Loïc Wacquant Corpo e alma_Notas etnográficas de um aprendiz de boxe

June 1, 2018 | Author: Vinicius Teixeira Pinto | Category: Sociology, White People, Reality, Science, Ethnicity, Race & Gender
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Loi'c WacquantCorpo e alma Notas etnográficas de um aprendiz de boxe Angela Ramalho RELUME DUMARÁ Rio de Janeiro 2002 Título original: Corps et â m ~ - Carnets ethnographiques d'un apprenti boxeur © 2001 - Éditions Agone, Marseille, France © Copyright 2002 Copyright da tradução com os direitos cedidos para esta edição à DUMARÁ DISTRIBUI!lORA DE PUIII.ICA</JES LTIli\. www.relumedl1mara.com.br Travessa Juraci, 37 - Penha Circular 21020-220 - Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2564 6869 Fax: (21) 25900135 E-mail: relumc{[ 11 relumedumara.com.br Revisifo CLllldia Rubim BditOfi:1Ção Dilmo Milheiros As fotos deste livro foram tiradas pelo autor, exceto as fotos das páginas: 149, de Michel Deschamps; 257, de Olivier Hennine; 270 e 289, de Jimmy Kitchen; 282, de Mark Chears; 287, de Ivan Ennakoff; 294, de Jim Lerch. Wl19c 02-0868 CIP-BrasiL Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Wacquant, Loi"c J. D. Corpo e alma nOli\S etnográficas de um aprendiz de boxe I Loi"c W'1Cquant I tnldução Angcla Ramalho - Rio de Taneiro : Relume Dumará, 2002 Tradução de: Corps ct âme : c,lrnels ethnographiques d'um apprenti boxeur ISBN 85-7316-281-3 1. Boxe - Aspectos s(Kiais - Chicago (Estildos Unidos). 2. Wacquant, Lo"ic J. D. I. Título. Il. Título: Notas enogrMicas de um aprendiz de boxe. CDD 796.83 CDU 796.83 Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei nO 5.988. A Elisabeth, pelos nossos anos juntos em Chicago \ , Sumário PREFÁCIO À ElJIÇÁü HRASILEIRA o SABOR E A DOR DA AÇÃO ......................... 11 PROLOGO .......................................... 19 A RUA E O RINGUE .................................. 31 Uma ilha de ordem e de virtude ...................... 35 Um templo do culto pugilístico ................... 50 As promessas do boxe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 59 Os jovens que "venceram a rua)) ...................... 60 A k i ~ D m .................................... M Uma prática sabiamente selvagem .................... 78 O trabalho nos pads . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 A iniciação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 90 Lógica social do sparrillg . ........................... 97 I. A escolha do parceiro ......................... 100 2. Uma violência controlada ...................... 102 3. Um trabalho de percepção, de emoção e físico ..... 107 Sessão de sparrillg com Ashante ................... lOS Uma pedagogia implícita e coletiva ................... 120 O chefe de orquestra ............................ 125 Uma aprendizagem visual e mimética .............. 138 Administrar seu capital-corpo ....................... 147 Curtis: "Posso ganhar um milhão de dólares numa noite" ................................... 152 Butch: "Agora não posso deixar cair a peteca" ....... 155 Algumas fíguras da gestão do corpo ................ 166 Corpo e alma - 7 UMANOITADANOSTUDIO 104 ..................... 179 "Você tem medo que eu me ferre, porque você já se ferrou" .................................. 181 A pesagem no Illinois State Building .................. 187 "O boxe é minha vida, minha mulher, meu amor" ... 189 "Você nunca pode subestimar um boxeador" ........ 200 Uma tarde de ansiedade ............................ 202 O destino macabro dos companheiros de infância .... 206 Bem-vindo ao Studio 104 .......................... . 211 "São otários" .................................. 215 "Sempre quis ser um artista de palco" .............. 218 "Eles estão tremendo de medo" ................... 224 Preliminares lastimáveis ............................ 224 "Aventureiros, malandros e mergulhadores" ........ 226 "Sou como alguém que vende e compra ações na bolsa" ...................................... 230 "Eles mesmos se classificam" ..................... 236 Strong vence Hannah com nocaute técnico no quarto assalto .................................... 241 Abram alas para as dançarinàs exóticas ................ 252 "Você derruba mais dois caras, e eu paro de beber" ..... 259 "BUSY LOUIE" NAS GOLDEN GLOVES ................ 271 8 - Lore Wacquont . ~ _ . Todo grupo de pessoas - prisioneiros, primitivos, pi- lotos ou pacientes - desenvolve uma vida própria, que se torna significativa, racional e normal assiIn que nos aproximamos dele. ERVING GOFFMAN, Asylum, 1961 Dificuldades objetivas. Perigo da observação super- ficial. Não "acreditar". Não acreditar que se sabe por- que se viu; não fazer qualquer julgamento moral. Não se espantar. Não se deixar levar. Procurar viver na sociedade indígena. Escolher bem os informantes. [ ... ] A objetividade deve ser buscada tanto na expo- sição como na observação. Dizer o que se sabe, tudo o que se sabe, nada mais do que se sabe. MARCEL MAUSS, Manual d'ethnographie, 1950 PREFÁCIO À EDiÇÃO BRASILEIRA o sabor e a dor da ação Nihil humanum alienum est. Baruch Spinoza E spécie de Bildungsroman que retraça uma experiência pessoal de iniciação a um ofício do corpo tanto mais reconhecido por sua simbólica heróica - Mohammad Ali sem dúvida alguma, mais do que o próprio Pelé, é O homem vivo mais célebre e celebrado do planeta - quanto desconhecido em sua realidade prosaica, este livro é também uma experimentação científica. Ele desejaria fornecer uma demonstração em atos da fecundidade de uma abordagem que leva a sério, tanto no plano teórico quanto metodológico e retórico, o fato de que o agente social é, antes de mais nada, um ser de carne, de nervos e de sen- tidos (no duplo sentido de sensual e de significante), um "ser que sofre" Ueidenschaft1*h<.,Wesen, dizia o jovem Marx em seus Manuscritos de 1844) e que participa do universo que o faz e que, em contrapartida, ele contribui para fazer, com todas as fibras de seu corpo e de seu coração. A sociologia deve se esforçar para capturar e restituir essa dimensão carnal da existência, particu- lannente espantosa no caso do pugilismo, mas na verdade parti- lhada, em graus diversos de visibilidade, por todos e por todas, através dejlln trabalho metódico e minucioso de detecção e de registro, de decodificação e de escritura capaz de capturar e trans- mitir o sabor e a dor da ação, o som e a fúria do mundo social que as abordagens estabelecidas das ciências do homem colocam tipi- CaInente em surdina, quando não os suprimem completamente. Para tanto, nada como a imersão iniciática e mesmo a conver- são moral e sensual ao cosmo considerado como técnica de ob- servação e de análise que, com a condição expressa de que ela seja Corpo e alma - 11 teoricmnente instrumentada, deve pennitir ao sociólogo apro- 1\, priar-se na e pela prática dos esquemas cognitivos, éticos, estéti- ) cos e conativos que põem em cotidiana aqueles que o habitam. Se é verdade, como afirma Pierre Bourdieu, que nós "aprendemos pelo corpo", e que "a ordem social inscreve-se no corpo por meio desse confronto permanente, mais ou menos dra- mático, mas que sempre abre um grande espaço para a afetivida- xde", então impõe-se que o sociólogo submeta-se ao ga aç.ªº- ·)n situ, que ele coloque, em toda a medida do possível, seu pró- prio organismo, sua sensibilidade e sua inteligência encarnadas no cerne do feixe das forças materiais e simbólicas que ele busca dissecar, que ele se arvore a adq,=!üjr as ap.$tências e as cias que tornam o agente diligente no universo considerado, para melhor penetrar até o âmago dessa "relação de presença no mun- o do, de estar no mundo, no sentido de pertencer ao mundo, de ser possuído por ele, na qual nem o agente nem o objeto estão postos como tal", 1 e que, no entanto, os define, aos dois, como tais, e ata-os com mil laços de cumplicidade, mais fortes ainda porque são invisíveis. Isso quer dizer que os boxeadores têm, aqui, muito y a 110S ensinar sobre o boxe, é claro, mas também e principalmente sobre nós mesmos. Seria no entanto artificial e enganoso apresentar a pesquisa da qual este livro fornece um primeiro relato de predominância nar- rativa (como prelúdio e primeiro passo de uma segunda obra mais explicitamente teórica) como se ela estivesse animada pela vonta- de de provar o valor da sociologia carnal e de comprovar concre- tamente sua validade. Porque na realidade foi o inverso que acon- teceu: é a necessidade de compreender e dominar plenamente uma experiência transformadora que eu não desejara nem previra, e que por muito tempo permaneceu confusa e obscura para mim, que me levou a tematizar a necessidade de uma sociologia não somente do corpo, no sentido de objeto (o inglês fala ofthe body) , mas também a partir do próprio corpo como instrumento de in- vestigação e vetor de conhecimento (fram the body). Aterrissei na academia de boxe de Woodlawn por engano e por acaso. Estava na época procurando um ponto de observação para ver, ouvir e tocar de perto a realidade cotidiana do gueto norte-alnericano, cujo estudo eu empreendera, por convite e em 12 - Lo'ic Wacquant colaboração estreita com o eminente sociólogo William Julius WilS0l1,2 mas do qual eu não tinha a menor percepção prática, tendo crescido em uma família de classe média de uma pequena cidade do sul da França. Pareceu-me de imediato impossível, por razões ao mesmo tempo éticas e epistemológicas, escrever sobre este South Side sem nele realizar meus passeios sociológicos, quan- do ele expunha sua miséria arrasadora sob minha varanda (lite- ralmente, porque recebera da Universidade de Chicago exatamente o último apartamento disponível em seu parque de alojamentos, aquele que ninguém quisera, porque estava justamente situado na linha de demarcação do bairro negro de Woodlawn, balizado, a cada cinqüenta metros, pelos telefones brancos que permitem que se façam chamados de urgência para as viaturas da polícia privada da universidade, caso necessário). E porque a sociologia normal das relações entre classes, castas e Estado na metrópole norte-americana parecia-me estar formigando de falsos concei- tos que lançam uma tela sobre a realidade do gueto que projeta o senso comum racial (e racista) da sociedade nacional, a começar pelo conceito de L/lldercJass, neologismo bastardo que permite comodamente evacuar a dominação branca e a imperícia das au- toridades do front social e urbano, focalizando a atenção sobre a ecologia dos bairros pobres e o comportamento "anti-social" de seus habitantes.' Após vários meses da busca infrutífera de um lugar onde me imiscuir para observar a cena local, um amigo francês e judoca levou-me ao gym da rua 63, somente a dois blocs [passos 1 de mi- nha casa, mas situado em um outro planeta, por assim dizer. Matriculei-me imediatamente, por curiosidade e porque estava evidente que aquele era o único meio aceitável de treinar ali e de me encontrar com os jovens do bairro. E desde a primeira seção dei início a um diário etnográfico, sem desconfiar nem um minu- to que iria permanecer na acadelnia mais de três anos e que, assim sendo, iria acumular duas mil e trezentas páginas de notas brutas em que elÍ anotava religiosamente, a cada noite, durante horas, os acontecimentos, as interações e as conversas do dia. É que uma vez ingressado no Woodlawn Boys Club encontrei-me confron- tado com meu corpo, diante de um triplo desafio. O primeiro era bruto e até mesmo brutal: será que eu seria Corpo e alma - 13 capaz de aprender esse esporte dentre todos. os mais exigentes e rudes, de controlar seus rudimentos de modo a conquistar um pequeno lugar no universo ao lneslTIQ tempo fraternal e competi- tivo da luta. de entretecer com os membros da academia relações " de respeito e de confiança mútuos e. portanto. finalmente. de re- alizar meu trabalho de pesquisa sobre o gueto? A resposta levou vários meses para chegar. Depois de um começo difícil e doloro- so. durante o qual minha inaptidão técnica só era igual a meu sentimento de frustração e. às vezes. de desânimo (aqueles que mais tarde se tornaram meus mais queridos companheiros de rin- gue apostavam. na época. na minha desistência iminente). conse- \( gui melhorar minha condição física. enrijecer minha condição e"" mental. adquirir os gestos e embeber-me da tática do pugilista_ -"fiz minhas aulas no solo. depois fiz minhas provas entre as cor- das, "treinando" regularmente com os boxistas da academia, ama- dores e profissionais. antes de me engajar. com O apoio entusias- mado de todo o clube. no grande torneio das Colden Claves de Chicago e de chegar mesmo a tentar. mais tarde. me "tornar pro- fissional"jAdquiri um conhecimento prático e afinei meus julga- • mentos sobre a Nobre Arte a ponto do velho treinador DeeDee pedir, um dia, que eu o substituísse como "segundo" eln um COIn- bate importante que deveria transformar Curtis no boxista estre- la de Woodlawn. e ele gostava de predizer que um dia eu iria abrir minha própria academia de boxe:" YOll gonna be a hellllva coach one day. LOllie. 1 know that." Nem bem passara por essa barreira inicial e preenchido a con- dição mínima necessária para minha inserção permanente no ambiente e eu já estava confrontado com um segundo desafio. o do meu projeto inicial: será que eu poderia apreender e explicar as relações sociais no gueto negro a partir de minha inserção nes- te local particular? A imersão demorada nessa pequena academia de boxe e a participação intensiva nas trocas que aí se estabeleciam no dia-a-dia permitiram-me- em todo caso. aos meus olhos. mas o leitor poderá julgar por si mesmo - reconstruir de cima a baixo .i\ minha compreensão do que é um rueto em geral e do que é a estrutura e o funcionamento concreto do gueto negro de Chica- go. em uns Estados Unidos pós-fordista e pós-keynesiano do fi- nal do século XX. em particular. sobretudo naquilo que o distin- 14 - lo"ic Wacquant gue dos bairros marginais de outras sociedades avançadas. 4 Co- meçando por recusar a falsa idéia, profundamente ancorada na sociologia norte-alnericana das relações entre divisão racial e marginalidade urbana desde os primeiros trabalhos da Escola de Chicago. de que o gueto é um universo "desorganizado". caracte- rizado pela falta. a carência e a ausência. O gym permitiu-me ques- tionar com eficácia. ligando trabalho teórico e observação empírica contínua. a visão "orientalizante" do gueto e de seus habitantes. assim como repatriar para o âmago de seu estudo as relações de poder que o caracterizam. com propriedade. como instrumento de exploração econômica e de ostracização social de um grupo desprovido de honra étnica, uma f o r m ~ de "prisão etnoracial" na qual estão confinados os pá rias dos Estados Unidos. 5 Restava o terceiro desafio. o mais formidável. aquele que eu estava a anos-luz de imaginar ter de enfrentar um dia. ao abrir a porta do Woodlawn Boys Club e para o qual esta obra dá uma primeira resposta parcial e provisória (assim como todas as in- vestigações científicas. mesmo quando elas se disfarçam como relatos): como dar conta. antropologicamente. de uma prática tão intensamente corporal, de uma cultura totalmente cinética, de um universo no qual o mais essencial transmite-se, adquire-se e desdobra-se aquém da linguagem e da consciência - enfim. de uma instituição feita de homem(ns) e que se situa no limite prá- tico e teórico da prática' Falando de outro modo: uma vez com- preendendo o que é o ofício do boxeador. no sentido de ocupa- ção. de estado social. mas também de mister e de mistério (se- 'gundo a etimologia da palavra ll1estier), "no corpo", com meus punhos e minhas vísceras, e estando eu mesmo tomado, captura- do e cativado por ele, será que eu conseguiria retraduzir essa com- ~ preensão dos sentidos em linguagem sociológica e encontrar as J formas expressivas adequadas para comunicá-la, sem COIU isso amenizar suas propriedades as mais distintivas? A organização do livro segundo o princípio dos vasos cornunicantes. a proporção de análise e de relato. de conceitual e de descritivo. invertendo-se progressivamente à medida que as páginas avançavam (de modo que o leitor profano pode percorrê- lo de trás para a frente para remontar à sociologia a partir do vivido, luas de um vivido sociologicamente construído), a Corpo e alma - 15 r lnestiçagem dos gêneros e dos lTIodos de escrita, mas tambéln o uso estratégico das fotos e das anotações pessoais, responde a esse cuidado de fazer o leitor entrar no cotidiano sensual e moral do pugilista comum, de fazê-lo palpitar ao longo das páginas junto com o autor, de modo a lhe fornecer todo o conjunto e a com- preensão arrazoada dos mecanismos sociais e das forças existen- ciais que o determinam e a aisthesis particular que ilumina sua intimidade de combatente." Ao entrar na fábrica do boxeador, elucidando "a coordenação desses três elementos, o corpo, a cons- ciência individual e a coletividade" que o talham e fazem-no vi- brar a cada dia, "é a própria vida, é todo o homem" que descobri- mos.' E que descobri;;'os em nós. Notas Loic Wacquant Paris, maio de 2002 1. Bourdicu. Picrre. MéditMiolls pilSCillie1l11CS, Paris:Editions du Scuil, 1997, p. 168. [trad. bras.: Meditações pi:lscalúuJ<ls. Rio de Janeiro: Bertrand Bra- sil,20011· 2. Nossa colaboração, que iria durar quatro anos, desfez-se no momento em que Wilson terminou sua obra que marcou os anos 80, The Truly DisCldvantaged (Chicago: The University ofChicago Press, 1987). 3. Wacquant, Lo"ic. "A 'underclass' urbana no imaginário social e científico norte-americano", Estudos A!ro-Asi<íticos, n. 31, outubro de 1977, pp. 37- 50. 