Parmênides - Da natureza
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2'd "' R M E José Trindade Santos Da natureza Parmênides &dito= © 2000 by José Trindade Santos Diagramação Victor Tagore Capa Leonardo Gonçalves Impressão: Thesaurus Editora S337d Santos, José Trindade Da natureza - Parmênides I José Trindade Santos.- Brasília : Thesaurus, 2000. 124 p. 1. Filosofia da natureza 2. Parmênides, filósofo grego I. Título CDU 113 CDD 113.2 Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo com a lei. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópi a, gravação ou informação computadorizada, sem permissão por escrito do autor. THESAURUS i::D!TORA DE BRASÍLIA LTDA. SIG Quadra 8, lote 2356- CEP 70610-400 - Brasília, DF. Fone: (61) 344-3738- Fax: (61)344-2353 Composto e impresso no Brasil Printed in .. · .. : ';:'f!!:--=.,·.· • A Giovanni Casertano "Questa vita e um continuo sacrificio" Sumário PREFÁCIO ............................................. ..... ........................ 11 FRAGMENTOS ..... ...... ....... .. .................. .. ... ........... ............. 15 PoR QUE SABER? ................................................... .. .. ....... . .............. . 33 O saber é coletivo e pessoal .......................................................... . 34 O que há para saber? ............................................ .. ...................... 35 O peso da memória ....................................................................... 36 Transmissão e criação cultural na Antigüidade ............................... 39 A ESCRITA ...................................... ................................. .... ........ 40 A produção dos primeiros textos da Cultura Grega ........................ 43 A Cultura e Literatura gregas até ao séc. V .................................... 45 A formação da tradição filosófica grega ......................................... 4 7 INTERLÚDIO POLÍTICO ........ .. .................. .............. · .................. . 47 Política e Cultura .................. ... .................... .... ....... ..... . ; ........ .. ..... . 50 Os sofistas ....... .................................................. ... .. ...................... . 51 A FILOSOFIA ..... .... .... .................................................................. 54 PLATÃO .......... . ............. . .................................................................. 54 ARISTÓTELES .............................................. . .... ... .... . ....................... . 56 O Poema de Parmênides ................................................................ 57 INTRODUÇÃO À LEITURA DO POEMA DE PARMÊNIDES .... . ..... ........ .. 59 História das cópias do poema ................. ...................... .......... ....... 60 O texto do poema ................ ... ... .......................... .. ............ ... .... .... 63 Sentido desta edição do Poema de Parmênides ............................... 64 INTERPRETAÇÃO DO POEMA DE P ARMÊ IDES ........ . ............ 65 1. o PROÊMIO .. .. .. .. .. .. ... .. .. . .............. ..... .... . ............ ........................ 65 1.1 As PALAVRAS DE ACOLHJME ;TO AO JOVE.\1. .... . .......... .................. 68 1.2 REALIDADE E APARÊ CIA ........................... ......................... ..... 69 2. A via da Verdade .......................... .... .................... ..................... 76 2.1 OS DOIS CAMINHOS ........................................ ......................... 76 NoTA sOBRE ALÊTHEIA . ............. ........... ........................................ 87 A LOCALIZAÇÃO DOS FRAGS. 4 E 5 .. ....................... ......... .. .. ........... 88 2. 2 DESENVOLVIMENTO DO ARGUMENTO: A NOVA VIA ...................... 90 3. A Via da Opinião ... ................... ................. ....... . ......... . .. ... ...... 101 3. 1 0 ALCANCE DA V IA DA VERDADE .. . ....................................... 102 3. 2 As DUAS FORMAS ........................................................ . ....... 104 3. 3 A POSITIVIDADE DA OPINIÃO .............. . ................................. , 107 3. 4 ASTRONOMIA E FISIOLOGIA .. . ................................................ 108 3. 5 0 PENSAMENTO E A MISTURA....................................... . .... . .... 111 3. 6 A OPINIÃO E OS NOMES ......................... ............................ ... 112 4. Parmênides e a herança eleática .. .............................................. 113 .4. 1. 0 FRAG. 2 REVISITADO .......... .. ............................................ 114 4. 2 A CRÍTICA À SOFÍSTICA ............................................. ........ .... 117 4. 3 0 SABER DOS SOFISTAS .. .. .. . .. .. .. . .. . .. .. .. .. .. .. .. .. .. . .. .. . .. . .. .. .. .. .. .. . 122 4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OS SOFISTAS ............ .. ... . ............ 125 4.5 CONCLUSÃO: NÓS E PARMÊNIDES ............................................ 126 PREFÁCIO Esta obra apresenta, uma tradução anotada e um comentário seqüencial do Poema de Parmênides, acompanhando uma versão do texto Grego. A tradução é precedida de UI\1 ensaio dedicado à aborda- gem da questão do saber. O trabalho dirige-se especialmente aos estudantes e procura pro- vê-los com uma versão cientificamente aceitável de um dos textos capi- tais da Cultura Ocidental, à qual agrega alguns instrumentos de traba- lho, com a finalidade de facilitar a sua compreensão. Como se explicará adiante, e pelas razões aí apresentadas, esta versão não pode confundir-se com uma edição do poema. Apoia-se na edição realizada por Hermann Diels, Parmênides' Lehrgedicht, griechisch und deutsch, Berlim, 1897. Não parte, portanto, de um cotejo das fon- tes manuscritas e das respectivas variantes, ou mesmo das principais edições do poema, às quais se refere incidentalmente e de passagem, só quando é preferida uma lição divergente da acima citada. Este esclarecimento é importante pelo fato de a tradução apre- sentada ser devedora do trabalho de análise filológica e crítica realiza- do por muitas outras edições e traduções do poema, em diversas lín- guas, às quais não faz a referência devida. Menciono apenas, e porque seria grave não o fazer, a dívida para com duas traduções do poema: em Português, a de Maria Helena da Rocha Pereira, in Hélade, Cohnbra, 1959 (1 a edição), e, em Italiano, a edição e comentário de Giovanni 11 Casertano, Parmenide il metodo la scienza l'esperienza, Napoli, 1978 ( 1 o edição). A estes estudioso quero aqui acrescentar, ao meu agrade- cimento, a minha homenagem. Como é de esperar, .um texto com a en ergadura do Poema de Parmênides tem vindo a merecer, especialmente ao longo do séc. XX, a detida atenção da crítica, atravé da apre entação de muitas edições e comentários, tanto globais, quanto centrado numa ou noutra questão do argumento. A finalidade e ambição de te trabalho não justificam a referência a essa monumental tarefa, nunca acabada, para a qual con- tribuirá apenas na medida das limitações já expressas. Esta advertência é ditada não apenas pelo rigor e exigência do trabalho científico, mas sobretudo para que se tome manifesto que a interpretação aqui apresentada carece da referência ao acervo de bibli- ografia filológica e crítica, sem a qual nunca teria chegado a poder ser formulada 1 • A única justificação que se oferece para essa falta reside na finalidade que presidiu à sua concepção e redação. O diálogo com a tradição multissecular de interpretação crítica do Poema de Parmênides pesaria enormente sobre a sua compreensão, sobretudo àqueles que o vão abordar, pela primeira- e talvez última - vez. Para benefício desses, passo agora a sugerir o modo como devem realizar a tarefa de se apropriarem das indicações e pistas aqui semeadas. 1. A versão bilíngüe do texto do poema, que inicia a obra, deve ser utilizada sobretudo como referência e oportunidade de visualização global do texto. Para além das poucas divergências assinaladas, limita- se a seguir a edição de Diels, no texto estabelecido e na ordem pela qual são apresentados os fragmentos. Essa ordem, que a tradição impôs, 5 Ainda assim, as pouquíssimas referências bibliográficas feitas, de todo indispensáveis, não de- vem ser confundidas. De um lado, acham-se as fontes-. textos antigos-, com os quais se estabele- cem relevantes relações; do outro, os comentadores que se pode ignorar. Em qualquer dos casos, a função que desempenham no texto é secundária: ou servem de apoio a um argumento, ou tese apresentada; ou apontam uma via de investigação possível. As personagens referidas e as siglas das suas obras acham-se explicadas em qualquer obra de introdução ao estudo do pensamento antigo, como o clássico de G. S. Kirk e J. E. Raven, The Presocratic Philosophers, Cambridge, 1966 (trad. port. Os filósofos pré-socráticos, Gulbenkian, Lisboa, 1979). 12 _': __ .-· · ,.-.,t · •· • - r será questionada adiante, mas nunca alterada. Isto por exem- plo, que, apesar de se propor a sua localização entre os fragmentos 1 e 2, o fragmento 5 nunca deixa de ser referido por esse número; e assim para os casos análogos. Na parte dedicada ao comentário, a tradução do poema será repetida pari passu. Tanto aí, como na tradução inicial, é da maior importância a habituação da referência aos fragmentos, identificados pelo respectivo número, seguido de um ponto '.', quando precedem a indicação de versos. Estes podem aparecer sozinhos, ou emparelhados por um hífen '-', ou uma vírgula ','. Por exemplo: 8 (ou B8, adiante explicado) refere esse fragmento; 8. 2, o verso 2 do fragmento 8; 8. 34- 41 a seqüência de oito versos, habitualmente referida como o "sumário da via da verdade"; 8. 38, 53, os dois versos do frag. 8 em que apare- cem formas do verbo onornazein (nomear). 2. O ensaio sobre o saber deve ser encarado como uma introdu- ção temática ao texto e ao seu comentário. Debate, de modo superficial e sem pretensões, a constituição da questão do saber na Grécia clássi- ca, procurando evocar a adesão simpática dos leitores, a quem porventura nunca terá sido proposta nesta perspectiva. A pouco fre- quente intrusão da linguagem poética pelo discurso de divulgação cien- tífica constitui uma opção de incerta eficácia. Também aqui se calou a oportuna referência a muita e variada bibliografia de difícil acesso a estudantes. Para facilitar a leitura e compreensão, esse texto é dividido em curtas seções, com titulação centrada. Essa decisão traduz e· pretende sugerir que não reproduz um argumento seqüencial. É antes constituí- do por um percurso, quase caleidoscópico, onde se vão descobrindo tópicos que convergem numa visão panorâmica da Cultura de uma época, convocada de uma pluralidade de perspectivas. Deve ser enca- rado mais como matéria para meditação e reflexão pessoal do leitor do que como abordagem dogmática e científica do tema tratado. Para os que quiserem entrar imediatamente no texto do poema, esse capítulo poderá ser abordado depois do comentário. 13 3. A última parte do texto é integralmente dedicada ao comentá- rio do poema. Começa por uma curta introdução que descreve sucinta- mente as vicissitudes pelas quais o texto passou até atingir a forma com que é hoje apresentado ao público. A entrada no poema é assinalada pela paragrafação numérica, inserida à margem, de forma a salientar a integração dos tópicos, na ordem pela qual são abordados. Estes são quatro: as três partes em que consensualmente se divi- de o poema, seguidas de um comentário ao modo como este foi recebi- do pelos filósofos e pelos sofistas gregos - 1. O proêmio; 2. A via da Verdade; 3. A via da opinião; 4. Parmênides e a herança eleática (cada um deles articulado e subdividido em parágrafos distintos). A repeti- ção dos algarismos iniciais significa que o parágrafo seguinte faz parte do anterior, enquanto a mudança indica a passagem à outra questão. A inclusão de notas com titulação centrada quer dizer que estas devem ser lidas como apêndices ao que se disse na seção em que se acham, mas que a sua relevância para o argumento é marginal. Devo ainda uma palavra de agradecimento a todos aqueles que 1n:e auxiliaram com a leitura atenta de alguma das sucessivas versões por que foi passando o texto, até atingir a forma atual. Começo por Adriana Nogueira, que me auxiliou em inúmeras revisões do texto, e não posso deixar de mencionar Maria José Figueiredo, Helena Ramos, Pedro Vidal e Graça Pina, além do revisor, cuja competência e acribia já se tornou entre nós lendária, Senhor Manuel Joaquim Vieira. Devo- lhes a chamada de atenção para muitas passagens duvidosas, erradas e imprecisas, que afetavam a sua compreensão do texto. José Trindade Santos 14 FRAGMENTOS Bl '(rrrrm Tal J.l.E <j>Époumv, oaov T' E:rrl. 8uJ.l.OS' Í.Kávm, TTÉJ.l.TTOV, ETTEL 11, ES ó8ov TTOÀÚ</>TJJ.l.OV ayouam 8aLJ.l.ovos-, KaTà rrávT' aCJTTJ <PÉpEL d8óTa <PwTa- <f>EpÓJ.l.llV" yáp !J-E TTOÀÚ<f>paCJTOl <f>ÉpOV 'L-rTTTOL 5 apJ.l.a TLTa(vovam, KOUpm 8' ó8àv . . 8' E:v XVOLTJLCJLV '(EL aúptyyos at8ÓJ.l.Evos- (8oLOí.s yàp E:rrEC yETo 8wwToíaLv KÚKÀOLS' àll<f>oTÉpw8Ev), OTE CJTTEPXoLaTo TTÉJ.l.TTELV 'HÀ.Lá8Es- Koupm, rrpoÀL rrouam 8wJ.l.aTa NuKTÓS, ·lO ELS' <f>áos-, waáJ.l.EVm KpáTwv arro XEPCJL KaÀÚTTTpas-. Ev8a TTÚÀm NuKTÓS' TE Kal. "HJ.l.aTÓS' dm KEÀEÚ8wv, Ka[ a<f>as- ÚTTÉp8upov clj.l</>LS' EXEL Kal ÀálVOS' ov8ós-· mJTaL 8' aL8ÉplaL TTÀf)VTaL J.l.EyáÀOLOl 8upÉTpms· Twv 8E_ rroÀúrrowos- EXEL KÀTJL8as- 15 rrap<PáJ.l.EVm Koupm J.l.aÀaKÔLGL ÀÓyotCJL v rrôaav E:m<j>pa8Éws-, ws- a<Pw óxila clTTTEpÉWS' WCJELE TTUÀÉwv arro· Tal OE 8upÉTpwv xáall' àxavEs TTOL TjCJaV àvaTITáf..LEVaL TTOÀUXáÀKOUS 16 B1 r··-·;_:. · ... -... "'" , Fragmento 1 Os corcéis que me transportam, tanto quanto o ânimo me impele, conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso da divindade, que leva o homem sabedor por todas as cidades. Por aí me levaram, por aí mesmo me levaram os habilíssimos corcéis, 5 puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho. O eixo silvava nos cubos como uma siringe, incandescendo (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente o impeliam de um ede outro lado), quando se apressaram as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite, 1 O para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que as [escondiam. Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia, encimado por um dintel e um ombral de pedra; o portal, etéreo, fechado por enormes batentes, dos quais a Justiça vingadora detém as chaves que os abrem e fecham. 15 A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras, persuadindo-habilmente a erguer para elas por um instante, a barra do portal. E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar, 17 ãÇovas- EV aúpLyÇLv EL\[Çaam 20 yó!-l<Pms- KGL TTE pÓV"flWLV àp"flpóTE. pa 8L, auTÉWV leus- Exov Kovpm KaT' éíp11-a Kal. 't nnouç. KGL 11-E 8Eà npó<Ppwv Ú1TE&ÉÇa o. xépa 8E XELpl 8E6 TE E ÀE\J, w8E 8) EíTOÇ <f>áTO KGL 11-E 1Tpü0"f1Ú8a. W KOVp' à8avÚTOWL auváopo:;- lJ, 25 '( nrroLs- Ta[ aE <f>Épouaw iKáv<,Dv 8w, xa'Lp ', ETTEL OUTL O"E f.!.Ôl pa KaKi] TTE VÉECJ8m ó8óv yàp àTT' àv8pwTTwv EKTOS' TTÚTou E.aTív), àÀÀà 8ÉfHS' TE 8LK"f1 TE. XPEW 8É CJE TTÚvTa TTu8Éa8m EV 'AÀ"f18d TlS' EUTTEL8Éos- àTpE 11-ES 30 8óÇaç, TaL:;- ouK EVL TTLO"TLS' àÃÀ' Ell-TTTJS' Kal. TaÚTa ws- Tà 8oKoÚvTa 8oKLJ.lWS' ELVaL 8Là TTaVTC)Ç TTÚVTa TTEpwvTa. BZ EL 8' ãy' E.ywv EpÉw, KÓf.!.LCJaL 8E au !1-U8ov àKoÚaas-, a'( TTEP ó8ol. JlOVVaL da L voflam · JlEV cmwç EO"TL\J TE Kal WS' OUK EO"TL EllJaL, TIEl8ous- E.an KÉÀEu8oç ('AÀT)8ELT]L yàp ÓTT"flbEL), 5 8' WS' OUK EO"TLV TE KGL WS' XPEWV EO"TL ELVaL, TOL <f>pá(w TTavaTTEU8Éa EJ.lJ.lEV àTapTTóv· 18 o ih E yàp a v yvo[ T]S' TÓ YE 11- EOV (ou yàp àvuaTÓV) oÜTE <Ppáams-. um atrás do outro, os estridentes gonzos de bronze, 20 fixados com pregos e cavilhas. Por aí, através do portal, as jovens guiaram com celeridade o carro e os corcéis. E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão direita tomando, e com estas palavras se me dirigiu: "Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais, 25 tu, que chegas até nós transportado pelos corcéis, Salve! Não foi um mau destino que te induziu a viajar por este caminho- tão fora do trilho dos homens-, mas o Direito e a Justiça. Terás, pois, de tudo aprender: o coração inabalável da realidade fidedigna 2 30 e as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína. B2 Mas também isso aprenderás: como as aparências têm de aparentemente ser, passando todas através de tudo. Vamos, vou dizer-te - e tu escuta e fixa o relatoque ouviste- quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar: um que é, que não é para não ser, é caminho de confiança (pois acompanha a verdade); 5 o outro que não é, que tem de não ser, esse te indico ser caminho em tudo ignoto, pois não poderás conhecer o não ser, não é possível, nem mostrá-lo [ ... ] ·.: .. .. :·r. ~ ! 2 Preferimos a lição eu:rm8Éoç (eupeitheos : Sexto Empírico Adversus Mathematicos VII 111: "fidedigna) à tradicional e mais frequente e'ÓKUKÀÉoç(eukykleos: Simplício De caelo 557, 25), por sustentar a oposição entre os vários termos com as raízes ÕOK-, rrn8-/ mot-, que encontramos no v. 30 ("crenças dos mortais" /"confiança verdadeira"). Em abono de eukykleos pode dizer-se que indicaria a circularidade da verdade (vejam-se os frags. 5 e 8. 43). Dados os óbvios méritos de ambas as lições, a preferência é justificada pela importância desempenhada pela família de termos, no contexto do proêmio. 19 !B B-+ BS B6 TO yàp aiJTO voELV EOTLV TE Kal. ELVGL. ÀEuooE 6' Ofl.WS' ànEÓvTa vówL napEÓvTa ou yàp TO EOV TOU EÓVTOS' EXECY6aL OÜTE OKLDVáll-EVOV TiáVTT)L TiáVTWS' KUTà KÓall-OV OÜTE aUVlOTáll-EVOV. Çuvov 6É 11-o( ÊaTLv, ÓTITIÓ8EV apÇWilaL. TÓ8L yàp TiáÀLV 'LCOilaL au8Lc;. To ÀÉYELv TE voôv T' E:ov EflflEVm · Ecrn yàp E1vm, fl.T)DEV 6'ouK Eanv· Tá a' Êyw cppá(Ea6m avwya. npWTT)S' yáp a' àcp' ÓOOU TaÚTllS' <ELpyw>, auTàp E1TEL T' àno ELDÓTES' OUOEV 5 nÀáTTOVTaL, 6(KpavoL · cXfl.TJXUVLT) yàp Êv auTwv L8úvEL 1TÀaKTOV vóov· oí. OE cpopouvTm KWcpOL ÓflWS' TUcpÀOL TE, TE6T)1TÓTE S', aKpl Ta cpuÀa, ots- To nÉÀELV TE Kal ouK ELVaL TauTov VEVÓfl.WTaL Kou TauTóv, návTwv 6E naÀL vTponós E:an KÉ ÀEu8os. 20 B3 [ ... ] pois o mesmo é pensar e ser. B4 Nota também como o que está longe, pela mente se toma firme mente presente: B5 B6 pois não separarás o ser da sua continuidade com o ser, nem dispersando-o por toda a parte segundo a ordem do mundo, nem reunindo-o. [ ... ]para mim é o mesmo por onde haja de começar: pois aí tomarei de novo É necessário que o ser, o dizer e o pensar sejam; pois podem ser, enquanto o nada não é: nisto te indico que reflitas. Desta primeira via de investigação te <afasto> 3 , e logo também daquela em que os mortais, que nada sabem, 5 vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade lhes guia no peito a mente errante; e são levados, surdos ao mesmo tempo que cegos, aturdidos, multidão indeci sa,que acredita que o ser e o não-ser são o mesmo e o não-mesmo, para quem é regressivo o caminho de todas as coisas. 3 Reconstituição conjecturai de Di eis - dpyw (eirgô) - "afasto" (termo que ocorre em 7.2). Nesta situação, em que qualquer opção é consentida ao intérprete, são-lhe exigidas boas razões para apresentar uma nova sugestão. Por exemplo, N .-L. Cordero Les deux chemins de Parménide Paris, 1984, 24, 132-144, propõe apl;EL (arxei) "começarás", para argumentar que na Via da Verdade a deusa aponta apenas dois caminhos: "que é" e "que não é". Mas a interpretação não colheu grande apoio entre os estudiosos. 21 ll7-llS 7.1 OU yàp TOUTO bO!lTJl Ell'Ql llll EOl'Ta· à H à a v TTja6' ci cj)' ó6ou 6L( E 1 pyE t•<'rrwa fJ.JlbÉ a' E:8oç noÀÚTTELpcw ó6(w KaTà .... ,, 1• .. ' , ' , l'l•J!la!' aaKOTTOl' OllllCl KQL TJXT)EO"O"al 1 OKOUT]l' .'i KCÚ yÀ.t0craav. KpLl'aL 6E. À.Ôyt·JL noÀubTJPll ' D.Eyxm· H.l E-Ç EflÉ8Ev pT] 8Él'Ta. // f.l<Íl'OS' 6' ETL f-!.U8oç cJ6oí:o ÀELTTETQL l:JS' EaTll'" TOÚTT)l 6' ETTL EaaL TTOÀÀà fláÀ', l;JS' ci y ÉVJlTOl' EC)ll KOL cil 1 l•JÀE8pÓl 1 EO"Tll', EaTL yàp ouÀOflEÀÉS' TE Kal. ciTpEflES' ciTÉÀEaTol'· .'i ou6É mn' ou6' EaTm, ETTEl l'Ul' EO"Tll' ÓflOU TTât•. É!v, auvEXÉs-· T(va yàp yÉt•l'av m'nou: TTÓ8El 1 auÇT]8Év: ou6' EK EC,ll'TOS' E-ácrmu cj)áa8m a' ou6E l'OEll' . OU yàp cj)aTÓl' OUbE l'OT)TÓl' ECJTLL' é)muç OUK EO"TL. TL 6' av fllV KOL XPÉOS' t0paEl' 10 ÜCJTEpov npóa8Ev, Tou fl.T)6Evóç cipÇáfJ.El'Ól', cj)uv: OÜTlo.lS' TTáflTTClV TTEÀÉvm XPEloJl' EaTLl' ouxl. ou6É TTOT' EK EÓVTOS' TTLaTLOS' Laxús- )'L)'VEa8aL TL nap' auTó- TOU évEKEV OUTE yEvÉa8m OUT' ÔÀÀua8m àviiKE Êl.LKJl XOÀ.áacwa TTÉbT)LaLV, !.'i Ó.À.À., EXEL. 6E: KpLCJLS' TTEPL Toúnuv E-v TL0L6' E:crnv· E:anv ouK EGTLv- KÉKpLTm 6' ovv, àváyKT], flEl' Eâl' àVÓT]TOl' àl'l•Jl'U!lOl' (ou yàp ECJTLv ó6cíç), 6' l,]crTE TTÉÀELV Kal. Elvm. m;Jç 6' a v E TTE lT, à TTÓÀ.OL TO E <Íl': TTl;JS' 6' a v .KE yÉ VOLTO; .20 EL yàp E)'EVT', OUK EaT(L), ou6' EL TTOTE flÉÀÀEL ECJECJ8m. TL;JS' )'Él'EGLS' f-J.El' KOL aTTUCJTOS' ()À.E8poç. ou6E: 6LatpETÓV EO"Tll ' , ETTEL nât• EaTLl' hj.Hílm·· OUbÉ TL flâÀ.ÀOl', T<'J KEl' Elp)'OL flll' CJUVÉXEa8m. ou6É TL XELPÓTEpcw. TTâl' 6' Ef-J.TTÀEÓV ECJTll' EÓVTOÇ. 25 n0L ÇuvEXES' nâv E-anv· E-cw yàp EÓI'TL TTEÀ.á(EL. auTàp ciKLVT)TOV fJ.EyáÀt•Jl 1 El' TTELpOCJL 6Eaf-J.l;ll 1 ECJTLV avopxol' GTTOUCJTOl', ETTEL )'Él'EaLç KCÚ tÍÀE8poç 22 B7-B8 7.1 Pois nunca isto será demonstrado: que são as coisas que não são; mas afasta desta via de investigação o pensamento, não te force por este caminho o costume muito experimentado, deixando vaguear olhos que não vêem, ouvidos soantes 5 e língua, mas decide pela razão a prova muito disputada 8.1 de que falei. I I Só falta agora falar do caminho que é. Sobre esse são muitos os sinais de que o ser é ingénito e indestrutível, pois é compacto, inabalável e sem fim; 5 não foi nem será, pois é agora um todo homogêneo, uno, contínuo. Com efeito, que origem lhe investigarias? como e onde se acrescentaria? Nem do não-ser te deixarei falar, nem pensar: pois não é dizível, nem pensável, visto que não é. E que necessidade o impeliria 10 a nascer, depois ou antes, começando do nada? E assim, é necessário que seja de todo, ou não. Nem a força da confiança consentirá que do não ser nasça algo ao pé do ser. Por isso nem nascer, nem perecer, permite a Justiça, afrouxando as cadeias, 15 mas sustem-nas: esta é a decisão acerca disso - é ou não é - ; decidido está então, como necessidade, deixar uma das vias como impensável e inexprimível (pois não é via verdadeira), enquanto a outra é autêntica. Como poderia o ser perecer? Como poderia gerar-se? 20 Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser. E assim a gênese se extingue e da destruição se não fala. Nem é divisível, visto ser todo homogêneo, nem num lado é mais, que o impeça de ser contínuo, nem noutro menos, mas é todo cheio de ser 25 e por isso todo contínuo, pois o ser é com o ser. Além disso, é imóvel nas cadeias dos potentes laços, sem princípio nem fim, pois génese e destruição foram afastadas para longe, repelidas pela confiança verdadeira. 23 TTJÀE !J.áÀ' É1TÀáX8T]aav, ámDGE bE 1Tl0TLS' áÀT]8f]s-. TalJTÓV T' EV TalJTWL TE !J.ÉVOV Ka8' ÉaUTÓ TE KELTaL 30 xoihwc;- EIJ.1TE8ov au8L !J.ÉVEL. yàp 'AváyKT] rrdpaToc;- E:v 8Ea!J.o'iaw EXEL, TÓ IJ.LV àwpls EÉpyEL, oüvEKEv ouK àTEÀEÚTTJTov To E:ov 8É!J.LS' Elvm · E0TL yàp OUK E:m8EUÉS'" E:ov 8' av rraVTOS' E:8ELTO. TavTov 8' EGTL vod TE Kal. oÜvEKEV EGTL VÓT]IJ.a. 35 ou yàp Õ.vEu To v E:óvTos-, E: v rrE<PaTLG!J.Évov EGTLV, TO voév· ou8EV yàp Tr( E0TLV E0TaL aÀÀO rrápEÇ TOV EÓVTOS'' E1TEL TÓ YE Mo'Lp' E1TÉ8T]0EV ovÀ.ov àKLVT]TÓV T' EIJ.EVm · TWL rrávT' ÓVÓ!J.aaTm oaaa KaTÉ8EVTO 1TE1TOL8ÓTES' ELVaL àÀ.T]8f], 40 y[yvEa8a[ TE Kal. ÕÀÀua8m, Elva[ TE Kal. oux[, KaL TÓ1TOV àÀ.À.áCJGE LV 8L á TE xpóa <Pavov à!J.E L v. auTàp E1TEL TTELpas- TTÚIJ.aTOV, TETEÀE01J.ÉVOV E0TL rrávTo8Ev, EUKÚKÀou CJ<PaC PllS' E:vaÀ[ yKLov ÕyKwL, IJ.Eaaó8Ev taorraÀES' rráVTT]L · TO yàp ouTE TL IJ.EL(ov 45 ouTE TL rrEÀÉvm XPEÓv E:an TTJL TTJL. ouTE yàp ouK E:ov ECJTL, TÓ KEv rraúm IJ.LV iKvE'ia8m ELS' Ó!J.Óv, oih' E:ov Eanv orrws- E,LTJ KEv E:óvTos- TTJL IJ.âÀÀOV TTJL 8' E1TEL TTâv E0TLV aauÀov· ot yàp rrávTo8Ev la o v, Ó!J.WS' E: v rré paaL KÚpE L. 50 E:v TWL aOL rraúw maTov ÀÓyov vÓT]IJ.a à!J.<PI.s- àÀ.T]8dT]s-· 8óÇas- 8' àrro Tov8E !J.áv8avE KÓGIJ.OV EIJ.WV E:rrÉwv àrraTT]ÀOv àKoúwv. !J.Op<Pàs- yàp KaTÉ8EvTo 8úo yvw1-1as- ÓVO!J.á(ELv· Twv IJ.Lav ou XPEwv EGTLV -E:v WL rrETTÀaVT]!J.ÉVOL ELCJLV- 55 TàvT[a 8' EKpLvavTo 8úws- Kal. CJTHJ.aT' E8EvTo 24 .. .. ··}tfíi .!CTi .. v .. , O mesmo em si mesmo permanece e por si mesmo repousa, 30 e assim firme em si fica. Pois a potente Necessidade o tem nos limites dos laços, que de todo o lado o cercam. Portanto não é justo que o ser seja incompleto: pois não é carente; ao [não-] ser, contudo, tudo lhe falta. ' ·. ·- '''1. O mesmo é o que há para pensar e aquilo por causa de que há 35 pensamento. Pois, sem o ser- ao qual está prometido-, não acharás o pensar. Pois não é e não será outra coisa além do ser, visto o Destino o ter amarrado para ser inteiro e imóvel. Acerca dele são todos os nomes 4 40 que os mortais instituíram, confiantes de que eram reais: "gerar-se" e "destruir-se", "ser e não ser", "mudar de lugar" e "mudar a cor brilhante". Visto que tem um limite extremo, é completo por todos os lados, semelhante à massa de uma esfera bem 45 rotunda, em equilíbrio do centro a toda a parte; pois, nem maior, nem menor, aqui ou ali, é forçoso que seja. Pois nem é o não-ser, que o impeça de chegar até ao mesmo, nem é possível que o ser seja maior aqui, menor ali, visto ser todo inviolável: pois é igual por todo o lado, e fica igualmente nos limites. 50 Nisto cesso o discurso fiável e o pensamento em torno da verdade; depois disso as humanas opiniões aprende, escutando a ordem enganadora das minhas palavras. E estabeleceram duas formas, que nomearam, das quais uma não deviam nomear- e nisso erraram-, 55 e separaram os contrários como corpos e postaram sinais, 4 Lendo ÓVÓ!J.UO'tUL (onomastai) em vez do tradicional EO'tm (onom'estai) de Diels), apoiado em L Woodbury "Parmênides on Names" Essays in Ancient Greek Philosophy I Anton & Kustas (eds.) Albany 1971, 145-162. 25 '----- Xtuplç âTT' TTJL !lEI' <PÀoyóç ai8ÉpLOv TTup, ov, [àpmóv] EÀa<Pp<Ív. Étuun0L TTávToaE TttJtJT<Ív, 8' n.JiJTóv· àTàp KàKELVo KaT' ainó Tàtn(a vúKT' TTUKLVÓv bÉfl-GS' TE . 60 TÓv am Eyt;J 8LáKOITfl-OV EOLKCÍTa TTái' Ta <PaTLÚJ. H'! úJS' ou f1 TTOTÉ TL ç aE f3poTt01' yvt•J flfl TTapE ÀáaaflL. athàp TTávTa <Páoç KGL vuÇ ÔVÓfl-GITTaL Kal Tà KaTà a<PETÉpaç 8wáf1ELS' hrl. Tol.a[ TE Kat Totç, TTâv TTÀÉov E-aTiv Ófl-OU <PáEoç Kai. VUKTÓç a<PâvTou wwv àfl<P<>TÉptuv, ETTEL ov8ETÉPL•JL flÉTa flflbÉv. BIO ELGflL 8' ai8Ep(av TE <PúaLv Tâ T EV ai8ÉpL TTW'Ta Kal Ka8apâs EVayÉoç À.G!lTTá8oç E'py' à(bflÀa Kai ÓTTmÍ8Et' EÇEyÉt'Ol'TO, E'pya TE KÚKÀt•JTTOç TTEÚITflL TTEPL<PoLTa .'i KGL <Púall', 8E: Kal oupavóv àfl<Pis- EXOVTa Bll Bl2 26 EV8Ev ffl.EV yàp] E'<Pu TE KGl t;JÇ fll V ayoua(o) ETTÉbfliTEV f'AváyKn yal.a Kal TE Çuvóç yáÀa T' ovpávLOV KGL ÔÀUfl-TTOÇ EGXGTOS' aaTpltJV 8Epf-10V fl-ÉVOÇ y[yvEa8m. aL yàp GTELVÓTEpaL TTUpÓç m 8' ETTL TGLS' vuKníç, fl-ETà 8E <PÀ.oyóç ·LETaL a1aa· · .. ' separados uns dos outros: aqui a chama do fogo etéreo, branda, muito leve, em tudo a mesma consigo, mas não a mesma com a outra; e a outra também em si contrária, a noite sem luz, espessa e pesada. 60 Esta ordem cósmica eu te declaro toda plausível, B9 Blü Bll B12 de modo a quenenhum saber dos mortais te venha transviar. Mas, uma vez que tudo é chamado luz ou noite e o conforme a estas potências é dado a isto e àquilo, tudo é igualmente cheio de luz e de noite obscura, ambas iguais, visto cada uma delas ser como nada. E conhecerás a natureza do éter e no éter de todos os sinais e dos raios da pura lâmpada do sol as obras destruidoras, e de onde nascem, e conhecerás as obras que rodam em tomo da lua de olho redon do e a sua natureza, e saberás do céu que os tem à volta, e de onde nasce, e como guiando-o a Necessidade o obriga a conter os limites dos astros. ... como a terra e o sol e a lua e o éter que a tudo é comum e a via láctea e o Olimpo extremo e o calor ardente dos astros forçados a nascer. Pois as coroas mais estreitas enchem-se de fogo sem mistura e as que vêm à noite depois destas, mas com elas lança-se uma parte de chama. 27 28 BU lll.J BIS ElJ 8E jlÉO"lt.ll TO' wv oaÍJ.lWV Ti návTa KU0Epvât. tráVTa yàp <T]> OTV)'EpülO TÓKOU KQL JlLÇLOS' GPXEL TIÉIJ.noua' ãpaEvL 9iiÃu l-HYTJV TO •' E:vavT[ov auTLS' apO"ElJ 8i}, UTÉpwl. TipWTLaTOV flEV • 8EwV flf)TLO"QTO TIÓVTlLllJ VUKTt<f>aES' TTEpt yataV áÀtÚIJ.EVOV áÀÀ.