ResenhaMaria Olinda Vaz Amancio Os Donos do Poder Capítulo Final: A viagem redonda: do patrimonialismo ao estamento No capítulo final de “Os donos do poder”, Faoro faz uma retrospectiva da formação de uma estrutura política e social que se consolidou ao longo de seis séculos de história, de dom João I a Getúlio Vargas, resistindo a todas as transformações fundamentais do período. A conseqüência foi o surgimento, a partir da aventura de conquista e colonização desencadeada por Portugal, de um capitalismo politicamente orientado. Essa categoria moldou a realidade estatal e foi capaz de incorporar o capitalismo moderno e industrial, dirigido por uma comunidade política que conduz, comanda e supervisiona os negócios, tratando-os como privados e pertencentes e ela na origem, e depois como negócios públicos voltados aos seus interesses. A forma de poder é institucionalizada num tipo identificado como patrimonialismo, cuja legitimidade se aproxima ao tradicionalismo, todavia assume uma forma mais flexível, com a realidade projetada a partir das linhas demarcadas pelos interesses em jogo ao longo da história econômica, política e social. O comércio é o condutor da expansão e fornece a linha estabilizadora, com a lavoura de exportação predominando ao longo do tempo, da colônia à República, e a indústria desenvolvida no molde comercial que irá tornar-se a face da atividade econômica. O patrimonialismo é desenvolvido como política de estado, incentiva o setor especulativo da economia voltado ao lucro fácil e à aventura e está interessado no desenvolvimento econômico sob comando político. Faoro tece críticas à visão liberal e marxista, que admitem a realidade histórica do Estado patrimonial, mas partem do pressuposto que o fenômeno é transitório, tratando-o como um desvio, numa concepção linear da história. Adverte que o passado tem curso próprio e as construções ao longo da história são obras dos homens e de acontecimentos que não são homogêneos. O estamento que se criou e consolidou, resistindo e acomodando-se a diversas transformações ao longo dos séculos, é um exemplo dessa assertiva. Para o autor, persiste na realidade histórica brasileira a estrutura patrimonial que adota as técnicas, máquinas e empresas do capitalismo, mas não adquire sua face modernizadora. Ocorre uma transformação do estamento, que antes aristocrático, se burocratiza e acomoda, sem qualquer modificação em sua estrutura. Inicialmente, percebe-se uma confusão entre os setores público e privado, todavia aos poucos configura-se um quadro no qual o patrimonialismo estatal, com adoção do mercantilismo como técnica, irá orientar a economia. Com isso, nasce o capitalismo político, capaz de intermediar a compatibilidade do capitalismo moderno com o quadro tradicional. Na concepção de Faoro isso é uma das chaves para a compreensão do fenômeno português-brasileiro, cujo patrimonialismo foi capaz de ajustar-se às transições e mudanças de forma flexível, utilizando mecanismos que alternaram modelos que oscilam desde gestão direta dos negócios até regulamentação material da economia, forma de conduta que persistiu na história do Brasil ao longo do tempo. Esse modelo pressupõe um sistema de forças políticas que paira sobre a sociedade acima das classes, e impera, rege e governa em nome próprio, mudando e se renovando sem contudo representar a nação. Nele, não há o predomínio de uma burocracia formada para assegurar o funcionamento do governo e da administração, conforme a concepção de Weber. Faoro aponta o estamento político como capaz de organizar uma política econômica e às tradições e às necessidades das sociedades. a outra analfabeta e desarticulada. moldando-se de acordo com os movimentos e influências internas e externas. políticos e econômicos poderia ocorrer através de reformas: política. fenômeno muitas vezes observado ao longo da história. foi formada e sedimentada a crença de que a solução dos problemas sociais. ora se aliando a uma parte da sociedade ora a outra. O que se vê é um Estado cujo conteúdo é capaz de moldar a fisionomia do chefe de governo. O “jurismo” mencionado por Nestor Duarte. que tenta em vão construir com a lei uma ordem política e uma vida pública que não foram formadas pela tradição e pelos antecedentes históricos. Para Faoro. o estamento permanece desenvolvendo sua política de mundo autônoma e superior. o estamento é o estrato social com efetivo comando político. econômica. incorporando em seus quadros gerações necessárias ao ajustamento à nova ordem. já que parece falar ao povo sem intermediários e aparentemente lhe favorecer. apesar do conflito que experimenta quando passa a conviver com o capitalismo industrial. sem atrair para si elementos de outras classes. que valoriza a cada época aqueles que são capazes de lhe fornecer sustentação e principalmente possibilitar recursos financeiros para sua expansão. tributária. o estamento desenvolve um movimento pendular. capaz de modificar a situação de miséria e abandono na qual se encontra. ainda está presente na realidade política e social brasileira. formando alianças ora com uma parte da . Ao longo da história. servindo como uma espécie de barreira a forças que tentam romper esse esquema. com os novos elementos recebendo sua marca tradicional. que deseja a proteção do Estado e vê na figura do bom príncipe ou governante a figura do redentor. Interessante ressaltar que essa tendência persiste até os dias atuais. Todavia. O estamento é capaz de direcionar as oportunidades de ascensão política e criar um quadro aparentemente homogêneo das forças que detém o poder. Foram inúmeras as tentativas nesse sentido – e elas ocorrem até os dias atuais – que se revelaram plásticas e ineficazes. que convive com duas realidades distintas: de um lado uma categoria que se manteve no topo do poder ao longo