4. Uma primeira etapa desses trabalhos pode ser encontrada em meu livro Os condwildos da cidClde, Rio de Janeiro: Revan, 2001, com apresentação de Luiz César Queiroz de Ribeiro; ver também "Elias no gueto", Revista de Sociologia e PolíticCl, 10-11. primavera de 1998, pp. 213-221; e "A Zona", in Pierre Bourdieu et aI., A miséria do mundo (Petrópolis: Vozes, 1997, pp.I77-201). 5. Waequant, Lole. "Três premissas perniciosas no estudo do gueto norte- americano". Mana: Estudoide Antropologia Social, 2-2, outubro de 1999, pp. 145-161;" 'A Black City within the Whitc': Revisiting America's Dark Ghetto", Black RcmlÍs$<l1lcC - Remúss<111CC Noire, 2-1, outono-inverno de 1998, pp. 141-151; e "A nova 'instituição particular': a prisão como substi- tuto do gueto", iIl __ . Punir os pobres (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, Coleção Pensamento Criminológico. 2001, pp. 99-112). 16 - lo'ie Wacquant ~ L 6. O leitor brasileiro irá encontrar um complemento disso em Lo'icWacquant, "Os três corpos do lutador profissional", in Daniel Soares Lins et il1., A dominação llJClscuJina revisitada, Campinas: Papirus, 1998, pp. 73-96; e "Putas, escravos e garanhões. Linguagens de exploração e de acomodação entre boxeadores profissionais", Ma1la: Estudos de Antropologia Social, 6- 1, outubro de 2000, pp. 127-146. 7. Mareel Mauss, "Alloeation à la société de psychologie" (1923), reeditado em OCHvres, tomo 3: Cohésion sociale et divisioIl de 1<1 sociologie, Paris: Minuit, 1969, p. 281. Corpo e alma - 1 7 ~ L_ Prólogo E m agosto de 1988, como resultado de um conjunto de circuns- tâncias,O) inscrevi-me em um clube de boxe de um bairro do gueto negro de Chicago. Eu nunca praticara esse esporte e nem sequer havia passado pela minha cabeça praticá-lo. Exceto as no- ções superficiais e as imagens estereotipadas que qualquer pessoa pode formar a respeito dele, pela mídia, pelo cinema e pela litera- tura,I nunca havia tido qualquer contato COlTI o mundo do pugi- lismo. Encontrava-me, portanto, na situação do perfeito noviço. Durante três anos, participei dos treinamentos, ao lado dos boxeadores locais, amadores e profissionais, com cerca de três a seis sessões por semana, submetendo-me com aplicação a todas as fases de sua rigorosa preparação, o shadow boxing [sombra]!') (1) Conjunto de circunstâncias provocado por meu amigo Olivicr l-Ienninc, a quem serei eternamente grato, por ler me levado ao clube Woodlawn. Gos- taria de agradecer a Picrre Bourdieu, por tcr me apoiado, desde o começo, em uma empreitada que, ao exigir o empenho da pessoa física, só poderia ser bem desenvolvida COI11 o apoio moral constante. Seus encorajamentos, seus conselhos e sua visit,l ao Boys Club ajudaram-me, em meus momen- tos de dúvida (e de cansaço), a encontrar a força para persistir em minhas investigações. Meu reconhecimento vai também para todos aqueles cole- gas, parentes e amigos, demais para serem aqui nomeados, que me apoia- ram, estimularam e reconfortaram durante e depois dessa pesquisa - eles sabem quem são e o que lhes devo -, c a Thierry Discepolo, pela energia e paciência com que trabalhou na produção dos originais. Enfim, não é pre- ciso dizer que esse livro não existiria sem a generosidade e a confiança fraterna de meus gym huddics de Woodlawn c de nosso mentor DeeOee; espero que eles vejam aqui a marca de minha estima e de meu afeto indestrutíveis. (') Todas as palavras grafadas em inglês estão nesta língua no original. [N. T.1 Corpo e alma - 19 diante do espelho, com o sparring,I') no ringue. Para minha pró- pria surpresa, e das pessoas que me eram próximas, pouco a pou- co fui gostando do jogo, a ponto de passar todas as minhas tardes na academia do Woodlawn e de "calçar as luvas" do clube com regularidade, junto com os profissionais, antes de passar para o lado de dentro das cordas, para disputar minha primeira luta ofi- cial, durante as Golden Gloves de Chicago - na embriaguez do mergulho, durante algum tempo, cheguei a pensar em interrom- per minha carreira universitária para "passar para o lado" dos profissionais e, assim, permanecer junto a meus amigos do gym e ao técnico, DeeDee Armour, que se tornou para mim um segun- do pai. (2 ) (") O termo SpilIriJlg, em português, refere-se apenas ao pugilista que pratica o exercício de boxe que simula uma luta, no ringue. Em inglês, o termo é empregado igualmente para o próprio exercício. Neste livro, sparrúlg será usado nas duas acepções, pela impossibilidade de se adaptar todas as vezes o contexto em que a palavra é utilizada. Por conseguinte, serão encontra- das expressões como "fazer Spi;Jrring", "o spi:lrrillg" [referindo-se ao exer- cício} etc. [N. T.} (2) Como atesta essa nota, entre outras do mesmo tipo, escrita em meu diário de campo, em agosto de 1990: "Hoje me diverti tanto no gym, falando e rindo com DeeDee e Curtis, sentado na sala dos fundos e simplesmente vivendo e respirilndo ali, no meio deles, embebendo-me como uma es- ponja da atmosfera da sala, que senti um repentino sopro de angústia aba- fante diante da idéia de ter de voltar logo a Harvard [onde eu acabara de ser admitido}. Experimentei tal prazer simplesmente de participar que a observaÇilo tornou-se secundária e, francamente, estava dizendo a mim mesmo que, de bom grado, abandonaria meus estudos, minhas pesquisas e todo o resto para poder ficar aqui. boxeando, permanecer 'olle of the boys'. Sei que isso é completamente tolo e certamente irrealista, mas, nesse momento preciso. a perspectiva de migrar para Harvard, de apresentar um paper à ASA [congresso anual da American Sociological AssociationJ, de escrever artigos, ler livros,yssistir a conferências e o tutli fruti universitá- rio, acho tudo isso sem o menor sentido, deprimente, de tal forma morno (morto) em relação à alegria carnal pura e viva que me oferece o diabo desse gym (é preciso ver as cenas de disputa dignas de Pagnol entre DeeDee e Curtis!), que eu queria largar tudo, drop out, para ficar em Chicago. t, verdadeiramente crazy. PB [Pierre Bourdieu J, outro dia, me dizia que ele tinha medo de que eu me 'deixasse seduzir por meu objeto', mas se ele soubesse: já estou bem para lá da sedução!" 20 - Lok Wocquant Depois disso, assisti a uns trinta torneios e "reuniões" de boxe realizados em diversos bares, cinemas e praças de esporte da cida- de e do subúrbio, na qualidade de colega de academia e assistente, o parceiro sparringe confidente, "segundo" e fotógrafo, o que me valeu ter livre acesso a todas as encenações e a todos os bastidores do mundo da luta. Também acompanhei os boxeadores do meu gym "na estrada", por ocasião dos encontros organizados em ou- tros lugarejos do Midwest e nos famosos (mas lastimáveis) cassi- nos de Atlantic City. E fui progressivamente assimilando as cate- gorias de julgamento dos pugilistas, sob o bastão de DeeDee, con- versando sem parar com ele, na acadelnia, e dissecando as lutas na televisão, na casa dele, à noite, os dois sentados na sua cama, na cozinha do pequeno apartamento. A amizade e a confiança que os freqüentadores de Woodlawn concederam-me fizeram com que eu pudesse me fundir com eles, no interior da academia, mas também que pudesse acompanhá- los em suas peregrinações cotidianas, do lado de fora, em busca de um emprego, de um lugar para morar, à cata de negócios no cOlnércio do gueto, em suas alterações com as esposas, no escri- tório do seguro social ou na polícia, bem como em seus passeios sem destino, entre as galeras [homies] das terríveis cidades vizi- nhas. Assim, meus colegas de ringue me fizeram compartilhar de suas alegrias e dores, de seus sonhos e seus dissabores, dos pique- niques, das noites dançantes e de seus passeios familiares. Leva- ram-me para rezar em sua igreja, para cortar [fade] o cabelo no barbeiro deles, para jogar bilhar em seus bares favoritos, para escutar rap ad nauseam, e até para aplaudir o Minister Louis Farrakhan, por ocasião de um encontro político-religioso da Na- ção do Islã - no qual me vi, eu, o único descrente europeu entre dez mil devotos afro-americanos em transe. Vivi com eles três enterros, dois casamentos,2 quatro nascimentos e mTI batismo, e assisti ao lado deles, com uma tristeza insondável, ao fechamen- to do gym de Woodlawn, condenado em fevereiro de 1992 e demolido um ano mais tarde, em uma operação de "renovação" urbana. As notas tomadas no dia-a-dia, depois de cada sessão de trei- namento, em meu diário de campo (inicialmente para ajudar-me a superar um profundo sentimento de mal-estar e de embaraço Corpo e alma - 21 físico, sentimento, sem dúvida alguma, redobrado pelo próprio fato de eu ser o único branco em mna academia freqüentada, na época do lneu ingresso, exclusivamente por negros), assim como as observações, as fotos e gravações realizadas durante as lutas promovidas pelos membros de minha academia, forneceram a matéria para os textos que aqui se irão ler.(31 Desde logo, parece que, para se ter alguma chance de escapar ao objeto pré-construído da mitologia coletiva, uma sociologia do boxe deve evitar o recurso fácil ao exotismo pré-fabricado da vertente pública e publicada da instituição - as lutas, grandes ou pequenas, o heroísmo da ascensão social do miraculado (Marvellous Marvin Hagler: do gueto à glória, clama com elo- qüência um cartaz pendurado em uma das paredes do Woodlawn Boys Club), a vida e a carreira fora do comum dos campeões. Ela deve apreender o boxe pelo seu lado menos conhecido e es- petacular: a cinzenta e lancinante rotina dos treinamentos na academia, da longa e ingrata preparação, inseparavelmente físi- ca e moral, que preludia as breves aparições sob as luzes da ram- pa, os ritos ínfimos e íntimos da vida do gym, que produzem e reproduzem a crença que alimenta essa economia corporal, material e simbólica muito particular que é o mundo do pugi- lismo. Para evitar, portanto, o excesso da sociologia espontâ- nea, que a evocação das lutas não deixa de suscitar, é preciso não subir ao ringue pensando na figura extraordinária do cam- peão, mas socar os aparelhos, ao lado de boxistas anônimos, no contexto habitual do gym. (3) Essas observações ctnográticas foram completadas c cntrcmcadas, no tim do percurso, pela coleta das histórias de vida dos principais membros do clube de Woodlawn, por uma série de entrevistas de profundidade com alguns pugilistas protissionais então atuantes no estado de Illinois, assim como com seus treinadores c únpresários, e pelo exame da literatura "in- dígena" (revislas e carlas com informações especializadas. biografias e au- tobiogratias) e seus derivados eruditos (escritos literários e historiográticos). Também freqüentei três outros ginásios profissionais de Chicago e visitei uma dezena de outros clubes nos Estados Unidos e na Europa. Depois que deixei Chicago. tornei-me membro de três academias de boxe, em 80stOll. Nova York c Oak.land. 22 - Lo"ic Wacquant A outra virtude de uma abordagem com base na observação participante (que, no caso presente, é mais uma "participação observante") em uma banal academia de treinamento é que os materiais assim produzidos não padecem do "paralogismo eco- ,/ lógico" afeta a maior parte dos estudos e relatos disponíveis sobre a Nobre Arte. Assim, nenhuma das declarações aqui rela- j* tadas foram expressamente solicitadas: os comportamentos des- .' critos são aqueles do boxeador em seu "hábitat natural"3 e não a (re)apresentação teatralizada e altamente codificada que ele gosta de fazer de si mesmo em público, e que as reportagens jornalís- ticas e os romances retraduzem e louvam segundo seus cânones própnos. Ao romper com o discurso moralizante - que alimenta, indi- ferentemente, a celebração e a difamação - produzido pelo "olhar distante" de um observador externo, colocado na retaguarda ou acima do universo específico, este livro gostaria de sugerir provi- soriamente como o pugilismo "faz sentido" quando se tOlna o cuidado de dele nos aproximarmos o suficiente para apanhá-lo com o seu corpo, em situação quase experimental. Por isso, o livro \ é composto de três textos com estatuto e estilo deliberadamente ' díspares, que justapõem etm21:.ráfica, al)álise sociológi- ,/ ca e eVQ"caç!o literária, de modo a comunicar, ao mesmo tempo, - o percepto e o concepto, as determinações ocultas e as experiên- cias vividas, os fatores externos e as sensações interiores que, ao ' mesclarem-se, formam o mundo do pugilismo. Em resumo, ele gostaria de mostrar e de demonstrar, em um mesmo movimento, a lógica social e sensual que informa o boxe como ofício do corpo no gueto norte-americano. O primeiro texto desembaralha a meada das relações agitadas que ligam a rua e o ringue, e descreve como o inculcar da Nobre Arte se dá como trabalho de conversão ginástica, perceptiva, emo- cional e mental, que se efetua de um modo prático e coletivo, com base em uma pedagogia implícita e mimética que, paciente- mente, redefine, um a um, todos os parâmetros da existência do boxeador. Ele apóia-se em um artigo redigido durante o verão de 1989,4ou seja, um ano após minha entrada no clube de Woodlawn, depois que sofri uma fratura do nariz, durante uma sessão com sparring, que me obrigou a uma inatividade propícia a um reto r- Corpo e alma - 23 no à reflexão sobre meu noviciado então em cursO.(4) Foi preciso resistir à tentação de refazer totalmente esse "escrito de juventu- de", prelúdio de uma análise mais compreensiva da "fábrica" de pugilistas, que é o tema de um livro atualmente em fase de reda- ção,!S) e investindo aí principalmente tudo o que foi adquirido dos trabalhos posteriores, frutos de mais dois anos de submersão intensiva. Limitamo-nos a enriquecer os dados e a tornar claras as análises originais, conservando, contudo, sua economia de con- junto. Pareceu-nos, de fato, que as lacunas empíricas e a semi- ingenuidade analítica desse texto de aprendiz de sociólogo tinha como contrapartida um frescor etnográfico e uma candura de tom que poderiam ajudar O leitor a deslizar melhor para dentro da pele do boxeador. O segundo texto, redigido pela primeira vez em 1993, retoma- do e completado sete anos mais tarde, com a ajuda de fitas de áudio e vídeo gravadas na época, descreve minuciosamente uma jornada de reuniões de boxe em um bar de um bairro operário do South Side, desde os preparativos de pesagem oficial, de ma- nhã cedo, até a volta das festividades, depois das lutas, tarde da noite. As unidades de tempo, de lugar e de ação permitem pôr em relevo a imbricação mútua dos ingredientes e das redes sociais que o priIneiro texto necessariamente separara: o interesse e o desejo, a afeição e a exploração, o masculino e o feminino, o sagra- do e o profano, a abstinência e o prazer, a rotina e o imprevisto, o código de honra viril e o diktat brutal das opressões materiais. O terceiro texto, se nos é permitida uma expressão que acen- tua O oxímoro, é uma "notícia sociológica". Escrito a pedido de " (4) Foi ao redigir esse artigo qlle compreendi até que ponto o ginásio consti- tuía um "campo estratégico de pesquisa" (como diria Robert Merton) e decidi fazer da profissão de boxista um segundo tema de estudos, paralela- mente ao gueto. " (5) A paixão do pUgíJjstil irá tratar de\maneira aprofundada, entre outras coi- sas, da dialética do desejo e da dominação na gênese social da vocação de boxista, da estrutura e do funcionamento da economia pugilística, do tra- balho de treinador como uma terapia regressiva, das crenças indígenas so- bre o sexo e as mulheres, c do confronto no ringue como ritual de mascU- linização. 24 - Lo"ic Wacquant Michel Le Bris para um número especial da revista literária Gulliver, dedicado a "Escrever o esporte",' ele segue passo a pas- so a preparação e a apresentação do autor na temporada de 1990 das Chicago Golden Gloves, o maior torneio amador do Midwest, de um modo narrativo que se esforça por apagar os traços do trabalho de construção sociológica (a ponto de Le Bris acreditar- se autorizado a qualificá-lo injustamente, no prefácio, de "relato, com toda a sociologia em suspenso"), preservando seus princi- pais resultados.