ÓTpLOlJ <Pws- aLEi. rrarrnú vovaa rrpos- auyôs- ÀÍmo. 1\ISa 1\16 B17 n. EV TTJL O"TLXOTTOLLal ú8aTÓpt(ov ELTTEl' TT)V YT)V ws- yap EKaaTOS' EXEL Kpâatv IJ.EÀÉwv noÀurrÀáyKTúJV, TWS' vóos- àv8pwrrmm rrapíaTaTm · Tb yàp auTÓ Eanv brrEp <PpovÉEL IJ.EÀÉúJV <Púms- àv8pc(mmmv Kat rrâau.1 KaL rravT[ · To -yàp rr ÀÉov EO"TL vón1.1a. 8EÇL TEpo'Lmv IJ.EV Koúpous-, Àmo'LaL 8E. Koúpas- BlH femina virque úmulllmeris rum germina misrent, venis informrms diverso ex srmguine virtus temperiem servans be11e condita corpora fingir. ttam si virtutes permixto semine pugnent S tm:jaârmt unam permixto in mrpore. dirae nasrentem gemino vexalmnt semine sexum. Bl3 B14 BlS BlSa B16 ·. ' No meio delas está a divindade que tudo governa; pois em tudo comanda o parto doloroso e a mistura, impelindo a fêmea a unir-se ao macho, e ao contrário o macho à fêmea. Primeiro que todos os deuses concebeu Eros. Facho noturno, em tomo à terra, alumiado a uma alheia luz Sempre à espreita dos raios do sol. Parmênides no poema diz que "a terra tem raízes na água". Pois, tal como cada um tem mistura nos membros errantes, assim aos homens chega o pensamento; pois o mesmo é o que nos homens pensa, a natureza dos membros, em cada um e em todos; pois o mais [o pleno] é o pensamento. B17 À direita os machos, à esquerda as fêmeas B18 Quando a mulher e o homem juntos misturam as sementes de Vênus, a força que se forma nas veias a partir de sangues diver sos, mantendo o equilíbrio, gera corpos bem formados. Se, contudo, misturados os sémens, as forças se opõem, 5 e não fazem unidade, misturados no corpo, cruéis, atormentam o sexo da criança com o duplo sémen. 29 Bl'J oÜTt•J TOL KaTà &óÇm 1 E=<Pv Tá&E KaL PVt' EaaL Kat p.ETÉTTELT' ànú Tou&E Tpa<PÉvTn- TOÍ:S' 8' ÔVojl' avTptuTTOL KaTÉ8EvT' ETTLCJnU<W ÉKÓOTt•Jl. 30 B19 :;:; ,,, ', Assim, segundo a opinião, as coisas nasceram e agora são e depois crescerão e hão-de ter fim. ' .' A essas os homens puseram um nome que a cada uma distingue. 31 PoR ouE SABER? Ninguém nasce por acaso. Ninguém vive sozinho N ão há quem tenha vindo ao mundo por vontade sua. A vida é uma força anônima que demora até achar um nome. Por mais que tenha florido num encontro de desejos. Tudo começa num tempo e num lugar. Como por acaso. Mas só aparentemente. Porque o tempo nunca é só de alguém e o espaço é sempre de muito mais gente. O agora e o aqui já eram de outros antes de serem nossos. De toda uma sociedade, de um país, de um mundo inteiro. Nos quais todos somos, porque deles nascemos. E é para eles que vivemos, apesar de só mais tarde o podermos compreender. Tudo encontramos já feito à chegada. Tudo deixaremos à parti- da. E, contudo, nesse breve instante entre um e outro tempo, tudo é ao mesmo tempo nosso e muito mais que nosso. Gestos de uns, que foram sonhos de outros. Esperanças que hão-de vir a ser memórias. O sempre diverso a brotar, para voltar a convergir no mesmo. 33 .. , ' ~ Í I Nascemos num mundo já pronto: os pais, a casa, o lá fora, e um dia a escola. Só começamos a aperceber-nos disso ao iniciar esse longo, infindável, processo de transmissão, pelo qual recebemos o saber que é de todos. E vamos aprendendo a fazer nossa a diversa experiência de cada um dos que estão conosco. É isso a Escola: o lugar em que cada um começa a aprender a ser ele próprio, ao mesmo tempo que é levado a descobrir os outros. Pri- meiro, o que têm diante de si: família, amigos, colegas, professores, . entre a diversidade das pessoas com quem se convive: entre os parentes presentes e ausentes. Depois, os mais distantes, que já aqui estavam, e os que vieram antes deles. A quem só chega pela decifração dos sinais que deixaram. Em casa, os retratos dos familiares. Na cidade, os nomes das ruas, os lugares, os monumentos. Nos livros, as imagens de outros tempos e de outras gentes. As histórias que deixaram. Assim vamos aprendendo. Até ao dia em que nos acham prontos para enfrentarmos o próprio saber. O saber, esse, começamos por recebê-lo passivamente, Depois vamo-lo gradualmente acomodando à cadeia de decisões pela qual cada vida humana se impõe e se distingue das outras. E, tal como a cada um de nós, assim acontece e acontecerá aos outros. É por tudo isto que o acaso é uma ilusão. Só um nome para designar o que não podemos entender. É também por isto que ninguém nunca está só, mesmo que um dia assim o sinta. O saber é coletivo e pessoal Todos os povos, todas as culturas, todas as nações têm um saber, que contém o reportório do que descobriu e acha importante para a sua sobrevivência. Saber ao mesmo tempo moldado aos contornos da sua identidade. Podemos compreender bem esta dupla natureza do saber pen- sando numa casa, num lar. Vê-mo-lo equipado com tudo aquilo que os 34 que nela vivem usam no seu dia-a-dia. Mas os móveis, utensílios e ador- nos que aí encontramos carregam em si uma memória em que a vida dos que vêm se cruza com a dos que vão, na persistente continuidade da família. O saber constitui, pois, mais um dos campos de batalha em que os humanos travam a sua guerra contra o tempo. De um lado está a unidade do grupo, incessantemente reafirmada, cristalizada na memó- ria que tem de si. Do outro, a sua constante renovação, na diversidade dos que inscrevem na memória coletiva o selo da sua personalidade própria. Unidade e diversidade são perspectivas complementares pelas - quais o saber pode ser abordado. Vê-mo-las concretizarem-se na série de associações que o termo imediatamente desperta: conhecimento, ciência, experiência, habilidade, aptidão ... Nelas a dimensão cole.tiva da informação, tendencialmente teórica, combina-se com capacidade individual de realização, que remete para a prática. O que há para saber? Mas esta complementaridade vai ainda mais longe. Pois o saber cobre, além destas, outras áreas, mais vastas e difíceis de descrever: a percepção e a consciência que cada um tem de si e dos outros, as im- pressões pessoais, só parcialmente transmissíveis, os valores e o con- junto de regras e preceitos deles decorrentes. Tudo isto condensado na atitude que expressa a relação do ser humano com a vida e o mundo que o cerca. Condicionado pela rotina da Escola, que o coloca como sujei- to passivo da aprendizagem, o estudante não tem grande oportuni- dade para se aperceber de quanto o saber invade todo o espaço e tempo da sua existência. Escapa-lhe, portanto, a extensão global do muito que tem para aprender. Por outro lado, o turbilhão das sensa- ções instala-o numa bem urdida ilusão de novidade. Não o deixan- 35 do ver que tudo o que lhe está a acontecer é idêntico, embora sem- pre diferente da experiência por que todos os outros passaram, pas- sam e hão-de passar. No fundo, um erro compensa o outro. Pois, se, por um lado, a sistemática confrontação com o corpo coletivo e teórico do saber objetivo lhe esconde a dimensão pessoal daquele; por outro, o modo como vive "a sua vida" não o deixa aperceber-se de como ela se confunde com as outras, na identidade continuada da existência co- letiva. Só com a entrada na maturidade começa a valorizar a memória. Quando começa a recordar-se de si e da sua história pessoal, quando aprende a reconhecer-se no passado, começa a dar-se conta da longa his- tória de tudo em que afinal sempre se achou inserido. Embora lhe falte ainda uma enorme parte do percurso. Aquela em que acabará por entrever quanto ele próprio não passa de um fragmento de História, por um fugaz instante perdurando na sua própria memória e na dos que o cercam. O peso da memória É e tem sido sempre assim ao longo dos tempos. O grupo sobre- vive atualizando-se em cada um dos seus membros: em quem imprime a sua identidade e de quem recebe um novo e diverso impulso vital. Mas, como se compatibiliza a unidade do grupo com a sempre renova- da diversidade dos indivíduos que o compõem? Como pode a unidade coletiva subsistir através da mudança das gerações? O problema é este. E se é o mesmo em todas as culturas, as estratégias divisadas para o resolver têm variado significativamente. O homem é um animal gregário: não é capaz, nem está equipado para viver sozinho. Depende dos outros para protecção e sustento. Mas é errado pensar que essa dependência liga de modo indiferente todos e cada um dos outros, do mesmo modo. O que acontece é que a interdependência dos membros de um grupo varia e tende a 36 t:E-::· ' Rf'.L!í rt: Cí\ ._. funcionalizar-se, aumentando com o crescimento do grupo e a diversi- ficação das tarefas necessárias à sua sobrevivência. É muito longo o percurso feito pelas sociedades até o momento em que se torna manifesta a sua consciência de si. Tudo o que se pode dizer é que há um momento em que a emergência da identidade coleti- va começa a exigir dos seus membros a organização do território e do modo de vida que escolheu. Estas exigências concretizam-se sobretudo através da definição das instituições em que se concentra o poder polí- tico e da manutenção do quadro técnico-profissional de que depende o quotidiano da coletividade. Que instituições são estas? Como se definem e estabelecem as carreiras profissionais numa sociedade? Cada cultura tem de encontrar a sua resposta para estas perguntas. Mas pode dizer-se que, na sua evolução, a sociedade atinge um grau de complexidade que a obri'ga a resolver um conjunto de problemas. Um é o da concretização da sua identidade através da fixação da sua memória coletiva. Outro o da necessidade de sistematizar o modo de transmissão dessa memória. Um outro ainda será o da habilitação dos jovens para uma participa- ção ativa no funcionamento do todo social. Em duas palavras, o pri- meiro problema é o da emergência do saber. O segundo e o terceiro, sob perspectivas complementares, o da educação. Este é o momento em que o peso da memória se manifesta de forma visível. Até aí à continuidade do grupo bastava a efêmera transmissão oral. Mas desta não ficaram sinais. A não ser nesses textos coletivos de outros tempos, conservados pelos sacerdotes, ou nas narrativas dos feitos gloriosos dos antepassados heróicos, com que os bardos cantavam a identidade e os valores que regiam o grupo. Esta é a parte mais confusa do processo. Que memória pode- mos ter de saber que só ficou registado na memória dos que já desapareceram? Tudo o que sabemos é que há um momento, e uma sociedade, em que passa a ser confiada a escribas a missão de fixar o saber coletivo em contornos precisos. O próprio registo assume uma dignidade mo- 37 numental, independente das circunstâncias adequadas à preservação da mensagem fixada e dos destinatários por ela visados. O produto final é antes de mais nada, uma narrativa palpitante, recheada de peripécias. Uma história de aventuras, que a muitas outras servirá de modelo e inspiração. E, no entanto, a própria história não é mais do que um artifício, concebido para garantir a fixação de tudo o que se quer registar. Pois a forma da narrativa, moldada em verso ritmado, encadeia nos feitos das personagens míticas um manancial de informações, oriundas de todas as regiões da experiência 5 , que a me- mória assim procura fixar, para com mais facilidade poder reproduzir. Vista deste modo, a composição de um poema, que narra as ori- gens do mundo, dos deuses e dos homens, é uma tarefa gigantesca. Não pode, portanto, ser obra de um único autor. No princípio eram os cantos, que os bardos compunham, ou aprendiam de cor, e recitavam a uma assistência atenta. É desses cantos que se alimenta a memória coletiva, persistente na tradição oral. Até ao dia - séculos mais tarde - em que os versos declamados· começam a ser registados por escrito. Inicia-se então o trabalho complementar do anterior: o de orga- nizar a diversidade dos episódios -as aventuras das personagens indivi- duais -na unidade da narrativa. É aí que o poema começa a definir-se, afirmando-se sobre a variedade dos cantos. Porque o texto escrito é manejável, como a sua fonte oral não era. Fixado, pode ir-se aperfeiço- ando. E as sucessivas correções pelos quais passa vão-no moldando até encontrar a sua forma canônica. É um processo muito complexo. E sobretudo lento. No início era a imagem de um mundo que se pretendia captar. O mundo conquista- do pelo povo cuja história mítica é narrada. Mas o poema inclui tam- bém o saber desse povo, que passa dos feitos dos príncipes ilustres e dos guerreiros à descrição dos modos de vida da população anônima: o 5 A leitura de uma obra como A vida quotidiana no tempo de Homero, de Émile Mireaux (trad. portuguesa, Livros do Brasil, Lisboa, sem data), mostra perfeitamente como a elisão da história, a supressão dos contornos concretos da narrativa, converte os poemas numa enciclopédia, numa organização abstrata da memória e do saber dos tempos homéricos. 38 agricultor, o pastor, o homem do mar. É esse saber que o grupo quer ver transmitido aos vindouros. Mas a sociedade tem de optar. Ou permanece igual a si própria; condenando-se a mudar sempre sem se dar conta do fato, limitada pela imutabilidade do saber que ensina cada geração a seguir as pisadas da anterior. Ou aceita o desafio de se libertar do peso da transmissão oral, adotando a tecnologia que lhe permite fixar as mensagens sem ter que as carregar na memória: a escrita. Transmissão e criação cultural na Antigüidade Esta maneira de apresentar o problema da transmissão cultural é ilusoriamente simples. Quase parece que as sociedades optam pela escrita, como se a tivessem à mão. A verdade é que também neste campo nos deparamos com um processo longo e complicado. Há, porém, aspetos distintos que não podem ser confundidos. Um- a que passaremos a seguir -é o da invenção de um sistema de sinais escritos, capaz de registar os fatos. Uma espécie de fala muda, que se vê, mas não se ouve. Que se lê. Outro; que envolve toda a sociedade, é o que passa pela difusão da nova tecnologia, desde que foi inventada até ao momento em que acaba por se estender aos mais diversos contornos da vida da comunidade. Esse é o mais difícil de perceber, porque dele não pode haver registos 6 • 6 Uma forma indireta de nos darmos conta da dificuldade de compreensão deste processo é atentar- mos no modo como ele continua a imperceptivelmente a transformar-se no nosso tempo. Há menos de cem anos, os homens só podiam comunicar-se uns com os outros pessoalmente, ou através de registos escritos. A entrada na segunda década do século XX trouxe consigo a difusão dos meios de comunicação eletrônicos: as telefonias, os telefones, os gravadores, primeiro de sons, e depois de imagens: as televisões. É a partir de então que a palavra escrita começa a perder o império que mantinha sobre os homens e a existência humana é enriquecida pela adjunção da realidade virtual. Enquanto os nossos avós praticamente só escreviam, os nossos pais habituaram-se a comunicar-se de formas mais vivas, em que a própria presença do emissor da mensagem é simulada. Esse jogo entre o real e o virtual ocupa hoje um peso decisivo na vida dos mais jovens. Quanto tempo gastamos a ver televisão? A ouvir música gravada (ou melhor, quantos de nós já foram a um concerto ao vivo)? A falar ao· telefone (dentro de alguns anos com imagem)? As transformações das tecnologias da comunicação estão criando um novo mundo à nossa volta, sem que nos demos conta disso. 39 O papel capital é sempre desempenhado pela escrita. Mas como é que ela pode agir sobre as mentalidades, condicionando o seu modo de ver o mundo? A sua primeira função reside na libertação da memó- ria do peso da mensagem imposta pela .tradição. Poupada ao esforço exigido pela memorização, a mente adquire a capacidade de observar de fora a mensagem. Tom_fl-se crítica. Nota incongruências. Revolta-se contra o servilismo o m ~ que tradição repetia sempre os mesmos pre- ceitos. Por exemplo, por que é que temos de aceitar aquilo que os anti- gos consideravam certo, quando é claro que já não tem validade hoje? A mais relevante conseqüência do processo assim iniciado é a aparição do novo, da declaração inédita e do seu autor, definido pelos contornos da sua personalidade própria. E, a ele associadas, virão a autoconsciência e o florescer nos outros das sementes do espírito crítico. Assim se declara a revolução cultural. Mas é um erro pensar que a opção por ela se põe isoladamente às sociedades, ou sempre da mesma maneira. Representa um degrau, um patamar, a que as- cenderam em conseqüência de um crescimento social e político con- tinuado, para o qual converge uma imensidão de fatores. É possível .só porque muitos outros obstáculos foram já ultrapassados com su- cesso. A atenção particular que aqui lhe é conferida resulta do enfoque na questão do saber. Deixemos, pois, de parte os outros aspectos. Chegamos, contudo, a um momento em que a história que estamos a explorar já não pode prosseguir sem a identificação dos protagonis- tas. O desafio da revolução cultural começou a apresentar-se às socie- dades do Mediterrâneo Oriental a partir dos finais do IV milênio a.C. Foi aceita por todas. Porém, com estratégias e resultados bem diversos. Fixemo-nos na escrita. A escrita Todo o sistema de escrita associa elementos de duas naturezas: uma visual, outra fonética. A primeira está patente na realidade referi- 40 da, ou na idéia a ela associada, bem como no signo que a representa. Por exemplo, a idéia de 'cavalo' contém a imagem real, ou imaginada, de um cavalo qualquer: visíveis como a figura, ou signo, que a repre- senta (o desenho de um cavalo). Todavia, a escrita pode também refe- rir essa mesma realidade recorrendo à representação do som, ou sons, da palavra usada para a designar. É o q u ~ sucede se optarmos por representar um cavalo pelas letras da palavra 'cavalo'- 'f' -'a' -'v' -'a' -'1' - 'o'-, que representam os sons com que é pronunciada. O sistema de escrita adotado por uma sociedade pode ser esco- lhido entre duas soluções possíveis. Ficar no visível, passando da reali- dade à figura, ou signo, desenhando uma imagem do representado, de modo indiferente aos sons palavra. Ou pode optar por representar a realidade visual através do conjunto de signos representativos dos sons da palavra falada. Em termos práticos a diferença entre um e outro sistema é imen- sa, em variedade, expressão e economia. Pois, enquanto o visual abre diretamente para a ilimitada realidade representada, o fonético, que estabelece a mediação entre duas realidades visuais através da sua re- presentação sonora, recorre a um número definido de signos para re- presentar o conjunto limitado de sons que os falares humanos são capazes de articular 7 • Por outro lado, a infrastrutura (conjunto de elementos de que faz uso) e a superestrutura (sistema dos objetivos e produtos que reali- za) destes dois tipos de escrita vai conduzir a situações praticamente opostas. Se não, vejamos. A escrita pictográfica é "pesada", porque a acumulação de um extenso número de caracteres desenhados: 1) re- quere um suporte material estável- pedra ou argila (osso, madeira ou 7 Em todo o signo linguístico se combinam duas naturezas: a visual e a sonora. A primeira refere- se à própria realidade descrita (tecnicamente diz-se: refere). A segunda, a ela associada, evoca a palavra, o som convencional usado para referir essa mesma realidade. O sistema de escrita que se apoia na natureza visual requere idealmente um signo único para cada entidade descrita. A escrita fonética é, pelo contrário, muito mais economica. A diversidade infinita dos objetos é primeiro representada pela combinação dos sons da fala (que descrevem a realidade através signos fonéticos), sendo estes que depois vêm a ser representados pelo signo escrito. 41 r bambu, na China 8 ) -; além de 2) uma classe de especialistas; portanto 3) uma utilização limitada. Pelo contrário, a escrita fonética é "leve": 1) porque não depende de suportes rígidos; 2) pode - e até deve - ser aprendida por todos, num curto espaço de tempo, enquanto jovens; 3) tendendo conseqüentemente a sua utilização a estender-se a todos os campos da atividade cultural. Os mais antigos sistemas de escrita do próximo Oriente -o hieroglífico (egípcio) e o cuneiforme (sumério) -combinavam as duas naturezas do signo numa escrita ritualista e monumental (adequada à natureza sacra dos textos que começou por fixar). A evolução por que passaram ao longo de dois milênios tendeu a simplificá-la -limitando drasticamente o núme- ro de signos - e a diversificá-la, adaptando-a a finalidades práticas. Toda- via, pelo início do primeiro milênio, outras escritas apareceram no Medi- terrâneo, nas quais o elemento fonético era determinante. Nestes, a diferença residiu na utilização do signo para represen- tar fonemas compostos (sílabas), ou simples (letras). Os primeiros, também cronologicamente, eram mais difíceis de manejar, devido à ambiguidade consentida (resultante da elisão dos sons vocálicos 9 ). Os .segundos, do quais se destaca o alfabeto grego, eram-lhes superiores pela introdução das vogais, separadamente representadas ao lado das consoantes. Somando aos dezessete sons consonânticos (beta, gamma, delta, dzêta, thêta, kappa, lambda, my, ny, ksi, pi, rhô, sigma, tau, phi, khi, psi) as sete vogais (alpha, epsilon, iota, omicron, hypsilon, mais as longas, êta e ômega) estabeleceu-se um sistema limitado de sinais unívocos (representando sempre os mesmos sons, com um mínimo de· · 8 O caso da China (e do Japão) são típicos da opção por um sistema puramente visual (pictográfico), pois aí se desenvolveu uma Literatura que desde sempre viveu alheia à realidade fonética do falar quotidiano. Enquanto a língua literária tradicional é para ver e não para ouvir, só mais tarde se inventará um sistema destinado à representação da fala do quotidiano. A invenção do papel (no séc. li d.C.) e a sua utilização como suporte da criação literária não corresponderá, portanto, nem á restrição do número de signos escritos, nem contribuirá para a aparição de uma esc ri ta fonética. 9 A ambiguidade reside no modo como o signo representa a sílaba falada. Uma vez que só o elemento consonântico (por exemplo, 'p') se acha escrito, é permitida uma gama de vocalizações - ' pa', 'pe', 'pi', 'po', ' pu' -, os quais podem representar palavras diferentes. 42 :··:r:·r c: .. ·.: .. ambiguidades), susceptível de cobrir a totalidade dos sons articuláveis na língua (incluindo variantes dialetais). O sistema era muito mais prá- tico que os dos outros povos por várias razões. Era adequado a supor- tes mais ou menos rígidos (da pedra ao papiro) . . Prestava-se a uma aprendizagem rápida (menos de dois anos, antes da adolescência). Po- dia fixar qualquer tipo de mensagens: não só as recebidas da tradição, mas ainda outras, novas 10 em que a intenção do autor se subrepunha à do escriba. A produção dos primeiros textos da Cultura Grega A entrada no último quartel do séc. VIII a. C. assiste à produ- ção dos textos inaugurais da Literatura Grega. São eles os Poemas Homéricos- a Ilíada e a Odisséia-, o primeiro com mais e o segun- do com menos de de 15.000 versos (cujo cânone só terá sido fixado no início do sé c. VI). Um enorme mistério rodeia a produção destas obras geniais, de ; tão grandes dimensões. Terão alguma base histórica os acontecimentos que narram? Ou, pelo contrário, não passarão de ficções da imagina- ção homérica? Poderão ser atribuídos a um único poeta? Como se explica tamanha perfeição e grandeza de concepção, numa época à qual a escrita é recém-chegada? Todas estas interrogações têm apaixonado os estudiosos das origens da cultura Grega ao longo dos séculos. A hipótese que com maior probabilidade responde satisfatoriamente a todas é a de uma origem oral, que este e um conjunto de obras refletirão durante sé- culos. Notamo-la nos cantos, ordenados em ciclos (Troiano, Tebano, Argonautas, Titanomaquia, Cantos Cíprios), que reaparecem em po- emas posteriores e mais tarde ganham proeminência na Tragédia. 10 Só era preciso inventar a palavra, ou conferir um novo sentido a uma já existente. A escrita limitava-se a representá-la. Num sistema pictográfico, além da palavra, é preciso inventar o signo, acrescentando-o ao imenso número dos caracteres já existentes. 43 ' , I \ \ Homero pode assim ser visto simultaneamente como um fim e um começo: efeito da fixação por escrito de um conjunto de mensa- gens conservadas na memória, tradicionalmente transmitidas pelare- citação oral. A hipótese de u a "literatura oral", resolvendo uma cascata de problemas, abre, ,c ntudo, para uma nova cadeia de interrogações. Que intenção, ou cultural, se oculta por detrás destas obras? Que relação é po.Úível estabelecer - de fato, que traços encontramos nos Poemas-, ligando os mundos de Homero e dos seus heróis? Como se pode explicar a função que Homero continuará, durante séculos, a de- sempenhar na educação dos Gregos? Como resposta à primeira pergunta, só recentemente começou a ganhar consenso a visão "oralista" (que preside á abordagem da Lite- ratura que estamos fazendo). Esta encara o conjunto monumental de produções a que nos temos referido como uma gigantesca enciclopé- dia, um enorme repositório do saber tradicional, em que a memória dos Gregos, a consciência da sua identidade cultural, integralmente repousam. Nos Poemas Homéricos confundem-se dois tempos diferentes: o dos fatos narrados pelos cantos orais e o das descrições e comentários, introduzidos por Homero, quando lançou por escrito os poemas (séc. VIII), sendo ainda possível que, até à fixação do cânone (séc. VI), se tivessem feito acréscimos. Durante todo este tempo, e ainda depois, até ao séc. V, Homero ficará como o "educador dos Gregos". A tradição mitopoética, que dele parte, agrupará as contribuições dos criadores "originais" da Cul- tura e Literatura Gregas que nele se inspiram: a obra didática de Hesíodo (a Teogonia, os Trabalhos e dias e o Escudo de Aquiles) e depois dele a lírica arcaica, monódica e coral, e a partir daí uma variedade de gêneros e autores, cuja presença conflui nos grandes cultores da Tragédia, no séc. V (Ésquilo, Sófocles e Eurípides). Que representam todos estes afinal? Numa palavra, a mudança dos tem- pos, a emergência de uma consciência crítica, produzida pela trans- 44 formação dos costumes e dos valores, pelos novos desafios a que as alterações sociais vão originar. É desta mesma fonte e explorando este mesmo impulso que a Filosofia vai nascer na Grécia. Mais assumida e conscientemente vol- tada para o saber, dependendo das personalidades em quem ele se consubstancia- os Sábios (sophoi) -, toda ela é intrinsecamente gre- ga, provindo dos mais distantes pontos do mundo helênico, do Ori- ente norte, no mar Negro, até às colônias do sul da península Itálica, passando pela ilhas jonicas e pelo litoral da Ásia Menor. Todavia, esta abrangente origem aponta para um único alvo: para a Atenas dos sécs. V-IV. É aí que a vemos florescer, primeiro na intensa revolução cultural a que se associam os sofistas, depois, nas obras dos grandes filósofos: Platão e Aristóteles. Nelas se assume como método de in- vestigação e busca do saber, e depois disciplina em que esse saber se acha fixado e apto a ser transmitido para o futuro, em obras concebi- das e estruturadas pelas regras da composição escrita 11 • A Cultura e Literatura gregas até ao séc. V O processo que conduz à emergência da Filosofia Grega não pode ser desassociado daquele que acabamos muito sucintamente de referir. Um e outro se entendem como manifestações da identidade cultural grega. Num e noutro é a intenção epistêmica (do Grego epistêmê), a preocupação com o saber- coletivamente encarado, ou individualmen- te assumido - que o pode explicar. 11 A história dos primeiros momentos do processo de transmissão, aquisição e fixação do saber grego acha-se condensada em torno destes três figuras tutelares: o sábio, o sofista e o filósofo. O epíteto 'sábio' começa por designar uma personalidade venerável, responsável por qualquer frag- mento de saber que a memória coletiva tenha deciddo fixar, para, no séc. V. referir todo aquele que aspira a ostentar esse estatuto. O termo 'sofista' começa por ser aplicado àquele que se afirma detentor de um saber qualquer, pela transmissão do qual se responsabiliza, para acabar por descre- ver uma personagem típica, hábil na fala e na argumentação. O 'filósofo' é aquele que se dedica à aquisição e exploração de um saber teorético (desinteressado das aplicações "práticas"), que cobre todos os domínios da realidade, de cuja posse efetiva nunca se quer afirma como detentor. 45 I I I I I I I O que inicialmente se nos manifesta como captação de uma memória milenar, genialmente imobilizada "nas potentes cadeias" do verbo homérico, é a um tempo declamação oral e discurso escri- to. É o imenso compêndio de um saber que abarca a história e a geografia do mundo antigo, além de um percurso enciclopédico atra- vés das artes e técnicas do quotidiano, tudo encerrado numa síntese ética e política, que afirma e questiona o próprio sentido da identi- dade cultural dos Gregos: a sua origem e o seu futuro como herdei- ros dos deuses. A poesia didática e a lírica arcaica retomam essa síntese através dos olhares, cada vez mais intensamente pessoais, dos criadores cultu- rais gregos, atentos às exigências dos seus tempos e lugares. É todo um mundo novo - interior e exterior- que o homem reconhece e descreve com surpresa e paixão. A entrada no séc. VI vai trazer a confrontação dos Gregos com outras e sempre novas experiências. Dessa tradição- a lírica- mencionaremos apenas três nomes. Arquíloco revisita e revê Homero, do mesmo modo que Sólon o ajusta- e também a Hesíodo - a uma nova realidade política: a da cidade-estado. A sociedade aberta que começa a despontar, oferece oportunidades a diferentes reações: dos que choram a pureza dos valores perdidos, ou se riem da estranha mistura de que são compostos os humanos. Píndaro caldeia o metal da antiga excelência guerreira no fogo que incen- deia os estádios, propondo uma nova visão do heroísmo. Mas a voz e o olhar dos Gregos alarga-se a outros horizontes. É a exploração da nova geografia do Mediterrâneo e dos povos que o habitam que, com Heródoto, aponta para a fundação da História. É a interrogação sobre a razão de ser de tudo, o questionar da or- dem, do mundo e da vida, o espanto com a sua própria evidência, que conduz à intenção epistêmica de que nascerá a Filosofia. Mas essa história, em que Parmênides ocupa posição proeminente, tem de ser contada de outra maneira. 