiscalização do tráfego aquaviário e segurança da navegação. Limitou-se a LESTA a atribuir competência à Autoridade Marítima para que esta elaborasse normas para os mais diversos assuntos afetos ao tráfego aquaviário e à segurança da navegação, assim como a dispor sobre o procedimento administrativo de aplicação de penalidades, espécies de sanções, recursos e prazos. Mas a lei não definiu o que é infração do tráfego aquaviário, quais condutas a serem reprimidas e quais as penalidades aplicáveis. A nosso ver, deveria haver dispositivo legal estabelecendo que constitui infração (isto é, fato típico passível de punição) o descumprimento das normas estabelecidas nesta Lei, no seu regulamento de execução ou nas provenientes da autoridade marítima, a fim de que fosse observado o princípio da reserva legal segundo o qual não há delito sem lei anterior que o defina, conforme determina o item XXXIX, do art. 5º, da Constituição Federal, muito embora o regulamento com certeza venha a estabelecer quais as infrações e suas respectivas punições. [...] De qualquer forma, em havendo lei, em sentido formal e material, como a presente, as diversas questões, que carecem de regulamentação pelo Poder Executivo, tem amparo e suporte em lei ordinária, obedecido, assim, o princípio constitucional segundo o qual ninguém fará ou deixará de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Ademais, a Lei Complementar nº 69/91, já traz em si uma série de responsabilidades subsidiárias ao Ministério da Marinha, sendo que suas atribuições estão bem definidas nesta lei de segurança do tráfego aquaviário. (DUARTE NETO, 1998. p. 63) Pode-se concordar com a primeira parte da citação anterior. Todavia, tendo em conta o debatido no primeiro Capítulo, não é possível concordar com a segunda parte da citação, ainda que assim também pareça ter entendido o legislador. O que se discute aqui é um poder de polícia com fundamento na supremacia geral do Estado, hipótese em que “o princípio da legalidade vige na sua mais ampla acepção; apenas a lei formal, editada pelo Legislativo poderá estabelecer infrações e sanções administrativas”, conforme lição antes citada de Vitta (2003, p. 84). A preocupação do legislador, todavia, foi com a denominação da atividade de polícia administrativa da Marinha. Entende-se que a alteração da denominação, sem que, essencialmente, se mudasse a atividade, visou evitar o uso da expressão “polícia” de indesejada conotação no emprego das Forças Armadas em tempo de paz, capaz de sugerir uma destinação da Marinha de Guerra como sucedâneo das forças de segurança pública, www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 62 exercendo um papel de guarda costeira destinada a reprimir delitos no mar territorial. Alterou-se a denominação da atividade de Polícia Naval para Inspeção Naval a fim de expurgar do conceito alguma conotação de polícia de segurança pública. Todavia, a atividade seria tipicamente uma atividade de polícia administrativa e é com apelo a essa natureza que se tem julgado possível exercê- la na ausência de norma legal expressa com fundamento num genérico “poder de polícia”, que estaria implícito na simples atribuição de competência à Autoridade Marítima para que elabore normas para o tráfego aquaviário e segurança da navegação. Assim, é possível encontrar argumento segundo o qual, ao dispor o art. 3º da Lei nº 9.537/1997 que cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução da mesma lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana, a segurança da navegação e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, implicitamente atribuiu-se “poder de polícia” à autoridade marítima para estabelecer restrições a direitos individuais. Essa forma de lidar com o problema confirma o acerto das observações que apontam para uma crise da noção de “poder de polícia”. Não ocorre mais que o Estado só possa estabelecer restrições a direitos individuais para assegurar apenas a segurança, a salubridade e a moralidade. Não há mais uma noção autônoma de “poder de polícia” que justifique intervenções dos órgãos estatais na esfera de interesses do indivíduo. Qualquer limitação aos interesses particulares deve estar concretamente disposta na lei. Não se