(6) A junção desses gêneros habitualmente segre- gados - sociologia, etnografia e reportagem -, tem como finali- dade permitir que o leitor perceba melhor as coisas do pugilismo «no concreto, como elas são", e a ver os boxeadores em movi- mento, "COlTIO, na mecânica, vêem-se as massas e os sistemas, ou como, no mar, vemos os polvos e as anêlTIOnaS", Percebemos inú- meros homens, forças móveis e que flutuam no seu meio e em seus sentimentos.f i É instrutivo, para concluir este prólogo, acentuar os princi- pais fatores que tornaram possível essa pesquisa, entre os quais o mais decisivo foi, sem dúvida, O caráter "oportunista" de minha inserção.? De fato, não entrei no gym com a finalidade expressa de dissecar o mundo do pugilismo. Minha intenção inici;tl era servir-me da academia de como uma o P'lli! obser_,,ª-r as estratégias sociais dos joy.m;; qo bairro - meu objeto original-, e foi somente ao final de 16 meses de presença assídua, e depois de ter sido entronizado como membro do círcu- lo dos Boys Club, que decidi, com o aval dos interessados, fazer do ofício de boxeador um objeto de estudo totalmente à parte. Não há dúvida de que jamais ganharia a confiança nem me bene- ficiaria da colaboração dos freqüentadores do Woodlawn se ti- vesse entrado na academia com o firme propósito de estudá-la, porque essa própria intenção teria irrevogavelmente modificado (6) Além do mais, esse texto coloca, em termos práticos, a questão da escrita em ciências sociais e da diferença entre sociologia e ficção, questão que atormentou bastante os antropólogos na década passada, porque, logo depois que o texto foi publicado, de valeu-me a oferta, por parte de uma grande casa editora de Paris, de um contrato para publicar ... meu "ro- lnal1Ce" . BSC$f-;./ t,.t:.f?3S Corpo e alma - 25 meu status e meu papel no contexto do sistema social e simbólico considerado. Além disso, eu tivera a sorte de ter praticado vários esportes competitivos na minha infância, no Languedoc (futebol, basque- te, rugby, tênis), de modo que, quando entrei no Boys Club, dis- .; punha de um pequeno capital inicial esportivo, que se revelou indispensável para que eu enfrentasse com sucesso as provas pu- gilísticas. O acaso da geografia também quis que eu me inscreves- )\, se em um gym "tradicionalista", dirigido com punhos de aço por : um técnico de estatura internacional e que desfrutava de uma fama invejável na cidade, desde que a academia fora aberta, em 1977, de modo que pude aprender a boxear dentro das regras da arte, em contato com treinadores e lutadores competentes. (7 ) É prová- vel que eu não tivesse persistido na lninha empreitada ou, pior, que eu fracassasse seriamente, caso tivesse feito meu aprendizado em uma das academias anatômicas mantidas pelo serviço de par- ques e jardins da cidade. Ser o único branco do clube poderia constituir Uln sério obs- táculo à minha integração, amputando, assim, minha capacida- de de penetrar no mundo social dos pugilistas, se não fosse a ação conjugada de três aspectos compensadores. Primeiro, o " ethos igualitarista e o daltonismo racial afirmado da cultura pu- gilística fazem com que se seja nela totalmente aceito, desde que nos dobremos diante da disciplina comum e desde que pague- mos "o que é devido" no ringue. Em segundo lugar, minha na- cionalidade francesa concedeu-Ine uma espécie de exterioridade (7) O gym de Woodlawn era então um dos 52 clubes de boxe oficialmente listados no estado de Illinois e uma das quatro principais academias pro- fissionais de Chicago (isto é, onde treinavam boxeadores "profissionais" pagos pelos serviços prestados entre as cordas, além dos amadores que povoam todos os clubes). A maioria dos pugilistas de destaque nos anos 80, em Chicago, em um momento ou outro, havia passado pelo Woodlawn Boys Club, que era, até o seu fechanynto, um dos principais fornecedores de lutadores para os encontros regionais. No final de sua carreira, Mohammad Ali, que tem uma casa perto de 1;1, no bairro rico do Hyde Park-Kenwood, ilha de opulência branca perdida em meio ao oceano da miséria negra do South Side, linha o hábito de ir treinar ali - a cada vez, sua aparição provocava explosões de alegria na rua. 26 - Lo"ic Wacquant estatutária com relação à estrutura das relações de exploração, de desprezo e desconfiança mútua que opõem brancos e negros na América do Norte. Beneficiei-me do capital histórico de sim- patia de que a França desfruta entre a população afro-america- na, em virtude da acolhida recebida pelos soldados no Hexágo- no, nas duas guerras mundiais (quando, pela primeira vez na vida, eles viram-se tratados como seres hlllnanos, e não como integrantes de uma subcasta),8 e pelo simples fato de que eu não tinha a hexis do americano branco médio, que marca continua- mente, nem que seja pela defesa do corpo, a fronteira infran- queável entre as comunidades. Eddie, o treinador assistente do Woodlawn, explica: Tenho respeito por você, Louie, por ter vindo pro gym e ser um carinha como outro qualquer na academia ... Não tem muitos caucasianos [brancos] fazendo isso junto com a gente, os ne- gros ... Minha mulher e eu, faz cinco anos que a gente mora no Hyde Park [o bairro da Universidade de Chicago, 80% branco J, e nós nunca falamos com caucasianos, nunca. Quando eles che- gam perto de você, na rua, eles ficam com essa cara apavorada, como se você fosse pular em cima deles. É por isso que minha mulher e eu nunca falamos com um caucasiano no Hyde Park. [Sobe de tom e sua fala acelera-se sob o efeito da emoção.] A maioria dos caucasianos, quando você chega perto deles, ou quando você tenta falar com eles, eles chegam pra trás e olham pra você como se você tivesse uma argola no nariz, vê só. Eles fazem careta [ele gira os olhos com um ar selvagem l, e você pode ver que tem qualquer coisa que nâo está pegando bem. Mas você, você nâo faz isso, você fica tão à vontade na academia e quando vai às lutas com a gente ... Cara! Você fica tão à vontade que até parece que você não é caucasiano. [Sua companheira] Liz e você, o único jeito de saber que vocês não são negros é pelo modo de falar, e porque você é francês, é claro. Mas você está lá no gym com a gente, você fala com os outros caras, você é feito eles. Você não fica tenso Oll nervoso porque está entre a gente. Você relaxa [loose], você se entende bem com os carinhas e eles gostam de você também ... Saca só, eu respeito as pessoas queme respeitam. Então, eu res- peito você. Louie, você faz parte da equipe com a gente. Outro Corpo e alma - 27 /: dia eu estava falando pra alguém no meu serviço: "Temos o 'Fighting Frenchman' com a gente na equipe!" [Ele corou de prazer] Uau, você faz parte da equipe como os outr05.(8) Finalmente, meu "abandono" total às exigências do campo(9) e, sobretudo, o fato de eu calçar as luvas com eles regularmente valeram-me a estima de meus camaradas de clube, como é atesta- do pelo chamamento" bratller Lauie" e pela gama de apelidos afe- tuosos que eles me deram ao longo dos meses. "Busy Louie", meu nome no ringue, mas também" Bad Dude", "The Prench Bamber", "The Prench Hammer" e "The Black Prenchman". Além das pro- vas de solidariedade que dei cotidianamente, fora da academia, dos serviços e das diversas intervenções junto às burocracias pú- blicas e privadas que regiam suas vidas, o fato de eu ter levado minha iniciação até "fazer" as Golden Gloves contribuiu ampla- mente para que eu estabelecesse meu status no clube e para selar minha legitimidade de aprendiz de boxe junto aos atletas e aos treinadores de outros ginásios, que, depois de minha apresenta- ção oficial entre as cordas, me reconheciam como" one ofDeeDee's Bays" [um dos rapazes de Dee Dee l· Berkeley, dezembro de 2000 Notas 1. Para mencionar apenas os grandes nomes da literatura norte-americana contemporânea, Arthur Krystal, "Ifs, and, butts: the literary sensibility at ringside". H<1fper's Milgilzille (junho de 1987, n. 274, p. 63-67) cita, entre outros, Ernest Hemlr.ingway, Jack London, Dashie1 Hammett, Nelson AIgren, James Farell, Ring Lardner, Nonnan Mailer e Ralph Ellison, a que (1\) Depois que voltei de uma estada na França, durante as festas de Natal, o mesmo Eddie perguntou-me, nos bastidores, diante de todos os freqüen- tadores habituais: "E aí, Louie, você contou pra sua família que está trei- nando no gym com lutadores profisJionais? Disse pra sua família que você é 01lC ofthe guys, que a gente trata você como se fosse um negro?" "\ (9) Kurt Wolf definiu o conceito de "abandono" em etnografia como impli- , cando "um engajamento total, uma suspensão das noções recebidas, a per- tinência de qualquer coisa, a identificação e o risco de se deixar ferir".\! 28 - Lo"ic Wacquant l veio juntar-se tardiamente uma das muito raras mulheres, a romancista Joyce Carol Oates, a quem devemos o belíssimo 011 boxi11g (Garden City: Doubleday, 1987. 2. Pode-se encontrar uma etnografia dos ágapes matrimoniais de Anthony e de Mark em meu artigo "Un mariage dans le ghetto". Acres de 1;;1 Recherche en Sciences Sociales, n. 113, junho de 1996, p. 68-85. 3. Sobre o paralogismo ecológico, ler Aaron Cicourel, "Interviews, surveys, and the problem of ecological validity" (The Americ<111 Sociologist, n. 17, fevereiro de 1982, p. 11-20)', e as observações metodológicas correlatas de Howard Becker. "Studying practitioners ofvice and crime". In: William Habenstein (org.). Pathways to datil. Chicago: Aldine. 1970, p. 30-49. 4. Lorc Wacquant. "Corps et âme: notes ethnographiques d'un apprenti boxeur". Acres de la Recherche Cl1 Scie11ces Soci;;lles, n. 80, novembro de 1989, p. 33-67. 5. Loi'c Wacquant. "'Busy Louie' aux Golden Gloves". GulJiver, 1l. 6, abril- junho de 1991, p. 12-33. 6. Mareei Mauss. "Essai sur le dono Forme cf raisons de l'échange dans les societés archai'ques". In: Mareei Mauss. Sociologie et il1Jthropologie. Paris: PUF. (1925) 1950, p. 276 [trad. bras.: SocioJogúl c illltropologia. São Pau- lo: EPU/EDUSP, 2 V., 1974J. 7. Jeffrey M. Riemer. "Varietes of opportunistic research". Urbal1 Life, n. 5- 4, janeiro de 1977, p. 467-477. 8. Sobre "a afeição histórica" dos negros norte-americanos pela França e suas origens na experiência vivida de uma miscigenação tabu e violentamente reprimida nos Estados Unidos, ler Tyler Stovall. PilriS noir: Africi:11J Americ<llls in the Cityo[Light. Boston: Houghton Mifflin, 1998. 9. Kurt Wolf. "Surrender and community study: the study of Loma". In: Arthur J. Vidich e ]oseph Bensman (org.). Reflectial1s ar cammullity studies. Nova York: Wiley, 1964, p. 233-263. Corpo e alma - 29 Os instrumentos na oficina. I A rua e o ringue D o mesmo modo como não se poderia compreender o que é uma religião instituída, tal como o catolicismo, SelTI se estu- dar em detalhes a estrutura e o funcionamento da organização que a sustenta, no caso, a Igreja romana, também não se pode elucidar o significado e o enraizamento do boxe na sociedade nor- te-americana contemporânea - ou pelo menos nas regiões infe- riores do espaço social, em que ele escapa de uma extinção perio- dicamente anunciada como iminente e inevitável- sem se exami- nar a trama das relações sociais e simbólicas que se tecem no inte- rior e ao redor do salão de treinamento, meio e motor oculto do universo do pugilismo. Um gym (segundo o termo consagrado nos países de língua in- glesa) é uma instituição complexa e polissêmica, sobrecarregada de funções e de representações que não são apreensíveis de imediato pelo observador, mesmo que ele esteja avisado sobre a natureza do lugar. Aparentemente, no entanto, o que há de mais banal e de mais evidente que uma academia de boxe? Poderíamos, na verda- de, retomar palavra por palavra essa vinheta que George Plimpton compôs sobre o famoso Stillman's Gym de Nova York, nos anos 50, para descrever qualquer salão da América do Norte urbana atual, de tal modo são poderosas as invariantes que comandam o seu aspecto: "Subia-se por uma escada escura até uma sala lúgubre, que não deixava de lembrar a sala de cargas de um antigo galeão. Podiam-se discernir os ruídos, antes mesmo que nossos olhos se acostumassem à penumbra: o 'slap-slap' das cordas de pular baten- do no chão, o som pesado do couro contra os sacos de areia que ressoavam e balançavam na ponta das correntes, o estalo das bolas de couro, o rangido das botas sobre a lona do ringue (havia dois ringues), as fungadas dos boxeadores soprando pelo nariz e, a cada Corpo e alma - 31 três minutos, o soar estridente do relógio. A atmosfera parecia com a de mTI crepúsculo em uma selva fétida". 1 (1) Como iremos ver, o gym é essa forja em que se modela o pugi- lista, a oficina em que se fabrica esse corpo-anna e armadura que ele se apressa por lançar em confronto no ringue, o cadinho em que são polidas as habilidades técnicas e os saberes estratégicos, cuja delicada reunião faz o lutador acabado, enfim, o forno em que se alimenta a chama do desejo pugilístico e a crença coletiva no bom fundamento dos valores indígenas, sem oS quais ninguém iria se arriscar de modo duradouro entre as cordas. Mas a acade- mia de boxe não é mais do que isso, e sua missão técnica apre- goada - transmitir uma com petência esportiva - não deve mas- .. carar as funções extrapugilísticas que ela preenche para aqueles que aí vêm comunicar, nesse culto plebeu da virilidade que é a ,. Nobre Arte. Antes de mais nada, o gym isola da rua e desempenha -, o papel de escudo contra a insegurança do gueto e as pressões da vida cotidiana. À maneira de um santuário, ele oferece um espaço protegido, fechado, reservado, onde é possível, entre seus mem- bros, subtrair-se das misérias costUlneiras de Ulna existência muito vulgar e dos azares que a cultura e a economia da rua reservatn para os jovens nascidos e encerrados nesse espaço ultrajado e aban- donado de todos que é o gueto negro. O gym é, também, uma " escola de moralidade, no sentido durkheimiano, isto é, uma má- quina de fabricar o espírito de disciplina, a ligação com o grupo, o respeito ao outro, assiIn como a si mesmo, e a autonomia da vontade, todos indispensáveis à eclosão da vocação de pugiiista. 3 Finalmente, o salão de boxe é o vetor de uma desbanalização da vida cotidiana, porque ele faz da rotina e da remodelagem corpo- ./' rais o meio de acesso a um universo distintivo, em que se mistu- ram aventura, honra masculina e prestígio. O sel)ão penitenciaI, do "programa de vida" do pugilismo faz do indivíduo sua própria arena de desafio e convida-o a descobrir a si mesmo, ou melhor, a produzir a si mesmo. O pertencimento (I) Essa descrição é válida para o conjunto dos Estados Unidos urbanos e para a maior parte dos países industrializados: as academias de boxe do mundo todo compõem-se mais Ollmenos dos mesmos ingredientes e se parecem a ponto de se confundirem. 2 32 - LoTe Wacquant ao gym é a marca tangível da aceitação em UITI-a confraria viril que permite que a pessoa se destaque do anoúimato da massa e, por- tanto, atraia a admiração e a aprovação da sociedade local. Para perceber essas diversas facetas do gym e detectar as prote- ções e os ganhos que ele assegura para aqueles que se colocam sob a sua égide, é preciso e basta seguir os obscuros soldados da No- ' bre Arte no cumprimento de suas tarefas diárias e submeter-se, ao lado deles, ao rigoroso regime, indissociavelmente corporal e moral, que define seu estado e sela sua identidade. Foi o que fiz durante três anos, em uma academia do gueto negro de Chicago, na qual me iniciei nos rudimentos do ofício e onde, ligando-me por relações de amizade ;:tos treinadores e aos boxeadores do lu- gar, pude observar in vivo a gênese social e o desenvolvimento das carreiras pugilísticas. Retorno sobre uma experiência de aprendizagelTI em curso, a') , primeira parte da presente obra tem um triplo objetivo. O pri- meiro é apresentar dados etnográficos precisos e detalhados, pro- duzidos pela observação direta e pela participação intensiva, so- bre um universo social que é tanto mal conhecido quanto mais amplamente difundidas são as representações comuns de que ele é objeto. Vamos destacar, em seguida, dessa base documental, al- guns dos princípios que organizam esse complexo de atividades específicas que é o boxe, tal como ele é praticado atualmente den- tro do gueto negro norte-americano, trazendo luz principalmen- te sobre a regulação da violência, que se opera na sala de treinos, por meio da relação bífida, feita de uma mistura de afinidade e antagonismo, que liga a rua ao ringue. Enfim, esboçaremos uma reflexão sobre a iniciação a uma prática da qual o corpo é ao mes- v mo tempo a sede, o instrumento e o alvo. Isso quer dizer que não' buscaremos incriminar nem desculpar esse esporte reputado como "bárbaro" entre todos os outros, tantas vezes celebrado e conde- nado, difamado e reverenciado,(2J mas sim sugerir o que sua lógi- (2) Uma citação entre mil outras: "Não é por acaso que o boxe, entre todos os esportes, tenha sido o que inspirou o maior número de cineastas e roman- cistas de talento. Em nossa civilização, de é um arcaísmo, uma das últimas barbáries consentidas, o último espelho autorizado a ainda refletir o nosso lado Corpo e olma - 33 n ca específica, e sobretudo aquela lógica da sua forma de ser incul- cado, pode nos ensinar sobre a lógica de toda prática. (3 ) Para antecipar os primeiros ensinamentos dessa iniciação, pode-se avançar que o ato de incutir aquilo que se pode chamar de habitus pugilísticofunda-se sobre uma dupla antinomia. A pri- meira delas vem do fato de que o boxe é uma atividade que parece estar situada na fronteira entre natureza e cultura, no próprio li- mite da prática, e que, no entanto, exige uma gestão quase racio- nal do corpo e do tempo, de fato extraordinariamente complexa, :. senão elaborada, cuja transmissão efetua-se de modo prático, sem passar pela mediação de uma teoria, com base em uma pedagogia completamente implícita e pouco codificada. Daí decorre a se- '" gunda contradição, pelo luenos aparentemente: o boxe é um es- porte individual, certamente um dos mais individuais de todos, de vez que põe fisicamente em jogo - e em perigo - apenas o • corpo do lutador, cuja aprendizagem adequada, contudo, é acen- tuadamente coletiva, sobretudo porque supõe a crença no jogo que, como todo jogo de linguagem, segundo Ludwig Wittgenstein, só nasce e perdura no e pelo grupo que ela define, por sua vez, segundo um processo circular. Dito de outro modo, os meios que fazem um pugilista acabado são, como toda "técnica do corpo", _____ segundo Mauss, "a obra da razão prática coletiva e individual"." Enfim, tornar-se boxeador é apropriar-se, por impregnação progressiva, de um conjunto de mecanismos corporais e de es- quemas mentais tão estreitamente imbricados que eles apagam a distinção entre o físico e o espiritual, entre o que emerge das ca- pacidades atléticas e o que diz respeito às faculdades morais e à vontade. O boxeador é uma engrenagem viva de corpo e de espíri- to que despreza a fronteira entre razão e paixão, que explode a oposição entre a ação e a representação, e que, ao fazer isso, ofe- (3) Segundo Pierre Bourdieu. "o esporte é, junto com a dança, um dos terre- nos em que se coloca com acuidade máxima o problema das relações entre a teoria e a prática, e também entre a linguagem c o corpo [ ... ]. O ensino de uma prática corporal [encerra] um conjunto de questões teóricas de pri- meira importância, à medida que as ciências sociais esforçam-se por fazer a teoria das condutas que se produzem, em sua grande maioria, aquém da consciência",5 34 - LoTe Wacquant rece Ulna superação, em ato, da antinomia entre o individual e o coletivo. E aí temos, mais uma vez, Mareel Mauss, quando fala de "montagens fisio-psico-sociológicas de séries de atos [ ... ], mais ou menos habituais ou mais ou menos antigas na vida do indiví- duo e na história da sociedade", que são operadas "para e pela autoridade social".7 Uma ilha de ordem e de virtude O universo relativamente fechado do boxe não pode ser com- preendido fora do contexto humano e ecológico no qual ele se ancora e das possibilidades sociais do qual ele é portador. É, com efeito, em sua dupla relação de simbiose e de oposição com refe- rência ao bairro e às duras realidades do gueto que o gym define- se. Assim como nos atos de tornar-se integrante de uma gangue ou entregar-se à criminalidade da rua (duas carreiras conexas para as quais o boxe oferece uma escapatória possível)," a afiliação a um salão de boxe só adquire sentido em relação à estrutura de ,( oportunidades de vida oferecidas - ou recusadas - pelo sistema local de instrumentos de reprodução e de mobilidade sociais, no caso, a escola pública, o mercado de trabalho desqualificado e as atividades e redes constitutivas da economia predatória da rua. Antes de nos aventurarmos dentro do gym, é, portanto, indis- pensável esboçar em traços rápidos um retrato do bairro de Woodlawn e sua evolução histórica recente. Essa comunidade afro-americana está bem longe de ser a mais deserdada do gueto sul de Chicago, uma vez que, das 77 zonas que cortam a cidade, Woodlawn coloca-se no décimo terceiro lugar na escala de po- breza. Mas nem por isso o bairro deixa de oferecer, já há cerca de meio século, o espetáculo surpreendente de um tecido urbano e social agonizante de degradação contínua e de profunda segrega- ção racial e econômica.