46 A formação da tradição filosófica grega Se a preocupação com o saber constitui a essência da Filosofia, então é impossível dissociá-la do impulso que desde sempre anima toda a Cultura e Literatura gregas. Se, por outro lado, a reflexão filosófica se dirige a um conjunto de temas e problemas específicos -os que assis- tem à organização e explicação do mundo e da vida - , então como é que deixamos fora dela quantos a estes se dedicaram: os poetas, nome- adamente? Todavia, se a tradição filosófica retoma questões antigas a uma outra luz, ou se concentra nelas de uma forma nova, então há que explicar como e porque isso acontece. E também onde e quando, e com que conseqüências. Numa palavra, se não tem sentido separar a Filoso- fia da Cultura em que nasce e da Literatura que a exprime, na Grécia, é preciso explicar como foi que isso mesmo veio a acontecer (por exem- plo, nas Histórias da Filosofia). Mas para isso teremos de prestar atenção a um conjunto de fatos políticos que ocorreram num tempo e num lugar bem circunscritos, com enormes conseqüências em todo o futuro da Cultura Ocidental. E depois que abordar uma história bem conhecida por uma perspectiva um tanto diferente da habitual. Interlúdio político Os fatos políticos são os que se prendem com a História de Ate- nas, que por mais de um século se confunde com a de toda a Grécia: praticamente do final do séc. VI aos meados do IV a.C. As lutas políticas que tinham dilacerado as cidades gregas duran- te os sécs. VII e VI tiveram contornos bem definidos. Uma aristocracia terra tenente, senhora do Poder e do Direito, subjugava pela força com- binada dos laços de sangue e das armas uma população de agriculto- res, agrupada em torno de centros urbanos. A luta pela posse da terra é em alguns casos conduzida ao limite extremo da guerra civil. Para a 47 I I I I I I I I I I I evitar, ou como conseqüência dela, algumas dessas cidades entregam- se ao arbítrio de um tirano. E é assim que o poder de um único homem e, por arrastamento, da dinastia dos seus descendentes, por algumas décadas, consegue afir- mar-se acima das leis. Esse episódio traz, porém, inesperadas conse- qüências. A política dos tiranos é intensamente "desenvolvimentista". Ao dar novo impulso às atividades produtivas, desenvolvendo as in- dústrias artesanais e o comércio que nelas assenta, o tirano converte a cidade no pólo de atração de uma nova forma de riqueza- a moeda. E, com ela, deixa que uma nova classe de industriais artesãos e comerci- antes se distinga e se aproxime do poder. A luta era, como sempre foi, pela terra. Mas a solução da conten- da passava pela promulgação de leis que sanassem os antigos conflitos, tomando medidas para que não se viessem a repetir. Isso equivalia a redistribuir o poder em bases inteiramente novas. Os tiranos, já o vi- mos, tinham alterado os dados do problema, dando origem a uma nova e inédita forma de riqueza. Mas tinham, na melhor das hipóteses, apenas contribuído para o adiamento da confrontação de uma classe de latifundiários, sempre cada vez mais reduzida, com uma população de expoliados, pelo contrário, cada vez mais numerosa, por vezes redu- zida à servidão nas suas antigas propriedades 12 • Atenas não foi estranha a este processo, embora tenha contribu- ído de forma original para a sua ultrapassagem. No final do séc. VII, a cidade encontrava-se à beira da guerra civil. Foi então escolhido um homem - Sólon - para arbitrar o conflito. Mas não quis agir como um tirano. Criou legislação com vista à sua superação: acabou com a servi- dão, perdoou as dívidas dos pobres aos latifundiários, tirou algum po- der às instituições tradicionais, criando outras, e ordenou um censo que dividiu a população em quatro classes, segundo o rendimento das suas terras, expresso em medidas de cereal e de líquidos (azeite ou vinho). Promulgada esta legislação, deixou o poder e a cidade. 12 A perda da liberdade e da cidadania e a conseqüente redução à escravidão são consequências da impossibilidade de pagar as dívidas contraídas. 48 Era movido por objetivos+ opostos: impedir a concentração do poder na oligarquia das antigas famílias, deixando intocada a estrutura política da cidade. O que equivale a deixar os ricos no poder, evitando que enriquecessem cada vez mais, à custa do empobrecimento dos ou- tros. Por isso sempre recusou a redistribuição da terra. Mas a profundi- dade das mudanças operadas não consentiu que se fizessem sentir ime- diatamente. A situação foi aproveitada pelos Pisitrátidas, que se mantiveram no poder ao longo de quase todo o séc. VI. Até que, após o "tiranicídio" de Hípias - o terceiro e último da dinastia -, ao entrar na derradeira década do século, um novo Sólon apareceu em Atenas. Chamava-se Clístenes e teve a oportunidade de lançar as bases do sistema democrático. Através de uma completa reordenação do território, conseguiu que os laços das antigas solidariedades fossem desfeitos e novas insti- tuições criadas, que permitissem à segunda classe censitária (a dos ca- valeiros) abeirar-se do poder. Mas as forças em oposição mantinham o conflito latente. De forma que ninguém sabe o que teria sucedido, se o rei dos Persas não tivesse invadido a Grécia. A disposição das cidades para o acolher, e das classes no seu seio, foi diversa 13 • Uma, porém, se lhe opôs com determinação e o deteve no campo de batalha: a democracia Ateniense, em Maratona. A vitória de 490, renovada em Salamina, em 480, trouxe a hegemonia sobre toda a Hélade a uma cidade arrasada pelas tropas invasoras. Cidade que o ouro dos aliados irá ajudar a reconstruir, urba- na e politicamente. É essa Atenas que, a partir de 480, primeiro os aristocratas, mais tarde Péricles - recorrendo a subsídios e à política monumental dos tiranos-, começarão a erguer em bases inteiramente novas, convertendo-a no grande centro difusor da cultura grega. 13 Os aristocratas, bem como as cidades em que dominavam, mostravam-se dispostas a acolher a supremacia Persa, que por pouco mais se expressaria do que pelo pagamento de um tributo. Pelo contrário, as democracias, construídas sobre a isonomia, a igualdade dos cidadãos perante a lei, . recusavam esse domínio, por saberem que era sobre o corpo dos cidadãos que os encargos haviam de cair. 49 I I I I I I I I I Política e Cultura Foram os aristocratas Aristides e Temístocles que aproveitaram o tesouro da Liga de Delos 14 para a reconstrução de Atenas. E foram também eles que imaginavam a estratégia de fazerem os cidadãos acor- rer à cidade, assegurando-lhes ocupação e sustento 15 • Durante trinta anos, a população urbana continuará a aumentar e com ela o peso . político das instituições democráticas (aquelas em que todos participa- vam, independentemente do seu estatuto social). No entanto, enquanto as instituições de raiz aristocrática tives- sem poder, o perigo de ruptura era real. Foi assim que, em 462, o choque entre o Conselho (democrático) e o Areópago (aristocrático) se verificou. A conseqüência foi a virtual dissolução, ou reconversão, des- te instrumento tradicional do poder hereditário da aristocracia. Pouco depois Péricles assumirá o poder. Não se sabe se é res- ponsável pela lei que alarga a elegibilidade para o arcontado (o mais alto cargo político) à terceira classe censitária (os "compa- nheiros de jugo)". Mas é conhecido o estratagema que mais tarde imaginará para combater o ascendente da aristocracia sobre o povo: · continuar a usar o ouro dos aliados, agora para pagar um salário aos juízes, tirados à sorte. A tradição aristocrática vê nesta medida a degradação da justi- ça pelas instituições democráticas. Ela não pode, porém, ter deixado de ter conseqüências benéficas sobre a cultura da democracia. Até aí o poder não podia deixar de voltar aos aristocratas: fortes, equipados e livres para o usarem em seu proveito. Mas agora, o funcionamento estritamente igualitário das instituições espalhava-o por todos, inde- pendentemente da sua capacidade e competência. Embora só os bem- nascidos continuassem a ser os que dispunham dos meios que lhes 14 Criada em 478, constituia um fundo, destinado a prevenir uma possível nova invasão persa, para o qual contribuiam as cidades gregas aliadas. 15 Criando um exército permanente e uma elite de funcionários administrativos, integrados em insti- tuições sobre as quais repousará o poder, político, militar e burocrático, de Atenas. O pagamento desta burocracia começou por ser feito em gêneros, para só muito mais tarde recorrer à moeda. 50 :: .: s:· ? "'"":"" .... ,. .... ' ' permitiam ser eleitos para os mais altos cargos, onde seguiam uma carreira política. Todavia, com as últimas transformações por que passou o regi- me democrático, são agora concedidas oportunidades aos cidadãos co- muns. A dificuldade reside na formação que deveriam receber. Quem a poderia proporcionar? A educação, na Atenas de meados do séc. V, não se estendia acima do nível primário: ler, contar e talvez escrever, mesmo assim com fluência difícil de avaliar. Onde se poderão achar os mestres aptos a promover este ensino? Os sofistas É costume invocar a chegada dos sofistas a Atenas expressamen- te para satisfazer essa súbita necessidade de habilitação para cargos públicos. Esse fato, contudo, deve integrar-se num movimento muito mais amplo de emergência, e posterior afirmação, de uma "classe mé- dia" urbana, para a qual as carreiras profissionais terão ganho, por alguns anos, uma importância que depois virão a perder. São anos (entre 475 e 450) em que Atenas verdadeiramente se converte no centro da Hélade. Marcados, como já vimos, por uma aflu- ência de gente à cidade, de que res,ultará um aumento gradual do nú- mero de cidadãos. A cidade "cresce" a olhos vistos. E com ela o peso das instituições democráticas, depois do afastamento da aristocracia 16 e da anual reinstalação de Péricles no poder (de 462 até à sua morte em 429). Todavia, a manutenção da estrutura social tradicional, além do custo das recém-formadas instituições, não pode permiti-lo. Em 451, o próprio Péricles porá cobro a essa tendência, restringindo a cidadania aos descendentes de pai e mãe Atenienses. 16 Além do aumento de importância das instituições a que todos tinham acesso, fortalecidas por passarem a ser pagas, da criação de uma burocracia administrativa e de um exército regular, os aristocratas tomam-se alvo do ostracismo: decisão pela qual a Assembleia podia exilá-los de Atenas por um número variável de anos. Deste modo, a democracia protege política e economicamente os mais pobres, ameaçando ao mesmo tempo o poder dos ricos. Começam a tomar-se evidentes os sinais de contração política na hostilidade com que são tratados os estrangeiros. Mesmo assim, a in- fluência dos sofistas continua a fazer-se sentir. Surgem, no entanto, as primeiras manifestações do desagrado que a sua presença provoca: de- cretos censórios e processos, visando o próprio Péricles e a elite intelec- tual que o rodeava (meados da década de 30). Todavia, o início da guerra do Peloponeso ( 431-404), a sub- seqüente morte de Péricles, bem como o êxito das primeiras tenta- tivas bem sucedidas de sacudir o jugo Ateniense, pela parte dos antigos aliados da Liga de Delos, devem ter contribuído para tor- nar ainda mais tenso o clima político em Atenas 17 • Esta hipótese justifica as críticas a uma mentalidade "aberta", de que a "grande geração" dos sofistas, entre os quais incluiremos Sócrates, será o expoente. De início, o sofista talvez apenas tivesse sido alguém que, à ima- gem de Prometeu 18 , invocasse a capacidade de praticar e de transmitir o saber associado a uma profissão. A expansão da classe média nesses anos, associada ao esplendor econômico e cultural de Atenas, contri- bui para o prestígio de que gozarão durante pouco mais de uma déca- da. É que os tempos não tardarão a mudar. Talvez por isso a História só conserve a memória daqueles, pou- cos, cujo saber- como Protágoras e Hípias (nascidos por volta de 490 e famosos já antes da década de 30) -,se estendia a todos os campos. Ou dos que- como Pródico, e mais tarde Górgias (chegado a Atenas no 17 A súbita entrada em Atenas da população rural , fugida à invasão espartana, degrada o modo de vida Ateniense. Declara-se a peste, que vitimará o próprio Péricles. Os altos e baixos das campa- nhas guerreiras agravam a instabilidade da vida. Em 411 a "tirania dos 400" derruba o estado democrático. A revolta que põe cobro ao seu domínio não consegue restabelecer o equilíbrio na cidade. A execução ilegal dos generais vencedores da batalha das Arginusas ( 406), a derrota final de Egospótamos (405) e a entrega do poder à "tirania dos 30" (404) não podem ser alheias ao estado de espírito da cidade que condena Sócrates (399). 18 Antigo semideus, um dos titãs, cuja história é referida por Hesíodo, na Teogonia (5 1 O segs.), e por Ésquilo, na tetralogia Prometeu, de que sobreviveu uma única tragédia: Prometeu agrilhoado. Originalmente encarna a figura ambigua do deus, ou herói, artificioso e desonesto, presente em muitas tradições (Loge, na Edda nórdica; Quetzalcoatl, na mitologia tolteca, etc.). A ambiguidade mantém-se na evolução posterior para a figura do defensor do Homem (é ele o responsável pelo roubo do fogo aos deuses, pela arte da fundição dos metais e pela guerra). 52 ano do nascimento de Platão, 427) -, se tomarão famosos pelos seus ensinamentos sobre a linguagem e a oratória (ou retórica). É destes, conhecidos sobretudo pela imagem fixada nos diálogos platônicos, compostos cerca de meio século mais tarde, que a tradição celebra os êxitos e invejas que despertaram: o fazerem-se pagar, serem seguidos por discípulos e admiradores, questionarem o saber e as cren- ças tradicionais, entregando-se a debates e a argumentos, tão inéditos que a partir deles se cunhou o termo "sofísticos" 19 • Todavia, embora fundada, a concentração exclusiva nesta dimensão da prática dos sofis- tas peca por excesso. Faz esquecer que devemos encará-los como os primeiros intelectuais que o Ocidente conheceu. E que a eles se deve a idéia de um ensino acima do nível primário e a introdução das primei- ras perspectivas críticas sobre a tradição. Todo este processo é contemporâneo do nascimento da prosa grega. O que equivale a dizer ser esse o momento de extensão da escrita à captação da fala do quotidiano, funcionando não mais como memó- ria atual de um tempo passado, mas como memória futura do tempo presente. Decerto o desinteresse dos sofistas pelo saber, bem como a sua orientação pragmática para o poder, notáveis nos debates através dos quais se promoviam, justificam não terem prestado maior atenção à escrita. Embora seja possível pensar que o número de peças que nos deixaram é diminuto por muitas se terem perdido. Mas, mesmo assim, 19 Poderemos considerar tipicamente sofística a completa cisão entre o discurso e a realidade a que se refere (adiante discutida). Esta atitude resulta e pode ser explicada por duas razões de ordem diversa. Por um lado, pela distância crítica com que viam a tradicional exigência de infalibilidade do saber; por outro, pela sua concentração no poder único do discurso. Os sofistas são os primeiros a dar-se conta, e a explorar até às últimas consequências - em polêmica oposição aos filósofos - o fato de a estupidez e a incompreensão humanas poderem e deverem ser usadas como argumento nos debates. Não para o saber, naturalmente, mas para o poder. Tanto sofistas como filósofos constatam a ignorância dos homens. Todavia, enquanto os últi- mos procuram combatê-la através da defesa de um projeto de saber (de valor incerto e sempre discutível), os primeiros percebem as vantagens imediatas, resultantes do seu aproveitamento. A oratória, a persuasão, a demagogia, levam a cabo nas assembléias a função que a erística (ver adiante) desempenha nos debates públicos. Voltaremos com algum pormenor a estas questões, nas quais é sensível a influência exercida pelo Poema de Parmênides. 53 nem a enumeração dos seus títulos sugere obras com as dimensões das de Platão e de Aristóteles. A Filosofia 1. PLATÃO Os sofistas não terão sido, portanto - como o próprio Sócrates 20 não foi-, heróis da escrita. Depois de Homero, esse título cabe antes de todos a Platão. Embora nem sequer nos seja possível apercebermo-nos da motivação que o leva a escrever uma tão extensa obra, cuja compo- sição decerto se estenderá ao longo de toda a sua vida. A primeira função da escrita é mnemónica. Fixar mensagens que a alguém pareceram importantes 21 • Talvez a intenção, apontada pelo filósofo Ateniense, de ter composto os diálogos para " ... se distrair na velhice" (Pedro 276 d), não seja assim tão alheia à utilização que hoje lhes conferimos. Mas quem seria capaz de lhe profetizar uma velhice tão prodigiosamente longa, durante a qual não cessa de "distrair" gera- ções de estudiosos? Acima de tudo, um ponto lhe importa fixar: os diálogos não contêm "a sua Filosofia". Recordações do jovem Sócrates, ecos de anti- gos debates, críticas aos discursos "dos sábios" - nada disso se contra- diz-, tudo cabe na escrita. E converge no esboço muitas vezes repetido das infinitas vias conducentes ao saber. Os diálogos podem até ser lidos como convites à Filosofia, exemplificações do método a seguir, mais do que como veículos doutrinais. No fundo, qualquer das abordagens é legítima, com a única condição de o próprio saber ficar de fora. 20 O fato de Sócrates não ter escrito, bem como a circunstância de a sua influência nas gerações • futuras se exercer exclusivamente através da imagem fixada por Platão, leva-nos a encarar as doutrinas que lhe costumam ser attibuídas, bem como os métodos de investigação que desenvolve, como da responsabilidade do autor dos diálogos em que figura como personagem central: Platão. 21 Talvez seja simbólico que uma das primeiras inscrições em Grego, que a História captou, tenha tão pouca elevação e solenidade quanto pode ter um simples recado, escrevinhado num caco de cerâmica, em que um trabalhador diz ao outro onde deve deixar a serra. Isto significa, à letra, a completa fidelidade para com o sentido próprio do termo 'filosofia': amor ao saber. Perseguição constante em vez de posse efetiva. Entrega total, em cada instante e ao longo de toda uma vida, à busca do saber. Movido pela única certeza de a infalibilidade - marca do saber autêntico - ficar sempre além de todas as tentativas. Escapam-nos hoje as razões deste eterno adiamento do encon- tro com a verdade. E muitos sucumbem à tentação de as encontrar numa exigência mística de absoluto, que depois se teria perdido. Para só reaparecer num ou noutro pensador, fundamente associada ao an- seio religioso. É legítima também essa interpretação. E defensável a sua locali- zação nos diálogos. A exigência de infalibilidade, que aí notamos ser atribuída ao saber, radica na dimensão sapiencial da tradição grega . . Desde Homero que a vemos ser atribuída aos videntes e poetas, que sabem "o que é, o que será, e o que foi antes" (Ilíada I 70). Decerto porque "os deuses" lho ensinaram. Séculos mais tarde, outros poetas, como Xenófanes e de certo modo Heráclito, em quem a busca do saber é plenamente assumida, rir-se-ão-das pretensões de Homero. Parmênides, contudo, apesar de ser um pouco mais novo que eles, não deixará de lhes prestar toda a atenção, ao fazer do seu poema uma viagem ao encontro de uma deu- sa. Da boca de quem sai a mensagem que "o jovem" se limita a fixar, para depois a transmitir aos mortais (frg. 2.1). Por outro lado, a busca do saber nunca deixa de exprimir, em Platão, uma intenção política, a que a dimensão religiosa e cultuai tam- bém nunca será estranha. É o enigma da "sua sabedoria" que leva Sócrates a interrogar os outros homens (Apologia 20 e segs.). Tal como é a via de acesso ao "bem" que as investigações dos diálogos promovem. Esta intenção é-nos hoje perfeitamente estranha. Como poderá um estudante divorciar a busca do saber da sua posse efetiva, depois de ter passado na escola a maior parte da vida? Como pode manter-se indiferente ao fato de não encontrar resposta para as perguntas que mais vivamente o perseguem? 55 As perguntas de Sócrates irritam-no tanto mais quanto lhe pare- ce só ganharem sentido através da destruição de todas as respostas. Todavia, se o impulso que as orienta para o saber se esgota na mera procura, não é então claro que a Filosofia não serve para nada? A resposta a esta pergunta tem de ir mais longe do que a simples consci- ência de haver perguntas que nunca têm resposta. Antes de mais, porque há perguntàs que têm resposta, às quais a Filosofia não pode ser indiferente. Nem superior. Porque há um saber! Que se ensina e que se aprende. Sob pena de a Escola não ter qualquer sentido. E também a vida. 2. ARISTÓTELES Aristóteles dá-se já plenamente conta desse fato. A "sua filoso- fia" passará então pela fixação de todo o saber grego no conjunto tendencialmnte fechado de perguntas a que ele terá de dar resposta. O seu ponto de partida é a pergunta pelo saber. Os que a fizeram foram os "primeiros a fi losofar". A partir destes (com exclusão dos sofistas, · que, como vimos, se não interessam pelo saber) a Filosofia constitui-se como uma tradição de perguntas e respostas, encadeadas limas nas outras, que ele começa por registar. Para depois criticar. E acabar por integrar nas respostas que para elas encontra, posicionando-se no fim da Filosofia. Desta maneira, a tradição de investigação, assente no conheci- mento dos poetas e nos tardios "livros" 22 , em prosa, que resumem "as suas doutrinas" (do final do séc. V), ganha uma expressão literária. E transforma-se em tradição escrita: recolha, comentário e crítica ao sa- ber anterior. A Filosofia torna-se Literatura. Não por se desinteressar da argumentação em que Platão a envolveu, mas por se fixar em tex- 22 Que pouco mais seriam do que resumos de ditos e opiniões correntes, atribuídos a um intelec- tual, copiados nuns magros rolos de papiro. Na Apologia (26 d) Sócrates diz que "os livros de Anaxágoras" custavam nas bancas uma dracma. Sabendo que esse era na altura o salário diário de um trabalhador, será legítimo conjecturar que não levassem mais do que um dia a copiar. 56 tos! A dependência que ainda em Platão se manifesta em relação à oralidade atenua-se até se apagar de todo. Do mesmo modo que o império da pergunta vai ruindo perante a invasão do exército das res- postas em que a reflexão se transforma. Na realidade o processo nunca pode chegar a completar-se por- que há mesmo perguntas que nunca terão resposta. E a Filosofia gira incessantemente em torno delas. É que as respostas de Aristóteles não são definitivas. Mesmo se continuam ainda hoje a fazer sentido para muitos homens. Vai para mil anos que o assédio do imenso edifício do saber aristotélico se mantém, sem que estrutura em que assenta tenha sido totalmente arrasada. Mas não poderemos deixar de conceder toda a razão a Platão, pela sua insistência na dimensão heurística, investigativa, do saber. Não só há perguntas sem respostas, como ainda toda a resposta abre para uma infinidade de novas perguntas. Há um saber que se fixa em infor- mação adquirida. Mas só a reflexão sobre ele pode conduzir à desco- berta de mais saber. A pergunta pelo saber nunca pode ter resposta definitiva. Sob pena de o destruir como saber. O Poema de Parmênides A pergunta pelo saber conduziu-nos ao longo de um tortuoso per- curso. A partir da infância e adolescência de um jovem, passando pelos bancos da escola, até à sua entrada na vida, a que os adultos chamam "ativa". Passamos daí ao exame das circunstâncias em que as sociedades problematizaram o saber, bem como das estratégias que divisaram para promover a sua fixação e transmissão. Orientamos então a atenção para a Cultura Ocidental, cuja história das origens muito brevemente exami- namos, em busca da solução que encontrou para o problema da fixação e transmissão do saber. Chegamos assim à escrita, à educação e à Escola. Forçados a perscrutar as raízes culturais do Ocidente, concentramo-nos na Grécia. A sumária revisão dos fatos políticos rele- 57 vantes deixou-nos perante. a Atenas do século de Péricles, na qual en- contramos algumas respostas que ainda condicionam o nosso presente político. Foi assim que chegamos aos sofistas e à Filosofia. Em todo este processo de fixação e renovação do saber, o Poema de Parmênides desempenha uma função capital. É nele que colhemos a - concentração no saber. É dele que deriva ainda, pela via negativa, a teorização do discurso, que os sofistas explorarão. É finalmente dele que recebemos a ordem de procurar o saber através do debate dialético. É, portanto, para ele que nos voltamos agora. Em busca do senti- do das perguntas que esboça e das respostas que para elas acha. E até do modo como ao longo dos séculos não parou de afetar a nossa pró- pria capacidade de fazer perguntas. 58 INTRODUÇÃO À LEITURA DO PoErYIA DE PARMÊNIDES ' '· O Poema de Parmênides, a que a tradição atribui o título comum à quase totalidade dos "livros" 23 dos pré-socráticos - Sobre a nature- za -,é uma das obras mais importantes não só da Filosofia Grega, mas de 23 A tradição, mais que milenar (estende-se do final do séc. IV a. C. até ao séc. IX d. C.), que tomou a seu cargo fixar o saber dos gregos anteriores a Sócrates, achou bem atribuir a composição de "livros" à generalidade dos pensadores de quem lhe tinham chegado "fragmentos" escritos. A venerável antiguidade dessa atribuição tornou-a inquestionável, aos olhos de muitos estudiosos da Literatura e da Filosofia gregas. Admite-se hoje que alguns desses livros, dos quais não conhecemos referência no séc. IV a. C., possam ter sido atribuídos exclusivamente com base em fontes muito posteriores. De resto, que poderemos entender por um "livro", na Grécia arcaica, ou mesmo clássica? Poderia tratar-se de ditos conservados pela memória oral, mais tarde captados por escrito por outros, com intenções críticas; ou resumidos por copistas, que faziam negócio com a sua venda ao público. Estas e outras possibilidades fazem-nos pensar que talvez não disponhamos apenas de "fragmentos" de obras de considerável extensão, mas de textos fagmentários, eles próprios ecos de opiniões mais antigas. Excetuam-se naturalmente aqueles de que não se pode duvidar que tenham sido compostos, na forma com que os conhecemos, como é o caso dos poemas. Aqui a natureza fragmentária é inquestionável e as grandes dúvidas são sobre a extensão e importância do que se terá perdido. Mas é ainda assim permitido conjecturar que o que não sobreviveu foi deixado de parte por se julgar ter menos relevância, sendo certo que- seja por que razão- deixou de exercer influência no pensamento postetior. 59 toda a Cultura Ocidental. Deriva essa sua importância da influência - implícita, ou explicitamente atestada - que exerce sobre a totalidade dos pensadores gregos posteriores a Parmênides. Se fosse só por isto já seria bastante. Mas nem sequer é aí que reside a mais mais autêntica medida da sua importância. Pelo modo como aborda a questão do saber e a converte no tema central da sua investigação, o Poema de Parmênides foi, e conti- nua ainda hoje a ser reconhecido como a primeira obra em que se definem os princípios reguladores da atividade a que se chama 'pensar'. As suas duas grandes contribuições para a Cultura Ocidental acham-se, portanto, facadas no saber e no pensar. Quanto ao primeiro ·- aspecto, o poema inova por ter deslocado a interrogação, do tradiciQ- nal questionamento sobre a origem e a constituição do cosmos, para a do próprio saber. Quanto ao segundo, a inovação reside no modo como encontra na análise do pensar a solução para o _problema do saber. É como se, confrontado com uma pergunta e a indefinição gerada pela sucessão das diferentes respostas que a tradição regista, o investiga- dor buscasse, através do rigor dos procedimentos que desenvolve, a força para impor a sua resposta. Surpreendente é ainda que, na análise levada a .cabo, venha a princípios que ainda hoje tutelam o pensamen- to: da identidade, contradição e excluído, invocando ainda uma versão do princípio da razão suficiente em apoio da opção que segue. Este recurso implica uma inédita valorização dos processos formais do pensa- mento (dependentes das suas regras de funcionamento e metodologia), em detrimento da natureza material do saber (patente na especificidade das questões que aborda). Uma vez mais, é como se o interesse da investigação se afastasse do qu!! e do porque das questões, para se centrar no como das perguntas e das respostas. História das cópias do poema Todos os pensadores gregos- não é excessivo repeti-lo- manifes- tam a influência de Parmênides. Porém, mais alto que o de todos os 60 outros, o reconhecimento do valor dessa influência acha-se muitas ve- zes atestado nas obras de Platão e de Aristóteles: sobretudo no diálogo Sofista e na Física. E, no entanto, por paradoxal que pareça, se dispuséssemos só dos testemunhos destes dois filósofos, o nosso conhecimento do Poema de Parmênides seria diminuto. É aos discípulos dos dois maiores filóso- fos gregos, próximos e longínquos, que devemos a fixação do texto do poema do Eleata 24 . O primeiro foi que sucedeu a Aristóteles à frente do Liceu. Na sua obra As opiniões dos Físicos, terá fixado a totalidade dos textos em que se achava condensado o saber dos gregos que ante- cederam Sócrates. Não sabemos se terá copiado a totalidade do poema, que teria diante dos olhos, visto que a obra se perdeu (sobrevivem hoje apenas partes consideráveis do seu resumo em dois livros). Nem sabemos du- rante quanto tempo uma, ou outra, versão da obra de Teofrasto terá suportado o desgaste do tempo 25 • Todavia, depois da cópia parcial, que nos chegou numa obra de (filósofo céptico do séc. II d. C.) e da referência de (a quem devemos o frag. 4), o número de exemplares em circulação deve ter baixado o suficiente para que os neoplatônicos Proclo e Simplício tivessem, no séc. V, decidi- ,..,___ - - do copiar partes consideráveis do poema 26 • De forma que foi sobretudo graças aos esforços deste último que a extensão da influência de Parmênides na tradição grega chegou a poder ser hoje apreciada. 