caracteriza mais este poder como intrínseco a algum órgão estatal, mas se reconhece como próprio do Estado. Trata-se da aplicação da coerção do Estado, atual ou potencial, sobre interesses individuais o que não a faz diferente da atividade estatal em geral e não justifica o uso da expressão “poder de polícia”. “La ‘noción’ de ‘poder de policía’, pues, es innecesaria y además perjudicial porque da lugar a una serie de dificultades para su comprensión y aplicación, precisamente por su misma ambigüedad o indefinición.” (GORDILLO, 2003, p. 12-16). Em lugar de manter uma noção de “poder de polícia” sem um fundamento jurídico positivo, estabelecendo um princípio geral de coação e poder estatal, “polícia” ou “poder de polícia”, ao qual logo se procurariam restrições nos direitos individuais, o correto, num estado de direito, submetido a um regime supranacional e internacional de direitos humanos, é fixar a premissa oposta, estabelecendo a supremacia dos direitos fundamentais, para, nos casos concretos e com expressa determinação legal, opor-lhes restrições com fundamento em eventual coerção estatal. Com essa concepção, nada se poderá resolver com base num “poder de polícia”. Ocorre com a noção usual de “polícia” que a administração estaria autorizada a agir nas hipóteses em que a lei a autoriza de forma expressa, ou quando a lei lhe atribui faculdades discricionárias ou, ainda, quando uma lei não autoriza de forma expressa ou razoavelmente implícita, com fundamento em um poder de polícia genérico decorrente da ordem jurídica. Entretanto, essa última hipótese não é válida porque a ordem jurídica não confere à Administração nenhum poder de polícia genérico e indeterminado que a autorize a atuar na ausência de lei. Enfim, “la aministración solo puede actuar avanzando sobre la esfera jurídica individual cuando uma ley (em forma expresa o razonablemente implícita) la autoriza, em forma reglada o discrecional, a hacerlo.”. Pois, não se declara, claramente, que a “polícia” ou o “poder de polícia” autoriza atos administrativos sine legem. Mas, na prática administrativa, se admite que assim seja. Pode ocorrer inversão do procedimento, exercendo-se primeiro um “poder de polícia” para depois, complementarmente, agregar-se alguma norma que, com maior ou menor clareza, possibilite a restrição de um direito individual. (GORDILLO, 2003, p. 20-24) www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 63 Pois, no caso da Autoridade Marítima, foi o Regulamento de Segurança do Tráfego Aquaviário em Águas sob Jurisdição Nacional (RLESTA), aprovado pelo Decreto nº 2.596, de 18 de maio de 1998, que dispôs sobre infrações ao tráfego aquaviário e sobre as penalidades correspondentes. Dispôs o Regulamento para o Tráfego Aquaviário, em seu art. 7º: Art. 7º - Constitui infração às regras do tráfego aquaviário a inobservância de qualquer preceito deste Regulamento, de normas complementares emitidas pela Autoridade Marítima e de ato ou resolução internacional ratificado pelo Brasil, sendo o infrator sujeito às penalidades indicadas em cada artigo. Entretanto, essa norma, extremamente vaga, de natureza administrativa, não transmite poder de polícia, segundo o que foi antes examinado, porque não é lei e não encontra amparo em norma legal, isto é, não tem sustentação no bloco de legalidade, o que é imprescindível, segundo lição de Grau (1993). Recentemente, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o Relator da Apelação Cível nº 2006.70.08.001267-3/PR, confirmou sentença invalidando autuação e multas aplicadas pela Autoridade Marítima, com base na Lei nº 9.537/97 e no Decreto nº 2.596/98, porque a lei não tipificou as condutas ilícitas, tratando apenas das penalidades a serem aplicadas e do procedimento administrativo para impô-las. Entendeu o Relator que: Ainda que a lei, na forma dos arts. 3º e 4º, atribua à autoridade marítima competência para promover a implementação e a execução da lei - a fim de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação -, e lhe confira atribuições para elaborar normas para habilitação e cadastro dos aquaviários e amadores, tráfego e permanência das embarcações nas águas sob jurisdição nacional, e realização de inspeções navais e vistorias, entre