(4) Logo depois da guerra, Woodlawn era um bairro branco está- vel e próspero, satélite do bairro de H yde Park (um feudo da U ni- (4) Em 25 das 77 zonas, quase todas afro-americanas e hispanófonas, mais de um quinto da população (sobre)vive abaixo do limite oficial de pobreza," Corpo e alma - 35 A entrada do Woodlawn Boys Club, na rua 63. outros, em <:;.- : ... , ;!$W;t frente ao gym. Desolação urbana a dois passos do bairro branco e próspero de Hyde Park. 36 - Lore Wacquant versidade de Chicago), que faz limite com ele ao norte, dotado de um setor comercial denso e de um mercado imobiliário ativo. O cruzamento da rua 63 com a avenida Cottage Grove era um dos mais movimentados da cidade, e multidões comprimiam-se nas diversas lojas, nos restaurantes, cinemas e clubes de jazz que ali ficavan1. Trinta anos mais tarde) o bairro transformou-se em um vasto bolsão de miséria e desesperança, emblemático do declínio da "Metrópole Negra"lI) de Chicago, no qual se concentram fra- ções entre as mais marginalizadas da população da cidade. Entre 1950 e 1980, o número de habitantes do bairro caiu de 81 mil para 36 lnil) enquanto a percentagem de residentes afro-america- nos passava de 38% para 96% (o número de brancos desabou, nesse intervalo, de 50 mil a menos de mil). O afluxo de migrantes negros vindos dos estados rurais do Sul foi acompanhado por um êxodo maciço de brancos, logo seguidos pela classe média de cor, que abandonou o coração do gueto, seguida pela relativa abertu- ra das restrições de casta no local, para ir fundar seus próprios bairros descentralizados (que se tornariam também segregados)." Essa virada demográfica, amplificada pela política municipal de "renovação urbana" dos anos 1950 -localmente conhecida sob o nome de "Negro removaf' ("varredura de negros") - e pela "guer- ra de gangues" da década de 1960, provocou uma crise das insti- tuições locais que, combinando-se com taxas recordes de desem- prego e de evasão escolar, acabou por fazer de Woodlawn um deserto econômico agravado pelo purgatório social. Alguns indicadores fornecem a medida do grau de precarie- dade socioeconômica dos habitantes de Woodlawn. 12 No recen- seamento de 1980, um terço das famílias do bairro vivia abaixo do limite mínimo federal de pobreza, e a renda média por domi- cílio, definida em 10.500 dólares anuais, não era atingida pela metade da renda média municipal. A proporção de famílias nas quais apenas um dos pais estava presente elevava-se a 60% (con- tra os 30% de dez anos antes), a taxa oficial de desemprego atin- gia os 20% (duas vezes a taxa da cidade, depois de triplicada em uma década) e menos de um chefe de família, entre oito, tinha a propriedade do domicílio. Apenas 34% das mulheres e 44% dos homens de mais de 18 anos tinham emprego, e 61 % dos domicí- lios eram financeiramente dependentes de algum dos programas Corpo e alma - 37 de assistência social. Entre a população economicamente ativa, a categoria socioprofissionallnais numerOSa era, COln 31 % dos ca- sos, a dos empregados do comércio e da administração; o segun- do lugar, com 22% dos casos, ficava com as pessoas ocupadas em serviços e em tarefas relacionadas à segurança e com os(as) empregados(as) domésticos(as). Menos de 8% de adultos tinham um diploma de ensino superior, e mais da metade neln mesmo tinha concluído O ensino médio - embora para isso não fosse ne- cessário passar por algum exame. O bairro não dispõe mais de um colégio de ensino médio, nem sequer de um cinema, uma biblioteca ou serviço de formação de mão-de-obra e de agencia- mento de empregos. Apesar da proximidade imediata de um dos centros de inovação médica mais famosos do mundo, o hospital da Universidade de Chicago, a taxa de mortalidade infantil em Woodlawn estava aumentando a ponto de ultrapassar os 3%, em 1990, ou seja, o triplo da taxa média nacional e superior aos índi- ces de vários países do Terceiro Mundo. A exemplo das outras instituições públicas, as escolas do bair- ro são "garantia de miséria e de criminalidade".!3 A penúria cr6- nica de meios de que elas padecem, os prédios superpovoados e insalubres e o corpo docente subqualificado e desmoralizado são fatores que convergem para reduzi-Ias a instituições de "guarda", que se contentam em estocar os jovens do bairro - a maior parte dos estabelecimentos do gueto nem mesmo oferece o Curso pre- paratório para o ingresso na universidade. Não há nada de sur- preendente que a isso tudo venha se somar a economia ilegal da rua, mais atraente que a escola, que só acaba em desemprego, ou, na melhor das hipóteses, em empregos sem cobertura social, a quatro dólares por hora. Á parte a Universidade de Chicago, não existe qualquer empregador de porte em um raio de cinco quil6- metros. Como em outros guetos negros norte-alnericanos, "as insti- tuições dominantes [de Woodlawn] são as igrejas e os bote- quins",!4 embora uma grande parcela das cerca de 30 instituições religiosas presentes no início dos anos 60 tenha há algum tempo fechado suas portas. A ausência de novas construções ao longo de décadas (70% das moradias datam de antes da guerra) e a des- truição do parque habitacional, que diminuiu de 29.600 para 38 - LoTe Wacquant 15.700 unidades, entre 1950 e 1980 (sobretudo em decorrência de uma epidelnia de incêndios "COlTI seguro", de origem crimi- nal, durante o período de turbulência das revoltas de negros, de 1966 a 1970), em um bairro situado às margens do lago Michigan, a uns dez quil6metros do centro da terceira megalópole norte- americana, falam mais do que todas as estatísticas sobre a posição marginal que essa comunidade ocupa na vida de Chicago. O salão do Boys and Girls Club de Woodlawn situa-se na rua 63, uma das mais devastadas do bairro, no centro de uma paisa- gem de desolação urbana que os repórteres do Chicago Tribune, o principal jornal da localidade, descrevem como se segue: "Passei- em pelo 'EI' [o metr6 suspenso] ao longo da rua 63, em Woodlawn, por onde foi outrora a rua de comércio mais animada de Chica- go, perto da State Street [no centro da cidade]. A paisagem parece tanto com a de uma cidade fantasma quanto com mTI cenário de faroeste: tábuas obstruem portas e janelas, mesmo quando as ta- buletas das lojas que prosperavam antigamente no bairro só estão semicobertas pela fuligem e pela putrefação - um mercado A&P, uma mercearia Hi-Lo, um Walgreei1s [cadeia de drogarias], o ci- nema Kimbark, o depósito do Empire [comércio de tapetes], o hotel Pershing, o Banco de Southeast Chicago".!5 Na verdade, a parte da rua em que o clube de boxe está encra- vado reduz-se a uma fileira de antigas casas de comércio apodre- cidas ou queimadas, de terrenos baldios cheios de lixo e vidros quebrados, de construções abandonadas ao longo da linha de metr6 que passa sobre elas. As raras lojas que aí sobrevivem (vá- rios botecos, uma loja de roupas para crianças. uma drogaria es- pecializada em produtos de beleza, uma loja de móveis usados e de equipamentos domésticos de ginástica, uma mercearia e um restaurante de comida caseira) mal se sustentam atrás das grades, à espera de clientes hipotéticos. O Boys Club tem, de um lado, o antigo cinema Kimbark, fechado em 1973, do qual só restam a fachada folheada de material carcomido e o frontão, roído pelas intempéries. De outro lado, está um terreno baldio esburacado, no meio do qual se ergue um parque para crianças e um pátio de chapa de aço ondulada, rodeado por uma tela, em que os homens desocupados da região vêm para dividir uma garrafa de aguar- dente nos dias em que faz bom tempo. Bem atrás do clube, há Corpo e alma - 39 i l "', \, ,,\' 'V / I' , " ,'v ;1 " "',',,," 1 .li ' " " '\ ,'f\ ... I' IV \ 1''/','', \/" \/\ ",/V \/\7/\ \ \1 \1\\/\'/"/''''" i\ i "I' \\ \1 '\1\\'1',' (/,''1,','< / \' . ,V,", ",., , ,'" ' I' I' \ 1\, " ", j, , ,,' Ii - ' \ ,y "V', .'.>," ' 'i,!, / ',/\, '.. "".,' . " , ",,' .l..' ,'" '. " \ \., • 4 " ,\,' ' ,o I , '- ...; ..... _. I lIiiiiI - . ,'" " o desemprego pandêmico condena à inatividade. . .......-::: " . JiiIl!!i!-,-;-- , , , , Uma oficina religiosa e um clube para jovens em ruínas sob o metrô suspenso. 40 - laie Waequanl I , l UlTIa velha construção condenada, de tijolo vermelho, cujas jane- las de vidros quebrados estão lacradas por barras redondas e cujas portas de metal estão condenadas por fortes cadeados. O lixo acu- mula-se nesse corredor dos fundos para O qual dá a entrada de serviço do salão de treino. Nesse bairro perigoso) em que as armas brancas são moeda corrente e onde "todo mundo", segundo DeeDee, o treinador do clube, anda com um sprayde gás lacrimogênio no bolso, os furtos rápidos, as agressões [muggings], os homicídios e delitos de toda qualidade fazem parte da rotina e geram uma atmosfera de medo impregnante, por vezes mesmo de terror, que mina as relações interpessoais e distorce todas as atividades da vida cotidiana. As- sim, os habitantes do bairro escondem-se em suas casas atrás de barricadas, com portas blindadas e grades nas janelas, estão proi- bidos de sair depois do crepúsculo e evitam, na medida do possí- vel, freqüentar os lugares e os transportes públicos, por medo da violência criminal. Aliás, várias estações de metrõ do gueto tive- ram suas entradas fechadas, e os ônibus da cidade são seguidos por viaturas especiais da polícia durante todo o trajeto, As exi- gências dos membros da gangue dos El Rukns (antigamente, os Discípulos), que controla o tráfico de drogas, o contrabando e a prostituição nessa parte do South Side, não são a menor das fon- tes de insegurança. (E, no entanto, existe um acordo oficioso de não-interferência recíproca entre o Boys Club e o comando dos El Rukns, em razão dos laços pessoais que DeeDee mantém com aqueles chefes que outrora foram seus aprendizes no salão,) Um jovem que mora não muito longe do gym reSUlne dessa maneira a atmosfera do bairro: "O território em que eu nasci, esse nem mete tanto medo, Mas o que fica na frente, é outra coisa, Quer dizer, eles são todos sinistros, mas esse é o mais sinistro: é o 'Mortecentro' [M urdertown J", O clube protege-se desse ambiente hostil como se fosse uma fortaleza: todas as aberturas estão fechadas com grades de metal reforçadas e devidamente cerradas com cadeados; os vidros da creche contígua têm grades, a porta metálica que abre para o cor- redor dos fundos tem fechaduras duplas e um sistema de alarme eletrônico é acionado assim que O último ocupante deixa o lugar. Dois grandes tacos de beisebol estão encostados perto das duas Corpo e alma - 41 I entradas, um ao lado do balcão de recepção da creche, outro atrás do escritório de DeeDee, caso seja necessário rechaçar manu militari a intromissão de visitantes indesejáveis. Enquanto eu enfaixo minhas mãos, Eugene O'Bannon (um an- tigo pugilista, carteiro de profissão, que chega regularmente vestido em seu uniforme de serviço para discutir os golpes com DeeDee) tira do bolso do casaco um spray de gás parali- sante de autodefesa Mace, que ele me entrega: "Toma, é pra sua mulher. Entrega a ela de minha parte, não queremos que aconteça alguma coisa com ela ... Você mira no rosto do cara e aperta aqui." Pergunto que efeito aquilo produz. "Isso queima horrivelmente os olhos e o rosto, você não vê nada durante dez minutos." Na mesma hora, DeeDee também tira o seu sprayde dentro do bolso. acrescentando: "Eu sempre trago ele comigo. Na academia, na rua, quando vou dar minhas caminhadas, sem- pre carrego comigo." Cada um conta as ocasiões em que teve de usar o gás paralisante. Eu agradeço a O'Bannon e pergunto- lhe se ele também sempre carrega um daqueles consigo. "Em geral, carrego, mas agora, não: agora estou a zero, porque dei o meu a você. Vou precisar voltar correndo pra casa, não posso ficar passeando pelado desse jeito." Risos. [Nota de 13 de de- zembro de 1988.] A conversa cai sobre os bairros negros da cidade. DeeDee e O)Bannon exageram na devastação e na insegurança permanen- te que aí reina. O velho treinador observa que de jeito nenhum ele pegaria o ônibus na avenida Cottage Grove [que liga Woodlawn ao centro da cidade, atravessando todo o gueto do South Side no sentido longitudinal] e que nunca vai ao vizinho Parque Washington, depois que a noite cai, sem levar sua pistola consigo. Ele próprio mora ao sul de Woodlawn, no limite de South Shore, e condena seu bairro sem apelação: "Está cheio de drogas por toda parte, você pode comprar fumo na rua com a primeira pessoa que passa. Os vagabundos [young punks] que ficam criando caso com você. Não estou nem aí, mas não consi- dero aquilo o meu bairro, há muita gentinha, pessoas barras- pesadas [low lives J. Não faz o meu gênero, não são gente da mi- nha classe." O prédio em que ele mora é um reduto conhecido de passadores de crack, de cocaína e de tudo o mais. [Nota de 13 de agosto de 1988.] 42 - Leic Wacquan\ L Hoje, Tony ligou para o ginásio do hospital. Dois integrantes de uma gangue rival atiraram nele na rua, perto daqui, do outro lado de Cottage Grove. Por sorte, ele vira-os chegar e Se manda- ra, correndo, mas uma bala pegara na barriga da perna dele. Ele se arrastara até uma construção abandonada, onde tirou seu pró- prio revólver da mochila de esporte e abriu fogo contra os assal- tantes, forçando-os a fugir. Diz que é melhor sair logo do hospi- tal, porque com certeza eles devem estar procurando por ele. Pergunto a DeeDee se os caras atiraram na perna como forma de advertência: "Ê, Louie! Eles não atiram em você pelas costas pra ferir a sua perna, eles atiram pra te matar. Se o Tony não tivesse o berro com ele e não tivesse puxado ele, eles teriam se- guido o Tony e apagado ele, ôô: ele ia ser morto na mesma hora." [Nota de 27 de setembro de 1990.] Isso quer dizer que os jovens do bairro acostumam-se bem cedo com as formas mais variadas e mais imprevisíveis da violên- cia da rua, perto da qual a violência estritamente policiada do boxe parece ficar bem pálida, como observava DeeDee, em um dia de maio de 1989: "Antes era preciso ser de ferro pra sobrevi- ver nessas ruas. Mas agora é loucura completa viver aqui. Precisa nadar no meio dessa droga [dopei toda e entre as armas que cir- culam, as pessoas que ficam doidas na rua. Os caras não chegam nem aos 30 anos. [Balançando a cabeça. I É verdade, é a idade média. Você não passa dela muitas vezes nesse bairro, tem que ver os números: se a droga não te mata) é um bandido que vai te 'queünar', ou) se você tem sorte, você vai em cana. E aí talvez você tenha uma chance de passar dos trinta. Aqui você está nUln bura- co, mano. Você Se interessa por saber se defender. Se você está procurando encrenca, está no bairro certo." De fato, a criminalidade violenta é de tal modo habitual que quase todos os membros do gym de Woodlawn já assistiram pes- soalmente a um assassinato e foram eles mesmos vítimas de tiros ou facadas. 