24 Parmênides nasceu em Eleia (no sul da Península Itálica) , no início da última década do séc VI a. C. 25 Lembremos que na Grécia clássica os escritores utilizavam o papiro para fixar as mensagens que confiavam à História. Este material -importado do Egito - não resistia, em condições normais de temperatura e humidade, mais de uns sessenta anos. Enterrado nas quentes e secas areias do deser- to, algumas cópias mantiveram-se legiveis até terem sido descobertas, em finais do século passado. Isso significava que, assim que as inevitáveis manchas de bolor começassem a invadir os rolos em que estavam escritos os livros, era necessário mandar fazer outra cópia: sempre uma de cada vez, lembremo-lo! 26 O próprio Simplício declara (Física 144.26): "As linhas de Parmênides acerca do único ser não são muitas e eu gostaria de as apensar a este comentário tanto como confirmação do que digo, quanto pelo fato de o livro se ter tornado raro." 61 Que percentagem do poema original possuímos hoje? Qual a relevância das partes perdidas? Que razões terão levado homens cul- tos, como Proclo e Simplício, a excluí-las? Que distância separa o Parmênides histórico (tal como foi lido, e sobretudo ouvido pelos seus contemporâneos) do filosófico (a que temos acesso hoje)? Trata-se evidentemente de perguntas para as quais não temos esperanças de encontrar resposta. E o mesmo se poderá dizer de todos os outros que nos chegaram em fragmentos. E, contudo ... Não é bem assim. Há em Parmênides uma característica que confere um peso sig- nificativo ao que desconhecemos do poema integral. Mas considerare- mos a questão daqui a pouco. Voltemos à história do poema. Na Idade Média, o recurso ao pergaminho e ao trabalho dos copistas conventuais tomou a tarefa de preservação do manuscrito me- nos difícil. Até o problema vir a ser definitivamente resolvido pela inven- ção da Imprensa. A partir daí o número de exemplares do texto passou a ser potencialmente ilimitado. E, em conseqüência do fato, o problema da fixação do texto converteu-se no oposto do que tinha sido até então. É praticamente impossível que, em tantas cópias e recópias, ao l.ongo de tantos séculos, não se tivessem introduzido diferenças, vari- antes, erros de transcrição do original. Não é apenas a imperícia dos copistas que tem de ser levada em conta (quantos compreenderam o sentido do que tinham diante si?), mas a transformação das condições de recepção do texto 27 • A comparação de versões diferentes de um mesmo texto dá origem ao problema da reconstituição do original, o qual só pode ser resolvido através de uma edição crítica. Todos os textos antigos que conhecemos mereceram, pelo menos, uma edição crítica: um cânone fixador das condições que regulam a sua leitura. Todos os exemplares a que o público tem acesso nas livrarias são, ou estão 27 0s sinais de pontuação, os acentos, a convenção do intervalo separador entre as palavras escri- tas, a normalização das regras de composição de textos escritos, sobre os quais assentam as nossas regras de compreensão de textos, foram todos inventados mais de um século depois da criação do Poema de Parmênides. 62 ... ::· :· \ t ...... -:" .... ... feitos a partir de uma edição crítica (quando a obra de um autor clássico ignora esta regra, carece das condições mínimas de cientificidade) 28 • A primeira edição crítica do Poema de Parmênides é da autoria de H. Diels e intitula-se Parmênides' Lehrgedicht, griechisch und deutsch (Berlin, 1897). Depois disso, o trabalho de Diels passou para a genera- lidade dos estudiosos do saber antigo, através da publicação da obra que estabelece as condições de acesso aos textos dos pensadores que antecederam Sócrates: Die Fragmente der Vorsokratiker, Berlin, 1903 (conhecido pela sigla DK 29 ). A partir de então, o número das edições, traduções e comentários do poema têm aumentado praticamente todos os anos. A versão do texto grego e a tradução que realizamos do poema segue fielmente e sem o questionar o texto estabelecido por Diels-Kranz ( 6° edição, Berlin, 1954), excepto nos locais em que for expressamente notado, e pelas razões aí apresentadas. O texto do poema Os dezenove fragmentos ordenados por H. Diels cobrem as três partes em que o poema se divide. O Proêmio (frag. 1), que descreve a 28 Uma edição crítica é a apresentação impressa de um texto, fixado a partir de diversas fontes (portanto, propondo uma versão, definida a partir de diversas variantes), com a finalidade de permitir que leitores atuais a ele tenham acesso .. No caso de textos da Literatura Grega clássica, esse atuais trabalho inicia-se com a recolha e comparação das fontes manuscritas, e termina com a fixação do texto. É uma tarefa que só pode ser levada a cabo por especialistas, e que pode ser criticada, ou emendada, apenas por especialistas, ou pelo consenso dos estudiosos, ao longo da tradição crítica. 29 Pelo fato de ter sido feita em associação com Walter Kranz. O trabalho de Diels consistiu em respigar, no oceano de textos em que repousa o saber antigo, a totalidade das informações relevan- tes, relativas aos pensadores cronologicamente situados antes de Sócrates. A decifração de uma citação da monumental obra de Diels-Kranz atende às seguintes regras. A obra acha-se dividida em 90 capítulos, a maioria dedicados a pensadores individuais, identificados pelos números de I a 90. Cada um destes subdivide-se em três secções, consoante o texto se refere: A - à vida e obra; B- aos fragmentos (as próprias palavras do autor); C- aos testemunhos posteriormen- te acrescentados. Por exemplo, DK28Al refere o texto de Diógenes Laércio, Vidas e sentenças dos filósofos ilustres, IX, 12-3, que aponta a origem e ascendência de Parmênides (este é o capítulo 28 do DK; Al é o primeiro fragmento classificado, que se dedica ao estudo da sua vida e obra). 63 I I I I I I ! J ! I I / viagem do jovem ao encontro da deusa, de quem lhe vêm os ensinamentos, e fixa as palavras de acolhimento que esta lhe dirige. A "Via da Verdade" (frags. 2-8. 49), que desenrola a argumentação da deusa em torno do ser. A "Via da opinião" (frags. 8. 50-61; 9-19), que estabelece as condições de transmissão das opiniões dos mortais. Mas aqui manifesta-se a dificuldade de que falamos acima, que na realidade engloba duas distintas. Uma vez que a argumentação expendida na Via da Verdade põe em causa o sentido das "crenças dos mortais", levantà-se um duplo problema. Em primeiro lugar, o do sen- tido da referência àquilo mesmo que a argumentação desvalorizou: por que razão se teria a deusa dado ao trabalho de falar da aparência, depois de ter provado que nela nada de bom havia? Mas voltaremos adiante a esta questão. Em segundo lugar o da necessidade de conhecimento da extensão, senão da totalidade, do poema para assegurar uma posição bem fundamen- tada sobre as razões dessa inclusão. Só assim se estabeleceriam as condições suficientes para garantir uma interpretação do poema de Parmênides. Ora, sabendo que essas condições nunca foram satisfeitas, qual- quer interpretação do poema está necessariamente construída sobre conjecturas. Talvez por isso as edições, traduções e comentários, que os helenistas e estudiosos da Filosofia continuam a produzir, não deixam de evidenciar: quer o interesse do texto, quer a insatisfação, que nenhu- ma edição até agora resolveu, quer ainda a riqueza e diversidade de leituras que o poema consente. Sentido desta edição do Poema de Parmênides A finalidade principal desta tradução e interpretação do Poema de Parmênides é proporcionar aos estudantes pré-universitários, natural- mente desconhecedores da língua, literatura e cultura gregas clássicas, o acesso a uma versão simplificada do texto (sem a referência a variantes, a problemas de fixação, e às mais relevantes opções de tradução). Por 64 outro lado, a interpretação apresentada deve ser abordada com os cuida- dos necessários por todos aqueles que não são familiares com a extensíssima produção de interpretações e comentários do poema. Esta é só uma interpretação. Não está certa (se estivesse, não seria uma interpretação). Não é definitiva. Há muitas outras noutras línguas, que com ela não coincidem, e a que não se faz menção. Nem sequer respeita as condições normais de cientificidade (a obrigação de referência crítica à totalidade das edições e interpretações até hoje apresentadas). Como interpretação, pretende apenas contribuir para a compre- ensão do poema e da função por este desempenhada na Filosofia e Cultura Ocidentais. A medida em que este objetivo for atingido só poderá ser dada pelo tempo. O esquecimento é o lugar onde repousam, lado a lado, algumas das mais e todas as menos interessantes idéü.ts que a Humanidade produziu. Interpretação do Poema de Parmênides l. Ü PROÊMIO O fragmento 1 do poema descreve a viagem até à morada da deusa daquele que, no verso 24, será referido como "o jovem", ou seja, o próprio Parmênides. O tema da viagem ocupa um lugar de relevo na Cultura e na Literatura gregas, revelando a influência da Odisséia, de Homero. Nessa perspectiva poderemos encará-lo como um "artifício poéti- co". É, todavia, mais do que isso. Reflete, de modo elaborado, a intenção de condensar nas divindades, neste caso numa deusa, a garantia da au- tenticidade da mensagem transmitida. Por um lado, constitui uma espé- cie de invocação. Coino quando o poeta pede às Musas que o ajudem a contar, ou a "lembrar-se" de acontecimentos que não presenciou. Mas, por outro, legitima- num tempo e numa cultura em que o rigor da lógica 65 não tinha direitos adquiridos 30 - a ordem imposta pelo argumento de- senvolvido, onde a "Necessidade" representa, por um lado, o esteio da ordem divina, e, por outro, a incontomabilidade do argumento lógico. Fragmento 1 Os corcéis que me transportam, tanto quanto o coração me impele, conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso 3 da deusa, que leva o homem sabedor por todas as cidades. O jovem é conduzido num carro puxado por éguas e guiado pelas "filhas do sol". O motivo da viagem será indicado adiante. Mas o caminho é de todo o homem que busca o saber para o espalhar "por todas as cidades". A seqüência da descrição da viagem tomará clara a identificação do jovem Parmênides com o esse homem sabedor, que transmite aos outros o saber colhido da boca da deusa. Por aí me transportaram, por aí mesmo me transportaram os cavalos [muito hábeis, 5 puxando o carro, enquanto as jovens indicavam o caminho. O eixo, nos cubos, silvava como uma siringe3 1 , inflamando-se (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente o impeliam de uma e de outra parte), quando se apressaram as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite 1 O para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que as escondiam. 30 Até aí - é esse o carácter distintivo das obras da tradição mitopoética - o recurso aos deuses confere às mensagens o selo de autenticidade do saber. É típica a invocação das divindades para atestar a origem das coisas: como elas eram "no princípio". Essa referência costuma ser feita através de genealogias (veja-se, por exemplo, a Teogonia de Hesíodo: "Primeiro que tudo nasceu o Caos, e depois a Terra, de peito ingente, ... e o brumoso Tártaro, .. . e Eros .. . , etc."). É a esta ordem que Parmênides opõe o rigor de um argumento dedutivo. Tal oposição é apreciada por diversos comentadores como significando a emergência do lagos (discurso racioci- nado, justificado racionalmente), que supera o mythos (mito, história fabulosa), mera narrativa das origens, inventada pelo poeta, que alega tê-la recebido por inspiração divina. 31 Instrumento musical a que se dava o nome de "flauta de Pã", idêntico à nossa flauta de amolador. 66 · .. .: ') •·•. ·· . ·: . , . r A viagem parece dercorrer no espaço cósmico, ao longo de uma noite, e termina com o encontro com o nascer da aurora (esta é uma possível justificação para a alegoria de um carro guiado pelas "filhas do sol"). O percurso realizado será aquele que o sol descreve durante a noite. Como nota curiosa, observe-se que- a aceitar esta interpretação - o dia e a noite não serão causados, ou explicados, pela presença, ou ausência do sol, mas, pelo contrário, será o movi- mento do "carro" solar por uma, ou por outra região, a acender, ou apagar o astro. Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia, com a sua arquitrave e a soleira de pedra; o portal, etéreo, fechado por enormes batentes, dos quais a Justiça vingadora tem as chaves que o abrem e o fecham: 15 A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras, persuadindo-a com habilidade a erguer para elas por um instante a barra do portal. E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar de uma a outra parte, os estridentes gonzos de bronze, 20 fixados com pregos e cavilhas. Por aí, através do portal, as jovens guiaram com celeridade o carro e os cavalos. · A viagem do jovem termina na fronteira que separa a escuri- dão da claridade, que as filhas do sol têm de pedir licença para ultrapassar. Por um instante, o jovem tem a percepção da imensidão do espaço. Mas mais importante para nós será notar quanto toda a ordem cósmica 32 é governada pela "Justiça vingadora". Esta desig- 32 Em Grego, "cosmos" significa ao mesmo tempo a ordem e a realidade ordenada. Ou seja, o mundo e a ordenação que exibe e o caracteriza. Que "as coisas sejam como são": este é o motivo original do espanto que, em Platão e Aristóteles (Teeteto ISS d; Metafísica A 2, 982 b 12-983 a21, respectivamente), é dado como fundador da reflexão filosófica. O Homem dá-se conta da grandeza da ordem cósmica e enche-se de espanto. Mais o espanta ainda constatar a sua impotência para a explicar e agir sobre ela. É assim que começa a aperceber- se da sua ignorância. Não apenas da enormidade dos enigmas que o rodeiam, mas também da resistência que opõem às tentativas de exploração que sucessivamente esboça para os resolver. 67 f . .. - nação vem de lhe caber o encargo de manter o equilíbrio do todo, assegurada pela retribuição de todas as faltas contra ele cometi- das33. A noite e o dia (como as luas e o ano solar) são padrões instituídos por essa ordem de que os deuses- em particular a Justiça - são a garantia. 1.1 ÁS PALAVRAS DE ACOLHIMENTO AO JOVEM E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão dÚeita pegando, e com estas palavras se me dirigiu: "Ó jovem, companheiro de aurigas imortais, 4 tu que chegas até nós transportado por cavalos, Salve! Não foi um mau destino que te enviou a viajar neste caminho- tão fora do trilho dos homens-, mas o Direito e a Justiça ... " De novo a reta intenção do jovem é legitimada, agora pela pró- pria deusa, com nova referência à Justiça e ao Direito, que lhe consen- tem a viagem, "tão fora do trilho dos homens". Percebemos agora que o jovem é o "homem sabedor" e que a intenção da sua demanda é buscar o saber que só os deuses podem proporcionar aos mortais. Tor- na-se também claro que a dimensão cósmica da viagem se justifica pela natureza do saber que o jovem busca: aquele que comanda a própria ordem do cosmo. 33 Note-se no fragmento I de Anaximandro esta mesma observação: " ... E destes" [os contrários] "vem a origem para as coisas que há e provém a destruição para essas coisas, 'segundo a necessi- dade, pois prestam justiça umas às outras, pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo"' (Anaximandro DKI2B I; Simplício Física 24, 13; as duplas aspas referem o texto de Simplício, as simples, o do Milésio, que Simplício reproduz: vide José Trindade Santos, Antes de Sócrates, Lisboa, 1992, 122-3). 68 1. 2 REALIDADE E APARÊNCIA Terás, pois, de tudo aprender: o coração inabalável da realidade 34 fidedigna 30 e as crenças dos mortais, nas quais não há confiança genuína. Nos cinco versos que finalizam o frag. 1 a deusa revela a nature- za e a verdadeira dimensão do saber que o jovem persegue. Este tem de aprender "tudo" porque o saber que busca é do todo, do próprio cos- mo que a alegoria 35 da viagem representa. A primeira nota de inova- ção do poema- e que conseqüências teve! -está patente nesta deslocação, ou inversão, das relações entre o saber e o seu conteúdo. Mas o que significa 'saber'? SENTIDOS DE "SABER" Para responder à pergunta, teremos de empreender uma ex- cursão pela Cultura grega. Até ao séc. V, "saber algo" é, em geral, deter o conhecimento efetivo sobre qualquer assunto e proporcio- nar aos outros a evidência do fato. O saber é encarado como uma atividade e apresenta um sentido eminentemente prático. Nessa me- dida, "aquele que sabe" é um sábio (sophos), mas a qualificação não é alheia à experiência, perícia, astúcia até, patentes no exercício 34 O GregoA/êtheiê (no dialecto Ático, a/êtheia) significa simultaneamente 'verdade' e ' realidade' (vide Aristóteles Metafísica A 3, 983 b3). Note-se, no verso seguinte, 'genuína', ou ' verdadeira', como tradução do mesmo termo: a/êthês. Esta dupla dimensão da verdade, fundida com a realida- de, constitui o próprio argumento da mensagem da deusa. Qualquer das traduções poderia ter sido adotada (e, de fato, a primeira é seguida tradicionalmente pela maioria dos tradutores e comentadores). Adiante esclareceremos as razões da preferência por "realidade". 35 A alegoria é a expressão de uma idéia sob forma figurada. Na descrição que acabamos de ler, há elementos inquestionavelmente simbólicos (sobretudo as divindadades, ou o que se relaciona com elas). Tal não implica que toda a descrição da viagem possa, ou deva, ser interpretada simbolica- mente (como uma alusão velada a certos fatos: a descoberta da verdade pelo autor do poema, a difusão deste pelas cidades gregas, a sua missão política, etc.). Diversas leituras simbólicas do proêmio foram feitas desde a Antiguidade (a mais notável é a de Sexto Empírico Adv. Math. VII 112-4 ). Não foram aqui referidas pelo fato de nenhuma ser especialmente convincente, ou mesmo pertinente para a interpretação aqui apresentada. 69 de uma arte (technê) 36 • O saber pode dizer-se de um homem (ou de animais: por exemplo, na Odisséia V 222-3, dos cavalos Troianos), homem que possui um certo conhecimento, ou habilidade social- mente reconhecida. Em todas estas utilizações, contudo, a dimensão prática não exclui a nota de interioridade, de intimidade até, com que a característica sapiencial vem a manifestar-se. O "homem sabedor" (como aquele a que a expressão de 1.3 alude) distingLie-se dos outros porque sabe e ao mesmo tempo "se sabe". É este o sentido mais evidente do mote inscrito no templo de Delfos, que através de Sócrates se tomará famoso: "conhece-te a ti mesmo". Posta nestes termos, a questão parece simples, embora o não seja, pelo fato de a diversidade referida nas linhas precedentes ser co- lhida em textos e figuras separados por de 400 anos! Considerada do nosso ponto de vista, a evidência assume a apa- rência de uma evolução, em que o saber, incialmente virado para a prática, começa a inclinar-se no sentido teorético: o do saber puro, motivado pelo desejo de compreender algo, e não por qualquer finali- dade concreta. Ora é no início do séc. V, com Heráclito (a quem a sapiencial não é alheia: "investiguei-me a mim mesmo": frg. 101) e Parmênides, que vemos o saber começar a ganhar esse sentido teorético, ligado à investigação, com que se desenvolverá em Platão e Aristóteles. Para Heráclito há um saber 37 , que, sendo de todas as coisas - do mundo e da vida-, distingue o homem sabedor. Expresso na "mensa- 36 No saber confluem várias famílias de palavras de diferentes raízes, cujos sentidos vão, com o tempo, sobrepor-se: os de raiz soph-, de onde derivam sophos e sophistês (sofista); os associados ao verbo epistamai ("saber fazer", "ser capaz de fazer", mas também "compreender", mais tarde, "saber cientificamente"; patente, por exemplo, em "epistemologia"); os de raiz tech-, que desig- nam uma arte, mas só a partir de Platão começam a designar pessoas (technikos : "técnico", "perito"); a que se acrescentam os tradicionais tanto os de raiz *oid-1 *eid-1 *id-, 'eidenai', em que 'saber' se acha associado ao ver; e ainda os de raiz gn-, por exemplo, gignôskein, que cobrem as acepções sapiencial e epistêmica mais forte: "aprender a saber", "discernir", "conhecer" (que en- contramos em "gnose", "gnóstico")- família extensa com muitos derivados. 37 "Um é o saber: [que] recusa e aceita ser chamado pelo nome de Zeus": frg. 32; "Um é o saber: compreender a intenção que tudo governa através de todas as coisas": 41; "O saber é concordar, ouvindo não a mim, mas o lagos, que todas as coisas são uma": 50; "De quantas mensagens (logôn) ouvi, nenhuma chega a conhecer que o saber é de todas as coisas separadas": 108). 70 ""==-=---==------ - - - - - - gem" (lagos) que o pensador divulga aos mortais, sustenta, entre outras teses, que "os contrários" sempre se referem, ou supõem, a subjacente unidade. E o Efésio 38 raro perde a oportunidade de insisitir em que este é "o saber" que corrige todos os outros, que antes eram tidos por saber. Não tem um alvo preferido. Alguns são visados: Homero e Hesíodo, em particular. A razão invocada é " ... saberem muitas coi- sas" (frg.40). Mas o frag. 57 é mais claro: Hesíodo distinguia os opos- tos, quando " ... são um e o mesmo". É essa a nota a que o lagos volta sempre: à defesa da unidade, subjacente á aparente separação dos contrários. 1.2.1 A defesa do saber: cosmologia e ontologia Também Parmênides toca neste ponto, como veremos. O Eleata, contudo, vai mais longe. Sustenta uma tese nova, que para sempre passará distinguir e caracterizar uma área do saber: a Filosofia. Reside ela na constatação de o saber, antes de estar no conhecimento das coisas, se achar naquilo que o constitui como "saber": no critério que o deve distinguir de todos os auto proclamados "saberes". Por outras palavras, não basta que alguém afirme saber, ou o atribua a outrem. É preciso que forneça garanti- as, que mostre em que é que o seu saber se distingue dos outros e pode como tal ser considerado. Parmênides faz assentar este critério de valida- ção na capacidade para a definição: 1) do objeto do saber; e 2) da exposi- ção do método que considera adequado e lhe é próprio. Esta inovação formal implica como conseqüência material a "su- peração", ou mera subsunção (integração), da problemática própria da cosmologia pela da ontologia (ciência do 'ser')3 9 • É uma revolucio- nária inflexão, que deixará marcas profundas e persistentes no saber grego. Como ela ocorre? 38 Natural de Éfeso, na Ásia Menor, depois dos meados do séc. VI. 39 É o que Aristóteles implica na Física (A 184 biS sqq.; vide Metafísica A 3, 983 b6 sqq.), ao distinguir os "físicos" dos "não-físicos", incluindo os Eleatas neste último grupo. 71 Tradicionalmente, a cosmologia é a disciplina que se dedica ao estudo do cosmo (da origem do universo e da ordem que o caracteri- za40). A inovação de Parmênides reside no modo como a reflexão vai separar estas duas questões uma da outra. Aceitando a ordem como um fato, desinteressa-se da sua origem para se concentrar no próprio saber. Ou seja, em vez de perguntar- qual é a origem do cosmo? -e de responder - "é a água", ou "o ar", ou "os contrários" - opta por se concentrar na natureza própria do s@ey, que demonstra ser indissociável da do ser. É assim que a ontologia se sobrepõe à cosmologia. - Há, contudo, que estabelecer uma distinção. A abordagem de uma e outra é radicalmente distinta, e não pode ser confundida. A cosmologia começa pela pergunta, e foi assim que se manifestou "nos que primeiro filosofaram": pela pergunta que questiona a ordem e se interroga sobre ela- "por que a ordem e não a desordem?", "por que esta ordem?" 41 Ora, ao sustentar- "a origem do cosmo é a água", ou "o ar", a cosmologia apresenta uma diversidade de respostas à pergunta. E a indefinição criada pela pluralidade é que justifica a crítica): "por que esta ordem?" - não haverá outra ordem mais funda, subjacente a ela? Estas são as perguntas implícitas na crítica de Heráclito à cosmologia tradicional. Esta é também a pergunta implícita na crítica apresentada pela deslocação da reflexão para a ontologia. É, contudo, claro que, ao contrário da cosmologia, a ontologia não nasce do espanto, nem come- ça explicitamente como pergunta. Ao voltar as costas à interrogação sobre a origem do cosmo, o pensador ultrapassa o estágio do espanto em brenha-se na senda da reflexão. À cosmologia, Parmênides limita-se a opor a postulação do ser. 40 O termo grego kosmos começa, com Heráclito (frgs. 30, 124) e Parmênides (frg. 4. 3; 8. 60), a designar ao mesmo tempo o mundo e a ordem que lhe confere sentido. 41 O "filósofo" dá-se conta da ordem do cosmo e espanta-se com ela. Os sinais mais evidentes dessa órdem acham-se nos movimentos dos astros, na sucessão das estações, no ritmo dos dias e noites, etc. Essa é a razão pela qual o saber mais antigo e venerável, que os Gregos receberam do Oriente, versa sobre a astronomia 72 Significa isto que a resposta à pergunta sobre a ordem deixa de ser dada pela descrição desta, ou daquela ordem. Mas pela resposta "é": a ordem "é". Neste sentido, "é" é uma resposta. A resposta. Não é pergunta, nem admite a pergunta: "por que o ser? Por que é que "é"? (vide frag. 8. 15-21). 1.2.2 Á REALIDADE/VERDADE CONTRA A APARÊNCIA ENGANADORA Agora que a intenção epistêmica que a anima se manifestou ex- plicitamente, com o início do discurso da deusa surgem as primeiras dificuldades de interpretação da mensagem que, através de Parmênides, aquela dirige aos homens. As suas palavras de acolhimento indiciavam já o tratamento de exceção que reservava ao jovem. A motivação do "tudo" foi já aclarada. Falta enunciar as suas conseqüências. "Tudo" abarca não apenas a realidade/verdade, como ainda "as crenças dos mortais". A obrigação de recolher ambos os ensinamentos é indicadora de uma intenção programática, adiante explicitada (vide frag. 7. 5). Mas confirma ainda a indistinção, para nós dificilmente compreensível (presente já na associação da verdade à realidade), entre os fatos, as coisas, e os discursos, os dizeres, que os fixam 42 • Na tradição poética, Parmênides começa por recorrer aos deuses para garantir a autenticidade da sua mensagem. Todavia, inova, em relação aos poetas, por apresentar um argumento reflexivo, autenticamente filosófico, que explora uma evidência, característica de todas as mensagens que, a um tempo, instituem (dizem que há) e constituem (dizendo como é) o saber. 42 Significa isto que na tradição recuperada, constituída e comentada por Aristóteles e pela sua Escola, a partir do séc. IV, é através do estudo das opiniões dos pensadores mais antigos que a realidade pode ser estudada. Por exemplo, uma pergunta como- "por que é que a Lua tem fases?"-, feita e refeita ao longo dos séculos, constitui a evidência de um problema (uma "aporia", diz Aristóteles na Metafisica B; ver a nota 12: 3. 1. 1) que interessou os pensadores, e para o qual estes apresentaram as suas respostas. O filósofo deve partir da evidência destes "problemas" , que por um lado, apontam o caminho a seguir pelas suas investigações; por outro, desvendam a estrutura problemática da própria realidade. 73 I I I I I I I I I I I I I I I I I l ~ I Não se limita a afirmar: este é o saber! Vai mais longe, explican- do como e porque é saber. É saber porque é apresentado na forma de um argumento, como veremos a seguir (frags. 2, 3). Mas, como "é" acerca daquilo que refere, não pode distinguir-se disso. A idéia, que talvez nos pareça ingênua, é a de que a verdade sobre qualquer coisa é antes de mais a própria coisa (noutros termos, que a coisa institui o critério de verdade sobre si própria). Não é um processo muito diferente do que adotam os que jogam às moedas, ao exibirem, depois das apostas, as que escondem dentro das mãos. Afi- nal, se a verdade e a realidade fossem duas, não poderiam ser nem uma, nem outra coisa. 