outras atribuições, não há, como bem referido pelo Julgador a quo, um mínimo de normatividade das infrações na lei a fim de autorizar o administrador a completar os seus termos da determinação das condutas proibidas e na escolha das penalidades aplicadas. Só com a edição do Regulamento de Segurança do Tráfego Aquaviário, aprovado pelo Decreto nº 2596/98, houve a tipificação das infrações e as penalidades correspondentes, na forma do art. 11 e seguintes. Nessa medida, o decreto em questão preencheu o vácuo legislativo de forma ilegal, inovando na ordem jurídica, vez que somente a lei pode criar sanções administrativas e pecuniárias, como já assentado na jurisprudência pátria, sob pena de violação ao princípio da legalidade. (BRASIL. TRF4, AC nº 2006.70.08.001267-3/ PR. Relator Des. Federal EDGARD ANTÔNIO LIPPMANN JÚNIOR. Julgamento 24/09/2009. Publicado DE 14/10/2008) Com tal fundamento resultou a decisão a seguir reproduzida. INFRAÇÕES. TRÁFEGO AQUAVIÁRIO. DECRETO Nº 2596/98. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. Não subsistem as multas aplicadas à Parte Autora com fundamento no Regulamento de Segurança do Tráfego Aquaviário, aprovado pelo Decreto nº 2596/98, por ofensa ao princípio da legalidade. Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao apelo e à remessa oficial, tida por feita, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. (BRASIL. TRF4, AC nº 2006.70.08.001267-3/PR. Relator Des. Federal EDGARD ANTÔNIO LIPPMANN JÚNIOR. Julgamento 24/09/2009. Publicado DE 14/10/2008) Para esta concepção tem sido oposto que, em sociedades dinâmicas, o legislador é incapaz de prever todas as situações de fato, obrigando-se a deixar espaço para atuação do Juiz ou do Administrador que poderia, não só subsumir fatos a conceitos legais, www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 64 mas valorá-los, agindo semelhantemente ao legislador. Nessa tese, o decreto regulamentar também teria a finalidade de completar o sentido da norma jurídica incompleta para esclarecer seus dispositivos. O legislador não delegaria a competência política, mas a competência técnica para formulação das normas. Nisso estaria o fenômeno da deslegalização segundo o qual a competência para regular algumas matérias complexas se desloca da lei para outras fontes normativas. Não tendo conhecimento técnico nem aproximação com os fatos a regular, o legislador faz a norma com generalidade suficiente para abrigar todas as situações. Então, como o objeto da Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário é salvaguarda da vida humana no mar, a segurança da navegação e a prevenção da poluição por parte de embarcações, todo ato regulamentar que restringisse direitos e liberdades individuais com esse escopo seria um ato legal, uma vez observados os limites legais para eventuais sanções. E de limites legais para aplicação de penalidade a LESTA tratou. O fundamento legal para que fossem tipificadas infrações no Decreto nº 2596/1998, que aprovou o Regulamento de Segurança para o Tráfego Aquaviário, estaria no art. 3º da LESTA, segundo o qual cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução desta Lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação, no mar aberto e hidrovias interiores, e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio. Na mesma tese, a delegação do art. 4º da LESTA que atribuiu à Autoridade Marítima competência para elaboração de normas para segurança da navegação e para o tráfego marítimo, não é política, mas estritamente técnica. Há, pois, a possibilidade de um entendimento de que o legislador quis elaborar uma Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, com princípios e regras gerais, atento à dinâmica da navegação, deixando as particularidades para o Regulamento e para a normatização administrativa, evitando que uma desatualização precoce prejudicasse a adoção de medidas necessárias para alcançar o escopo da lei. Assim, a LESTA conteria normas principiológicas e teria atribuído à Autoridade Marítima a disciplina dos princípios enunciados. Registrou-se em Relatório do Projeto de Lei nº 4.259/1993 que foi evitado proliferação de vinculações das penalidades com diversas infrações, transferindo-se essa