1 fi A maioria teve de crescer brigando na escola e na rua, às vezes cotidianamente, sob pena de ter roubado o dinheiro do almoço ou o casaco, de se deixar humilhar com regularidade ou simplesmente para poder circular pelo bairro. Buth lembra-se de uma cena típica de sua adolescência: "Na época, o buraco em que eu morava era barra-pesada, era um comendo o outro [dog- Corpo e alma - 43 I eat-dog]. Eu precisava ser osso duro [mean dog]. Muita gente, uns elTI cima dos outros, nego que queria pegar tua grana e dar porra- da em você, era preciso brigar ou ir elnbora do bairro. Como eu não podia me mandar, precisei entrar na porrada". A Inaiar parte dos freqüentadores do salão foi iniciada na arte da autodefesa por necessidade, e não por gosto. Vários de meus colegas de Woodlawn eram "brigadores de rua" [streetfighters] convertidos ao boxe. "Eu brigava o tempo todo quando era novo, de todas as formas ... ", observa Lorenzo, "meu pai me disse, 'bom, se você vai brigar des- se jeito, talvez seja melhor você ir pro gym, onde você pode apren- der, hein, ter base, até mesmo ganhar um pouco de dinheiro, ir longe, tirar qualquer coisa disso', é melhor que ficar brigando por qualquer coisa." Em contraste com esse ambiente hostil e inseguro, e elnbora com uma cruel escassez de recursos, o clube constitui uma ilha de estabilidade e de ordem, em que as relações sociais proibidas do lado de fora tornam-se possíveis. O salão oferece um lugar de sociabilidade protegida, relativamente fechado, em que cada um encontra UlTIa trégua para as pressões da rua e do gueto, Uln mundo no qual os acontecimentos exteriores dificilmente penetram e sobre o qual eles têm pouca influência. Esse fechamento coletivo sobre si mesmo, que acentua a "cIaustrofilia", é que torna possí- vel a vida da academia e dá o seu caráter atraente.IS) Mike tem 19 anos e vai ao gym todas as tardes, depois das aulas do colégio: "Você pode vir pra cá e se sentir bem aqui. Como eu digo, você se sente protegido, em segurança. Você fica lá, bom, você se sente bem - é como uma segunda família. Você sabe que pode ir lá e que alguém vai te apoiar... Se você está deprimido, tem alguém pra te botar pra cima [pump you up]. Quer dizer, você passa as frustrações pro saco de pancadas. Depois você 'põe as luvas pra .../(5) Esse clima abafante do gym está bem retratado no romance de Leonard Gardner, Fat City, I 7 e no filme de John Houston, de mesmo nome, que se passa nas pequenas salas de boxe da cidade de Stockton, na Califórnia. Esse sentimento de fechamento é reforçado pela ausência de abertura físi- ca para o exterior: o gym de Woodlawn não tem janelas (e nem as salas das quais temos descrições detalhadas, como as de Gleason's, em Manhattan, ou de Rosario, no East Harlcm). 44 - Lo"ic Wacquant subir no ringue', talvez você nem tivesse moral antes de subir, mas logo depois você se sente melhor". Bernard, um antigo freqüentador do gym, que teve de interromper a carreira profis- sional, depois de uma dúzia de combates, em conseqüência de um ferimento na mão, explica o que o levou a voltar aos treinos tantas vezes quanto lhe permite seu trabalho como técnico em radiologia: "Gosto exatamente de ver os caras que treinam e que fazem qualquer coisa de positivo com eles mesmos, queimando a energia de um modo que não vai dar em encrenca, deixando as gangues, as drogas e a cadeia pra trás, porque eles estão na aca- demia fazendo alguma coisa com eles mesmos, e faz bem ver tudo isso". De fato, é comum ouvir-se um boxeador exclamar: "Todo tem- po passado no gym é menos tempo passado na rua!"; "Isso me protege da rua"; "Prefiro ficar aqui do que na rua, me metendo em roubada [get into trouble]". Alguns profissionais admitem es- pontaneamente que muito provavelmente terialn caído na criminalidade se não fosse a descoberta do boxe. E inúmeras es- trelas, passadas e presentes, como Sonny Liston, Floyd Patterson e Mike Tyson, começaram a aprender a Nobre Arte na prisão. Mustafa Muhammad, antigo campeão do mundo dos meio-pe- sados, confessa: "Se eu não tivesse o boxe, teria me tornado assal- tante de banco. Havia um momento em que era isso que eu que- ria fazer. Não queria passar drogas. Queria ser o melhor, então, queria ser assaltante de banco". O ganhador do título mundial de peso-pesado, na versão da WBC, de 1985, Pinklon Thomas, faz eco: "O boxe me tirou do meu buraco e fez de mim uma pessoa de valor. Sem ele, ou eu estaria vendendo heroína, ou estaria morto ou na cadeia".lx Do lnesmo modo, diversos dos participantes do torneio final das Golden Gloves de 1989 não hesitam em mencio- nar essa motivação na biografia sucinta que acompanha as fotos no programa dos espetáculos: "Vaughn Bean, 16 anos, 1,79 metro, 80 quilos, representa o Valentine Boys Club, onde luta há um ano. Aluno do ensino médio no colégio de Calumet, seu irmão mais velho trouxe-o para o boxe para evitar que ele enveredasse pelo mau caminho"; "Gabriel Villafranca, 18 anos, 1,74 metro, 64 quilos, representa o Harrison Park Club. Luta boxe há três anos e tem um cartel de oito vitórias e três derrotas. Aluno do Corpo e alma - 45 / último ano do colégio Juarez, foi lutar boxe para evitar o mau caminho". Por ocasião de um torneio júnior (menos de 16 anos), no International Amphitheater, DeeDee confirmou-me que as mães dos jovens pugilistas, que, em geral, seguem com uma angústia mesclada de admiração a estréia de seus filhos, concordam em reconhecer no boxe uma virtude protetora: "Não, elas não desen- corajam eles. Preferem saber que o moleque está no ringue do que sem fazer nada na rua, se metendo em encrenca. Elas sabem que vale mais para elas que eles estejam no gym". Os membros do Boys Club de Woodlawn partilham amplamente dessa opinião: LOUIl·':: Onde você estaria agora se não tivesse encontrado o boxe? CUlfrrs: Olha só, provavelmente na cadeia. morto ou na rua, en- chendo a cara. LOU1E: Você acha? CunTIs: Claro. Porque tinha essa pressão que a galera fazia em cima de mim quando eu tinha 16 anos, andando com tipos nada recomendáveis e tentando me enturmar com eles [to blend in], sacou, pra não ser o que eles chamam de otário, um poot-butt [pirralho ],(n) quer dizer, pra não deixar eles te passarem para trás na rua e tudo o mais. É a pressão do grupo, das pessoas à sua volta, sacou? Você quer ser aceito pelo grupo de pessoas que te rodeiam quando você cresce no seu bairro. LORENZ(l: Eu sei que se não fosse pelo gym, eu poderia estar fa- zendo alguma coisa que não queria fazer, sacou, então é isso, é bom, o gym me ajudou pra caramba. LOUIE: Ajudou como? LORENZO: Mais ou menos assim, pensa bem, provavelmente me ajudou a não matar alguém, quê mais? A não assaltar alguém na rua [stick-upJ, bom, vender droga - essas coisas -, não faz dife- rença. Você nunca pode dizer! Você nunca pode saber o que a vida reserva pra você ... (6) Um poot-buttOiteralmente um "peidorreiro") é uma subcategoria do Jame (otário), expressão que designa uma pessoa "socialmente inexperiente", muito jovem biológica e emocionalmente para "ficar" na rua, e sobre a qual se dirá: "Ele tenta se passar pelo esperto que ele já está careca de ver! E ainda está nas fraldas [ ... ] Mamãe não ensinou nada a ele. Deixou ele sair pra rua ainda verde".19 46 - Lok Wacquant .l L1UIE: E a academia tirou você disso tudo? É claro, o gym me libera a cabeça de um monte de coi- sas, sacou, principalmente de fora - quando você também tem problemas, sacou, você vem pra academia treinar, a gente pode dizer que isso te esfria a cabeça [blanks out lhe mind], isso é como ... tudo o que você sabe é que você está na academia, traba- lhando no saco de areia. o fechamento da academia sobre ela mesma representa uma de suas maiores virtudes, para seus freqüentadores, e ele orienta toda a política do técnico. O fechamento é marcado, entre outras coisas, pelo fato de que todos os tempos fortes da vida pública nacional e municipal não têm a lnenor repercussão no interior do ginásio. Assim, ao longo de toda a campanha, nenhuma men- ção foi feita a respeito das eleições presidenciais que opunham George Bush a Michael Dukakis, com exceção dessa observação desabusada de Gene O'Bannon, no próprio dia da votação: "En- tre uma carroça de bosta de cavalo e uma carroça de bosta de cachorro, não fico com nenhUlna das duas". Do lnesmo modo, a derrota do prefeito negro Eugene Sawyer para o filho do antigo prefeito branco Richard Daley (que, com mão de ferro, manteve Chicago sob um regime patrimonial racista durante meio século) só suscitou alguns breves comentários sobre o fato de que a polí- tica é "podre". (7) No dia 11 de novembro de 1988, troco fortes apertos de mão com todo mundo; "Como é que vocês vão hoje? Tudo bem?" DeeDee está vestido com uma calça cinza e com seu agasalho azul do "Moonglow Lounge" [um bar do gueto, antro de Flukie Stokes, líder da gangue que domina o South Side I bordado com escudos de boxe, as longas mãos enroladas em volta de um ci- garro, O lábio inferior pendurado, o olhar apagado. Diz que vai tudo indo. Teria ele ido votar? "É claro, com certeza, hoje de manhã", murmura ele com uma voz morna. O assunto não pa- (7) Não se encontra, no clube, a paixão que existe no meio operário (branco) Ã\ norte-americano pelos escândalos públicos ç privados e pelos abusos poli- ciais, tal como é descrita por David Halle. 21J Corpo e olmo - 47 rece animá-lo nem um pouco. Pergunto-lhe o que ele acha da campanha presidencial e, segundo ele, quem vai ganhar, Bush ou Dukakis. "Eu não estou nem aí, Louie. Estou bem me lixan- do pro que acontece fora dessas paredes. Isso não tem a menor importância pIa mim. O que importa é o que acontece aqui, en- tre essas quatro paredes daqui. O resto dá no mesmo pra mim, é tudo a mesma coisa." E pôs fim à discussão, fazendo um gesto desiludido com as mãos em direção ao exterior. O Boys and Girls Club de Woodlawn, que compreende a aca- demia de boxe e a creche infantil, faz parte de uma rede de treze clubes mantidos em Chicago pela The United Way, uma orga- nizaçao caritativa nacional que possui tentáculos em todas as grandes cidades americanas, a maioria deles situada nos bairros desassistidos da cidade, formados de negros e hispânicos. Fun- dado em 1938, o clube de Woodlawn fundiu-se, em 1978, com seu homólogo mais importante de Yancee, que fica a alguns qui- lômetros a oeste, no bairro negro adjacente de Washington Park. Segundo o folheto de apresentação (intitulado "Um ano de vi- tórias pessoais"), esses clubes compreendem, os dois juntos, mais de 1.500 usuários por ano, dos quais 70% são meninos de 6 a 18 anos; a quase totalidade advém da comunidade afro-alnericana. As atividades propostas, exercícios de estimulação, tutoria de estudantes, passeios culturais e esportes, são 90% financiadas por meio de doações feitas por empresas privadas, cujos presi- dentes têm assento no comitê diretor do clube. Em 1987, a Woodlawn-Yancee Unit recebeu cerca de 50 mil dólares dessas empresas. A sigla completa da organização - Woodlawn-Yancee Unit, Boys and Girls Club of Chicago: The Club that Beats the Street _ revela bem sua missão: é em oposição "à rua" e à marginalida- de econômica e social do qual é o vetor, que ela se define. Seu objetivo declarado é oferecer uma estrutura de inserção capaz de arrancar os jovens do gueto da exclusão urbana e de seu tris- te cortejo de criminalidade, gangues, drogas, violência e misé- ria:21 "Investir na juventude de hoje é investir na Chicago de amanhã. É a juventude de hoje que representa a liderança [leadersltipJ, a força e a visão de nossa cidade. Mas muitos líde- 48 - Lo'ic Wacquant res em potencial de alnanhã aprendem, e muito cedo, que a rua é o local de uma luta pela sobrevivência e que a única opção que se oferece para eles é uma vida sem futuro. Os programas do centro de Woodlawn-Yancee foram criados para superar essas barreiras sociais, econômicas e escolares. Graças a uma apren- dizagem construtiva, asseguramos o desenvolvimento dos ta- lentos e das qualificações que são a base da auto-estima e que abrem as portas do sucesso. Oferecer aos jovens de hoje um me- lhor amanhã, essa é a nossa responsabilidade. juntos vamos 'ven- cer a rua'! [Let's beat streets together!]" (folheto de apresentação do clube). A academia trabalha COln um orçamento dos lnais restritos, e a maior parte dos recursos do clube de Woodlawn está destinada ao funcionamento da creche. O Boys and Girls Club limita-se a pagar os impostos e a manutenção do prédio. O recrutamento de pugilistas é totalmente benevolente, e o treinador DeeDee não recebe remuneração alguma. Os equipamentos gastos e estraga- dos devem ser repostos pelo próprio ginásio, o que explica o esta- do avançado de deterioração dos sacos de areia e das luvas e a penúria crônica de alguns materiais (o clube tem um consumo de pêras de velocidade que excede de longe a oferta, e muitas vezes há falta delas; a mesma coisa para as bolas teto-solo que servem para treinar jabe). A cada ano, no início do inverno, a academia de Woodlawn organiza uma noitada "de gala" paga (25 dólares por pessoa, in- clusive para os membros do clube), ocasião em que os boxistas amadores do lugar apresentam-se diante de uma platéia de notá- veis e de estrelas locais, parentes e amigos, para reunir os fundos necessários à compra de equipamentos novos e ao conserto dos usados. Se um saco de areia fura ou esvazia, uma saída para a reposição consiste em pedir aos freqüentadores que contribuam, cada qual na medida de seus modestos meios, para uma "vaqui- nha", com o objetivo de comprar um novo equipamento. Mas DeeDee não gosta desse método, porque, diz ele, "ninguém nun- ca dá nada, e, no final, flcamos no mesmo pé que no começo". De fato, com exceção do pagamento de fotos, feitas, sob encomenda, pelo fotógrafo amador jimmy Kitchen, é excepcional ver dinhei- ro circulando no clube. Corpo e alma - 49 UM TEMPLO DO CULTO PUGILÍSTICO A sala de treinamento do Woodlawn Boys Club ocupa a parte dos fundos de um velho prédio de tijolos que data do entreguerras e que deve ter sido modificado para acolher atividades esporti- vas: acrescentaram-se as duchas e um vestiário; o estreito com- partimento recentemente pintado de azul vivo. em que os boxistas trocam de roupa, está equipado com uma simples mesa forrada com uma lona de ginástica.(l{l O mesmo prédio abriga uma creche infantil financiada pela The United Way, com a aju- da dos serviços sociais da municipalidade, para onde as crianças (todas negras) vêm depois do meio-dia, para realizar atividades de estimulação em duas salas forradas de pôsteres educativos multicoloridos que as exortam ao orgulho racial - como essas séries de caltazes dedicados às grandes personalidades negras da história, da ciência e da literatura mundiais. No corredor de en- trada, uma estante de madeira oferece uma panóplia de folhetos para uso dos jovens do clube e suas famílias: "Primeiro as crian- ças: CURE, Chicago Unit para a Reforma da Escola"; "Como encontrar um emprego: dez conselhos"; "SOS-Aids na comuni- dade negra"; "Torne-se mecânico graças ao curso Truman de tecnologia de automóveis". A creche e a academia de boxe coa- bitam, mas de maneira separada; somente a intrusão periódica no ginásio de uma revoada de meninos, prontamente enxotada por DeeDee, e o carregamento cotidiano de comida na pequena cozinha pegada às duchas lembram a presença das crianças. A entrada dos boxistas, que se situa na parte de trás do prédio, para não atrapalhar as crianças, é atulhada de material de cons- trução coberto por uma lona azul. (H) A sala também não tem seu aquecimento próprio. No verão, quando a tem- peratura freqüentemente ultrapassa os 300 C, o ar-condicionado é bem fra- co, somente a ponto de evitar que o calor fique insuportável. Durante os períodos de grande frio do inverno (o termômetro, em janeiro e fevereiro, muitas vezes desce até menos dez), os encanamentos que levam ar quente de uma caldeira situada a qtlatro prédios dali podem congelar e furar, pri- vando o gym de qualquer aquecimento. DeeDee refugia-se então na cozi- nha, onde ele passa o dia sentado diante do forno aberto, com todas as bocas acesas. Se a academia esfria demais, abrem-se as duas duchas quentes que ficam no fundo, para encher o salão de um vapor tépido que aumen- ta a temperatura até um nível suportável. 