'Verdade' e 'realidade' são, portanto, uma e a mesma. É por isso que são saberes. Mas então, se assim é, também o saber será isso mesmo: realidade e verdade - duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si. Nem poderia ser de outro modo. O argumento começa pôr explorar uma identidade, que se expande até definir um domínio fechado, circular: a verdade é o que "é verdade"- o saber é verdade porque é a Verdade. Esta circularidade determinará posteriormente a oposição àquilo que, por um lado, exclui, mas, por outro, a complementa (frags. 2+3, 6, 7) . Por agora, o que ressalta é a complementaridade entre a verdade e as crenças dos mortais, que a conclusão do frag. 1 caracterizará. 1. 2. 3 A APARÊNCIA: UM ENIGMA ADIADO Mas também isso aprenderás: como as aparências 32 têm de aparentemente ser, passando todas através de tudo. Por que tem o jovem de aprender a realidade e as crenças dos mortais (ou a verdade e as aparências)? Uma primeira razão já foi adiantada: porque a realidade e o discurso sobre ela se identificam. O final do frag. 1 acrescenta outra razão. É que as aparências têm o seu modo próprio de ser, o de "serem aparentemente". 74 A expressão não é minimamente esclarecedora. Será preciso es- perar pelos frags. 6 e 7 para lhe compreender o sentido. Há, contudo, nestes dois últimos versos um jogo de relações paralelas, que delimita a complementaridade entre a realidade e a aparência, embora esta só se torne evidente nos termos gregos. A realidade/ verdade (Alêtheia) é fidedigna (eupeitheos 43 ). Nas crenças (doxas) dos mortais não há "confiança verdadeira" (ou pistis alêthês). As aparências são "aparentemente" (ta dokounta ... dokimôs einai : a aparência é o seu modo próprio de serem). Deste modo a concessão ou negação da confiança estabelece a complementaridade, como primeiro grau da oposição, entre a verdade e as crenças: de um lado, a confiança (peith-/pist-), do outro a aparência (dok-). Em suspenso fica o 2° hemistíquio (meio verso) de 1.32. Que pode querer a deusa dizer com "passando todas através de tudo"? A aparência fica envolvida no seu argumento a partir do frag. 6. Mas a questão só receberá tratamento adequado nos frags.'7 e 16 (embora os: frags. 8.38-41, 9.1 e 19 se lhe possam referir através da inclusão dos "nomes"). O recorte poético da frase não nos permite por ora avançar mais, para além de um envolvimento entre a verdade e as c r e n ç a ~ dos mortais, a realidade e a aparência. O modo que comanda este envolvimento terá de ser aprofundado mais adiante (frag. 6). Mas o fragmento 1 interrompe-se aqui, após a explanação da complementariedade dos conteúdos sobre que versará o ensinamento da deusa. A eles passaremos em seguida. 43 Pist- (vocalismo zero) e peith- (vocalismo e) são formas antigas da mesma raiz. Os significados são: 'confiança', 'fé', garantia'. Peithô é a deusa da persuasão; e o verbo peithomai significa ' ser persuadido', 'obedecer'. 75 2. A via da Verdade 2.1 OS DOIS CAMINHOS Fragmento2 Vamos, vou dizer-te - e tu escuta e fixa o meu relato - 2 quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar: Sem que possamos ter uma idéia precisa da extensão suprimida de poema- na verdade, praticamente sem transição 44 -,a deusa come- ça o seu discurso. A razão da escolha do jovem para seu destinatário torna-se agora evidente. Reconhecida a sua qualidade de homem sabe- dor, aceita a sua presença num lugar a que os comuns mortais são estranhos, ele deverá fixar o relato, a substância do discurso da deusa, muito provavelmente para a transmitir a outros. E o argumento é iniciado quase sem que demos por isso, com a declaração "dos únicos caminhos que há para pensar". A importância da declaração está longe de ser notável.- A continuação, porém, corrigi- rá esta primeira impressão. um que é, que não é para não ser, é caminho de confiança (pois acompanha a realidade); 5 o outro que não é, que tem de não ser, esse te indico ser caminho em tudo ignoto, pois não poderás conhecer o não ser, não é possível, nem indicá-lo [. .. ] 44 G. Casertano, Parmenide: il metodo, la scienza, l'esperienza , Napoli, 1978, 61, toma natural a transição ao observar: " ... O fragm. 2 constitui portanto a continuação lógica do primeiro: aprenderás isto e aquilo (B1), e o modo como o aprenderás é seguindo este método (B2)." (sublinhado nosso). Ora ' método' é um termo absolutamente nada casual no contexto do poema. Em Grego é um composto de um substantivo - hodos- que signica 'caminho', com a proposição meta, que aqui significa "com", "em companhia de". Para nós significa isso mesmo: o caminho para chegar a um cetio objetivo. É essencial na interpretação de Casertano compreender como a finalidade de Parmênides é essa mesma: a de apresentar aos mortais um caminho, um método, para atingirem o saber. 76 UN!\JERS!OAOE FG• · - - 8!PUOTF'.". S -- • · E, de repente, as questões assaltam-nos de todos os lados. Todas de transcendente importância, praticamente uma por cada palavra do poema. Antes de mais, "um" e "o outro". Trata-se de dois caminhos, e de dois apenas (como afirmara 2.2, com "os únicos"). Mas por que dois? As suas designações- "que é", "que não é"- deveriam proclamá- lo. Mas são as caracterizações que lhes estão apostas que mostram a razão. "É" "não é para não ser", "não é" "tem de não ser". A relação entre o primeiro e o segundo caminho é evidente: o que um afirma o outro nega. Que sucede, porém, se a cada um deles aplicarmos a indicação do outro (negando o primeiro e afirmando o segundo)? A resposta não pode ser mais simples: caímos no segundo e voltamos ao primeiro (a negação nega a afirmação e a dupla negação é a esta equivalente). Ora é isso mesmo que os segundos hemistíquios de 2.3 e 2.5 provam. Ficamos, portanto, a saber que os caminhos são doís e porque é que não podem ser mais do que dois. Dito de outro modo. Se pensar é afirmar ou negar, a afirmação ou negação destas será ainda pensamento. Resultam entãq seis possibi- lidades: 1. afirmação; 2. negação; 3. afirmação da afirmação; 4. afirmação da negação; 5. negação da afirmação; 6. negação da negação. A afirmação da afirmação reduz-se à afirmação simples, tal como a afirmação da negação à simples negação. A negação da afirmação reduz-se à negação, do mesmo modo que a negação da negação se reduz à afirmação. A conseqüência desta série de equivalências é inescapável: se só é possível afirmar e negar, então é necessário afirmar ou negar. As conseqüências deste argumento sobre aquilo a que se cha- ma pensar são capitais. Podemos condensá-las nos três princípios lógi- 77 cos que a tradição instituiu como tutelares do pensamento: 1. identida- de (A=A); 2. contradição (Al_A); 3. terceiro excluído (AV_A). Por ou- tras palavras: 1. a afirmação é igual à afirmação e a negação à negação; 2. a afirmação é diferente da negação; 3. entre a afirmação e a negação não há meio termo. 2. 1. 1 A EXCLUSÃO DA VIA NEGATIVA Mas há mais. Em B2. 4 a deusa acrescenta a esta disjunção entre termos mutuamente exclusivos a preferência pelo caminho "que é", reiterando a associação da realidade/verdade à confiança (expressa em B 1.29-30). Tal preferência será logo a seguir confirmada pela rejeição definitiva do segundo caminho, em B2.6-8. E as razões apresentadas são três. "Não é" é "ignoto", por não ser cognoscível (não se poder conhecer), nem "indicável" (não se poder apontar). À primeira vista o raciocínio parece misterioso, reduzindo-se a um mero jogo de palavras. Não é o mesmo dizer que uma coisa é desconhe- cida por não ser conhecida e não poder ser apontada? Acaba por ser . . Mas há muito sentido em compreender exatamente como e porque. Imaginemos uma entidade qualquer. Um cavalo, por exemplo. É possível saber o que é um cavalo, pelo menos se formos capazes de apon- tar um e afirmar: "Olha! É um cavalo". Mas não é possível saber o que é um não-cavalo, nem sequer olhar, ver, apontar um. Pela simples razão de poder ser tudo aquilo que "não é" um cavalo: a saber, um burro, uma boa ação, "Os Lusíadas", e assim por diante, indefinidamente. Ora é precisamente esta indefinição que nos impede de conhecer- mos um "não-cavalo". Porque, se um cavalo é uma coisa definida, um "não-cavalo" (qualquer "não x") pode ser tantas que, por isso mesmo, não é coisa nenhuma. Ora este raciocínio não é trivial e tem imensas conseqüências. 1. [Se] não é possível conhecer uma entidade negativa; 2. [porque] não é possível apontá-la; 78 2.1 [por ela poder ser uma infinidade de coisas]; 2.2 [portanto, nenhuma delas, ou seja "nada"]; 3. [então] não é possível negar; 3.1. [e] não é possível dizer falsidades (coisas que não existem e/ ou não são verdade) Esta conclusão tem muito que se lhe diga, sobre que não é opor- tuno adiantar nada agora. 2. 1. 2 A IDENTIDADE ENTRE SER E PENSAR Daqui resulta, como inescapável conclusão, que só se pode pen- sar o "que é" e que só o pensamento "é". E é isso mesmo que o frag. 3 sustenta: Fragmento3 [ ... ] pois o mesmo é pensar e ser. Reconstituamos o argumento, tentando simplificá-lo. Podemos pensar: "que é" e "que não é". Mas, como não podemos conhecer "o" que não é, esse pensamento não conduz a nada. Resta então o outro: "que é". Portanto ser e pensar são mesmo. Não se pode dizer que o raciocínio seja difícil. Exceto talvez por ser excessivamente simples. E ainda - o que não é pouco - por ter de seguir uma ordem rigorosa. No fim vamos chegar a uma con- clusão cujas conseqüências são aparentemente evidentes. Mas é exa- tamente o contrário disso que sucede. As conseqüências estão muito longe de ser evidentes. Ou mesmo aceitáveis. Para compreender por- que teremos de voltar a examinar o fragmento, esclarecendo algu- mas questões camufladas pela sucessão de alternativas que nos é imposta. 79 Fragmento 2+3 Vamos, vou dizer-te - e tu escuta e fixa o meu relato - quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar: um que é, que não é para não ser, é caminho de confiança (pois acompanha a realidade); 5 o outro que não é, que tem de não ser, esse te indico ser caminho em tudo ignoto, pois não poderás conhecer o não ser, não é possível, nem indicá-lo [. .. ] pois o mesmo é pensar e ser. 2. 1. 3 Üs CAMINHOS PARA PENSAR Falar de "caminhos" (ou de vias) a propósito de pensar é avançar sobre metáforas 45 • Não há aqui grande novidade, pois o contexto do frag. 1 é marcadamente' poético. O poema começa com a descrição alegórica de uma viagem cósmica, que descreve a investigação çonducente à aquisição do saber. Este é comunicado por uma deusa, o que tradicionalmente po- demos entender como uma forma de garantir a veracidade da mensa- gem dirigida aos homens. Mas então acontece o inesperado. A men- sagem é apresentada na forma de um argumento lógico, necessitante, de conseqüências inescapáveis. Ora é nos argumentos que as metáfo- ras se tornam tão despropositadas quão difíceis de entender. 45 Metáfora é uma figura em que uma palavra é substituída por outra, por se pretender utilizar a semelhança entre ambas para acentuar o efeito expressivo. Por exemplo: "O homem é o lobo do Homem". Poderia dizer-se qualquer coisa como: "o homem persegue o seu semelhante, como os lobos o fazem". Mas perdia-se em elegância, concisão e insinuação (os homens são piores que os lobos, pois estes não atacam os da sua espécie). Todavia, o que a metáfora ganha em expressividade perde em rigor e clareza (um homem não é um lobo; precisamente em que é que se assemelham?). O termo 'caminho' é vago em relação ao pensamento. Seria mais correto falar de um suj eito que pensa, de um objeto pensado, de uma forma de pensar, etc. Note-se, contudo, que as metáforas podem ser assimiladas pela linguagem científica. Veja-se, por exemplo, a nota anterior: em 'método', o termo grego que significa "cami- nho" está presente de forma irreconhecível. 80 A que título se fala de "caminhos"? Seria mais próprio falar em "quem" pensa e "naquilo" em que se pode pensar. Mas essa atitude, tão natural para nós, decerto não o seria para Parmênides. Referir o pensamento a um sujeito e a um objeto iria contrariar a tese do Eleata, para quem "pensar" e "ser" se identificam. Mas afinal que é o ser? 2. 1. 4 "QUE É", "QUE NÃO É" Até aqui tomamos cada um dos caminhos como a mera indica- ção formal de algo que se afirma ou nega, explorando as conseqüências do regime de oposição descrito no frag. 2. Mas ainda não investigamos "o" que é afirmado, ou negado. Nem sequer ainda sabemos o que·é. Mas isso será compreensível, pois por detrás de "que é" e "que não é" escondem-se mistérios que ainda estudioso algum conseguiu resolver satisfatoriamente. São três as dificuldades que se prendem com cada um dos cami- nhos: a primeira tem a ver com "o", que é ou não é; a segunda com "é" e "não é", a terceira com "que é" e "que não é". 2. 1. 5 Os SUJEITOS DE "o QUE É" E DE "o QUE NÃO É" Vamos à primeira. A deusa não nos quer dizer "o" que é e que não é, obrigando-nos a fazer conjecturas. Mas também pode ser que não o diga pel9 fato de não poder. Em que nos apoiamos para susten- tar esta eventualidade? Não é difícil responder à pergunta. Como vi- mos, todo o argumento explora o regime de oposições, puramente for- mal, entre os dois caminhos. De início não interessa o que é afirmado, ou negado, mas apenas o fato de: 1. tanto a afirmação quanto a nega- ção serem idênticas a si mesmas; 2. diferentes uma da outra; 3. nada haver para além de uma ou outra. 81 Mas depois o argumento surte efeito. Da indefinição 46 da via negativa resulta a sua exclusão. Nessa altura, porém, a deusa já pode, e até deve, dizer "o" que é excluído. E o diz claramente em 2. 7: é o "não- ser". Pelo contrário, a via que resta e se identifica com "o pensar" é a de "o ser" (frag. 3). Temos, portanto, razões para crer que "o" que é é "o ser", tal como "o" que não é será o "não-ser". Enunciados completa- mente, então, os dois caminhos são: "[o ser] é" e "[o não-ser] não é". Este problema já está resolvido. 2. 1. 6 ÁS TRÊS LEITURAS DE EINAI. Passemos ao segundo. Com "é", estamos a apresentar uma tra- dução do verbo grego einai. Neste verbo acham-se fundidas, e confun- didas, três, ou quatro, acepções de "ser": a predicativa (como em "A Sofia é bonita"); a identitativa (como em "a beleza é bela"); e a existen- cial (como em "os deuses são: eisin =existem)", além de outra, que afeta apenas o discurso, a veritativa 47 • Os dois primeiros não põem dificuldades (um é um caso particular ·do outro) e acham-se cobertos pela tradução proposta 48 • Mas o terceiro é completamente diferentes desses: o seu sentido não se reduz a nenhum 46 Podemos tecnicamente dizer "irreferencialidade". O termo negativo não "indica" nada, não refere nenhuma entidade que se possa designar. Daí resulta a sua incognoscibilidade. E desta a sua exclusão como "pensamento". Desta, por sua vez, decorre a identificação do "ser" e do "pensar". 47 Quanto a este último sentido, vide a nota seguinte. Quanto à exemplificação dos diversos exemplos em linguagem atual, manifesta-se um pequeno problema. As dificuldades levantadas pela ambiguidade de einai obrigaram, noutras línguas, à invenção de verbos e expressões verbais para sentidos distintos do predicativo. É o caso de 'existir', o de "ser igual a" e o de 'é verdade (que)'. Por essa razão é-nos difícil encontrar exemplos que, em linguagem de todos os dias, exprimam esses sentidos com o verbo 'ser'. Mas é simples compreender as quatro consequências fundidas na afirmação da ordem (vide atrás 1. 2. I). "A ordem (o cosmo) é" significa: I: o mundo é ordem; 2) a ordem é a ordem; 3) a ordem existe; 4. a 'afirmação da ordem' é verdade. 48 C. Kahn The Verb 'be' and its synonyms. Philosophical and grammatical studies edited by fohn W M. Verhaar. The verb 'be' in ancient Greek, Dordrecht/Boston, 1971, 335, 342 encontra ainda um quarto sentido: o veritativo - que" ... expressa a verdade de declarações e o reconhecimento de serem assim os fatos e os estados das coisas". Assentindo com Kahn na relevância deste quarto sentido de einai (que aprofunoa à indistinção entre "fatos" e "ditos"), parece-nos que podemos entendê-lo como um alargamento ao discurso do sentido identitativo. 82 deles. É costume ditingui-los, referindo-os como utilizaçoes completa (que dispensa complemento: o terceiro) e incompletas do verbo 'ser'. Ora, no frag. 2, o verbo apresenta um uso completo: 3 um que é, que não é para não ser, 5 o outro que não é, que tem de não ser, Não implicará esse fato que deva ser traduzido pela forma com- pleta: "existe"? À primeira vista, sim. A tradução "existe" assenta perfei- tamente no texto. Todavia, o motivo acima manifesto (a impossibilidade de dizer "o" que é e "que coisa é") continua a valer: a deusa tem de manter ocultos o sujeito e o nome predicativo de o "que é". Isto significa que as três acepções do verbo são possíveis. Por esta ordem de idéias, apesar de um número considerável de ilustres tradutores e comentadores do poema o terem vindo a fazer, não parece legítimo isolar uma das leituras do verbo, quando isso é feito em detrimento das outras. A ambiguidade de einai deve ser respeitada 49 • De resto, a interpretação acima apreseotada (que se apoia na irreferencialidade) dispensa perfeitamente a tradução existencial 50 , sem lesar o argumento, nem distorcer o seu contexto cultural. A melhor tradução será então aque- la que respeita a ambiguidade de einai, possibilitando as três leituras do verbo: é. Este problema pode também dar-se por resolvido. 49 Havendo pelo menos dois motivos de ordem histórica para a manter. Um é o modo como o sofista Górgias a explora no seu Da natureza, ou do não-ser, texto composto com a intenção de subverter o argumento da deusa (DK82B3). O outro é o diálogo O sofista, de Platão, onde as três leituras de einai são pela primeira vez, e definitivamente, desambiguadas (ver adiante 4. 3. 2). Significa isto que cada uma das leituras é identificada e posteriormente explicada pelas estruturas ontológica da realidade (os "cinco gêneros supremos") e lógica do discurso (as relações de inclu- são e exclusão entre cada um dos gêneros). 50 Dois famosos comentadores, por vias diferentes, defendem esta interpretação. Charles Kahn, Op. cit. 321-370; além de numa série de opúsculos dirigidos contra a leitura existencial de einai. A mesma tese é sustentada num dos mais estimulantes comentários do Poema de Parmênides: A. P. D. Moure1atos, The Route of Parmênides. A Study ofWord, Image andArgument in the Fragments , New Haven & London, 1974. 83 I I I I I I I I I I j 2. 1. 7 UMA AMBIGUIDADE NO SENTIDO DE TO EON Finalmente, chegamos à terceira € mais complexa dificuldade. A que formas do verbo einai recorre a deusa ao longo do poema para se referir ao ser? A três: ao particípio substantivado to eon (2. 7, 6. 1, 8. 3, 8. 35 passim 51 ); a formas verbais, do indicativo presente estin (2. 3, 2. 5 passim), e do futuro (estai: 8. 36); e ao infinito einai 52 (2. 3, 3. passim). A segunda não põe problemas: traduz-se simplesmente por "é" e por "será". A terceira põe poucos: é simplesmente traduzida por "ser". Mas a primeira tem, nas diversas línguas em que o poema foi traduzido, sido vertida por diferentes formas, equivalentes, em português, a: "o ser", "o que é", "o ente", "o essente", no plural, "as coisas que são" (ta eonta: 7. 1). Todas estas versões são aceitáveis, mediante as justificações apre- sentadas pelos que as preferem. A pergunta a fazer é se há alguma característica que as distinga. Tanto "é" como "ser" evidenciam a atri- buição de um predicado a um sujeito 53 : a identidade consigo próprio, um predicado potencial, ou real - a existência: "x é x", "x é y", "x existe". Pelo seu lado, "o ser" (to eon) desempenha preferentemente a função de sujeito, presente ou ausente, de "é", decorrendo daí a for- ma perifrástica: "aquilo que é". Daqui resulta uma particular ambiguidade do Grego clássico. "O ser", "aquilo que é", etc., tanto pode designar propriamente o norrie daquilo que é (realizando uma função denominativa), como manifes- tar o atributo específico pelo qual "aquilo que é" é (função descritiva). 51 Latim: "Aqui e ali". Termo usado habitualmente para indicar que a citação ocorre noutros locais do texto. A língua grega permite, e no séc. V essa prática (a que não será estranha a difusão da escrita) tomou-se corrente na comunicação cultural, a substantivação de qualquer palavra pela anteposição artigo definido neutro (to). Assim foram introduzidos na fala do quotidiano novos termos, que forneceram as bases do vocabulário epistêmico da Cultura Ocidental. Por exemplo, "agora" (nyn): to nyn - "o agora", "o instante"; "qual" (poion): to poion -"qualidade", etc. 52 Recorre ainda a equivalentes poéticos de einai, como emmenai (6. 1 ), pelein (6.8) e à forma passiva pelenai (8.11 ), que habitualmente vêm traduzidos por "ser", ou "existir", em nada pesan- do no argumento. Note-se, contudo, que to einai nunca aparece no poema, ao contrário do seu equivalente to pelein (6. 8). 53 Se interpretarmos a identidade como um caso de predicação e admitirmos que a existência é um predicado, o que é controverso, embora não errado. 84 Esta ambiguidade, que originalmente pesaria sobre os nomes pró- prios54 , vai afetar toda a compreensão do poema e manifestar-se em todos os pensadores que não conseguiram escapar à força do argumento da deusa: e não houve nenhum capaz de a ele se subtrair. É ela que nos vai conduzir à maior dificuldade que nos é posta pela interpretação do poema: afinal o que é o ser? 2. 1. 8 Ü SER. Como tanto insistiu Aristóteles (Física I 3, 186 a24-b3; Categorias 1 a28-30; M etafisica X 1 O, 1059 a 10 até ao fmal; vide Alexandre de Afrodísias In Metaphysicam 84, 29), 'o ser' eleático constitui uma monstruosidade lógica, ao poder ser encarado quer como o nome individual da classe das "coisas que são", quer como o predicado universal pela posse do qual ·se diz que todas e cada uma das coisas "são" (no sentido existencial, ou predicativo: "ser isto ou aquilo ... "). Para o Estagirita 55 , o problema resol- ve-se impedindo o ser de ser dito de uma só maneira, por outro, ou seja tanto como um indivíduo, quanto como um universal. "O ser" deve, por- tanto, dizer-se de muitas maneiras. Antes de tudo, cada ente "é", é um ser. Complementando esta leitura, a expressão "ser enquanto ser" designa a substância de todo e cada ente, aquilo que ele é, a sua natureza 56 • 54 O nome não só nomeia a realidade a que se refere, como pode referir a natureza que lhe é própria. Esta característica dos nomes antigos (no caso dos gregos, por exemplo, 'Filipe' significa "amador de cavalos", ' Édipo' "pés inchados", etc.). vem a perder-se com o tempo (quem é que sabe que 'Helena' significa "habitante da Lua"? e 'Teresa' "habitante de Tera: hoje a ilha de Santorini?) Ora esta ambiguidade, que terá grande importância na reflexão posterior, nomeadamente em Platão, é patente em todos as qualidades, susceptíveis de serem tomadas como nomes próprios de um coletivo (o filósofo chama-lhes "Formas": República X 596 a). Por exemplo, 'Branco' será tanto o nome comum a todas as coisas brancas, como a propriedade ("o branco", a brancura) pela qual elas são chamadas brancas. Aristóteles denunciará com veemência esta ambiguidade, que dá origem a um tremendo erro lógico: o de o mesmo termo poder desempenhar numa frase tanto a função de sujeito, como a de predicado, sendo tomado ora como um indivíduo- "o Branco"-, ora como um universal- é "branco". 55 Aristóteles é assim chamado por ter nascido em Estágira, na Macedônia (em 384 ). 56 Avaliável de uma pluralidade de pontos de vista: como quididade ("forma", no sentido aristotélico), materialidade, finalidade, ou ainda do do seu autor, criador. Cada uma destas é um modo de dizer a causa. Vejamos, por exemplo, o que é um sapato? Enquanto sapato, cada um pode ser encarado como "uma peça de calçado" (forma), um objeto de couro, ou plástico, ou madeira, etc, (matéria), que serve para calçar, proteger o pé (finalidade), ou ainda "peça criada pelo sapatei- ro" (causa eficiente, o criador). 85 Com esta emenda de Parmênides, Aristóteles resolve algumas di- ficuldades - lógicas e metafísicas -, criadas pelo ser eleático. Por um lado, dissolve o mistério de "o ser" através de uma série de distinções; mas, por outro, recusa, ou adia, o confronto com ele. Ora esse mistério, podemos expressá-lo em diversas perguntas. Como terá Parmênides chegado ao ser? Quais sao as conseqüências da aceitação do argumento da deusa? A segunda pergunta tem resposta na continua- ção do estudo do poema. Mas a primeira deve ser respondida agora. O ponto de partida de Parmênides é o pensar. Vê o pensamento como realizando duas funções: afirmação e negação. Cada uma destas é idêntica a si mesma e diferente da outra; não havendo outra alternati- va além delas. Até aqui o raciocínio nada tem de problemático. Mas agora a deusa vai como que tirar um coelho de dentro do chapéu. A afirmação afirma: diz "é". E "o" que é é aquilo "que é". Tudo bem. Pelo contrário, a negação nega. Mas "o" que é que nega? Não pode ser "aquilo que é", porque então de "o que é" diz "não é" (o que é impossível, porque a afirmação e a negação se opõem). Mas, por outro lado, também não pode negar "aquilo que não é", porque "não é" ou não existe, ou não se sabe do que se está a falar (seja como for não se está a falar de nada). O simples fato da negação implica, portanto, conseqüências inaceitáveis, visto ser ou contraditóris consigo própria, ou absurda (como é que se pode negar aquilo que se desconhece?) Definem-se assim dois continentes incomunicáveis. De um lado, o pensamento, a afirmação, a realidade, a verdade. Do outro, ainda o pensamento, a negação, a irreferencialidade/inexistência, a falsidade. Todavia, como as conseqüências da negação são todas impossíveis, esta é eliminada como pensamento. Donde resulta a identidade entre pen- samento e ser. O que é então "o ser"? É o único domínio em que a afirmação, a realidade e a verdade coincidem. "O ser" é tudo aquilo a que se pode chegar a partir do pensar. Logo se percebe que é o único pensamento possível: todo o pensamento, o único lugar onde o discurso e a realida- 86 de se encontram: a verdade (tal como na afirmação "é" coincidem a predicação, a existência e a verdade). É quase o que está dito em 6.1: É necessário que o ser, o dizer e o pensar sejam .. . Para lá iremos agora. Mas só depois de resolvermos duas questões. NoTA soBRE ALP.THEIA Ao contrário da nossa 'verdade' - simultaneamente afirmação de uma qualidade e qualidade de uma afirmação 57 - a palavra alêtheia acha-se associada a um complexo percurso mental, individual e cultu- ral. É um substantivo, formada a partir da raiz lanth-/lêth-, cujo senti- do é negado (pelo alfa privativo: a-). A sua maior dificuldade de com- preensão reside, porém, na, para nós, irrelacionável diversidade de sig- nificados do verbo lanthanô, entre os quais se destacam dois: "estar oculto; ser ignorado, passar despercebido", "esquecer", na voz média 58 • Daqui resulta que 'alêtheia' contém uma dupla negação. A pri- meira acha-se expressa no sentido próprio da raiz: ocultação, esqueci- mento; a segunda decorre do prefixo privativo. Implica isto que, para um Grego, pelo menos de Homero em diante, a declaração da presença autêntica de algo só possa fazer-se através da negação da sua ausência. Portanto, como Heidegger bem viu 59 , o sentido original de alêtheia será "desocultação", que a um nível profundo associa os signi- ficados ativo e médio do verbo. Essa tese, porém, honra sobretudo o futuro filosófico e epistêmico do termo, incidindo principalmente na associação da verdade e do saber à reminiscência, necessária depois do 57 Dizer de algo que "é yerdade" pode ser lido como "esta proposição está incluída na classe das proposições verdadçiras"é (leitura extensiva), ou como "a verdade é a propriedade pela qual esta proposição se diz verdadeira" (leitura intensiva). 58 Os verbos gregos conjugam-se em três vozes: a ativa, a passiva e a média, cujas formas coinci- dem parcialmente com a passiva. A voz média é usada quando a acção recai de alguma maneira sobre o agente, tipicamente quando este tem interesse nela. 59 Vom Wesen der Wahrheit, Frankfurt am Mein, 1954. 87 esquecimento a que a alma é forçada ao entrar no corpo, como nota Platão no Pedro (246 b-250 c; vide República X 621 a; Fédon 75 d). Todavia, a fecundidade filológica da tese não faz jus ao argumento de Parmênides. Como o próprio Heidegger nota 60 , a verdade institui uma dupla concordância: entre a coisa e o discurso sobre ela, entre a coisa e ela mesma (poderia fala-se de essência, mas não é preciso). Um exemplo: uma moeda de cinco escudos. A afirmação "Esta é uma moeda de cinco escu- dos" é verdadeira se o objeto indicado por "esta" for de fato uma moeda de cinco escudos (e não de dez, vinte, etc.): este é o registo da verdade, como adequação da nossa compreensão à própria coisa. Mas pode acon- tecer que a moeda seja falsa. Nesse caso "esta" é uma moeda de cinco escudos, mas não "é" o que parece: este é o registo da autenticidade, como adequação da coisa à nossa compreensão. Ora o argu111ento de Parmênides caracteriza-se pela integral fu- são destes dois registos. "O ser é" é o pensamento em que a realidade (autêntica) e a verdade coincidem. Todavia, como a continuação do argumento vai mostrar, uma vez que só "o ser" é, porque só o ser é real, esta única afirmação acarreta não a falsidade (de resto, 'falsidade, ou 'falso', são termos de todo ausentes do poema), mas a impossibilidade de qualquer outra. Por esta razão, preferimos acentuar o registo da autenticidade, traduzindo alêtheia por 'realidade' (mais do que o outro ele é revelador do argumento). Por outro lado, o registo da verdade sugere a competi- ção entre proposições, pertinente no nosso mundo, porém, deslocado num contexto em que uma única proposição é possível ("é"). Á LOCALIZAÇÃO DOS FRAGS. 