incumbência ao Poder Executivo “de maneira a facilitar eventuais ajustes que se entendam necessários para abrandar ou enrijecer o tratamento dispensado aos transgressores” (BRASIL, 1993). Todavia, essa tese não se ajusta às conclusões do primeiro capítulo desde trabalho, acerca dos fundamentos, características e limites do poder de polícia. Admitir-se uma amplitude tal da norma que permita ao Administrador tipificar condutas e estabelecer penalidades, restringindo direitos e liberdades individuais segundo princípios gerais da lei, equivale a admitir- se para fundamento do poder de polícia o vago princípio da predominância do interesse público sobre o particular e a existência de um poder de polícia genérico. Ademais, é controverso o entendimento de que o art. 3º da LESTA, dispondo que cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução desta Lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação, autoriza a Autoridade Marítima a tipificar condutas e estabelecer penalidades, porque o que está ordenado é a implementação e a execução da lei. Se a lei não contém norma sobre infração e penalidade, não há o que implementar e executar. Por isso, é de se entender que a Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário atribuiu à Autoridade Marítima competências para elaborar normas sobre tráfego aquaviário, segurança da navegação e prevenção da poluição por www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 65 parte de embarcações, mas não lhe atribuiu poder de polícia administrativa para exigir o cumprimento das normas que edite. AULA 40 Poder de polícia de segurança da Autoridade Marítima Já com a polícia de segurança atribuída à Marinha não se observa o mesmo óbice que impede o exercício regular da atividade de polícia administrativa. Há previsão do exercício do poder de polícia por parte da Autoridade Marítima na Lei Complementar, na Lei ordinária e nos Decretos que regulamentaram a Patrulha Costeira, hoje denominada Patrulha Naval, ainda que se trate de competência concorrente com competência da Polícia Federal. Ocorre que a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, atribuída à Marinha pela Lei Complementar que trata da organização, do preparo e do emprego das Forças Armadas, corresponde a uma atividade de polícia de segurança pública ostensiva. Nesse ponto, há concorrência de competências entre Marinha e a Polícia Federal, em que pese ter sido alterada a denominação da Polícia Naval, substituída por Inspeção Naval, e os esforços para manter a Lei nº 9.537/1997, Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, na esfera da polícia administrativa. Ainda que por outro instrumento, mantém-se a Autoridade Marítima competente para atuar na repressão de delitos, no mar a e nas águas interiores, autorizada a realizar tarefa que, na competência da Polícia Federal, é intitulada de Polícia Marítima. Dispõe a Constituição Federal: Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; [...] § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: [...] III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; [...]. Assim, a Polícia Marítima é uma atividade de competência do Departamento de Polícia Federal (DPF). Essa atividade é exercida, em âmbito nacional, pela Divisão de Polícia Marítima, Aeroportuária e de Fronteiras da (DPMAF) do DPF e, regionalmente, por Unidades de Polícia Marítima, com atuação nos portos e mar territorial brasileiro. Tem por objetivo a prevenção e a repressão aos ilícitos praticados a bordo, contra ou em relação a embarcações na costa brasileira, e a fiscalização do fluxo migratório no Brasil, sem prejuízo da prevenção e repressão aos demais ilícitos de competência do DPF, podendo estender-se além do limite territorial, ressalvadas as normas específicas da Marinha do Brasil. Também compreende providências e medidas necessárias à segurança de portos, terminais e vias navegáveis que não constituam competências específicas das Polícias Civil ou Militar ou das Forças Armadas [2]. As tarefas de segurança pública nos portos e no mar territorial brasileiro são atribuições da Polícia Federal que constituem a Polícia Marítima. Então, a Polícia Marítima engloba atividades de polícia de segurança pública, com o