da linha do tempo. que irá governar o estamento e a máquina que regula as relações sociais a ela vinculadas. desenvolver na esfera política mecanismos que levam à centralização e mecanismos de controle da sociedade civil e militar. Não existe integração nem condução. desenvolve padrões típicos de conduta.financeira voltada aos interesses particulares. culta e letrada. eleitoral. citado por Faoro. como recomenda Montesquieu. aplica-se à contemporaneidade: o Brasil tem uma tradição de editar leis que “não pegam” e se tornam letra morta. o caráter puritano e anglo americano do capitalismo clássico apresenta valores estranhos a uma estrutura de seiscentos anos. e o sarcasmo do historiador mencionado por Faoro. leis e regulamentos cujo conteúdo nem sempre foram associados aos costumes. Uma das categorias que Faoro identifica é a incrível capacidade de adaptação dessa estrutura estamental que permanece ao longo da história. enquanto a sociedade espera um político capaz de resgatá-la e redimi-la. Faoro aponta que em muitos momentos essa figura de “chefe” concentra esperanças de rompimento com esse “status quo”. legislativa e outras. que são capazes ao longo da história de afastá-la temporariamente do poder sem promover sua quebra. Nosso ordenamento jurídico foi pautado ao longo da história por diversas Cartas Constitucionais. A consequência desse dualismo é a tentativa de construir a realidade através da lei. bem elaborada em certos momentos e em outros causuísta. posto que dissociadas de sua realidade social. Essa estrutura. No patrimonialismo. e sim comando e governo. feita para atender determinados clamores e acalmar ânimos. Na percepção de Faoro. cuidando das crises de cima para baixo. A manutenção da estrutura criada ocorre meio a tensões e conflitos. posto que gestadas a partir de ideias e teses dissociadas da realidade e da ordem social presente no país. que pedia a promulgação de uma lei que tornasse as outras obrigatórias. mas na verdade essas alianças são utilizadas como ponto de apoio móvel para essa estrutura. que não quer ser destruído. 3. uma modalidade que adquiriu conteúdo aristocrático da nobreza da toga e do título ao longo do tempo e não se dissolveu com a pressão liberal e democrática. operando de maneiras diversas ao longo da história. que a partir daí será integrado no estamento condutor e ocupará papel importante durante as três intervenções militares que ocorrem a partir da República até o final do período contemplado por Faoro: 1889. ainda não adquiriu luz e contorno próprios. consegue desarticular a máquina estatal que aqui se instaura e resiste a todos os desafios com os quais teve contato durante a aventura marítima. rev. ora com outra. desencadeia a transferência da corte para o Brasil em 1808. A cultura que poderia ter se formado no Brasil não resiste à tradição e modelagem que lhe é imposta desde a vinda de Tomé de Souza. p. 1930-37 e 1945. 2001. para ele. é acessível à conquista apenas por membros graduados de seu estado maior. forjou-se uma civilização que. formando um patronato político que impera sobre a nação e que não pode ser desfeito pelo poder majoritário. Raymundo. permanece à sombra de um passado que restringe e limita suas opções de futuro. sem que isso represente uma mudança significativa nas estruturas políticas. Faoro assevera que nem mesmo o mistério contido neste novo mundo habitado por homens que estão fora do alcance imediato das leis e tradições portuguesas. O autor utiliza uma metáfora brilhante para descrever a situação: “Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho. passando por fases como o nacionalismo exacerbado do início da República. Essa elite foi capaz de se moldar e adaptar. Referência: FAORO. O que ocorre para o autor é o ajustamento das novas categorias. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. O processo de modernização consiste num reajustamento do anacrônico à atualidade. ed. forjado na figura do Estado. vinho novo em odres velhos. 2001. Desse modo. com contribuições da base para o alto que são controladas de forma autoritária pelo sistema. passando pela travessia da corte de dom João VI que aqui se instala e deixa sua marca definitiva. (FAORO. e estes não são nem a sociedade nem o povo que a forma. que tentam criar modelos a partir do ajustamento dos fatos à teoria que escolheram. que ao começar a ganhar contornos próprios e ameaçar a tomada de novos rumos. sob pena de incorrer em distorções ou enganos cometidos por alguns sociólogos e historiadores.sociedade. 837). até então afastado da cena política. culminando com a institucionalização que irá durar até o final do reinado de dom Pedro II. Faoro descreve com propriedade o caminho percorrido pelo povo português desde o fim do sonho imperialista que foram as grandes navegações à tentativa de modernização. com antigos quadros e estruturas ditando as regras do jogo. ou pela violência quando necessário. O corpo político desenhado por esse estamento. Nesse contexto. conclui que o poder tem donos. a história de Portugal e do Brasil durante esses séculos revela a construção e consolidação de um estamento burocrático baseado no que ele denomina “sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado”. São Paulo: Globo. desde a ascensão da dinastia de Avis até o período abrangido pela obra. e mudando as categorias gradativamente. a modernização está vinculada ao Exército. Nesse período. que travam entre si a luta pela conquista do poder. Para Faoro. A participação do Exército ganha diferentes aspectos que para o autor não devem ser buscados em sua estrutura interna. Esta máquina permanece funcionando e adotando um modelo que frustra qualquer renovação. seja através da cooptação sempre que possível. sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse”. O povo é afastado dessa equação. .