4 E 5 Os intérpretes mais sensíveis à lógica da argumentação de Parmênides gostam de acentuar a continuidade entre os frags. 1. 2, 3 e 60 Tradução francesa da Op. cit.: "De l'essence de la verité", Questions I, Paris, 1968, 159-192 (vide 163-8). 88 6. A apresentação seqüencial levanta, porém, um problema: o da loca- lização dos frags. 4 e S. Sem outras razões que não as que o bom-senso lhe ditou, Diels incluiu-os entre B3. e B6. Se os tirarmos daí, onde poderemos pô-los? Não há muitas opções. Vejamo-las. fragmento 4 Vê também como o que está longe pela mente se torna [firmemente presente: pois não separarás o ser da sua continuidade com o ser, nem dispersando-o por toda a parte segundo a ordem do mundo, nem reunindo-o. fragmento 5 [. .. ] para mim é o mesmo por onde hei-de começar: pois aí tornarei de novo. 1. Entre Bl e B2. É uma possibilidade. O frag. 5, pe!a sua referência ao começo e ao retorno a ele, poderia ser colocado em qualquer local. Mesmo antes do início do argumento do frag 2. Já, pelo contrário, o frag. 4, pela inclusão da referência a to eon, estaria aí desajustado. 2. Entre B2 e B3. · Ninguém advoga esta inserção. Mesmo aqueles que não encaram B3 como a conclusão natural de B2 não vêem sentido na proposta. 3. Entre B3 e B6. É a leitura tradicional, cujo único inconveniente reside em cortar a seqüência entre B3 e B6, perfeitamente natural, uma vez que B6 não passa de uma expansão de B3. 4. Entre B6 e B7. É outra possibilidade. Particularmente se encararmos B4 como uma introdução a B7. Nesse caso, como os dois fragmentos não têm de 89 ~ I I I I I I I J ~ I I j J j I I I J j ficar juntos, poderia explorar-se a possibilidade de o separar de B5, que, como vimos, não ficaria mal antes de B2. A ordem proposta será então Bl, B5, B2, B3, B6, B4, B7. Aí entroncao frag. 8, que conduz à Via da Opinião, na qual B4 e B5 não parecem ter lugar. Quanto ao sentido destes fragmentos, não parece pôr qualquer dificuldade. B5 prefigura, ou comenta, a circularidade do argumento da deusa, à qual já fizemos referência. B4 contempla a unidade do ser, confrontando-a com a separação, produzida e justificada pela ência da sensibilidade, como o frag. 7 proclamará. Como é que "o ser" pode aparecer separado na diversidade sensível? Como é que pode to- lerar, na diversidade, a unidade parcelar de cada uma das coisas? São perguntas para que não é oferecida resposta. Contudo, a advertência insere-se perfeitamente após a condenação expressa no frag. 6, desen- volvida num sentido metodológico no frag. 7. 2. 2 DESENVOLVIMENTO DO ARGUMENTO: A NOVA VIA O frag. 3 traz o argumento da deusa até a uma primeira conclu- são. A exploração dos dois caminhos do pensar tinha-os mostrado úni- cos, idênticos a si mesmos e opostos um ao outro. Da eliminação de um resultara então a identificação do outro com o próprio pensamen- to. O frag. 6 começa por alargar esta identidade ao discurso. Introduz, porém, uma nova ordem de razões. fragmento 6 É necessário que o ser, o dizer e o pensar sejam; pois podem ser, enquanto o nada não é:{. .. ] Em B2 o ser fora deduzido do pensar. Em B6.1, é o pensar (identi- ficado com o dizer e o ser) que vai ser forçado a ser. Os dois raciocínios são complementares. O ser opõe-se ao não-ser. O não-ser reduz-se ao 90 - - - -- . --.i. nada. Resta o ser como possível. Sendo, porém, o único, é forçoso que seja. A única possibilidade converte-se em necessidade. Em B3 a elimina- ção do não-ser conduz à identificação do ser com o pensar. Em B6.1 é o fato de nada poder resultar do nada que eleva a possibilidade à necessi- dade. Mas o argumento vai prosseguir num sentido inesperado. 2. 2. 1 UMA TERCEIRA VIA [. .. ] isto te ordeno que medites. Desta primeira via de investigação eu te <afasto> 61 , e logo também daquela em que os mortais, que nada sabem, vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade lhes guia no peito a mente errante; e são levados, surdos e cegos, a um tempo, estupefatos, multidão indecisa, que acredita que o ser e o não-ser são o mesmo e o não-mesmo, para quem é regressivo o caminho de todas as coisas. E eis que subitamente uma terceira via se ab're, para logo se fe- char. Aquela em que "vagueiam os mortais", que ainda não aprende- ram a respeitar a oposição do ser ao não-ser e por isso os confundem. O argumento da deusa regressa à eliminação da via negativa e às con- seqüências dela decorrentes. Os insultos de que os homens são alvo operam em dois registos. De um lado, os que denunciam a sua dupla natureza (que o frag. 16 irá aprofundar): "duas cabeças", "mente errante", "multidão indecisa", que confunde o ser com o não-ser ora sustentando que é, ora que não é. Do outro os que evidenciam as causas da sua incapacidade: surdos, quan- do julgam ouvir, cegos, quando crêem ver, estupefatos, quando imagi- nam que, falando, dizem alguma coisa. 6 1 Se aceitarmos a reconstituição proposta por Diels, não é muito clara a referência à "primeira via de investigação". Qual é ela? Suponhamos que se trata da via negativa, aceitando a conjectura consensualmente aceite. Um modo mais claro de dizer seria: "esta é a primeira via de investigação de que te afasto, mas logo também daquela ... " 91 I I I I I I I J j De início tanta veemência é surpreendente. Depois, com a continua- ção da leitura do poema percebemos que desde sempre foi aqui que a deusa quis chegar. A eliminação da segunda via, do não-ser, não é mais do que o instrumento que lhe vai permitir chegar às crenças dos mortais, à explicação de por que é que "passam todas através de tudo" e finalmente à lição que lhes possibilitará a correção do erro em que laboram. De resto, a radical alternativa entre os dois caminhos esboçados no frag. 2 seria bas- tante para excluir um meio termo: a aparência, "que é e não é". fragmento 7-8 Pois nunca isto será demonstrado: que são as coisas que não são; mas afasta desta via de investigação o pensamento, não te force a este caminho o costume muito experimentado, deixando vaguear olhos que não vêem, ouvidos soantes e a língua, mas decide pela razão a prova muito disputada de que falei. [. .. ] De novo volta a deusa à proibição de toda a mistura entre as duas primeiras vias, agora claramente apontada à terceira, na qual va- gueiam os mortais. B7. 2 é importante por manifestar na proibição a forma "afasta", da qual Diels colheu a sugestão para preencher a lacu- na de B6. 3. Mas os três últimos versos de B7 acrescentam duas impor- tantes novidades à mensagem da deusa. 2.2 2 SENSIBILIDADE E RAZÃO A primeira reside na perfeita caracterização da "via da opinião", como é tradicionalmente conhecida. Trata-se de uma prática induzida pelo "costume muito experimentado" do exercício da sensibilidade: a visão, o ouvido e a comunicação verbal. Neste contexto, os versos re- plicam, ponto por ponto e pela mesma ordem, as admoestações expres- sas em 6. 7, de forma a impedir qualquer confusão. 92 ~ - - = - - = ~ = = = - ~ = = ~ - - ~ - - - - - - - - ~ ~ - -- Mas B7. 5 confere à injunção divina um contorno inteiramente novo, também ele inesperado. Contra a entrega ao costume da prática sensível advoga a deusa o exercício da razão, através da "prova muito disputada" (é evidente - e pretendemos mantê-lo na tradução- o para- lelo da expressão com o "costume muito experimentado" de 7. 3). A lição é de enorme alcance. Levanta, porém, nada menos de três questões de tradução, que convém esclarecer previamente. A primeira tem a ver com "decide" (krinai) . A 'decisão' desempe- nha uma função capital na economia da mensagem divina. Em B6. 7 a "multidão indecisa" (akrita phyla) é a que hesita entre o ser e o não- ser, confundindo um com o outro. Em B8. 15-16, a "decisão" (krisis) consiste precisamente na oposição do ser ao não-ser, com que é mister contrariar a '"mistura' (krasis) dos membros errantes" de B 16. 1. A segunda é a 'razão'. O termo usado é lagos. A oposição· à sensibilidade sugere encontrarmo-nos perante o apelo à faculdade raciocinativa, à qual caberia a correção dos costumes dos homens. Esta interpretação enquadra-se perfeitamente no rigor da estratégia argumentativa atrás desenvolvida, completamente violentadora das experiências sensíveis (como o frag. 4 em síntese comenta, através da oposição "do que está longe" àquilo que pela mente se toma presente). Mas o termo grego evoca outras conotações, que cumpre manter vivas, pelo menos pelo seu poder sugestivo. Lagos é também 'argumento', 'argumentação', sempre raciocinada. Pelo que só ganhamos potenciando cada um dos sentidos através do outro 62 • 2. 2. 3 A FUNÇÃO DO DEBATE NA REFLEXÃO E NA BUSCA DO SABER A terceira reporta-se à "prova muito disputada", que também pode ser entendida como "originando muitas disputas" (uma vez mais, a ca- racterística poética adequa-se bem à manutenção de ambas as leituras). 62 De resto o uso do dativo instrumental consente ambas as leituras. O dativo é, em Grego, o caso (aspecto da flexão nominal) que inclui os diversos complementos circunstanciais: o "instrumento" é um deles. 93 I I J I I I I I I J l I I J J J I li I I I I Levando inteiramente a sério a exortação divina, o que, na com- plexidade dos sentidos que permite, o verso sugere é que o jovem se deve entregar à defesa do argumento (que argumento? Aquele "de que falei" - B 7. 6a) através do debate. Não é possível exagerar a importân- cia e as conseqüências deste conselho. O que a deusa está a aconselhar o jovem a fazer é a confrontar-se pelo debate com todos aqueles que contrariem a força do argumento expendido. E a entrada direta no assunto, ao longo de todo o frag.8, enuncia as principais teses às quais há que opor a força da razão/ argumentação. 2. 2. 4 Os SINAIS DO SER Terminado o argumento que dirigiu aos mortais, a deusa proce- de de seguida à caracterização do tipo de debates a que acabou de exortar o jovem. Partindo da premissa inicial "é:', desenvolve quatro argumentos, tendentes ao estabelecimento de outras tantas teses sobre o ser. O seu objetivo último é definir as linhas de refutação de algumas posições comummente defendidas nas discussões entre "homens sabe- dores" (sophoi). Nesse sentido, é natural supor que os seus destinatári- ·os serão, como o jovem virá a ser, figuras ilustres da tradição reflexiva grega (nomeadamente os Pitagóricos a quem Parmênides poderia estar associado) 63 • 2. 2. 4. 1. 0 SER É INGÊNITO E INDESTRUTÍVEL [. . .] . Só falta agora falar do caminho que é. Sobre esse sãp muitos os sinais de que o ser é ingénito e indestrutível, pois é compacto, inabalável e sem fim; 5 não foi nem será, pois é agora um todo homogéneo, uno, contínuo. Com efeito, que origem lhe invest-igarias? Como e onde se acrescentaria? Nem do não-ser te deixarei 63 Vide Kirk & Raven, The Presocratic Philosophers, Cambridge, 1966, 264-5. 94 falar, nem pensar: pois não é dizível, nem pensável, visto que não é. E que necessidade o impeliria 1 O a nascer, depois ou antes, começando do nada? E assim, é necessário que seja de todo, ou não. Nem a força da confiança consentirá que do não ser nasça algo ao pé do ser. Por isso nem nascer, nem perecer, permite a Justiça, afrouxando as cadeias, 15 mas sustem-nas: esta é a decisão acerca disso - é ou não é - ; decidido está então, como necessidade, deixar uma das vias como impensável e inexprimível (pois não é via verdadeira), enquanto a outra é e é autêntica. Como poderia o ser perecer? Como poderia gerar-se? 20 Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser. E assim a génese se extingue e da destruição se não fala. A argumentação da deusa sobre a impossibilidade de gera- ção e destruição do ser, embora assente na estrutura atrás desen- volvida, apresenta algumas novidades momentosas. B8. 4 enuncia três características do ser, que só poderemos interpretar fisicamen- te: é "compacto, inabalável e sem fim" 64 • Estes três "sinais", atri- butos, indicam que o ser não tem soluções de continuidade (não admite o vazio), não pode ser movido, ou deslocado, e não come- ça, nem acaba, no espaço e no tempo 65 • Esta última idéia é desen- volvida pela continuação do argumento: o ser é um eterno presen- 64 Alguns intérpretes interpretam "sem fim" (ateleston) como "infinito", com o sentido que habitu- almente atribuímos hoje a esta noção (por exemplo, R. Mondolfo, El Infinito en el pensamiento de la Antiguedad Clásica, 1942 trad. port. : O Infinito no Pensamento da Antiguidade Clássica, S. Paulo, 1968, 101, 344-8). Não podemos estar de acordo, por razões textuais e culturais. Em primeiro lugar, por entrar em contradição (apesar do que sustenta Mondolfo) com outros atributos do ser, expressos mais adiante: ouk ateleutêton : "não incompleto" (B8. 32; tetelesmenon pantothen, "completo por todos os lados": B8. 42-3. Finalmente, por, com excepção de Melisso (por isso criticado por Aristóteles, que, na Física A, recorre a ele para refutar o vide Sobre a geração e a corrupção, A 8, 325 a3 segs.), a generalidade dos pensadores gregos encararem o infinito negativamente, como uma carência de forma, de fim. 65 Se não acaba, não tem fim. Logo é infinito. A contradição com o que sustentámos na nota anterior é aparente e será resolvida mais adiante (vide B8. 43 segs). 95 te, uno, homogêneo e contínuo. Sem admitir outro além dele, e, no seu seio, pregas, ou partes. A novidade surge agora, com a interrogação sobre as razões que justificariam uma qualquer origem, ou fonte de alterações de que o ser seria produto. Não pode haver nenhuma. Porque a única que se imaginaria só podia ser o não-ser. Todavia, a indizibilidade e impensabilidade deste, justificada pela sua impossibilidade, impedem-no. O questionamento das razões para que algo seja, ou melhor, a idéia de que para tudo tem de haver uma razão de ser, manifesta a primeira aparição de um "princípio da razão suficiente". A falta de uma razão suficiente, na duração ( 8. 10) e no lugar ( 8. 13), proíbem a origem e a destruição do ser. Ou seja, carecendo de razão para nascer, ou morrer, num qualquer momento, ou determinado lugar, impedem-nos de pensar que foi gerado, ou será destruído. Ficará, pois, con- tido num eterno presente, sem passado nem futuro, de onde não pode sair. 2. 2. 4. 2 É INDIVISÍVEL. Nem é divisível, visto ser todo homogéneo, nem num lado é mais, que o impeça de ser contínuo, nem noutro menos, mas é todo cheio de ser 25 e por isso todo contínuo, pois o ser é com o ser. A mesma razão que não consente o vazio é válida para a afirma- ção da indivisibilidade do ser. Dividi-lo implicaria torná-lo discreto (uma sucessão de partes, ou pontos insusceptíveis de divisão). Mas o ser é contínuo. E cheio, pleno 66 • 66 A idéia de qt1e o ser é pleno recorre na tradição pós-eleática, com a única excepção dos Atomistas (para quem a realidade era composta de átomos e vazio) . Pelo contrário, a tese aristotélica de que "a natureza tem horror ao vazio"- que em nada se afasta do aproveitamento que, no Timeu 57 c, Platão faz do pleno para explicar a perpetuidade do movimento - invade toda a Física medieval, passando daí para a filosofia moderna. A tenacidade com que o vazio foi negado deve-se à argumentação eleática, bem como à identifica- ção, operada por Aristóteles na sua crítica aos Atomistas, do vazio com o não-ser. É ainda com base numa argumentação análoga que Descartes vai identificar extensão e corpo, negando consequentemente o vazio. Leibniz e Kant sustentarão essa mesma tese, porém, com argumentos sintéticos, derivados da experiência. 96 vNíVEHStD:-\L!:: t;: P;:Ri C: .. .. t. 2. 2. 4. 3. É IMÓVEL. Além disso, é imóvel nas cadeias dos potentes laços, sem princípio nem fim, pois génese e destruição foram afastadas para longe, a convicção verdadeira as repeliu. O mesmo em si mesmo permanece e por si mesmo repousa, 30 e assim firme em si fica. Pois a potente Necessidade o tem nos limites dos laços, que de todo o lado o cercam. A imobilidade deve ser entendida em duas dimensões: no espaço e no tempo. E conseqüentemente em dois aspectos: o do movimento e o da mudança. Tal como se deu em relação à impos- sibilidade de um momento, ou de um lugar (como já vimos), em que comece ou acabe, ao ser é impossível qualquer alteração. E porquê? De novo tornamos ao primeiro argumento, com a men- ção da ingenitura e indestrutibilidade do ser. E, no entanto- veja- se o que dissemos acima-, a ausência de um fim não o impede de estar "cercado". O alcance da tese é enorme. O ser não pode de alguma maneira "sair de si" (é isso mesmo que atesta 8. 29). Pois como poderá continu- ar a ser, se minimamente não é o mesmo, "como", ou "o que" antés era, ou depois será? E por que "antes", ou "depois" etc.? 2.2.4.3.1 IMOBILIDADE E IMUTABILIDADE NOS SEGUIDORES DE PARMÊNIDES Pela violência que exerce sobre a sensibilidade, a tese da imobili- dade e imutabilidade do ser é aquela em torno da qual os pensadores pós-eleáticos mais se dividirão. É também aquela que exigirá mais da imaginação filosófica. Os Eleatas - Zenão e Melisso - sustentam-na até ás últimas con- seqüências. O segundo contrapondo-lhe o ser, que "nada tem mais for- 97 te" que ele (DK30B8) 67 • O primeiro com uma série de argumentos que atestam as impensáveis conseqüências da adf!lissão do movimento e da mudança 68 • Todavia, a experiência do movimento e da mudança é demasia- damente frequente para poder ser erradicada da mente. Na tradição reflexiva, três pensadores vão tentar acomodá-la à veemência do inter- dito eleático: Empédocles, Anaxágoras e Demócrito. Reinterpretando poeticamente o ser na forma de quatro ele- mentos divinos e eternos, Empédocles explica movimento e mudança como a "dupla história" da mistura e separação destes. O àrtifício reside na preservação da identidade de cada um dos elementos de cuja combinação deriva a ordem do mundo em que vivem os homens. Enquanto estes se mantiverem unos e imutáveis, as conseqüências da violação do argumento da deusa não se tornarão efetivas. Torna-se assim possível conceber toda uma teoria do devir. Embora a difícil coabitação da razão e da sensibilidade se faça com o sacrifício da visão ingênua do mundo 69 • Análoga reinterpetação do ser eleático é levada a cabo por . Anaxágoras e pelos Atomistas: para o primeiro, o ser é constituído por partículas infinitamente divisíveis, nas quais se acham todas as coisas; para os segundos, por mínimos indivisíveis: os átomos. Postulando a infinita divisibilidade das suas partículas, Anaxágoras adia indefinida- mente o problema da sua identificação: resolve assim a mudança na suspensão da identidade (se uma coisa não é isto, ou aquilo, também não deixa de o ser). Mais fecunda é a solução atomista, que explica a diversidade pelo número infinito e pela não menos infinita variedade de átomos, cujas propriedades resultam exclusivamente da sua forma, e da posição e disposição com que se combinam uns com os outros. Ao moverem-se 67 Ver a análise deste argumento em Kirk & Raven, Op. cit. 315; ou em José Trindade Santos, Op. cit. 193-5. 68 Vide Kirk & Raven, Op. cit., 299-305; J. T. Santos, Op. cit., 188-92. 69 Vide J. T. Santos, Op. cit., 214-8. 98 '-"=------- - - - - - -- no vazio, os átomos chocam e emaranham-se, dando origem aos mun- dos e a tudo o que neles há. Como se vê, a proibição eleática não é violada, uma vez que a contrariedade qualitativa fica subsumida na unidade física (os átomos são compostos sempre pela mesma "maté- ria"), e a mudança ocorre sem que a identidade do ser seja beliscada. 2. 2. 4. 4. É COMPLETO. Portanto não é justo que o ser seja incompleto: pois não é carente; ao [não-] ser, contudo, tudo lhe falta. Sem origem, nem fim, indivisível, imóvel, ao ser nada falta (ao contrário do que acontece ao não-ser) . Está, portanto, completo. O que significa que se não acha em processo, à espera do que quer ~ e seja que se lhe acrescente, ou seja retirado. A tese da completude do ser complementa a da sua imobilidade e imutabilidade. A influência que exerce na tradição é, como se viu, deci- siva. Todavia, as mais ambiciosas teorias sobre o movimento e a mu- dança no pensamento grego são as de Platão e Aristóteles, cada uma das quais exigiria não menos de um livro para poder ser apresentada. 2. 2. 5 SUMÁRIO Concluída a exposição das quatro teses, o argumento sobre os sinais do ser é interrompido para a apresentação de duas sínteses. A primeira constitui um sumário. de toda a "Via da Verdade". A segunda funciona, por assim dizer, como uma ilustração, uma representação visível, do ser. O mesmo é o que há para pensar e aquilo por causa de que há pensamento. Pois, sem o ser- ao qual está prometido 70 -, 7 ° Como uma noiva a um noivo, é a idéia expressa pela utilização do verbo phatizô. 99 - I não acharás o pensar. Pois não é e não será outra coisa além do ser, visto o Destino o ter amarrado para ser inteiro e imóvel. Acerca dele são todos os nomes que os mortais instituíram, confiantes de que eram reais: "gerar-se" e "destruir-se", "ser e não ser", "mudar de lugar" e "mudar a cor brilhante". É imensa a importância desta passagem do poema e diversos os problemas que contém. Começa com uma reavaliação do argumento explanado nos frags . 2, 3 e 6, que pode ser lida como uma expansão das identidades de B3 e B6.1. A medida da identidade entre o ser e o seu correlato, o pensamento, alargou-se até não ser possível um sem o outro. Tornando à solenidade do pronunciamento adotado no proêmio, a deusa legitima todo o argumento tanto pela força do raciocínio (que o discurso divino converte em norma), quanto pelo Destino cósmico - a ordem inabalável do todo- que enlaçou um no outro. 2. 2. 5. 1 0 PENSAMENTO E OS NOMES Que dizer então daquilo a que os mortais chamam ' pensar'? An- tes da explicação do frag. 16, uma única observação é oportuna. Todos os nomes inventados pelos homens são sobre o ser. E, entre estes, o punhado respigado como exemplo atesta múltiplas violações: da ingenitura e indestrutibilidade (vide 8. 3-21), da irreversibilidade ( 6. 8- 9) e imobilidade (8. 26-31) do ser. O tópico é de uma importância a que a passageira referência não faz justiça. Se todos os nomes são sobre o ser (é o que afirma 8. 38), todos eles não poderão senão referi-lo (função denominativa), ou descrevê-lo (função descritiva): ou seja, de "o ser" afirmar "é". Ora estes nomes começam por não ser do ser (por dizerem coisas que o ser não é), sendo, portanto, de nada. Além disso, afirmam impossibilida- des (entre aquelas que os argumentos do frag. 8 sucessivamente refuta- ram). E a denúncia não vai por ora mais longe. 100 2. 2. 6 A ESFERA Visto que tem um limite extremo, é completo por todos os lados, semelhante à massa de uma esfera bem rotunda, em equilíbrio do centro a toda a parte; pois, nem maior, 45 nem menor, aqui ou ali, é forçoso que seja. Pois nem o não-ser é, que o impeça de chegar até ao mesmo, nem é possível qlfe o ser seja maior aqui, menor ali, visto ser todo inviolável: pois é igual por todo o lado, e fica igualmente nos limites. Todos os atributos do ser, deduzidos da sua afirmação, e da sua irredutível oposição ao não-ser, são agora condensados numa imagem visível. Ora aquela que mais adequadamente reflete a dupla identidade- formal e material- do ser é a de uma esfera: pela regularidade, perfeição e plena coincidência consigo mesma. Percebemos agora o possível senti- do do "sem fim", e "sem princípio nem fim" (8. 4, 27). A perfeita regula- ridade da esfera permite que cada um dos pontos da sua circunferência seja simultaneamente princípio e fim. (É isso mesmo que o frag. 5 sus- tenta). Fica desta maneira resolvida a aparente contradição entre a afir- mação da infinidade do ser e a declaração dos seus limites. 3. A Via da Opinião Com esta imagem do ser conclui a deusa a sua síntese da cadeia de argumentos em que ficaram expostos os sinais do ser. Num certo sentido, a mensagem da deusa chegou ao fim. E, no entanto, não tinha ela no início advertido o jovem de que teria de "tudo aprender" (1. 28)? Tendo então cessado o seu "discurso fiável", "digno de confi- ança" (piston logon), o que é que a leva a abordar o estudo das "cren- ças dos mortais"? 101 3. 1 Ü ALCANCE DA VIA DA VERDADE Onde quis a deusa chegar com a enumeração dos sinais do ser? Será que alguém poderia seriamente acreditar que no mundo em que vivia não havia nascimento e morte? Ou que toda a divisão era impossível? Ou pluralidade? Que era completamente destituída de qualquer forma de movimento e mudança? Ou de crescimento? Não é obviamente possível responder com certeza a qualquer destas perguntas. E, contudo, a oposição do "caminho muito experi- mentado" (B7. 3) à "prova muito disputada" (B7. 5) não pode ser mais funda. Como ultrapassá-la? 3. 1. 1 A RELAÇÃO ENTRE A REALIDADE/VERDADE E A APARÊNCIA Se aceitarmos que a afirmação do ser conduz à rejeição das cren- ças dos mortais, temos todas as razões para questionar a veracidade da experiência sensível. Daí à introdução de significativas alterações no quo- tidiano dos homens vai uma enorme distância. A autenticidade da iden- do ser com o pensar não pode ser posta em causa. Mas não será por isso que os homens terão de passar a ignorar os fatos do movimento e da mudança, do nascimento e da morte, e assim por diante. O que o argumento introduz é um insanável conflito entre a experiência sensível e a realidade pensável. Conflito que deverá ser resolvido através da reflexão, e que não poderá deixar de ocupar uma posição fulcral nas tentativas feitas para alcançar o saber. Não será, portanto, caso para considerar falsas e destituí- das de sentido todas as formas de experiência sensível (apesar de, durante quase um século, alguns dos mais ilustres comentadores do poema o terem sustentado 71 ). Nem para nos 71 Mesmo depois da aparição da, atrás refetida, obra de Giovanni Casertano- a primeira a defender o valor positivo da doutrina parmenídea sobe a doxa -,os estudiosos preferem não se pronunciar sobre esta questão de vital importância para a compreensão do poema: afinal quais são as consequências da refutação das crenças dos mortais, ou que sentido atribuir ao tratamento que lhes é conferido, após a sua tão completa rejeição? 102 ---. .. • • i.: entregarmos à defesa integral de uma concepção de saber que ignore a sensibilidade. O sentido da crítica eleática- não só o do poema de Parmênides, mas o dos argumentos de Zenão, de Eleia, e do poema de Melisso, de Samos -,reside na dupla chamada de atenção para a autenticidade do pensamento e para a correlativa impensabilidade da experiência sen- sível. Cada um destes fatos tem de ser compreendido e a compatibilização de um com o outro terá de constituir a finalidade última de toda a concepção que se pretenda constituir como "saber". Explicar a aparência, integrá-la num quadro concetual pensável, defme então uma exigência mínima de rigor e coerência do pensar. De outro modo, o saber dos mortais não mais deixará de oscilar entre a hesitação acrítica e a estática aridez da defmitiva constatação de que" o ser é". Ou seja, é tão insentata a tentativa de encontrar no sensível um saber autêntico, que pretenda o ser, quão inútil ficar pela encantatória repetição do único saldo positivo do argumento da deusa: "é". Não pode ser mais clara a exortação dirigida ao jovem, na conclusão do argumento contra a doxa : "decide pela razão a prova muito disputada de que falei", ou" ... pelo argumento a refutação que dá origem a muitas disputas" (qualquer das traduções é correta). Foi assim que Parmênides foi entendido por quantos se lhe segui- ram na tradição reflexiva grega 72 • Passarão séculos até que o neoplatonismo e o neopitagorismo ensaiem uma aproximação do sa- ber que ignore de todo a via da opinião. 3. 1. 1. 1 ÜS DESTINATÁRIOS DA MENSAGEM DA DEUSA Mas então é impossível pensar que o poema não visa nenhum dos que, antes de Parmênides, se entregaram à busca do saber. Durante muitos anos, explorando uma coincidência superficial com Heráclito, 72 Como vimos, Zenão e Melisso aprofundaram as conseqüências da sua mensagem. Empédocles, Anaxágoras e os Atomistas reinterpretaram-no (conferindo novos sentidos ao ser). Platão e Alistóteles construíram amplas sínteses do saber grego, a partir da aceitação da identidade do ser e do saber. Os sofistas entragaram-se à desvalorização do saber (Górgias), ou à reabilitação da aparência (Protágoras). 103 além de uma oposição de fundo nas obras dos dois pensadores 73 , tor- nou-se habitual afirmar que o poema visava, na realidade, as doutrinas do Efésio. Mas já muito poucos sustentam hoje essa tese. Não é, porém, forçoso personalizar a questão. Mesmo sem ter de pensar nesta ou naquela figura da tradição, não há dúvida de que o poema . critica todos aqueles que- e quantos o não fizeram?