policiamento ostensivo, preventivo, e de polícia judiciária, porque é atribuição do DPF instaurar os procedimentos investigatórios para apurar a prática de delitos federais. Todavia, o DPF autolimitou sua atividade de polícia marítima aos portos e ao mar territorial. Assim, restam os demais espaços marítimos jurisdicionais brasileiros, devendo-se ter em conta a existência de áreas afastadas dos portos, dentro do mar territorial, para alcance das quais não www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 66 está aparelhada a Polícia Marítima. Nesses espaços, é perceptível que só a Força Naval poderá atuar devendo-se interrogar se a ela que não está atribuído poder de polícia de mesma natureza do atribuído à Polícia Federal na área marítima. Cabe a advertência de que as atribuições da Policia Marítima não se confundem com as atribuições cometidas à Autoridade Marítima pela Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, relacionadas, exclusivamente, à salvaguarda da vida humana, à segurança da navegação e à prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas fixas ou suas instalações de apoio. A Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, se contivesse hipóteses de infrações e sanções, legitimaria o exercício de uma polícia administrativa do tráfego aquaviário, mas não o fez. Entretanto, a Lei Complementar nº 97/1999, em seu art. 17, inciso IV, atribuiu competência à Autoridade Marítima para implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessário, em razão de competências específicas. Esta última é uma atribuição de poder de polícia com outra natureza, pois se trata de polícia de segurança, de mesma natureza daquela que está atribuída à Polícia Federal nos portos e no mar territorial. Para execução dessa atribuição de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, conta a Autoridade Marítima com o “Serviço de Patrulha Costeira” que tem entre seus objetivos os de colaborar com a fiscalização da pesca e com a repressão ao contrabando e ao tráfico de drogas, como dispõe o art. 1º da Lei 2.419, de 10 de fevereiro de 1955: Art. 1º É instituído o Serviço de Patrulha Costeira com os seguintes objetivos: a) defender, em colaboração com o Serviço de Caça e Pesca, do Ministério da Agricultura, a fauna marítima, a flora aquática e fiscalizar a pesca, no litoral brasileiro; b) prestar assistência médica, profilática e farmacêutica, aos habitantes da zonas litorâneas desprovidas de recursos; [...] f) auxiliar os serviços de repressão ao contrabando e ao comércio ilícito de tóxicos; [...] O Decreto nº 64.063, de 05 de fevereiro de 1969, regulamentou a Lei 2.419/1955, inovando quanto a uma tarefa de “assegurar o cumprimento da Legislação Brasileira no mar territorial, zona contígua e plataforma submarina”, conforme art. 2ª, alínea a. Art. 2º Às Fôrças e Navios empregados no Serviço de Patrulha Costeira serão atribuídas as seguintes tarefas: a) patrulhar as áreas dos Distritos Navais em que estiverem navegando, de maneira a assegurar o cumprimento da Legislação Brasileira no mar territorial, zona contígua e plataforma submarina, respeitados os acôrdos internacionais ratificados pelo Brasil; [...] A seguir, o Decreto nº 5.129, de 16 de julho de 2004, alterou a denominação da Patrulha Costeira para “Patrulha Naval”, estabeleceu regras de abordagem e de apresamento de embarcações, bem como de uso de força, com tiros de advertência e diretos, contra embarcações infratoras, além de dispor que a Patrulha Naval tem a finalidade de “implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, em águas jurisdicionais brasileiras, na Plataforma Continental brasileira e no alto-mar”, conforme Parágrafo único, do Art. 1º: Art. 1° A Patrulha Costeira, instituída pela Lei nº 2.419, de 10 de fevereiro de 1955, passa a ser denominada Patrulha Naval. Parágrafo único. A Patrulha Naval, sob a responsabilidade do Comando da Marinha, tem a finalidade de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, em águas jurisdicionais brasileiras, na Plataforma Continental brasileira e no alto-mar, www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 67 respeitados os tratados, convenções e atos internacionais ratificados pelo Brasil. Pode-se supor