50 - Lo'ic Wacquant A própria academia é bastante vetusta: os encanamentos e a fia- ção elétrica aparentes correm ao longo das paredes; a pintura amarela está descascando em lascas das paredes, cujos azulejos estão quebrados ou faltando em vários lugares; as portas são desconjuntadas e, não raramente, pedaços de reboco caem do teto, em cima dos espelhos. Mas a academia é limpa e bem con- servada; e, quando comparado ao estado avançado de decom- posição do que está em volta, o gym não transmite de forma alguma a idéia de destruição. A parte do salão onde se boxeia, cujo chão é coberto por um piso de madeira colocado sobre o linóleo, mede cerca de 11 por 9 metros. Ela é delimitada, por um lado, pelo corpo maciço do ringue azul, que corta o corredor que leva à creche, e, por outro lado, pela sala dos fundos (que abriga o escritório do técnico. um longo cabide de roupas, dois armá'rÍos de acessórios, uma grande lata de lixo e uma balança), de onde DeeDee observa a evolução dos pugilistas através de um grande vidro retangular, e por uma pequena peça cúbica que serve de vestiário. Dois gran- des sacos de areia, suspensos na ponta de pesadas correntes, ocu- pam o centro da área de exercício: o soft bag [saco de bater mole], longo rolo de couro preto acolchoado, e o hard bag [saco de bater duro l, enorme cilindro vermelho cheio de areia, duro como concreto, pregado com fitas adesivas e remendado em vários lugares. Contra a parede do lado leste, há dois espelhos, um de 1,50 metro de largura e colocado, obliquamente, direto no chão, e outro mais estreito, posto como um tabique, e um saco fixado horizontalmente à parede, para treinar os uppercuts. Um speedbag [pêra de velocidade] pendurado a uma torrezinha de madeira, cuja altura é regulada acionando-se uma manivela, serve para trabalhar o tempo e a coordenação entre olho e mão; no canto estão uma barra de ferro para os movimentos de flexão, uma fila de halteres raramente usados e um extintor. o resto dos equipamentos consiste de cordas de pular, luvas, protetores genitais (cups), capacetes de sparring, arrumados em seus respectivos armários ou atirados sobre a mesa do escritó- rio, e uma punching-ball vermelha [double end bag, bola teto- solo], presa ao chão e ao teto por elásticos, sobre a qual se apli- cam jabes. Uma mesa coberta com uma lona de ginástica pega- josa, reforçada com fita adesiva prateada e forrada com mate- rial semelhante a lã, permite que se façam abdominais. Perto Corpo e olmo - 51 "1-/'1 ~ ~ . ., . _ ~ - - - ..... do espelho menor, está um balde para recolher a água que cor- re de uma goteira; outro balde recebe os escarros dos lutado- res, por intermédio de um funil pendurado em um dos postes do ringue. As outras paredes são forradas de armários metálicos fechados por pesados cadeados e com as portas enfeitadas com fotos e cartazes de boxe. Um deles, perto da cozinha, exibe orgulhosa- mente um berrante adesivo azul e vermelho que proclama: "Diga não à droga!" No canto oposto, três grandes quadros de madeira exibem colagens compostas de dezenas de fotos não usadas, ti- radas por Jimmy Kitchen, O autodenominado fotógrafo do clu- be. "Life in the Big City 1986" é uma montagem de imagens de boxe (antes, durante e depois dos combates, cenas de treinamen- to, os técnicos rodeados por seus alunos, vencedores de uma noite brandindo sua copa), instantâneos das moças que seguram o car- taz [cards girls], que exibem suas curvas nos intervalos das lutas, de reuniões'políticas (o falecido prefeito Harold Washington rin- do, Jesse Jackson exausto), de cerimônias religiosas (casamen- tos, batismos), de noites dançantes (músicos em ação, casais en- laçados, homenageados sorridentes) e da cidade. Essa monta- gem condensa e exprime o enovelamento mútuo de todos esses aspectos da cultura afro-americana em Chicago.22 A parede da sala dos fundos, atrás da poltrona de DeeDee, é só dele, uma forma de obra de arte popular feita de velhos calendá- rios de publicidade, pin-ups negras dos anos 60, pequenas flâmulas de boxe multicores, cartazes desbotados de grandes combates (Gerry Cooney contra Larry Holmes), sobre os quais estão pregados recados telefônicos; uma capa da Newsweek mos- tra Mohammad Ali com dor, sentado em sua banqueta de cór- ner durante o combate de despedida ("Ali: um último urra"), entre fotocópias de capas de Ring Magazine, vistas de Chicago à noite e propagandas de carros de luxo, sem esquecer os retratos de DeeDee e de boxeadores do clube, adesivos de boxe, duas bandeiras americanas, velhas circulares oficiais amarelecidas, en- viadas pela Boxing Commission, um diploma de primeiros so- corros em flebologia, concedido por uma escola privada, a li- cença do clube pregada com durex nas costas da cadeira do téc- nico, tudo sobre o fundo de uma tinta verde que reproduz uma gigantesca nota de um dólar (no total, não menos de 65 fotos e imagens). 52 - LoTe Wacquant , Também as paredes do gym estão pontilhadas de pôsteres de bo- xeadores, de cartazes de combates locais, de capas de revistas especializadas (tais como Ring, Knoekout, KO e Ringworlá) pre- gadas por toda a parte. (9) Sobre o espelho grande, reina uma fo- tografia em preto-e-branco de um jovem colosso de torso nu, a musculatura enfaixada, o olhar ameaçador, acompanhada dessa exortação: "Escolha bem em que pensar!" ["Seleet lhe things Ihat go into your mind!"1 Ela está ao lado de um grande pôs ter ver- melho, azul e amarelo, que anuncia o duelo Tyson-Spinks, e de um retrato colorido da grande estrela do clube, Alphonso Ratliff, exibindo seu cinturão de campeão do mundo de meio-pesado versão WBC (que, mais tarde, ele perdeu). O espelho é ladeado por dois cartazes de reuniões locais, amarelos e beges; à esquer- da, uma foto de Tyson em ação; à direita, um outro retrato de Tyson em roupa de combate, surpreso, sorrindo ao telefone, com as capas da revista Knockout mostrando a cara ameaçadora de Leon Spinks, Marvin Hagler e Tony Lalonde. Bem à vista, à di- reita da entrada do "escritório", estão pendurados dois grandes retratos em uma só cor de Martin Luther King e Harold Wa- shington (o primeiro prefeito negro de Chicago, morto recente- mente). Um desenho de um boxista com um corpo minúsculo e uma cabeça enorme (acompanhado de uma legenda de duplo sentido, incitando todos à modéstia e à excelência: "Don 't let your head get big in lhe rinlf', que pode ser lida tanto como "Não dei- xe sua cabeça virar um quadrado no ringue" quanto como "Não seja pretensioso no ringue") e um outro pôster de Mike Tyson fazendo uma careta horripilante enfeitam a parede da cozinha. Na disposição e na decoração, a academia constitui uma espécie de templo do culto pugilístico, pela presença, nas paredes, dos grandes lutadores do passado e contemporâneos aos quais os jogadores ainda não-maduros do ginásio votam um culto seleti- vo, mas tenaz. Os campeões demonstram, de fato, in vivo, as virtudes mais elevadas da profissão (coragem, força, destreza, tenacidade, inteligência, ferocidade) e encarnam as diversas for- mas de excelência pugilística. Além disso, eles também podem intervir diretamente sobre a vida de cada um deles, como atesta (9) É a decoração típica das academias norte-americanas de boxe. Thomas Hauser observa que "não existe gym que não tenha sua ou suas fotos de Ali na parede" (op. cit., p. 35). Corpo e alma - 53 a foto de Mike Tyson ladeado por DeeDee e Curtis (que, para a ocasião, usa um boné azul bordado com um enorme "w AR" vermelho), pregada em um lugar de honra, na parede do escri- tório, que faz lançar sobre os dois uma parcela do capital simbó- lico da estrela saída do gueto do Brooklyn. Não há menos de cinco fotos individuais de Tyson na única pa- rede na qual estão fixados os espelhos e a speedbag. duas na pa- rede oposta e três na parede no norte. O segundo campeão mais homenageado é Sugar Ray Leonard, que aparece em cinco pôsteres, bem em frente a Mohammad Ali. No entanto, menos que o número de imagens, é mais a forma como elas estão arru- madas que dá toda força e significado a essa espécie de iconografia profana espontânea. É notável que cada "grupo" de pôsteres com- preenda uma ou várias fotos de campeões no momento da ação, colocados, no mais das vezes, por cima de anúncios de combates regionais. E...,se "sintagma", essa proximidade física, sugere uma associação. um laço quase genealógico entre os pugilistas locais, que combatem em troca de um dinheiro irrisório nas noitadas da região, e os supercampeões, que compartilham dos cachês miríficos das reuniões midiáticas de Las Vegas e de Atlantic City. Assim, dá-se concretamente a idéia de uma grande "cadeia do Ser" pugilístico: haveria continuidade, desde o recruta anônimo do mais modesto dos clubes até a estrela internacional, treinada sob vigilância informática e médica de ponta e da qual somente o nome basta para fazer circular correntes de dólares e fazer tremer os mais temíveis adversários (como no mito Tyson). Todos participariam de uma mesma essência: a providência e a determinação individual decidirão qual dos pequenos irá se tornar grande, contanto que ele tenha a coragem e o talento necessários. Essa iconografia mural de aparência anódina, que justapõe um Michael Spinks sendo demolido por Mike Tyson ("A glória a qualquer preço?", pergunta o artigo que acompanha a foto) a uma publicidade local de um encontro de segunda classe com lutadores de segunda linha (Manning "Motor City Madman" Gallaway contra Craig "Gator" Bodzianowski), sustenta a cren- ça em um ideal por definição inacessível para a quase totalidade dos pugilistas e contribui para alimentar a ilusão de uma "escala de mobilidade" contínua e graduada, levando progressivamente da base ao topo da hierarquia pugilística - quando o que 54 - LoTe Wacquant I L transparece da organização social e econômica do boxe profissio- nal indica, antes, que há descontinuidade, que as redes que ge- ram o business da luta parecem-se menos com "escalas" do que com segmentos fortemente clivados, cujo acesso é firmemente5 controlado pelos detentores do capital social específico.23 Os caltazes e a decoração mural da sala desempenham um papel notável no estabelecimento das hierarquias no interior do clu- be. Os pôsteres são objeto de um "tráfico" (dons, trocas) buscas, emolduramento por parte dos interessados), por meio de cuja interpretação cada um busca afirmar ou ter aumentado seu va- lor no mercado pugilístico, exigindo e fazendo circular os signos de sua participação nesta ou naquela reunião, tal como é indica- do nesta nota de 15 de novembro de 1988. Enquanto enxugo meu corpo com uma toalha, pergunto a DeeDee se os velhos cartazes de combates locais, que estão em desordem dentro de uma grande pasta de papelão, perto do ar- mário das cordas de pular, são para jogar fora ou se posso pegar alguns deles. Charles (treinador assistente) responde-me pron- tamente: "Claro, você pode pegar todos eles, se quiser, porque de qualquer modo eles vão ser trocados". DeeDee corta e replica vigorosamente: "Mas o que é isso que você está falando aí? Eu não vou jogar eles fora! Isso não. Deixe eu olhar essa pasta e vou lhe dar quatro ou cinco dos antigos, Loiue, mas você não pode pegar qualquer um. Não os que têm fotos dos meninos do clu- be, dos meninos daqui. Porque esses eu quero conservar e colo- car na parede. Os meninos gostam muito de ver as fotos deles na parede. [ ... ] Eles adoram ver os pôs teres COm as fotos deles em cima. É a primeira coisa que eles mostram pro pessoal deles [buddies] quando ele vem aqui pela primeira vez. Vão direto para o pôster com a foto deles em cima, chamam o pessoal e dizem: 'Olha só, cara, sou eu nessa foto'. Isso é muito importante pra eles. É corno, você se lembra do Duane? Ele achava que era um lutador conhecido, então acreditava que a foto dele já estava em todo canto. A primeira vez que ele pintou, deu uma geral no gym todo, zanzou por toda parte, e não havia nenhuma foto dele na parede. O cara nem acreditava. Ficou tão furioso que, no dia seguinte, me trouxe uma foto dele." Escudo protetor contra as tentações e os riscos da rua, a aca- demia de boxe não apenas é o local de um exercício rigoroso do Corpo e alma - 55 l i ./ corpo; ela é também o suporte do que Georg Simmel chamou de "sociabilidade" (Geselligkeit), esses processos puros de associação que têm seu fim neles mesmos, essas formas de interação social no limite desprovidas de conteúdo ou dotadas de conteúdos so- cialmente anódinos. 24 Isso em razão do código tácito segundo o qual os membros do clube devem deixar na porta todos os status, os problemas e obrigações que eles têm lá fora, nOS registros do trabalho, da família e do coração. Tudo se passa, de fato, como se um pacto de não-agressão governasse as relações interpessoais e excluísse da conversa todo tema "sério", capaz de atentar contra essa "forma lúdica de socialização" e de entravar o bom desenvol- vimento das trocas cotidianas, e, portanto, de pôr em perigo a subcultura masculina específica que o gym perpetua. IIO ) Quase nunca se fala de política. Os problemas conhecidos como raciais, como a discriminação na hora de procurar emprego e as brutali- dades policiais, são abordados de forma incidental, mas não têm chance de gerar desacordos, em razão da homogeneidade étnica do recrutamento da academia. Somente os eventos esportivos têm automaticamente direito de circulação. Mas um esporte tem mais chance de ocupar as conversas quanto mais ele se aproxime de um esporte de combate e faça apelo para as qualidades viris. Os jogos dos Bears, a equipe de futebol americano de Chicago, são freqüentemente comentados, sobretudo no dia seguinte ao das partidas, sob o ângulo do vigor e da coragem física exibidos por esse ou aquele jogador; no entanto, é preciso alguma proeza de Michael Jordan, o jogador estrela dos Chicago Bulls, para que o desempenho do time no campeonato nacional de basquete seja mencionado. São, evidentemente, os encontros de boxe locais e nacionais (regularmente transmitidos de Atlantic City, Las Vegas e Reno pelos canais de TV a cabo, como ESPN, SportChannel e Sportvision, ou especialmente difundidos pelas cadeias pagas, como TVKO e Showtime), que fornecem a matéria essencial das discussões, e cujos resultados e conseqüências são mais abundan- temente comentados. O resto dos "papos de cozinha" versa sobre (lO) A academia de boxe aproxima-se, sob esse aspecto, dos salões de bilhar, que constituem, junto com os bares, um dos últimos refúgios da subcultura masculina solteira, como é demonstrado por Ned Polsby.2 5 56 - Lo"ic Wocquanl l o treinamento do corpo,2" o perpétuo problema da administra- ção do peso e outras considerações técnicas; trocam -se conselhos e dicas; dissecam -se as sessões de sparring; pesquisam -se torneios passados e reuniões futuras. Por ocasião desses debates, que renascem sem parar de suas próprias cinzas, DeeDee e os mais antigos dão mostras de um conhecimento enciclopédico sobre nomes, lugares e acontecimen- tos que se destacam no folclore pugilístico. Os combates que mar- cam a história, sobretudo a regional, são freqüentemente evoca- dos, assim como os sucessos e os fracassos dos pugilistas em as- censão ou em declínio. Fruto de uma inversão deliberada do qua- dro de valores oficiais, os grandes combates televisionados (por exemplo, Leonard contra Hagler, ou Holyfield contra Foreman) são menos admirados que os confrontos locais, e as séries de no- mes desfiados durante a conversa contêm mais pugilistas obscu- ros do que as estrelas conhecidas da mídia. Do boxe, a conversa desliza insensivelmente para um outro registro, o das histórias de brigas, tráfico, crimes e agressões, sobre os quais todos têm um repertório pessoal extenso. Sob esse ângulo, o "escritório" de DeeDee - a sala dos fundos, com as paredes fartamente cobertas de cartazes de lutas e de fotos de boxeadores, de onde se pode controlar a área de exercícios por intermédio de um grande vidro retangular - funciona como um palco no qual cada um pode dar provas de sua excelência no manejo do capital cultural próprio ao >' grupo, no caso, a informação pugilística e sobre o conhecimento da rua e de seu mundo suspeito. As conversas no clube são bastante ritualizadas. A ordem dos interlocutores, o teor de suas proposições, a posição que eles ocu- pam no espaço confinado da sala dos fundos esboçam uma estru- tura complexa e altamente hierarquizada. Assim, raramente con- versa-se no salão propriamente dito, enquanto o treino está em cursO.III) Um pecking orderestrito rege a ocupação das poltronas, (11) Essa nota, de 27 de junho de 1989, é típica a esse respeito. Começo a me aquecer, observando Lorenzo e Big Earl, que estão lutando em spilrring, ao pé do poste do ringue, quando Billy vem apertar minha mão. Ele está com uma cara um tanto pálida e inquieta. e tem razão. "Vou lutar amanhã, é a minha primeira luta. Você acha que vai dar tudo cerro?" "Mas é claro, você Corpo e alma - 57 ri \ assim como o momento de tomar a palavra: são os treinadores e os mais antigos que têm a prioridade (na ordem: DeeDee; Ed Woods, gerente responsável por um ginásio semelhante em Saint Louis; Charles Martin, outro técnico e amigo próxüno de DeeDee; o velho Page, monitor em um ginásio municipal; o carteiro O'Bannon). Em seguida, vêm os lutadores, por ordem de força e de antigüidade (Curtis, Butch, Smithie, Lorenzo, Ashante, Rico, e assim por diante), seguidos pelos visitantes de ocasião. A poltro- na de onde DeeDee segue a evolução dos atletas é estritamente reservada para o senhor do lugar. Oficialmente, ele não quer que ninguém sente nela, sob pretexto de que poderá ficar suja de suor. Mas a proibição recai também sobre aqueles que chegam vestidos à paisana e que não treinalTI - somente Curtis, a jovem estrela do clube, permite-se, vez ou outra, transgredir a proibição, no lnais das vezes quando o velho treinador não está presente. A desculpa higienista dissimula mal a razão social dessa interdição: a poltro- na simboliza o lugar de DeeDee e sua função na academia. Posto de observação, ela é o lugar de sua autoridade, de onde ele pode descortinar com um único olhar, vigiar e, portanto, controlar to- das as fases do treinamento e os gestos de todos. Não é prudente subestimar a importância dessas conversas de aparência anódina. Elas são, de fato, um ingrediente essencial do "currículo oculto" do gym: elas comunicam aos aprendizes de boxe, de uma forma oral e osmótica, o saber indígena da profis- são. Sob a forma de relatos mais ou menos apócrifos, de fofocas da academia, de anedotas de combate e de lendas da rua, elas inun- dam esses aprendizes de valores e de categorias de entendimento elTI vigor no universo pugilístico, essas categorias mesmas que está bem preparado, está em forma. Essa é uma academia legal, você vai ver que você vai parecer um touro caindo em cima dos outros." "Você acha? Eu realmente estou me cagando de medo. Estou começando a es- quentar a cabeça, sacou?" Confidência interrompida pelo treinador Eddie, que bronqueia com ele: "O que é que você está fazendo aí, papeando? O que você acha que é isso aqui? Um clube de encontros? Você não está numa boate, vai trabalhar, Bi11y! Vai pular corda, fazer abdominais, mas não fica aí sem fazer nada, vá!" Billy guarda seus estados de alma e começa a fazer exercícios, envergonhado. 