- antes de Parmênides apontaram uma origem para o cosmo. Ou os que consentiram uma emer- gência dos contrários (Anaximandro: DK12A9; vide Aristóteles Física A 4, 187 a20 segs.; Pseudo-Plutarco Strômateis 2). Mas decerto a denegação de alcance epistêmico às conjecturas dos mortais não podia deixar de visar as discussões entre intelectuais, que terão constituído o verdadeiro suporte para a transmissão oral das opiniões "dos que primeiro filosofaram". Para todos esses, e ainda naqueles em quem, como em Parmênides e Aristóteles, é notável a indistinção entre "fatos" e (para o Eleata vide atrás 1. 2. 2; para Aristóteles Metafísica B 1 74 ), a investiga- 73 A contradição de fundo reside na radical oposição entre uma defesa da identificação da realidade com o movimento- "tudo flui" (Platão Crátilo 440 c)- e com o repouso (Parménides frag. 8. 26 segs); a coincidência superficial é entre a palintonos [ou palintropos] harmoniê de Heraclito ("Não compreen- dem como o que difere consigo mesmo concorda: como a harmonia de tensões opostas [ou reversível] entre o arco e a lira": BSl) e o palintropos keleuthos (o "caminho reversível") de Parménides B6. 9. 74 "Em relação à ciência que estamos a investigar [a Metafísica], é necessátio examinar primeiro as apórias (aporêsai) que começam por se nos apresentar, as que acerca dessa questão outros conside- raram, bem como o que fora delas terá sido omitido. Os que querem ultrapassar as a porias (euporêsai) hão-de começar por explorá-las bem (diaporêsai kalôs), pois a posterior ultrapassagem das a porias (euporia) resulta de se desenvencilharem das aporias anteriores (lysis tôn proteron aporoumenôn), e não se desenvencilha quem desconhece o nó, além de que a aporia da reflexão aponta para a da coisa, visto que quem está na aporia (aparei ) fica imobilizado, como quem está amarrado: um e outro são incapazes de avançar em frente. Por isso se torna necessário contemplar primeiro todas as dificuldades, não só pelo que foi dito, mas porque os que investigam sem terem explorado antes as apotias (diaporêsai prôton) são semelhan- tes aos que ignoram onde devem it; por nem sequer saberem se encontraram o que buscavam; pois a finalidade [da investigação] só é manifesta a quem previamente considerou as a porias (proêporêkoti) . E ainda é necessário que se ache em melhor situação para decidir aquele que- como se de litigantes se tratasse - deu ouvidos a todos os argumentos opostos". (Aristóteles, Metafísi ca B 1, 995 a23-b3). Para além de outros aspectos não menos importantes, o texto evidencia a importância das "apotias" (note-se a repetida referência ao tetmo, através dos compostos do verbo aporein) no método de inves- tigação de Aristóteles, justamente designado de "diaporemático". Ora o que é uma apotia? Uma difi- culdade, um problema que deixa o investigador embaraçado, e para o qual ele apresenta uma solução, pelos outros considerada insatisfatótia (por isso, apresentam, também eles, as suas soluções). É surpre- endente que Aristóteles se proponha a investigar a realidade, considerando-a partir do estudo das apatias, ou seja, das dificuldades que persistem nas opiniões daqueles que o antecederam. Deverá começar por considerar as aporias (aporêsai) com que os outros se confrontaram, isolá-las, explorá-las bem (diaporêsai kalôs: estudando-as noutros que sobre elas se debruçaram) e finalmente resolvê-las (euporein) . Uma vez mais, saber e ser coincidem. 104 - ção do ser- o saber- não pode separar-se da recuperação crítica, polê- mica mesmo, das opiniões dos que os antecederam. Neste sentido ain- da, a intenção controvesa de 7. 5 constitui não só o único meio de advogar a entrega à busca do saber, como também a forma de, por excelência, promover a sua manutenção e divulgação, assegurando ainda a educação das novas gerações: sempre, como hoje, atraídas por todas as formas de exibição pública de capacidades, como forma de afirma- ção pessoal e social. Todas estas intenções se acumulam então na dedicatória crítica às opiniões dos mortais. Convergem deste modo duas finalidades: por um lado, são expostas as opiniões dos que o antecederam na tradição; por outro, é denunciado o erro em que caíram e apontado o remédio para ele. Mas há ainda algo de muito importante a acrescentar, a que já fize- mos referência e a que tomaremos quando chegarmos aos frags. 9, 16·e 19. A estes conferiremos, portanto, redobrada atenção. Mas voltemos pela última vez ao frag. 8. 3. 2 As DUAS FORMAS 50 Nisto cesso o discurso fiável e o pensamento em torno da verdade; depois disso as humanas opiniões aprende, escutando a ordem enganadora das minhas palavras. E estabeleceram duas formas, que nomearam, das quais uma não deviam nomear - e nisso erraram -, 55 e separaram os contrários como corpos e postaram sinais, separados uns dos outros: aqui a chama do fogo etéreo, branda, muito leve, em tudo a mesma consigo, mas não a mesma com a outra; e a outra também em si contrária, a noite sem luz, espessa e pesada. 60 Esta ordem cósmica eu te declaro toda plausível, de modo a que nenhum saber dos mortais te venha transviar. 105 Os versos 50-2 declaram o fim do discurso verdadeiro e anunciam o início da chamada "via da opinião". A caracterização das "crenças dos mor- tais", feita através da indicação das "duas formas" ... "que nomearam", co- meça com uma nota crítica: " ... e nisso erraram". Erraram porque nomea- ram "duas", quando já ficou sobejamente demonstrado que só deviam ter nomeado uma, visto que só "o ser é" e" ... a ele se referem todos os nomes que os mortais instituíram, convencidos de que eram reais ... " (8. 39). Depois disso separaram os contrários: um identificado com o fogo (ou o sol), outro com a noite (as trevas). A crítica visa aqui implicita- mente a tese, tipicamente jônica 75 , da constituição das coisas através da mistura (krasis) das qualidades opostas que suportavam. Assim, de um lado estava o fogo, sumamente quente e raro, do outro a terra, fria e densa. No meio, achavam-se o ar - quente e rarefeito - e a água - fria e pouco densa. A mistura destas qualidades era produzida, e explicada, pela mistura física, das substâncias materiais que as suportavam. É isso mesmo que a deusa afirma em 8. 56-9. Os dois últimos versos criticam este ensinamento e indicam a sua justificação. A plausibilidade, verosimilhança, desta ordem cósmica foi transmitida ao jovem para que este ~ o se deixe enganar por nenhuma outra tentativa empreendida pelos mortais. Talvez este dado, prestado de forma aparente casual, constitua um indício precioso sobre a finalidade da via da opinião. Neste sentido, ela conteria menos um ensinamento positivo do que uma súmula crítica do saber dos físicos, que o jovem deverá desaprender. No entanto, como veremos, o tom de muito do que se segue excede esta visão limitada. 3. 2. 1 DIALÉTICA E ERÍSTICA fragmento9 Mas, uma vez que tudo é chamado luz ou noite e o conforme a estas potências é dado a isto e àquilo, 75 Os pensadores jônicos, a que Aristóteles chamará "físicos", ou "fisiólogos", por se dedicarem ao estudo da natureza e do movimento, são Tales, Anaximandro e Anaximenes, de Mileto. Tradicio- nalmente, o seu "florescimento" estende-se ao longo do séc. VI. 106 tudo é igualmente cheio de luz e de noite obscura, 4 ambas iguais, visto cada uma delas ser como nada. A veia dialética do frag. 8 continua no 9. Estes quatro versos prestam-se a diversas leituras: todas elas jogando sobre a ambiguidade e o carácter vago e equívoco com que certas expressões são usadas. Por exemplo, qual é o referente do "tudo" de 9. 1? É "todas as coi- sas", real ou aparentemente? Se é realmente, então a atribuição é errada, porque só um nome lhe conviria, não dois. Mas, se é aparen- temente, então o erro manifesta-se mais adiante. Porque "tudo é igual- mente cheio de luz e de noite obscura, ambas iguais". Aqui de novo como deve ser lido o "tudo"? Se realmente, é errado como acima. Mas, se aparentemente, então não "é"; ou, se" ... é igualmente cheio de luz e de noite escura, ambas iguais", como é que podem ser iguais, se são diferentes (têm nomes diferentes)? Ou ainda, são duas e dife- rentes, mas também iguais, porque cada uma delas é nada. Mas então não podem ser nem sequer uma. Este tipo de refutação mostra como a dialética (e a erística: arte da disputa verbal) é uma criação eleática. A tese é demonstrada pela exibição das contradições, do absurdo, a que conduz a defesa da antítese (a doutrina que se lhe opõe). É esta dimensão da influên- cia eleática que os sofistas mais nitidamente explorarão. Voltare- mos a este tópico. 3. 3 A POSITIVIDADE DA OPINIÃO Fragmento 1 O E conhecerás a natureza do éter e no éter de todos os sinais e dos raios da pura lâmpada do sol as obras destruidoras, e de onde nascem, e conhecerás as obras que rodam em torno da lua de olho redondo e a sua natureza, e saberás do céu que os tem à volta, 107 I e de onde nasce, e como guiando-o a Necessidade o obriga a conter os limites dos astros. O fragmento 1 O parece exteriorizar uma atitude bem diferente da expressa nos dois fragmentos anteriores, transmitindo a sensação de haver um ensinamento real acerca da aparência. Mas aqui é a natureza fragmentária em que nos chegou o poema que impede uma decisão nítida. E será assim para todos os fragmentos que estudarmos a seguir, como dissemos, com a exceção de B 16 e B 19. É chamada a atenção para o espaço cósmico em que se acham localizados o Sol e a Lua. E para os efeitos destes astros sobre a vida na Terra. Alude-se finalmente a uma ordem que explica a regularida- de dos movimentos dos astros. Sabemos da importância que a astro- nomia caldaica, e depois a grega, vão conferir ao estudo destes movi- mentos irregulares, conspícuos (bem visíveis), salientes, na regulari- dade das estrelas do céu. Mas será preciso esperar pelo Timeu pla- tônico para chegar a um discurso coerente e informativo sobre a as- tronomia grega clássica. 3. 4 ASTRONOMIA E FISIOLOGIA fragmento 11 ... como a terra e o sol e a lua e o éter que a tudo é comum e a via láctea e o Olimpo extremo e o calor ardente dos astros forçados a nascer. Nada de interessante parece dever ser acrescentado a esta sumá- ria descrição dos céus. O "calor ardente dos astros forçados a nascer" só parece poder conter uma referência ao Sol. 108 fragmento 12 1 Pois as coroas mais estreitas enchem-se de fogo sem mistura e as que vêm à noite depois destas, mas com elas lança-se uma parte de chama. No meio delas está o espírito que governa tudo; pois em tudo comanda o parto doloroso e a mistura, impelindo a fêmea a unir-se ao macho, e ao contrário o macho à fêmea. Aqui, contudo, achamo-nos diante de um ensinamento positivo, claramente identificado com a transmissão de um saber humano. Pare- ce estarmos perante uma doutrina que explica o ordenamento cósmico e a união sexual dos humanos. Há "um espírito que governa tudo", que "comanda ... a mistura", tanto dos seres humanos, quanto a dos astros, cujas coroas se enchem de fogo, umas "de fogo sem mistura", outras com " ... uma parte de chama". Talvez a imperceptível doutrina vise a caracterização das circuns- tâncias em que se pode falar de mistura, ou das suas conseqüência físicas e fisiológicas. Particularmente da mistura dos sangues, responsável pela geração dos seres. A este ponto, o frag. 18 tem algo a acrescentar. fragmento 18 Quando a mulher e o homem juntos misturam as sementes de Vênus, a força que se forma nas veias a partir de sangues diversos, mantendo o equilíbrio, gera corpos bem formados. Se, contudo, misturados os sémens, as forças se opõem, e não fazem unidade, misturados no corpo, cruéis, atormentam o sexo da criança com o duplo sémen. O fragmento parece imputar às "forças que se opõem" a responsabili- dade pelas malformações das crianças e os sofrimentos de que são vítimas. 109 r fragmento 13 Primeiro que todos os deuses Eros foi concebido. Nada de novo também aqui. A referência a Eros traduz habitual- mente a emergência de uma força atrativa entre os seres, que os leva à reprodução. fragmento 14 Facho noturno, em torno à terra, alumiado a uma luz alheia O que constitui "um dos mais belos versos da literatura grega 76 " de- signa evidentemente a Lua e pode bem acoplar-se ao fragmento seguinte. fragmento 15 Sempre à espreita dos raios do sol. fragmento 15a Parmênides no poema diz que "a terra tem raízes na água". Uma afirmação, respigada de um escólio de Basílio. É interessan- te na medida em que evidencia um sinal da carreira de Parmênides como "físico" (investigador da natureza). fragmento 17 À direita os machos, à esquerda as fêmeas 76 Jean Beaufret, Parménide. Le poeme, Paris, 1955, 8. 110 I \ ·F· ·-. · Provavelmente uma teoria sobre a formação dós sexos no útero materno. Veja-se o paralelo com as tábuas dos pitagóricos: de um lado o Limite, ímpar, uno, direito, macho, em repouso, retilíneo, luz, bom, quadrado; do outro, o Ilimitado, par, múltiplo, esquerdo, fêmea, em movimento, curvo, obscuridade, mau, oblongo (vide Aristóteles Metafísica A 5, 986 b23-6). 3. 5 Ü PENSAMENTO E A MISTURA fragmento 16 Pois, tal como cada um tem mistura nos membros errantes, assim aos homens chega o pensamento; pois o mesmo é o que nos homens pensa, a natureza dos membros, em cada um e em todos; pois o mais [o pleno] é o pensamento. Pode ser que não tenha qualquer significado especial. Todavia, depois de não ter usado uma única vez, nos fragmentos que possuímos do poema, o termo ' homem' (anthrôpos ; para se referir ao gênero humano recorre sempre a brotos : "mortal"), Parmênides usa-o duas vezes neste fragmento (e de novo em B 19. 3). De resto, a importância deste fragmento é enorme, lançando uma nova luz sobre a origem e o sentido da sensibilidade e das crenças dos mortais. Os frags. 8 e 9 tinham-nos já despertado para as "duas for- mas" contrárias, da mistura das quais, presume-se (com alguma base em B12 e B18), nascerão os homens e provavelmente todos os seres, animados e inanimados. · Ficamos agora a saber que - tal como permeavam a natureza do cosmos (poderá ser esta a chave para a compreensão de B 1. 32: "pas- sando todas através de tudo") - as duas formas se combinam no ho- mem ('membros' é um termo poético para designar o inexistente "cor- po", ou até os sentidos). 111 I I I I I I I I I I I I Ora, tal como são constituídos pela mistura, assim os homens perct:bem a mistura 77 • E, no entanto- e aqui o jogo entre os sentidos contrauitórios quase atinge o paroxismo-, nos homens é o mesmo que pensa (o paralelismo com B3 não pode ser fortuito): "a natureza dos membros". Mas então está a justificar com a mistura a percepção da mistu- ra? E/ou a celebrar a natureza do mesmo? "Pois o mais é o pensamen- to" coroa tanto equívoco: não se percebe se está apenas a exaltar o pensamento, ou a acenar ao pleno (recordando a necessidade de uma natureza única e de um único pensamento: "é"). Pode até suceder que a equivocidade se manifeste como uma forma de comentar a ambivalência da mistura e das conseqüências que engendra: a regressividade, a hesi- tação. etc. 3. 6 A OPINIÃO E OS NOMES fragmento 19 Assim, segundo a opinião, as coisas nasceram e agora são e depois crescerão e hão-de ter fim. A essas os homens puseram um nome que a cada uma distingue. O fragmento 19 encerra provavelmente o percurso pela via da opinião. As coisas, diferentemente nomeadas pelos homens, nascem, vi- vem e hão-de morrer. Esses são os nomes com que os homens (de novo anthrôpoi) as designam e lhes descrevem as aparências. Subjacente acha- se a idéia de que tudo isto é enganador, pois, como provou a via da verdade, só o ser é. porém, a nota, que só Górgias dignamente acentuará (DK82B3; Sexto Empírico, Adv. math., 83-6 - ver adiante 4. 77 A semelhança com Empédocles Bl 09 (ou possível influência neste) é notória: "Pois com a terra vemos a terra, com água a água, com ar o ar brilhante, com fogo o fogo ardente, com amor vemos o amor, e com ódio o ódio terrível". 112 I 2. 2): são os nomes postos pelos homens que as distinguem. A diferença não está "nelas" (que razão poderá haver para falar de uma pluralidade?), mas apenas nos nomes (B8. 38; B9. 1 seg.) que os homens (sem proprie- dade/autenticidade?: Bl. 30-2) lhes atribuem, e com os quais as distin- guem, "confiantes de que eram [são] reais": (B8. 39). 4. Parmênides e a herança eleática Tivemos 'atrás a oportunidade de chamar a atenção para a in- fluência do Poema de Parmênides no pensamento grego anterior a Sócrates. Aludimos então ao papel de transmissores e críticos da men- sagem eleática desempenhado pelos dois maiores filósofos gregos da Antiguidade: Platão e Aristóteles. Só agora, porém, podemos com- pletar o quadro geral que evidencia a importância de Parmênides na tradição filosófica, elucidando as leituras divergentes que a Filosofia e a sofística 78 fizeram do Poema. A análise já feita permite-nos avaliar o alcance do interdito em que a tradição condensou todo o impacto da dialética eleática: "não é possível conhecer, ou dizer, o que não é" (B2. 7-8). Será a diversa reinterpretação desta tese que irá dividir os maiores representan.tes do pensamento grego. É com essa sumária consideração que concluiremos a nossa viagem ao longo do poema. 78 Falar de 'sofística' não implica que a acção dos sofistas se possa, ou deva, entender como um movimento concertado, mais do que como o fenómeno da convergência para Atenas das figuras mais representativas da cultura grega da época. A primeira alternativa levanta problemas difíceis de resol- ver: da datação dessa convergência (estende-se ao longo de mais de um século), da diversa origem, estatura intelectual e posição ideológica de cada um dos sofistas e da significativa degradação do ambiente que a sua presença foi provocando. Levanta ainda uma dificuldade que se reflecte sobre a dependência em que nos achamos das fontes pelas quais nos chegaram informações sobre os sofistas: para além da evidente parcialidade, gira sempre em torno de personalidades concretas. Embora nos concentremos sobre a presença da mensagem eleática nas obras dos dois maiores sofistas - Protágoras e Górgias -,não poderemos deixar de considerar as informações prestadas por Platão no Eutidemo (condensada em torno de Eutidemo e Dionisodoro, personalidades cuja importância real se desconhece). Outros sofistas- Trasímaco, Hípias, Pródico e até, mais tarde, Isócrates- poderiam ser referidos, mas neles o efeito da dialética eleática não é notável. 113 4. 1. Ü FRAG. 2 REVISITADO A proposição "não é possível conhecer, ou dizer, o que não é" consente uma constelação de divergentes leituras, motivadas pelas mui- tas ambiguidades, de diversa natureza, que contém. Comecemos pelas ambiguidades sintáticas 79 • "Não é possível conhecer, ou dizer ... " pode ser interpretada como uma proibição (no sentido de "não dirás, ou conhecerás ... "), ou como uma advertência ("se disseres, então ... "). Mas não só uma tem conseqüências muito diferentes da outra, como interagem de maneira diversa sobre cada uma das ações: "dizer", ou "conhecer". E, se não, vejamos. Enquanto "não digas" remete para uma inter- dição imediata, "não conhecerás" pode ser lida tanto como uma ordem - "não tentes conhecer" -, quanto como uma advertência - "mesmo que tentes, não conseguirás" -, ou ainda "o que julgas conhecer não é um conhecimento (saber) autêntico". Esta última acepção há-de inevitavelmente reflectir-se sobre o dizer, no senti- do de "o que disseres, não estás ria realidade a dizer" (são palavras .ocas, ou meros sons). E, na verdade, a contaminação entre estas duas interpretações manifesta-se pela retroacção da segunda sobre a primeira: a interdição acaba por ser lida como a declaração de uma impossibilidade efetiva. Passemos agora às ambiguidades semânticas, que são já nossas conhecidas, residindo na pluralidade de leituras de einai. "O que não é" pode ser interpretado nos sentidos predicativo, identitativo e exis- tencial. O problema, note-se, tal como vimos atrás, não tem tantas conseqüências na interpretação do poema, quanto nos diferentes con- textos em que vai emergir. "O que não é" pode ser lido como o que não é "isto ou aquilo", o que não é "igual a si próprio", ou ainda "o que não existe". 79 O nível sintático refere as relações formais entre os termos; o semântico remete para as relações materiais entre os sentidos dos termos, ou das expressões. 114 4. 1. 1 DA AMBIGÜIDADE AO SOFISMA Mas as dificuldades não ficam por aqui, uma vez que de novo se verifica a contaminação entre os dois tipos de ambiguidade, a qual é forçoso encarar numa perspectiva histórica. É natural pensar que o primeiro sentido das palavras da deusa constituam uma interdição: "não dirás",;não conhecerás". Todavia, se assim fosse, a própria deusa não poderia com legitimidade proferir a expressão "o que não é", ou mesmo qualquer declaração na forma negativa. Esta primeira leitura - a proibição da negativa - pode, portanto, considerar-se violada pela própria proposição que a declara. Mesmo assim, a interdição poderá ser invocada para justificar a rejeição de qualquer declaração negati- va80, ou dar origem a uma cadeia de aporias que afundam o discurso no infinito regresso 81 · 82 . Há, portanto, razões para privilegiar a adv:er- tência contra a interdição. Esta possibilidade vai, contudo, dar origem a novos e inespera- dos problemas. Cruzando de novo o sintáctico com o semântico, a advertência sobre a impossibilidade de declarações negativas equivale a sustentar que nenhuma delas terá sentido, como se dizer - "x não é ... ", ou "não-x .. . "- fosse o mesmo que não dizer nada, ou nem sequer falar, produzir sons sem nexo- gargarejos, assobios, fungadelas, ata- ques de tosse, etc.-, ou até gestos obscenos. 80 E não só declarações, como também termos negativos, por exemplo: "não-cavalo", ou, como veremos adiante, a propósito da interpretação existencial, termos que referem entidades inexistentes, como 'Pégaso', ou ' Quimera'. 81 Com esta expressão caracteriza-se uma situação indecidível, porque susceptível de se prolongar indefinidamente, como no exemplo do ovo e da galinha. 82 Por exemplo no seguinte diálogo: - "Não chovendo" -"Não podes dizê-lo! " -"Porque?" - "Porque não é possível dizer o que não é" -"Mas posso!!" -"Porque?" - "Porque então também tu não poderias proibir-me!!" - "Nem tu impedir-me dê o fazer!!!" . E a dificuldade torna-se ainda mais complexa se fizermos retroagir o nível semântico sobre o sintático, sustentando que negar "não está a chover" equivale a afirmar "está chovendo"). 115 Já ultrapassamos o limiar da gargalhada. Mas é só o começo. A entrada em cena da ambiguidade semântica de einai vai engrossar muitÇ> a lista de a porias resultantes da interdição divina. Por exemplo, nas interpre- tações predicativa e identitativa, equivale a proibir, ou desclassificar, qual- quer forma de movimento ou mudança (como B8. 26-31 demonstra), e também de geração e de corrupção (B8. 6-21). Como é que "isto" poderá alguma vez tomar-se "aquilo" (vide B8. 40-1)? Portanto, de o que quer que seja só poderá afirmar-se que é isso mesmo: "o que quer que seja" (o que é o mesmo que limitar toda a predicação à identidade 83 ). A interdição da negação da existência vem acrescentar um toque de paradoxo a esta inextrincável cadeia de aporias. Não se pode falar de seres inexistentes, como vimos, tal como negar a existência do que quer que seja. Esta nova impossibilidade vais dar origem a duas inespe- radas complicações. Primeira, a que resulta do cruzamento das leitu- ras. Por exemplo, a negação de um predicado pode ser interpretada como a negação da existência do sujeito ("Sócrates não é meu pai", é o mesmo que afirmar "Sócrates não existe"). Por conversão, do que não existe nada poderá ser afirmado, nem sequer que não existe (visto nada se poder dizer de "o que não é"). · Mas também, pelo seu lado, a segunda complicação vem bara- lhar toda a confusão já criada. Resulta ela de se encarar o discurso como um fato, talvez uma outra, espécie de ser. O que acontece então, se pensarmos que, ao violar cada um dos interditos acima explicitados, estaremos não a negá-los, mas a cair numa incontornável aporia? Veja- mos. Não é possível dizer o que não é. Portanto, se o posso dizer (bas- ta-me dizer: "o não ser ... "), então é porque é. Uma vez mais a retroação do semântico sobre o sintático produziu inéditas dificuldades. Isso sig- nifica que o fato linguístico da negação a torna tão possível e legítima quanto a correspondente afirmação. 83 Naturalmente que esta dificuldade não terá qualquer conseqüência para quem se limitar a falar do ser, afirmando "é". Afeta, contudo, qualquer referência a alguma entidade, fato, ou qualidade do mundo em que vive. Por exemplo, a proposição "o homem é bom" torna-se impossível, ou destituída de sentido, uma vez que do homem só poderá afirmar-se que "é homem" e do do bom que "é bom". 116 E assim chegamos à aporia final. A impossibilidade de dizer o que não é pode ser também lida como a concessão da garantia da verdade a toda a declaração afirmativa (em todos os sentidos acima enunciados), a qual acarretará a da correspondente falsidade de todas as declarações negativas. De resto, a leitura veriditiva de "é" (ver atrás 2. 1. 6) atesta isso mesmo, ao interpretar "é" como "é verdade". Toda- via, uma vez mais a inegável evidência do discurso recairá sobre esta interdição, implicando que, na medida em que se declara o que quer que seja, essa declaração, pelo simples fato de poder ser feita, é verda- de. E é-o apenas pelo fato de ter sido proferida. Duas conseqüências decorrem daqui: a impossibilidade da falsidade, bem como a da con- tradição. Se eu digo "é verde", então é verdade que é verde, pelo sim- ples fato de o estar a dizer. Mas, se digo "não é verde" também é verda- de, porque acabei de o dizer. Portanto, se faço uma afirmação e a ·se- guir a nego, nem por isso me contradigo, visto que tanto uma como outra são verdades (ou seja "verdade"). 4. 2 A CRÍTICA À SOFÍSTICA As interpretações acima sumariadas, além de muitas outras indi- retamente relacionadas com a eleática interdição de dizer "o que não é", não são fruto da desenfreada imaginação de nenhum estudioso da cultura grega. Acham-se, todas elas, apontadas por Platão e Aristóteles, no diálogo Eutidemo, e no tratado intitulado As refutações sofísticas, respectivamente. Mais do que isso, é possível encontrar as mais interes- santes no fragmento que conhecemos do tratado de Górgias Da natu- reza ou do não-ser. Não é difícil calcular o efeito paralisante que tiveram, e ainda hoje podem ter, sobre o pensamento. Não será então difícil entender a mistura de ironia· e desprezo com um fundo sentimento de impotência com que a Filosofia as encara (nenhum texto documenta este sentimen- to dúbio melhor de que o Eutidemo). Mas há também que atender a razões habitualmente pouco consideradas. É que os sofistas são talvez 117 os últimos e mais brilhantes representantes de um mundo que Platão e Aristóteles ajudaram a sepultar: o da oralidade. Para o amante do saber, como para aquele que se dedica à exaus- tiva tarefa de o registar, criticar e sintetizar em textos escritos, destina- dos a serem usados criticamente pelas gerações futuras, o calor das disputas erísticas (combates verbais em que o que interessava era ven- cer o opositor), a mera valorização do sucesso, a expensas da investiga- ção da verdade, não só são destituídas de sentido, como constituem o maior obstáculo aos seus propósitos. Assim se·explica a atitude que o levará a excluir os sofistas da autêntica tradição filosófica. É compreensível. Todavia, uma tão severa crítica não passaria de parcialidade, se não fosse compensada por um esforço efetivo, no sen- tido de emancipar o saber filosófico do atoleiro de sofismas em que os erísticos tinham deixado a tradição reflexiva grega. Mas os sofismas, como vimos, limitam-se a explorar as ambiguidades consentidas pelo grego corrente. Para além dos rigorismos éticos e da sobranceria política, a tarefa prioritária residirá em conse- guir despistá-las e resolvê-las cabalmente. Essa será, antes de todos, a missão de Platão. 4. 2. 1 PLATÃO Pela associação expressa do interdito eleático (B2. 7 -8; vide Repú- blica V 4 76 e-77) à conclusão retirada da exclusão da via negativa- "o mesmo é ser e pensar" (B3; vide República 4 77 a sqq.) -,Platão concebe uma filosofia que explora a cisão entre a realidade (o ser e o saber) e a aparência (a experiência sensível e a opinião). Esboça então um duplo movimento. Por um lado a profunda a cisão, argumentando que enquan- to o saber é matéria de ensino e aprendizagem, a opinião não pode ser transmitida senão pela persuasão (Timeu 51 e). Por outro comp-=11sa-a, promovendo o acesso ao saber através de um método que ensina, atra- vés de uma prática dialética assente sobre princípios rigorosos, a questi- onar os dados colhidos pelo exercício da sensibilidade. 