que é irregular um Decreto atribuir à Marinha um poder de polícia para abordar, visitar, inspecionar e apresar embarcações, assim como para usar a força, até o afundamento, contra embarcações infratoras. Mas deve-se recordar que o poder de polícia para execução de tais tarefas tem fundamento expresso na Lei Complementar. Dispondo a Lei Complementar nº 97/1999, art. 17, inciso IV, sem remeter à Lei Ordinária, que cabe à Marinha implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual quando se fizer necessário, em razão de competências específicas e dispondo a Lei nº 2.419/1955 sobre a Patrulha Costeira, resulta que o Decreto nº 5.129/2004, apenas dá fiel execução à Lei. O fundamento do poder de polícia da Patrulha Naval está na Lei Complementar. Não aproveitaria essa conclusão à tese de que caberia esse mesmo fundamento legal à polícia administrativa preconizada no Regulamento de Segurança do Tráfego Aquaviário. Diverso do comentado na seção anterior, aqui há norma legal atribuindo competência à Autoridade Marítima para exercer a atividade de polícia, determinando- lhe a implementação e a fiscalização de leis e regulamentos, em águas jurisdicionais brasileiras, na Plataforma Continental brasileira e no alto-mar. Não se está aqui falando de uma fórmula genérica e principiológica da lei, como se dá com o Regulamento para a segurança do Tráfego Aquaviário, mas de norma concreta a que há de se referir o ato administrativo. A motivação de uma abordagem de embarcações em alto mar será sempre a prática de algum ilícito tipificado em leis ou regulamentos com base legal. Então, constatada pela Patrulha Naval uma transgressão a lei ou a regulamento, por parte de embarcações, no mar, ou em águas interiores, incide a norma da Lei Complementar que o Decreto nº 5.129/2004 repete, legitimando e obrigando à atuação da Patrulha Naval, função que, inclusive, não pode deixar de ser exercida. Por outro lado, o amparo direto à intervenção está na Lei que tipifica e sanciona o delito ou a irregularidade constatada. Isto é, enquanto a LESTA, no seu art. 3º, atribui à autoridade marítima competência para promover a implementação e a execução da própria LESTA, que, por sua vez, não estabelece infrações e sanções a serem aplicadas aos particulares, disso resultando, tecnicamente, a inexistência do poder de polícia administrativa do tráfego aquaviário, a Lei Complementar nº 97/1999 atribuiu à Autoridade Marítima a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos do Estado, no mar e nas águas interiores, o que se traduz em poder de polícia de segurança, para aplicar as sanções das leis eventualmente inobservadas. Portanto, com o comando genérico da Lei Complementar é possível a Autoridade Marítima abordar e apresar embarcações e tripulações dedicadas a prática de contrabando ou tráfico de entorpecentes, por exemplo. Mas, esse mesmo comando da Lei Complementar não fundamenta o exercício da polícia administrativa de segurança do tráfego aquaviário porque não há lei tipificando eventuais condutas contrárias às normas de segurança do tráfego aquaviário editadas pela Autoridade Marítima. Ainda que, em eventual apresamento de embarcação pela Patrulha Naval em conseqüência da prática de ilícito, o infrator deva ser apresentado às autoridades competentes, Polícia Federal, Receita Federal ou IBAMA, permanece o poder de polícia da Autoridade Marítima para reprimir o ilícito. É que, como se viu, incumbe à Autoridade Marítima implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em www.posugf.com.br Poderes Administrativos: Regulamentar e Disciplinar 68 razão de competências específicas. Deste modo, é válido concluir que o poder de polícia da Autoridade Marítima na Patrulha Naval tem a mesma natureza daquele atribuído à Polícia Federal no exercício da Polícia Marítima, exceto quanto à função de polícia judiciária. Isto é, a Autoridade Marítima tem poder de polícia de segurança no mar e nas águas interiores, aí exercendo, como se viu no capítulo inicial, uma função administrativa, o que lhe impõe a interferência para repressão de ilícitos constatados. Ainda que o fundamento do poder de polícia da Autoridade Marítima para o exercício da Patrulha Naval esteja nas leis e regulamentos