58 - Loic Wacquant ancoram igualmente a cultura da rua no gueto: um misto de soli- dariedade com o grupo de pares e de desconfiança individualista, a dureza e a coragem física ("o coração"), um sentido inquebran- tável da honra masculina e uma acentuação expressiva do desem- penho e do estilo pessoa!.27 As PROMESSAS DO BOXE Em 10 de junho de 1989, quando eu começava meu terceiro round no saco de bater, Curtis sai bruscamente do vestiário, aos tropeços, e interpela Reggie e Luke - um com o torso nu e vesti- do com uma calça vermelha, outro de calção e camiseta azuis -, que começaram a treinar tarde e tagarelam enquanto boxeiam devagar diante do espelho. Com uma voz de estertor que eu nun- ca tinha ouvido nele, adverte-os vigorosamente pelo comporta- mento, antes de dirigir-lhes esse retrato das recompensas do pugilista, de tudo o que eles poderão fazer quando forem cam- peões, sem esquecer de pedir diversas vezes com o olhar o teste- munho de Anthony, que está sentado sobre a mesa, perto do ringue. "Em vez de ficar sem fazer nada, de não ser nada e de ficar dando bobeira na rua, vocês podem ser nlguém. Graças ao boxe, vocês podem se tornar alguém, podem ter orgulho de vocês mesmos e fazer suas mães ficarem orgulhosas de vocês. Se você treina pra valer e se trabalha pra valer, treina pra valer no gym e faz bem o seu serviço, cara, você é um cara sério, pode virar um boxeador de alto nível [big-time fighter] e ganhar altas lutas. Você vai lutar [no torneio das Golden] nas Gloves e ganhar, e vai levar pra casa uma taça tão grande que tua mãe e tua avó nem vão acreditar, uma taça tão grande que elas vão chorar só de pensar que foi você que ganhou ela. Se você treina de verdade, você pode viajar por vários lugares, a equipe olímpica e os patrocinadores vão querer que você vá para O gym deles, mano, você nem vai acreditar nos gyms que eles têm, e eles vão dar pra você de graça aquelas calças e aquele aga- salho. mano, e vão te dar roupa pra usar, te dar comida, te dar três boas refeições por dia, de graça. Você vai ter oportunidade de ir a lugares em que você nunca sonhou ir, você vai à França, ou à Inglaterra e à Europa, pra altas lutas - pergunte ao Anthony se não é verdade. [Anthony aprova o chefe.] Mas precisa traba- lhar pra valer. Quem não trabalha, não come. [No pain, no gain] Isso não vai te acontecer por obra do Espírito Santo. Precisa tra- Corpo e alma - 59 balhar pra valer, treinar pra valer, todos os dias: jogging, shadow- boxing, bater no saco de areia, precisa ser sério no seu trabalho. cara. Então tudo isso pode ser seu." Estupefatos - e pelo menos atraídos - por esse palavrório lança- do por um Curtis enfurecido e seminu, Reggie e Luke baixaram a cabeça e voltaram ao trabalho com uma seriedade e um ardor renovados. Os jovens que "venceram a rua" Sabe-se que a esmagadora maioria dos boxistas vem dos mei- os populares e, sobretudo, das frações recentes da classe operária, aumentadas pela imigração. Desse modo, em Chicago, a predo- minância sucessiva de irlandeses, de judeus da Europa Central, de italianos, de negros e, mais recentemente, de hispanófonos corresponde estritamente à sucessão desses grupos na base da esca- la de classes. 2x A ascensão, em termos de potência, dos pugilistas chicanas, nesses últimos anos, é imediatamente perceptível quan- do se computam os programas do grande torneio amador anual das Golden Gloves, que é a tradução direta do afluxo maciço de migrantes mexicanos nas regiões inferiores do campo social do Midwest norte-americano. É assim que, por ocasião das lutas do final da edição de 1989, claramente dominadas pelos boxeadores de origem mexicana e porto-riquenha, DeeDee observou-me que, "para saber quem está por baixo na sociedade, você tem que ver o boxe. Os mexicanos, agora, têm uma vida mais dura que os ne- gros [they have it rougher than black]". Processo similar de suces- são "étnica" observa-se nos outros principais mercados pugilísti- cos do país, que são a área de Nova York-Nova )ersey, Michigan, a Flórida e a Califórnia do Sul. A título de confirmação local, no momento da inscrição, cada membro do Woodlawn Boys Club deve preencher uma ficha de informações que compreende, além do estado civil, nível de escolaridade, a profissão do candidato e a de seus pais, também perguntas sobre se ele foi criado em uma família sem pai ou sem mãe e sobre o nível econômico da família: das cinco categorias de renda pré-codificadas no questionário, a mais elevada começa somente com 12.500 dólares por ano, ou seja, a metade da renda média da cidade. 60 - lo"ic Wac'1uant É preciso, no entanto, sublinhar que, contrariamente a uma imagem bastante difundida, vinda do mito indígena do "boxea- dor que tem fome" [hungry fighter], e periodicamente reavivada pela atenção seletiva da mídia para os representantes mais exóti- cos da profissão - tal como O campeão de todas as categorias Mike Tyson -, (12) os boxeadores não são geralmente recrutados entre as frações mais deserdadas do subproletariado do gueto, mas sim no interior das franjas da classe operária local, nas bordas da integração socioeconômica estável. Essa (auto )seleção, que tende de fato a excluir os mais excluídos, não se opera sob o efeito de uma penúria de recursos monetários, mas pela mediação das dis-'\ posições morais e corporais acessíveis a essas duas frações da popu-J lação afro-americana. Na verdade, não existe, propriamente fa- lando, barreira material direta para a participação: a inscrição no clube monta a 10 dólares por ano (60 francos, na época), o custo da licença da Amateur Boxing Federation (cuja aquisição é obri- gatória por razões jurídicas) é de 12 dólares (72 francos) e a tota- lidade do material necessário ao treinamento é graciosamente fornecida pelo clube - somente as bandagens [hand-wraps] e os protetores bucais [mouth-pieee] devem ser comprados pelo pugi- lista em uma loja especializada, por uma soma global inferior a 50 (12) t difícil exagerar a importância da influência do fenômeno Tyson sobre o boxe no gueto negro no final da década de 1980. A verdadeira onda midiática que acompanhou sua ascensão (fora do gueto do Brooklyn e da prisão, onde, adolescente, ele iniciou-se no boxe), suas desavenças conjugais e financeiras com a atriz afro-americana Robin Givens (que foram objeto de várias transmissões televisivas especiais nos horários de pico de audiência), seus laços financeiros com o miliardário nova- iorquino branco Donald Trump, sua convivência COm o meio artístico (por intermédio de Spike Lee), seus conflitos pessoais e jurídicos com a antiga entourage fizeram dele uma personagem legendária que não so- mente alimenta um fluxo contínuo de boatos, discussões e histórias, mas que, além do mais. é capaz de, apenas por seu valor de símbolo, suscitar vocações em massa - como Joe Louis e Mohammad Ali, que foram, em seu tempo, inspiradores de milhares de aprendizes de boxe. O fenômeno passou por uma reviravolta espetacular depois da derrota de Tyson para Buster Douglas, em fevereiro de 1990, e, depois, da con- denação à prisão por estupro e a série de incidentes bizarros que se seguiram.2\I Corpo e alma - 61 francos.(I3) É pelo viés das inclinações e dos hábitos exigidos pela prática pugilística que os jovens saídos de famílias mais despos- suídas são eliminados: tornar-se pugilista exige, de fato, uma re- gularidade de vida, um sentido de disciplina, um ascetismo físico e mental que não pode se desenvolver em condições sociais e eco- nômicas marcadas pela instabilidade crônica e pela desorganiza- ção temporal. Abaixo de um determinado limiar de estabilidade pessoal e familiar objetiva, torna-se altamente improvável adqui- rir os meios corporais e morais indispensáveis para amadurecer com sucesso no aprendizado desse esporte,(14) A análise preliminar do perfil dos 27 profissionais (todos, com a exceção de dois, de origem afro-americana, de idade entre os 20 e os 37 anos) em atividade, durante o verão de 1991, nos três principais gyms de Chicago, confirma que os pugilistas são de con- dição social superior ao segmento mais baixo da população mas- culina do gueto. Um terço deles cresceu em uma família que re- cebia uma ajuda social, 22% estavam desempregados e o resto era empregado ou recebia um "salário semanal" de seu empresário. Treze deles (ou seja, 48%) fizeram sua educação escolar em um pequeno cammunity cal/ege (realizada em curso intensivo, sem se (U) Os gyms dos serviços de parques e jardins da cidade são ainda mais bara- tos, porque a inscrição é gratuita. Uma outra academia profissional de Chicago exige lima cotização mensal de 5 dólares para os amadores e de 20 dólares para os profissionais, lUas os trambiques são enormes, nesses lo- cais. Em outras cidades, alguns gyms cobram taxas de inscrição ainda mais elevadas: por exemplo, 55 dólares por trimestre no Somerville Boxing Gym, em um subúrbio operário de Boston, onde eu treinei boxe em 1991-1993, e 50 dólares por mês em uma academia de Tenderloin, bairro mal afamado de São Francisco. (14) Caso contrário, a falta de governo interno deve ser compensada por uma dureza diante do mal, capacidades atléticas e por uma agressividade entre as cordas excepcionais. Esses pugilistas tendem, contudo, a "pular fora" [to bum our] prematuramente, e raras vezes atingem seu potencial pleno, tanto pugilístico quanto econômico. O caso do prodígio dos ringues, que foi triplo campeão do mundo, Wilfredo Benitez, filho de um cortador de cana-de-açúcar de Porto Rico, é exemplar a esse respeito: embora tenha se tornado profissional aos 14 anos e tenha arrebatado a coroa mundial aos 17, sua irregularidade nos treinos e sua notória indisciplina alimentar fize- ram com que sua carreira logo fosse abreviada. 62 - Lok Wacquant tirar o diploma nem obter qualquer benefício econômico tangí- vel); UIn recebeu llln associatedegree, e mn outro, umalicença.(15) Apenas três (11 %) não tinham terminado seus estudos do ensino médio e cerca da metade tinha conta bancária. Em comparação, 36% dos homens de 18 a 45 anos que moravam no South Side de Chicago, em 1989, tinham crescido com ajuda social, 44% esta- vam sem emprego, a metade havia abandonado o colégio sem terminar o curso e apenas 18% dispunham de conta bancária." O perfil educacional e socioeconômico dos boxistas profissionais é, portanto, sensivelmente mais elevado que o do morador médio do gueto. Cabe observar que nenhum dos pais desses boxistas havia obtido diploma do ensino médio e que quase todos tinham um emprego como operário ou assemelhado - com a exceção notável do filho de um rico empresário branco do subúrbio. E os dados dispersos de que dispomos, pelo levantamento das biografias e dos relatos indígenas, sugerem que o recrutamento social dos boxistas, em lugar de düninuir, eleva-se ligeiramente quanto mais se sobe na hierarquia pugilística. Emanuel Steward, o treinador- empresário e fundador do célebre gym de Kronk, em Detroit, fa- bricante de inúmeros campeões do Inundo, observa: "Ao con- trário do que as pessoas pensam, a maioria de n1eus lneninos não é tão pobre assim. Eles vêm de diversos bairros bons de todo o país".32 Longe, portanto, de se originarem nessas novas "classes pe- rigosas" desorganizadas e não-socializadas, diante de quem o temor exprime-se por meio do discurso pseudo-elevado sobre o oi aparecimento de uma" underc/ass" negra pretensamente isolada para sempre do resto da sociedade,33 tudo indica que os pugilis- tas distinguem-se dos outros jovens do gueto por um acréscimo de integração social com relação a seu baixo nível cultural e eco- nômico, e que eles provêm de famílias originárias da classe ope- (15) Um comlml1lity college (ou junior college) é uma instituição de ensino pós-secundário curto, que prctensamente tem a finalidade de dar acesso às longas fileiras do ensino superior, mas que, na verdade, oferece cursos de reciclagem de nível médio e concede, em dois anos, um diploma de caráter profissionalizante (associatc degree) , amplamente desprovido de valor no mercado de trabalho. 30 Corpo e alma - 63 rária, ou, ainda, que eles esforçam-se muito para recuperar esse status engajando-se em uma profissão que percebem como um ofício manual qualificado, tido em alta estima pelo seu ambien- te imediato e que oferece, além do mais, a possibilidade de ga- nhos financeiros consideráveis. A grande maioria dos adultos do gym de Woodlawn trabalha (é verdade que, sobretudo, em tempo parcial) como guarda, frentista, pedreiro, gari, vende- dor, mensageiro, instrutor de esporte para os serviços de par- ques municipais, empregado de fotocopiadora, manobrista, sapador, caixa, animador em um centro de detenção para jo- vens e operário eln 111na aciaria. É claro que, na maioria dos casos, esse enraizamento no proletariado é frágil, porque esses são empregos tipicamente precários e mal remunerados, e eles não excluem o recurso crônico aos "expedientes" [hustling] da economia informal da rua para somar as duas fontes no fim do mês. 34 E um contingente de boxeadores profissionais vem de frações inferiores da classe operária, ou seja, de famílias grandes que vivem "de ajuda social", em complexos alojamentos públi- cos estigmatizados, sofrendo com o desemprego endêmico e quase permanente. Mas eles não são a maioria, assim COlno não são, em média, os competidores que conhecem o maior sucesso no campo do pugilismo. Além disso, embora seus medíocres rendimentos e seus fra- cassos escolares não os distingam da média dos moradores do gueto de sua faixa etária, os pugilistas profissionais são mais freqüentemente originários de famílias intactas e, na grande mai- oria das vezes, são casados e pais de família. E eles têm o privilégio de pertencer a uma organização formal - o clube de boxe -, en- quanto a esmagadora maioria dos habitantes negros dos bairros mais pobres da cidade não é membro de qualquer associação - com exceção dos raros remanescentes da classe média. 35 No en- tanto, a influência da integração conjugal e familiar se exerce de maneira sutilmente contraditória: condição que permite a práti- ca, é preciso que ela seja suficientemente forte para permitir a aquisição dos meios e das motivações necessários ao combate, mas não muito forte, contudo, para que o emprego e a vida de família não venham a fazer concorrência muito dura com o in- vestimento no boxe. 64 - lo'ic Wocquon1 DEEDEE: Não, o Ashante não vem todos os dias, você sabe bem disso, Louie. Há os jovens que estão no colégio e que vêm regu- larmente todas as tardes. Esse é o problema dos adultos: eles são casados, eles têm família, filhos, não podem vir à academia to- dos os dias. Os aluguéis são caros, a mesma coisa pra comida, e é preciso ir catar grana pra tudo isso. É preciso arrumar um traba- lho de meio-expediente, encontrar um serviço que te dê a grana que a mulher e os filhos precisam. E quando você pode levar dinheiro pra casa, precisa ir ao serviço, e não vir treinar. Esse é o problema do Ashante. O Ashante tem dois filhos. Tem uns ser- vicinhos aqui e ali. Faltou na última reunião, quando ele estava no programa, porque teve oportunidade de trabalhar trés ou qua- tro dias de enfiada e arrumar um pouco de grana. É um arma- zém, quando eles procuram pessoal pra fazer hora extra, eles pegam ele [como vendedor, durante o dia]. Não é uma coisa fixa, mas eles chamam muitas vezes, quando precisam. Ele pode ganhar mais fazendo esse serviço de tempo parcial do que su- bindo no ringue. [Um combate que fique no meio do programa dá um caché de cerca de 150 a 300 dólares para cada um dos protagonistas. J E sem ter que apanhar [get beat up J. Então, pre- cisa que ele pegue. [Nota de 13 de janeiro de 1989. J A conversa recai sobre Mark- um jovem novo que trabalha como empregado em uma empresa de fotocópias desde que abando- nou o colegio, sem completar seus estudos. Ele chegou bem atra- sado, mas, mesmo assim, DeeDee deixa que continue treinan- do. Ele boxeia com ardor, inclinado sobre o saco de areia, que "Sem educação, nada de futuro". Corpo e alma - 65 ele metralha com ganchos curtos, o que lhe vale as apreciações elogiosas de DeeDee. "Esse menino é bom. Ele se mexe bem. É um pugilista de nascença [a natural]. Olhe esses movimentos. Ele é forte. Tem boas mãos. Isso é porque ele costumava brigar na rua. Ele faz progressos rápidos. Mas tem as pernas rígidas, não sabe dobrar as pernas. E depois tem um emprego que faz com que ele chegue tarde assim. Precisa treinar mais que isso, mas não tem tempo. É uma pena mesmo, é realmente uma pena [a real pityl, porque ele podia dar um bom pugilista. Se pelo menos ele tivesse chegado mais cedo, quando era mais novo ... - Que idade ele tem? - Tem 22 anos. Ele mesmo já me disse como teria ficado feliz se tivesse vindo pra academia com 15, 16 anos. Mas não tinha gym lá onde ele morava antes, então, ele não fazia nada. Ele treinava e passava o tempo brigando no bairro dele. Tem 55 quilos, não é muito gordo, mas é atarracado [stocklyJ, é por isso. Jogava futebol [americano] no time da escola. Ainda pode perder peso, mas é um pecado [it's a shame] que não tenha tempo de treinar mais ... Infelizmente, com os meninos como ele, isso acontece muitas vezes." [Nota de 22 de março de 1989.1 DeeDee enuncia aqui, de passagem, um dos fatores que dife- renciam os "brigadores de rua" que eventualmente caem na delin- qüência, grande ou pequena, daqueles que exercem seu talento no ringue e participam, mesmo que irregularmente, da economia as- salariada: as mesmas disposições podem levar a uma ou a outra carreira, segundo o espaço de oferta de atividades - aqui, as gangues já organizadas que fazem sua lei reinar sobre a cidade, ali, um giná- sio que "funciona" em um bairro relativamente tranqüilo. O efetivo da sala de Woodlawn flutua consideravelmente e de maneira irregular ao longo dos meses. Pode-se estimar que em torno de 100 a 150 pessoas vêm treinar durante um ano, mas a vasta maioria dos recrutas não permanece além de algumas se- manas, porque eles descobrem depressa que o treinamento é muito exigente para o gosto deles - uma taxa de evasão que ultrapassa os 90% é habitual para um gym de boxe. I 16) A alta estação situa-se (16) A taxa do Woodlawn Boys Club é comparável à da academia do East Harlem, descrita por William Plummer (op. cit., p. 57), onde a rotatividade anual aproxima-se dos 80%. 