118 Esta estratégia terá efeitos revolucionários, condicionando a for- mação da atitude e modo de vida designado pelo nome 'Filosofia', que a captação da tradição pela escrita (vide atrás:) converterá em disciplina. A constituição do saber passa primeiro pelo estabelecimento da distinção entre matéria e forma: de um lado, acha-se "aquilo" que se sabe e aquilo "de que se sabe", do outro as regras que condicionam formalmente o saber, enquanto saber (irrefutabilidade, infalibilidade, unicidade, imutabilidade etc. 84 ) . Depois é esboçada a estratégia de defi- nição de urna síntese de ambas, que aproveita a informação material proporcionada pela aparência, submetendo-a ao rigor introduzido pe- las exigências racionais do saber. Só assim o saber consegue atingir a estabilidade que o elevará acima dos processos do ensino tradicional, pelos quais o mestre se limitava a instilar as suas convicções na mente dos discípulos, forçados a recebê-la passivamente (é isto que o filósofo designa de "persuasão"). É contra esta situação - toda ela herança da tradição oral - que Platão se revolta. O seu programa está concebido a partir da mensa- gem eleática. Todavia, para que este possa ser levado a cabo com êxito será necessário nela introduzir significativas modificações. É isso que Platão fará no Sofista. Mas para as compreendermos há que enveredar pela Filosofia da Linguagem, pensando nos fatos linguísticos responsá- veis pelas interpretações do frag. 2 do poema, acima inventariadas. 4. 2. 1. 1 NEGAÇÃO Para Parrnênides, "é" é o contrário de "não-é", portanto, a afir- mação e a negação são contrários. Platão vai mostrar que embora pos- sa ser esse o caso, não tem de ser, e na maior parte das situações nem sequer é assim. 84 Se houvesse mais do que um saber, se estivesse sujeito a alterações, se pudesse ser refutado, não se poderia legitimamente considerá-lo saber. As duas primeiras exigências derivam da natureza do ser (unicidade, imutabilidade, eternidade etc.). As duas outras são específicas do saber e condicionarão o seu modo de fixação e transmissão. 119 ', .' }. · ~ ~ • O "bom" é o contrário do "mau", o "justo" do "injusto", e assim por diante. Todavia, entre um e outro extremos podemos pensar em muitas outras possibilidqdes: o "indiferente", o "aceitável", o "suficien- te", etc. Mas, se em vez de valores, ou de adjetivos, pensarmos em substantivos, a objecção toma-se ainda mais pertinente. Qual é o con- trário do "vermelho"? Nalguns sentidos poderemos falar do "verde". É, contudo, evidente que este tipo de contrariedade en nada se asseme- lha à dos adjetivos citados acima. Portanto, o que é o "não-vermelho"? Alguma cor especial? Já vimos que não. É a gama infinita das cores e tonalidades distintas do vermelho. Por essa razão, devemos encarar o 'não' não como significando contrariedade, mas alteridaêle. A negação de algo não é um não-algo no sentido absoluto, mas outra coisa, que apenas sabemos não ser "algo". 4. 2. 1. 2 NÃO-SER Daí resulta que o não-ser não é o contrário do ser. É apenas outra coisa diferente do ser. No sentido predicativo - por exemplo, "Carlos é amável"-, "Carlos não é amável", ou "Carlos é não-amável", significa que no sujeito em causa não se manifesta a amabilidade. Mas não implica que ele seja grosseiro, rude, ou mal-criado. Não implica um defeito real, mas tão-só a ausência de uma qualidade. No sentido existencial (o identitativo não acrescenta aqui nada ao já dito), a questão é ainda mais momentosa. Vejamos a mais extensa de todas as proposições: "o ser é". Significará a sua negação a inexistência do não-ser? De modo nenhum. Se 'não' significa "ou- tra coisa", no sentido existencial o não-ser existe, porém, com uma existência diferente da do ser. E o sentido predicativo esclarece pre- cisamente de que tipo de existência se está a falar: da do bom, do vermelho, etc. Quer isso dizer que não se pode falar do não-ser como inexistente? Claro que pode. Mas aí teremos de conceder toda a razão a Parmênides: pode-se falar, mas dele nada se poderá dizer. 120 ' 4. 2. 1. 3 fALSIDADE Se é assim, também uma falsidade não é o contrário de uma verdade, mas apenas uma outra coisa, diferente dela. Nessa medida, não só é possível dizer falsidades (violando o interdito "dizer o que não é"), como é o que acontece sempre que uma descrição de um estado de coisas não coincide com esse estado de coisas: por exemplo, afirmar "esta é uma moeda de cinco escudos", quando se trata de uma de dez escudos, ou uma de cinco escudos falsa. É outra coisa, mas não coisa nenhuma. 4. 2. 1. 4 VERDADE Nesse sentido, 'verdade' não é mais do que a qualidade de uma proposição que descreve um estado de coisas tal como ele é: se é, afir- mando que é, se não é, negando-o. 4. 2. 1. 5 APARÊNCIA E a aparência? Essa será a situação proposta por uma proposi- ção que descreve um estado de coisas que parece, mas não é de fato, o estado de coisas descrito. É o que se passa quando alguém se assusta ao avistar um animal que avança na sua direção e foge gritando: "Lobo!" Para parar daí a pouco, ao perceber que o animal que corre ao seu lado é o cão de um vizinho. 4. 2. 1. 6 OPINIÃO E opinião será então a designação conferida a uma proposição, efeti- vamente enunciada por um sujeito, o qual, de acordo com a informação colhida por via sensorial, faz uma afirmação ou uma negação. Sujeito que pode estar certo ou enganar-se, pois essa é a natureza da opinião, e que diz a verdade quando acerta, e uma falsidade quando erra, mente, ou se engana. 121 A opinião tem uma natureza escorregadia, variável, passível de ser avaliada de muitos pontos de vista diferentes. E é por isso mesmo que não se pode confundir com o saber. Mas não será por isso que o saber pode de todo dispensar a opinião. Pelo contrário, serve-se dela como matéria sobre a quallabora. Mas terá de a sub- meter a uma consideração refinada para poder apurar o que da opi- nião se poderá converter em saber e o que não passa de confusão, erro, ou ilusão. 4. 2. 2 ÀS CONSEQÜÊNCIAS DA CRÍTICA DE PLATÃO Através destas precisões e especificações, Platão conseguiu reti- rar da mensagem de Parmênides o que lhe interessava, libertando-se das conseqüências indesejáveis que acarretava. Mais ainda. Esclarecen- do as circunstâncias em que o verbo ser pode ser interpretado nos seus sentidos predicativo, identitativo e existencial, fixa definitivamente as modalidades que determinam a realidade e o discurso acerca dela: os cinco gêneros supremos - o ser, o mesmo e o outro, o movimento e o repouso. O ser diz-se das coisas que existem; o mesmo daquilo que elàs são identitativamente; o outro das que existem e se dizem diferen- temente das ditas 85 ; o movimento das coisas que se movem e mudam; o repouso das que permanecem. 4. 3 0 SABER DOS SOFISTAS Em que consistia então o saber dos sofistas e de que modo inter- pretavam eles o interdito eleático? Comum a todos eles era a dedicação ao estudo das questões da linguagem. As finalidades deste trabalho, contudo, pouco teriam a ver com o interesse pela investigação e pelo aprofundamento do saber. Es- 85 Como, por exemplo, em "o movimento participa do ser" (ou "o movimento existe"); ou na afirmação de que qualquer gênero participa do mesmo em relação a si próprio; ou ainda "o movi- mento participa do outro em relação ao repouso" ("o movimento é diferente do repouso"). 122 tavam primariamente voltadas para a prática e para a preparação e apetrechamento intelectual de todos os envolvidas na vida política. e, numa cidade como Atenas, nos anos que se seguiram ao triunfo sobre os Persas, esses eram potencialmente todos os cidadãos. Como inter- pretaram os sofistas a mensagem eleática? 4. 3. 1 PROTÁGORAS O decano de todos os sofistas (nascido por volta de 490) com- portava-se de modo prudente e moderado. Por aquilo que Platão nos deixa perceber dele, o Abderita (originário de Abdera, no Norte da Grécia) era um homem de saber com muito prestígio. Dele não conhe- cemos qualquer virtuosística exploração das ambiguidades consentidas pelo eleatismo. Pelo contrário, a essência da sua doutrina reside no respeito pelo saber, que nele passa pela dignificação da opinião, conseguida através do refinamento dos produtos da sensibilidade e pelo apuramento da capacidade de ajuizar as contradições e conflitos com que a vida cor- rente nos confronta. É a atitude de um relativista, para quem "o ho- mem é a medida de todas as coisas". Pode este princípio querer dizer que o que quer qualquer homem afirme o afirma pelo fato de, para ele, ser verdade. Mas isso não implica que de fato assim seja. Este nível de identificação da verdade com o ser e o saber é exatamente aquele que o sofista rejeita, ou que prefere não considerar. Sobre se é, ou não, de fato, verdade, nada arrisca, mas apenas que "sobre todas as coisas são possíveis raciocínios contraditórios" - "um forte, outro fraco" (DK80B6a, 6b 86 ). Aqui se manifesta o relativismo de Protágoras, com um pendor nitidamente agnóstico. O sofista não 86 O sentido desta contradição, bem como a diferença entre os raciocínios "forte" e "fraco" acha-se elucidado nos Argumentos Duplos (DK90). Por exemplo, a chuva é boa para os agricultores e má para os comerciantes; pois aos primeiros aumenta a colheita e aos segundos diminui os lucros, tal como com a seca acontece o inverso. É oportuno notar não só que o número de casos semelhantes a estes é potencialmente infinito, como ainda que consubstanciam o tipo de conflitos emergentes da vida em sociedade. Esta nota atesta ainda o sentido eminentemente político do ensino dos sofistas, 123 nega diretamente valor ao saber, pelo contrário. Limita-se a não se pronunciar sobre ele, desconfiando das capacidades humanas para o atingir (posição susceptível de conduzir a um ceticismo moderado). 4. 3. 2 GóRGIAS Mas o mais brilhante, prestigiado e influente de todos os sofistas foi Górgias, de Leontinos (na Sicília, que chegou a Atenas em 427, no ano em que nascia Platão). O seu ataque a Parmênides foi devastaddr. Com o já citado tratado Da natureza ou do não-ser combateu cada uma das teses eleáticas, sustentando esta cadeia de teses paradoxais: ' ~ N a d a é; [mas] ainda que alguma coisa seja, não é compreensível ao homem; [e] se ainda assim for compreensível, é por certo incomunicá- vel e inexplicável a outros". O modo como chega à demonstração destas teses não pode ser outro que o da sistemática e repetida exploração das ambigüidades contidas no frag, 2. 7-8 de Parmênides, tal como acima as enunciamos. Jogando as ambiguidades umas contra as outras, consegue desenvolver sofismas em virtude dos quais atinge sempre conclusões simultanea- mente absurdas e contraditórias. O saldo poderá ser para muitos intei- ramente negativo: o da afirmação da impossibilidade do ser e da inuti- lidade do saber. Para o próprio Górgias, porém, não era assim. Mesmo que o ser seja impossível e o saber inatingível, a vida neste mundo é indiferente a esse fato. E é melhor vivê-la bem do que mal. A marca do sucesso de um homem reside então no seu poder, e este depende da sua capacidade de influenciar os outros. Essa capaci- dade, por fim, assenta toda, ou em boa parte, no domínio do discurso. E é essa a receita de Górgias para o sucesso. Se não é possível ser sábio, então a única sabedoria consiste na capacidade de cada um se fazer respeitar, obedecer, temer até. Só o poder confere a um homem essa condição. E o poder, antes de mais, político, pode ser atingido através do correto exercício do discurso. Não basta falar bem. É preciso ser eficaz sobre as audiências, persuadi-las 124 a agirem no sentido dos nossos interesses. Para o conseguir, porém, são necessárias qualidades naturais e conhecimento técnico das regras da ora- tória. Os seus dois mais famosos discursos que chegaram até nós: os elogi- os de Helena e de Palamedes (duas figuras que qualquer Grego considera- ria indefensáveis) demonstram isso mesmo: como através do discurso se constrói a realidade, realidade que, sem ele, de todo nos escapa. A funda relevância desta consideração final é inegável. Todavia, o desprezo manifestado em relação ao saber, obriga o filósofo, para quem estas considerações levantam questões pertinentes, a ignorá-lo. É aqui que Platão e Aristóteles pecam por parcialidade8 7 • 4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OS SOFISTAS É fácil compreender as razões do desprezo e dos insultos que os filósofos lançaram sobre os sofistas: levá-los a sério implicaria invali- 87 Para o compreender bastará ler o final do Da natureza ou do não ser. Vale a pena a longa citação. "Uma vez que as coisas que são são visíveis e audíveis, e, em gênero, sensíveis, na medida em que são externas a nós, e, de essas, as visíveis são perceptíveis por meio da vista, e as audíveis pelo ouvido, e não simultaneamente, como poderemos exprimir um [sentido] pelo outro? Pois o meio com que nos expressamos é a palavra (lagos); e a palavra não é a coisa, o que .realmente é; portanto, não é a realidade existente ... " (ta hypokeimena kai anta; note-se a recusa em aproveitar aqui a ambiguidade de einai) " ... , mas outra coisa. Do mesmo modo então, o visível não pode tornar-se audível, e viceversa; de tal modo que assim o ser, na medida em que é coisa exterior a nós, não pode tornar-se na nossa palavra. Porque a palavra, diz Górgias, é expressão da ação que exercemos sobre os fatos externos, isto é, as coisas sensíveis. Por exemplo, do contato com o sabor, tem origem em nós a palavra conforme a esta qualidade; e do encontro com a cor, a palavra conforme à cor. Posto isto, resulta ser a palavra que explica o dado externo, mas é o dado externo que confere significado à palavra. E, contudo, também é possível dizer que, do modo que existem (hypokeitai) as coisas visíveis e as audíveis, assim também a palavra; contanto que, existindo ela também como coisa, tenha a propriedade de significar as coisas existentes. Pois, admitindo-se que a palavra seja coisa, ela diz, embora difira das outras coisas; e sobretudo diferem das palavras os corpos visíveis; visto ser um o órgão com que percebe o visível, e outro aquele com que se aprende a palavra. Portanto, a palavra não pode expressar a máxima parte das coisas, tal como nenhum destes pode revelar a natureza do outro." (Sexto Empírico Adv. Math. VII 83-6). A instituição de uma tão funda cisão entre as palavras e as coisas, a par da correspondente confe- rência de um estatuto ontológico ao discurso, não agrada decerto a Platão e a Aristóteles, que consagraram o trabalho das suas vidas a anulá-la. Mas não será por isso que este texto deixará de exibir uma qualidade genuinamente filosófica. É que a lição de Górgias é tão clara quão problemá- tica: as palavras não "são" as coisas que referem; só que isso não as faz menos "coisas" (terem uma menor dignidade) que elas. por outro lado, sem as palavras não teríamos qualquer forma de acesso às coisas. 125 dar o próprio propósito que anima o amor ao saber. Esta justificação torna-se ainda mais forte se pensarmos que, além dos mais ilustres sofistas, de que acabamos de falar, outros haviam, uma chusma deles, que vivia alimentada pela ignorância e inveja da multidão. Tanto te- ria bastado para que o sentido aristocratizante de Platão e o genial bom-senso de Aristóteles lançassem sobre eles um anátema que ainda hoje perdura. Mas isso não significa que os ensinamentos dos sofistas não ti- vessem tido uma importância transcendente E ainda menos que alguns, pelo menos Protágoras e Górgias, não tivessem razão. E ela está aí aos olhos de todos. Na verdade, quem triunfa nos dias de hoje são os sofis- tas e não os filósofos, se de todo há alguns. Seja como for, o nosso papel não será tanto julgar uns e outros, quanto tentar compreendê-los. De todos somos descendentes: de sofis- tas e de filósofos, e de pessoas ignorante, bem como de quantos apro- veitaram para o bem, ou para o mal, as lições que deixaram. Mas uma verdade há que repetir. Acima de todos eles -e também de nós- paira ainda o vulto tutelar de Parmênides. Nunca poderemos cc,mceder-lhe atenção demasiada, nem respeito que seja imerecido. 4.5 CONCLUSÃO: NÓS E p ARMÊNIDES Que ressonâncias têm ainda hoje a mensagem eleática? Muitas. Tão profundas, porém, que dificilmente as poderemos captar. Ao contrário do sucedia na Antiguidade, o saber é hoje um imenso edifício, compartimentado em disciplinas aparentemente estanques, embora isso resulte do modo como são ensinadas, por ora ainda indiferente ao estágio de desenvolvimento que atingiram. Se interrogássemos qualquer cientista anônimo sobre a relevância do eleatismo para a sua área de estudos, muito provavelmente responder-nos-ia com uma vaga generalidade, pouco esclarecedora, senão com o desinteresse que a genuína ignorância motiva. E, no entanto, a estrutura do saber atual respeita ainda a funda cisão no saber que o argumento da deusa instituiu. Notamo-lo na dis- 126 tinção entre "ciências puras, exatas" e "ciências aplicadas": enquanto as primeiras privilegiam o método dedutivo, a priori, as segundas op- tam por proceder indutivamente, a posteriori (respeitando a oposição da unidade pensável do ser à diversidade da aparência) . Por outro lado, a evidência do progresso tecnológico, proporcio- nada pelas ciências experimentais, quando confrontada com a incerte- za da reflexão, bem como com os novos campos de aplicação, forneci- dos pela atividade humana, sugeriu a oposição, introduzida no séc. XIX por Dilthey (hoje já ultrapassada), entre "ciências do espírito" e "ciências da natureza". Mas há mais. A constelação de problemas filosóficos expressa pelas múltiplas contraposições históricas -do Idealismo ao Racionalismo e ao Empirismo, do Realismo ao Nominalismo - reflete ainda o modo eleático de colocar o problema do saber. O fato de a maior parte destas distinções - outrora tidas por definitivas - se acharem hoje ultrapassada, ou pelo menos sujeita a incessante revisão, obscurece a sua derivação da problemática introduzida pelo eleatismo. Bastará, porém, um estudo superficial do poema para mostrar a influência que produziu nas mais brilhantes men- tes da Grécia clássica, quase incompreensível, perante a indiferença a que é votado hoje. Como explicar esta divergência de posições? Natu- ralmente, pela diferença dos contextos culturais e também pelo con- traste evidente nas concepções de saber em presença. 4. 5. 1 A EVOLUÇÃO DO SABER O saber é um fato com que cada um de nós foi confrontado, feito e pronto a aprender. Um imenso reportório de informação, acumulada ao longo de milênios, exposta na evidência cósmica, e conservada em dispositivos naturais, ou divisados para essa enciclopédias, museus, monumentos, memórias humanas e artificiais, etc. Para os Gregos, o saber era, por um lado, parte da sua própria natureza, para alguns constituía mesmo a sua natureza autêntica. Por 127 outro, copw problema, seria uma novidade, um jogo, uma charada ... Como é que a um mortal era concedido esse dom da infalibilidade que era a marca distintiva do saber? Como é que ela havia de se manifestar a não ser pela exigência de irrefutabilidade que afetava todos os pro- nunciamentos epistêmicos, tudo o que aspirava a valer como saber? Todo o saber atual se diz por escrito, ou em relação à escrita. Pelo contrário, na Atenas clássica, como vimos, a escrita é uma recém- chegada. E a sua relação com o saber é altamente ambivalente. Tendo começado a carreira como mero instrumento de fixação da informa- ção, cedo manifesta as suas potencialidades como meio de reprodução de mensagens, para acabar por se converter na tecnologia vocacionada, por excelência, para a produção, seleção, fixação e circulação das men- sagens culturalmente significativas. É por essa razão que, antes de chegar à escrita, o saber realizou uma muito longa caminhada no mundo da oralidade 88 • Ora é sobre os momen- tos finais desta marcha que as disputas sofísticas, as peças da oratória grega, os escritos deXenofonte, os diálogos de Platão, nos documentam 89 • E o espanto que a todos percorre e permeia deixa-se condensar em três versões, ou fases, de uma única interrogação. Como é que a perfeição imutável do saber, infalível e irrefutável, consente caber: primeiro, num único homem?; segundo, nas suas efémeras palavras?; terceiro, no sistema de sinais convencionais que mecanicamente as perpetua (as letras)? Toda a filosofia grega, até Platão, se deixa enquadrar neste apa- rentemente simples percurso. A primeira versão da pergunta está volta- 88 Aqui residindo a natureza paradoxal de todas as tentativas de compreensão da questão da oralidade; pois é bem claro que nunca teríamos chegado a ter notícia das declarações orais se a escrita não tivesse delas guardado qualquer espécie de memória. Nessa medida, é possível imaginar como aquilo que é memória escrita de um tempo e de um mundo passados, marcados pela oralidade, nos aparece como criação original de um autor que escreve sobre o seu tempo. Esta tendência é sobremaneira evidente em Platão. Só com esforço somos capazes de distin- guir nos diálogos o que é memória de outro tempo - seja recordação de debates orais, seja mensagem conservada por antiquíssima tradição- do que é reflexão própria, que o autor conver- te em texto. 89 O mesmo sucederá com toda a produção em prosa deste período, nomeadamente as obras dos historiadores: Heródoto (que viveu entre as duas guerras) e Tucídides (que escreveu sobre a segun- da). Mas aí é a própria natureza histórica dos fatos narrados que impede a confusão temporal. 128 da para, e inclui, a própria tradição, gradualmente desembocando na segunda, que é aquela com que aparece em Sócrates, nos sofistas e no mundo oral que os suportava. A terceira contém o percurso realizado nos diálogos platônicos. Este sutil deslizar pode até notar-se pelo jogo entre dois termos aparentados, à medida que o sophos (sábio), de figura terrível do passado, se volve em polêmico herói do dia, para vir · a ser capturado pelo philosophos (filósofo), perseguidor incessante de um saber que sabe nunca poder atingir, ou ignorado pelo (sofista), que tudo sacrifica ao sucesso imediato. Por esta razão, para um Grego, até Aristóteles, digamos, o saber é essencialmente uma questão em aberto, matéria e terreno para mui- tas disputas (Parmênides B7. 5). Mas essa dimensão reflexiva, questionante, enigmática até, que inaugura o saber, começará logo a contrair-se assim a escrita o captar, fixar e exprimir. A escrita vai, portanto, provocar uma profunda cisão no mundo até aí unificado do saber 90 • Dominadora de todas as questões, ficará a Filosofia - identificada com a vocação espontânea e original para o saber -,que muitos séculos depois se irá fragmentando no edifício mutável das disciplinas científicas. Esse é o domínio do conhecimento, que a Escola passageiramente conquistou para si. A mais prestigiante de todas as suas frentes, captora da antiga dimensão reflexiva, é a da fronteira do saber: de um lado a investigação científica, do outro a Cultura 91 • 90 Como já provocara na língua corrente, falada no quotidiano, ao fixar o vocabulário em termino- logias. As disputas sofísticas, ao interessarem-se pela correção da linguagem, começam por levan- tar o problema do significado dos termos, para o qual só a definição de um vocabulário dos termos relevantes constituirá adequada resposta. O que distingue os Gregos, e a sua Cultura, da de todos os outros povos é o fato de terem sido os criadores originais do vocabulário do saber, construído- para usar a expressão de E. A. Havelock - "como um enclave de discurso forjado na fala do quotidiano". É desse vocabulário, que o Latim traduzirá e que a partir daí passará para todas as línguas novilatinas, que hão-de derivar as linguagens da Ciência e da Cultura. 91 Fronteira em que a qualidade e a quantidade duplamente se confrontam e potenciam. Saber mais é também saber melhor. Quantos mais homens souberem, mais capaz a Humanidade será de superar os desafios que se lhe deparam. A crise de todas as crises que ameaçam a vida no planeta poderá residir apenas no aprofundar da diferença que separa as curvas do crescimento quantitativo e qualitativo da Humanidade (agra- vada pelo abaixamento da taxa de natalidade e envelhecimento da população nos países desenvol- vidos). O saber é o único fator que verdadeiramente as poderá afastar. 129 Por baixo ficam os cacos do espelho quebrado do saber, de que sobraram muitos e dispersos reflexos. Primeiro virá a dimensão pesso- al, a "experiência", o autoconhecimento, o pronunciamento sapiencial, oracular, refugiado na criação artística, na literatura - ficção, poesia, prosa reflexiva, epistolografia (literatura de cartas) -, que volta à vida no diálogo íntimo, na análise clínica, na conversa entre amigos. Depois vem o universo da crença e da sabedoria tradicional: a fé, superstição, as práticas de vida, o folclore, a relação de cada um com os grupos em que se integra. E a última degradação do saber é a "cultura geral", reaparecida em vestes lúdicas em concursos e jogos, em que se busca e preserva a informação trivial (é isso que significa Trivial Pursuit). Todo esse repositório da memória humana é essencialmente co- mum. E, no entanto, aparece ao estudante como o produto de uma penosa conquista pessoal. Poucas noções parecerão tão estranhas ao escolar recém-formado quanto a idéia platônica de anamnese. A pere- grinação da alma de corpo em corpo, o contato anterior (e interior) com as verdades eternas, a caracterização da aprendizagem como re- cordação, nada lhe parecerá mais fantasioso e destituído de sentido. E, no entanto, se a estas concepções retirarmos os ecos religiosos, se con- segUirmos enquadrá-las no contexto cultural atual, conseguiremos com- preender muitos fatos dificilmente explicáveis da prática epistêmica. Como se estabelece o acordo entre mentes essencialmente incomunicantes? Sobretudo, como se passa do que se sabe ao que se não sabe, como se pode descobrir novas verdades a partir das antigas? 4. 5. 2 A HERANÇA DE PARMÊNIDES E assim as mais recentes interrogações das ciências cognitivas retornam à fonte a que, ao longo dos séculos, não cessam de ir beber. O saber eleático desempenha nesta evolução o papel de inaugurador. "O jovem" é o primeiro a advertir os mortais da dupla dificuldade da de- manda a que se lançaram. Considerando as perguntas e as respostas, há que atender à natureza material das questões, mas também à exi- 130 gência de rigor formal das declarações que as substanciam. O que faz a verdade das respostas que a Humanidade encontra para as interroga- ções que a perseguem não é a dignidade da voz que fala, nem a inspira- ção a que obedece (a divindade atestará sobretudo a presença da tra- dição), nem sequer a especificidade das perguntas e das respostas. É, antes de mais, a natureza do produto concebido: o saber! É como saber que perguntas e respostas começam por ser apreciadas. Mas não basta. A forma das respostas, o método que as estrutura e lhes define os contornos, também é relevante: o fato de estas se manifestarem como um argumento. Finalmente, a dignidade epistêmica reflete-se na exi- gência crítica que alimenta e suscita a atitude polêmica. Ou seja, não há apenas que encontrar uma resposta e afirmar que está certa. É preciso mostrar como, porquê e com que conseqüências. A História da Filosofia ilustra o modo como os Gregos honraram esta ' . obrigação e depois todos os outros a respeitaram, embora reconfigurando-lhe os termos. 4. 5. 2. 1 "NÃO DIRÁS O QUE NÃO É" A ordem cósmica é a um tempo o alvo das perguntas e a subs- tância das respostas, o fato que há a explicar. Ora o argumento da deusa começa por mostrar que a ordem, enquanto fato, se exprime na evidência de si própria, pela via do pensar, como ser. Da inquestionável realidade do ser resultará então a sua posição como saber, como sim- ples conseqüência da identificação de um com o outro. A seguir se mostra como esta é a única possível posição correta do problema, à qual o pretenso saber dos homens, mesmo aquele que a tradição regista, tem de se subordinar. Daqui resultarão depois: 1) o exame do argumento paradigmático (exemplar), de que dependem todas as polêmicas; 2) o percurso crítico pelo saber tradicional. E é tudo. Quem não perceber este raciocínio (susceptível de ser interpreta- do de muitos outros modos), quem não compreender o que são o ser e 131 o saber e de que modo se enlaçam um no outro, nada compreenderá da Filosofia. Porque a Filosofia começa e acaba aqui. Pode preferir uma ou outra via, escolher a finalidade que melhor lhe aprouver. Mas não pode deixar de partir daqui, para de novo aqui tomar (frag. 5). Esta é a a crise (krisis) que comanda todas as decisões (kriseis). Depois a Filosofia voltar-se-á para muitos outros objetos e defi- nirá muitos outros programas. Todos eles, porém, partem de Parmênides e a ele tomam: ao ser e ao saber. Quem não o compreender prefere a companhia da "multidão acéfala, acrítica, sem discernimento ... ". To- dos os insultos merecem os mortais para quem tanto vale fazer uma afirmação como o seu contrário. Muitas serão depois as vozes dissonantes, os seus protestos ainda hoje se ouvem. Mas o eco da terrível advertência divina continua a ressoar nos nossos ouvidos: "Não dirás o que não é". 132 . ( 0 POEMA DE PARMÊNIDES, A OBRA FUNDADORA DA TRADIÇÃO FILOSÓFI CA OCIDENTAL, É COMENTADO E INTERPRETADO BRASIL POR PARA O .JosÉ TRINDADE SANTOS , PROFESSOR DE FILOSOFIA ANTIGA DA FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA .
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