do Estado, cujo cumprimento lhe compete fiscalizar e exigir na área de atuação, percebe-se que a finalidade da norma que lhe atribuiu esta competência é a segurança coletiva, função essencial do Estado como ordem normativa que regula o mútuo comportamento dos indivíduos, cogitando-se de segurança do Estado na comunidade internacional e de segurança individual nos limites do próprio Estado, buscando proteger a comunidade nacional das atividades prejudicais à ordem social. O “poder de polícia” de que, ultimamente, se fala em conceder às Forças Armadas tem a mesma natureza daquele atribuído a outros setores da Administração Pública. É como acontece com a fiscalização sanitária, de pesos e medidas, de tráfego aéreo, tráfego marítimo, tráfego rodoviário. As Forças Armadas sempre detiveram o poder de limitar direitos e restringir liberdades, na defesa interna, em garantia da lei e da ordem, por requisição de qualquer dos Poderes do Estado. Na atual Constituição as Forças Armadas encontram respaldo para atuar na defesa e garantia dos poderes constitucionais. “Com efeito, na defesa interna as Forças Armadas sempre puderam e podem limitar a liberdade/direito de qualquer pessoa desde que necessário à ordem pública.” (AMARAL, 2002). Deste modo, atendida a previsão legal, não é inusitado o exercício de atividades de polícia pelas Forças Armadas e nem seria necessário intitular as Forças singulares de “Autoridade Aeronáutica” ou de “Autoridade Marítima” para o exercício de tais atividades. Isto é, deve-se concordar que se aplica ao exercício do poder de polícia de segurança da Marinha a constatação a seguir reproduzida: A expressão leiga “dar poder de polícia ao Exército”, ao que parece, se refere ao poder de prender alguém (dar voz de prisão). Sucede que esse poder nem mesmo a polícia judiciária detém hoje em dia. É que, o art. 5º, LXI da CF/88 determina que só juiz e mediante ordem escrita e fundamentada, pode prender alguém (ou mandar prender). A polícia, qualquer delas não prende, apenas cumpre ordem judicial de prender. Não sendo assim, só mesmo em flagrante a polícia pode prender alguém, essa prisão é deferida, também, ao cidadão comum. Nem uma outra autoridade tem esse poder de polícia estremo, ou seja, prender alguém. Todavia, a prisão em flagrante delito (ié, no ato do crime, ou logo após o seu cometimento/ perseguição) sempre foi deferida a todos os cidadãos, como direito/faculdade, sendo dever legalmente imposto às autoridades da segurança pública (todos os segmentos policiais: civis, PM, federais, Forças Armadas). Esses últimos no exercício do poder-dever de garantir a lei e a ordem desde que provocadas pelos poderes constitucionais (p. ex. o Poder Executivo federal/Presidente da República).( AMARAL, 2002,) Aula 1 CLASSIFICAÇÃO DOS PODERES PODER VINCULADO Aula 2 PODER DISCRICIONÁRIO Aula 3 Aula 4 ALCANCE DA DISCRICIONARIEDADE Aula 5 Aula 6 Aula 7 Discricionariedade na evolução do Estado Aula 8 Fundamentos da discricionariedade Aula 9 Discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados Aula 10 Aula 11 PODER HIERÁRQUICO Aula 12 PODER DISCIPLINAR Aula 13 PODER REGULAMENTAR Aula 14 Teoria acerca do Poder Regulamentar do Executivo Teoria tradicional Aula 16 Teoria crítica Aula 18 Análise de jurisprudência Aula 20 ADI 487 (MC) Aula 21 Questão Orçamentária (ADI 1287) Aula 21 Política tarifária para fins de redução de consumo de água (AgrRE 201.603) Política econômica (RE 203.954) Aula 23 O Decreto Autônomo e o Supremo Aula 24 Controle Prévio das Leis INTRODUÇAO PODER DE POLÍCIA AULA 26 PODER DE POLÍCIA: NOÇÕES BÁSICAS AULA 27 PODER DE POLÍCIA E PRINCÍPIOS AULA 28 PODER DE POLÍCIA E ESTADO AULA 29 UMA NOVA VISÃO DO PODER DE POLÍCIA AULA 30 LIMITES  DO PODER DE POLÍCIA AULA 31 Poder Legislativo e Executivo AULA 32 AULA 33 ANATEL E O PODER DE POLICIA AULA 34 ADIN 1.668-5/DF - O PODER DE BUSCA E APREENSÃO DA ANATEL AULA 35 LEI N.º 11.292/2006 RESTABELECE O PODER DE APREENSÃO. AULA 36 LEI COMPLEMENTAR 97/99 AULA 37 AULA 38 Polícia administrativa do tráfego aquaviário AULA 39 Óbice ao exercício do poder de polícia do tráfego aquaviário AULA 40 Poder de polícia de segurança da Autoridade Marítima


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