66 - LoTe Wacquant no inverno, exatamente antes do torneio das Golden Gloves (cujas preliminares são disputadas, todo ano, no início de fevereiro) e no final da primavera. Os mais assíduos (chamados "regulars") são cerca de trinta, entre os quais existe um núcleo de oito boxea- dores que recentemente passaram para a categoria profissional, depois de terem compartilhado seus treinos com os amadores. As motivações dos participantes variam COm o status deles. Os mais regulares boxeiam oficialmente com amadores ou com profissio- nais, e a academia é, para eles, o local de uma preparação intensi- va para a competição. Os outros vêm ao clube seja para se manter em forma física (incluindo-se aí aqueles que têm como objetivo declarado seduzir representantes do sexo oposto, como Steve, um enorme porto-riquenho negro de 29 anos, que está ali "para per- der peso, para as gatas. Quero perder essa pança, por causa das meninas: é que elas preferem assim, e são elas que mandam"), seja para permanecer em contato com os amigos (é o caso de vá- rios profissionais que já penduraram as luvas de competições e que passam mais tempo conversando na sala dos fundos do que se exercitando nos aparelhos), seja, ainda, para adquirir na aca- demia técnicas de autodefesa. I 17) Além dos boxeadores e dos trei- nadores, vários freqüentadores antigos vêm à academia e ficam sentados horas inteiras no quartinho sem janela de DeeDee, a lem- brar com ele o tempo de outrora, quando "os boxeadores eram boxeadores". Para o velho técnico de Woodlawn, só conta de ver- dade o boxe de competição. E embora ele siga com atenção o pro- gresso dos simples amantes de exercícios, não esconde sua prefe- (17) Em 8 de outubro de 1988, explico para a responsável pela creche que fica anexa ao gyJn, e que quer saber por que comecei a praticar esse "esporte de brutamontes", que venho sobretudo para adquirir forma física. Ela imedi- atamente acrescenta, como se fosse uma decorrência natural: "Ah, está bem, não deve fazer muito mal conhecer um pouco de autodefesa nesse bairro. Precisa levar isso também eID conta." Em 17 de junho de 1989, enquanto eu pulo corda, depois de uma sessão de spilrril1g, Oscar, o empresário de Little Keith, pergunta-me se quero me tornar profissional - eu garanto a ele que estou certo de que não passo de um boxista diletante, mas que gostaria de ter algumas lutas como amador: "Porque você até que não luta mal, você se vira bem, sabia ... E depois isso te dá confiança na rua, porque pode se defender melhor". Corpo e olmo - 67 rência pelos verdadeiros pugilistas. Na ocasião, ele não se furta a tentar converter os primeiros aos prazeres do ringue. A conversa seguinte caracteriza bem essa atitude. Em 6 de dezembro de 1988, quando voltou ao escritório, um grande negro de cerca de 40 anos, vestido muito elegantemente em um terno marrom claro e com uma gravata marrom escuro combinando, já meio grisalho. com as entradas acentuadas, a barba bem-feita e penteada, um tanto gorducho. com a aparên- cia de um empresário de transportes públicos, pede para ver "Mister Armour". DeeDee responde que é ele mesmo e convi- da-o a sentar-se no pequeno tamborete em frente à mesa. Finjo que estava lendo o Chicago Sun Times do dia, para escutar dis- cretamente a conversa. _ Eu queria informações sobre o curso de boxe para adultos. Vocês oferecem esse curso? _ Oferecemos, quer dizer, depende do que você quer fazer: quer somente se manter em forma [keep in shapel ou quer lutar? Que idade você tem? _ Tenho 41 anos. Não, não é para lutar, não aos 41 anos ... [ ... ] fõ mais para ficar em forma e também para me defender na rua. _ Certo. Mas depois você pode ficar interessado pelas lutas, tá sabendo. Não são poucos os carinhas bem mais velhos, de 49, 50 anoS, mesmo de 53, que vêm pra se manter em forma e, depois de três ou quatro meses, querem participar das Golden Gloves. :t. claro [com um tom de evidência], eles vão encarar esses jo- vens caras fortes que vão picar eles em pedacinhos e amassá-los, mas eles gostam disso: eles não estão nem aí, tudo o que eles querem é lutar. _ Aos 49 anos? Não estão muito velhos para lutar? _ Estão, mas isso depende, temos aqui tanto jovens como adul- tos. _ Não, obrigado. O que me interessa é me defender, é isso aí, pra lutar na rua, se eu for atacado. Nllnca mais foi visto na academia. No interior do gym de Woodlawn, a percepção indígena reali- za desde logo uma separação, dentro da categoria de boxeadores "sérios", entre os jovens que ainda estão na escola e os adultos, liberados de suas obrigações escolares, mas submetidos àquelas, 68 - LoYc Wacquant Rodneye duas admiradoras de mais impositivas, da vida profissional e familiar. O mais jovem tem 13 anos, e o mais velho, 57; a idade média situa-se em torno de 22 anos. I IX) Todos, é claro, são homens, e o salão de treina- mento é um espaço eminentemente masculino, no interior do qual a intromissão do gênero feminino é tolerada somente à propor- ção que ela permanece incidental: O boxe é para os homens, so- bre os homens, ele éos homens. Homens que lutam com homens para determinar seu valor, isto é, sua masculinidade, excluindo as mulheres.I IY )3? Embora não exista barreira formal para sua parti- cipação - alguns treinadores chegam mesmo a negar verbalmente (IH) Pode-se obter licença de amador desde a idade de 13 anos, e certos tornei- os autorizam a participação de meninos de 10 anos, que são chamados subnoviços. Segundo Henri Allouch, cerca de 30 mil crianças de menos de 15 anos estão licenciadas e disputam mais de vinte combates por ano na América do Norte)" (1'1) Os comentadores especializados queixam-se, às vezes, da regulamentação cada vez mais impositiva da violência pugilística, que eles denunciam como uma "feminização" do boxe capaz de desnaturá-Io: redução do número de assaltos de quinze para doze nos campeonatos, papel ampliado dos médi- cos, período de espera obrigatória depois de um combate que termina por KO e, sobretudo, crescente liberdade concedida ao árbitro para cessar um encontro, uma vez que um dos protagonistas pareça não ter condições de se defender ou que haja rú;co de contusão grave. Corpo e alma - 69 qualquer restrição COln relação ao boxe feminino -, as mulheres não são bem-vindas à academia, porque sua presença atrapalha, senão o bom funcionamento material, pelo menos a ordenação simbólica do universo pugilístico. Apenas circunstâncias excep- cionais, como a aproximação de uma luta importante ou o dia seguinte ao de uma vitória decisiva, fazem com que as namoradas ou esposas tenham licença para assistir ao treinamento de seus namorados ou maridos. Quando isso acontece, elas devem ficar sentadas, quietas, imóveis, caladas, nas cadeiras que ficam alinha- das atrás do ringue; e elas deslocaln -se em geral pelos lados, cos- teando as paredes, de lTIodo a não penetrar na área de exercício propriamente dita, mesmo que ela esteja desocupada. É evidente que elas não devem interferir, de modo algUln, no treinamento, a não ser para ajudar a prolongar os efeitos dos treinos em casa, assumindo para si as tarefas cotidianas domésticas, os cuidados com as crianças, cozinhando os pratos permitidos, fornecendo apoio elnocional, e até lnesmo financeiro, pennanente. Se há uma mulher no gym de Woodlawn, os pugilistas não estão autorizados a sair dos vestiários de tronco nu para vir pesar-se na balança, na sala dos fundos - como se o corpo dos homens semi despidos pudesse ser visto "em serviço", na cena pública que é o ringue, mas não na hora de "repouso", nos bastidores da oficina. Em uma outra sala profIssional situada perto de Little Italy, o treinador chefe recorre ao seguinte método truculento para manter as mu- lheres à distância: adverte, com firmeza, os pugilistas para não levareln as suas "gatas" ao gym; se eles desobedecerem, ele os faz subir ao ringue para uma sessão com um parceiro sparring clara- mente mais forte, de modo que se deixam esmagar no ringue di- ante da namorada e ficam de cara no chão. No Windy City Gym, no limite do gueto do West Side, uma área especial delimitada por uma mureta que chega na altura dos quadris está oficiahnen- te reservada para os "visitantes"; na prática, ela só serve para abri- gar os amigos dos boxeadores. A famosa sala de Top Rank, em Las Vegas, proíbe oficialmente a entrada de mulheres. Entre os praticantes, a divisão principal é a que separa os ama- dores dos profissionais. Esses dois tipos de boxe formam dois universos gêmeos e estreitamente interdependentes, mas que, no entanto, são muito distantes no plano da experiência. Um pugi- 70 - Lo"ic Wacquant lista pode passar anos combatendo entre os amadores e não saber quase nada sobre os costumes e os fatores que modelam a carreira de seus colegas profissionais (particularmente os aspectos finan- ceiros, que todos colaboram para manter na penumbra).(20) Além disso, os regulamentos que regem a competição nessas duas divi- sões são tão diferentes que não é demais considerá-los como es- portes distintos. Para simplificar, entre os amadores, a finalidade é acumular pontos tocando o adversário o maior número de ve- zes possível com séries de golpes rápidos, e o árbitro dispõe de uma grande liberdade para cessar o confronto quando um dos combatentes pareça estar grogue; entre os profissionais, que não usam capacete protetor e cujas luvas são claramente menores, o objetivo máximo é "derrubar" o adversário, atingindo-o com gol- pes, e o confronto prolonga-se até que um dos participantes não tenha condições de continuar. Como diz o treinador da academia de Sheridan Park, "o boxe profissional não é de brincadeira, é para te mandar pro espaço [they'lI knock you out a your mind], sacou? É jogo duro [rough game], você virar profissional é jogo duro - [de repente ele se emenda] não é um jogo. Entre os amado- res, você se diverte. Os profissionais, eles tentam te matar". A grande maioria dos boxistas amadores não "vira" pro6ssional, de modo que estes últimos constituem um grupo fortemente (auto) selecionado. Aí, de novo, a transição de uma categoria para outra tem mais chances de ser bem-sucedida se o combatente puder ser apoiado por um ambiente familiar e social dotado de um mínimo de estabilidade. As outras distinções que ocorrem no gym, no interior de cada uma dessas categorias, referem-se ao estilo e à tática adotados no ringue: "boxer" (que tem estilo) contra" brawler" ou "slugger" (brigador), "counterpuncher" (contraboxeador), "banger" (bate- dor), "animal" etc. Para além dessas diferenciações, a cultura do gym é ostensivamente igualitarista, no sentido de que todos os participantes são tratados da mesma forma: sejam quais forem (20) Os boxeadores profissionais nunca revelam o montante de seus cachês, mesmo para seus parceiros habituais de sparrillg; todas as negociações e transações monetárias entre lutadores, treinadores, empresários e organizadores efetuam-se sub rosa. 31l Corpo e olma - 71 seu status e suas ambições, eles desfrutam dos lnesmos direitos e devem se sublneter aos lnesmos deveres. a começar pelo de "tra- balhar" para valer em seu ofício e demonstrar um mínimo de bra- vura entre as cordas, quando chegar a hora. Aqueles que dispõem de um treinador pessoal certamente recebem maior atenção, e os profissionais iInpõem-se um treinamento mais exigente e mais estruturado. Mas DeeDee põe tanto entusiasmo em ensinar como se executa um jabe (direto com O braço estendido) para um iniciante·pe 16 anos que nunca mais porá os pés no salão depois de uma semana de treino, quanto em apurar a técnica defensiva de um veterano dos ringues. Seja qual for o seu nível de compe- tência pugilística, todos os que "pagam o que devem" no salão são aceitos como membros do clube. À medida que progridem, os aprendizes de pugilismo encon- tram sua própria zona de conforto: alguns estabelecem-se no pa- pel de "combatente do salão", que treina e "veste as luvas" mais ou menos com freqüência para engajar-se. por ocasião de um tor- neio; outros decidem aventurar-se mais longe na cOlnpetição e lançam-se no circuito amador; outros. enfim, terminam suas car- reiras de amadores quando "viram profissionais". A diferencia- ção entre simples esportistas e boxeadores de competição torna- se visível pelos gastos com equipamentos que uns e outros fazem e pela ocupação de um armário no vestiário. Somente os pugilis- tas de competição treinam com suas próprias luvas (eles, em ge- ral, possuem vários pares, acumulados ao longo de anos), seus próprios capacetes e sua corda de pular, que eles conservam pre- ciosamente em um compartimento individual trancado com ca- deado. A compra de sapatilhas de boxe (que custam entre 35 e 60 dólares) ou, ainda mais, de um capacete de sparring (60 dólares, no mínimo) assinala, nela mesma, tanto para o interessado como para os que o rodeiam, um engajamento durável no combate. As roupas também são um bom indício do grau de empenho no es- porte, embora sejam mais facilmente manipuláveis, e, por esse motivo, menos confiáveis: a firma Ringside, especializada em equi- pamentos pugilísticos, fabrica sob medida uma gama variada de roupas personalizadas (calções, camisetas, malhas, roupões), e todo mundo pode comprar uma roupa por correspondência, de- senhada segundo um padrão único ou bordada com O emblema 72 - Lo"ic Wacquant de um grande campeão. Além disso, os boxeadores profissionais jamais vesteln suas roupas de combate quando treinam. Tambéln é verdade que o gasto com acessórios, em geral, dá uma medida fiel do investimento material e moral no campo pugilístico. Ao grupo de atletas junta-se o dos treinadores, conselheiros, visitantes, parentes, amigos e desocupados que vêm à academia para conversar ou observar os treinos, e cuja presença sucessiva renova continuamente o ambiente do salão: Kitchen, um antigo pugilista e metalúrgico desempregado que sobrevive fazendo servi- cinhos, tirando retratos de boxeadores, por ocasião das reuniões, que vende aos interessados a preços proibitivos; O'Bannon, nos- so carteiro, que se vangloria de um cartel de glórias (35 vitórias como amador, das quais 33 antes do término da luta) do qual, no entanto, ele nunca conseguiu exibir a lnenor das provas; um em- pregado da municipalidade, T -lay, antigo campeão europeu amador de meio-médio (ele ganhou esse título quando servia na Alemanha, numa base do Exército americano), que vem acompa- nhar de perto os treinos do filho, Carla, que inicia uma carreira de amador; Romi, um lninúsculo filipino, contramestre de pro- fissão, que desempenha o papel de assistente de treinador do ex- campeão mundial de meio-pesado Alphonso Ratliff; Oscar, um qüinqüagenário bonachão que dirige com energia uma empresa de limpeza de prédios (ele põe regularmente mãos à obra ao lado de seus operários) e que passeia pelo salão tardes inteiras, usando um alto chapéu de caubói, uma corrente e alguns medalhães dou- rados em volta do pescoço, observando e aconselhando os atletas, embora não conheça estritamente nada da Nobre Arte; Elijah, proprietário de uma pequena cadeia de tinturarias do gueto e empresário de dois jovens recrutas do clube que acabam de se tornar profissionais; Charles Martin, um antigo treinador que, de vez em quando, serve COlno "segundo" para os jovens do clube; e uma enfiada de velhos, na maioria aposentados dos arredores, para quem o treinamento no clube constitui a principal fonte de distração cotidiana.(21) Periodicamente, o matchmaker (branco) (21) Esses antigos boxistas que acabam suas vidas como espectadores passivos dos gym são designados pelo termo revelador de "Ji{er", que, no vocabulá- rio das cadeias, significa "condenado à prisão perpétua",3,) Corpo e alma - 73 Jack Cowen e seu terno cor-de-rosa fazem uma aparição notá- vel; nessas ocasiões, ele tem cOIn DeeDee misteriosos conciliá- bulas para decidir que pugilista do clube irá participar dos en- contros que ele organiza mensalmente em Park West, uma boa- te "yuppie" de um bairro de ricos do norte da cidade. A sala dos fundos abriga, assim, a toda hora, de três a seis pessoas mergu- lhadas em discussões pugilísticas apaixonadas ou absorvidas pelo comentário sobre o exercício com sparring que está acontecen- do no momento. Vimos como a ecologia do gueto e sua cultura das ruas predis- põem os jovens de Woodlawn a conceber o boxe como uma ativi- dade dotada de sentido, que lhes oferece um palco no qual eles podem pôr em ato os valores centrais de seu ethosmasculino. Sob esse ângulo, o gueto e o gym encontram-se eln uma relação de contigüidade e de continuidade. Mas, uma vez dentro do salão de boxe, essa relação rompe-se e é invertida pela disciplina espartana à qual os boxistas devem obedecer, que envolve as qualidades da rua a serviço da busca de outras finalidades, mais distantes e mais rigorosamente estruturadas. Desse modo, os técnicos insistem, antes de mais nada, sobre o que não deve ser feito no gym. Eddie, o assistente de técnico de Woodlawn, faz essa enumeração com- pacta das proibições da academia: "Xingar. Fumar. Falar alto. Fal- tar com o respeito às mulheres. Faltar com o respeito ao treina- dor. Faltar com o respeito uns aos outros. Nada de animosidade, nada de fanfarronice". A essa lista, poder-se-ia acrescentar uma porção de regras menores e, muitas vezes, implícitas, que conver- gem para pacificar o comportamento dos membros do clube. Sem que para isso seja preciso dar evidentes amostras de seve- ridade, DeeDee faz reinar no gym de Woodlawn uma disciplina férrea, tanto no plano do comportamento quanto no dos exercí- cios de treinaInento: é proibido trazer alimentos e bebidas para o clube, beber ou falar alto durante as sessües, sentar-se nas bordas das mesas, interferir na ordem dos exercícios a serem executados (por exemplo, aquecer-se pulando corda, e não no shadow- boxing), ou não modificar os movimentos padronizados. É total- mente proibido usar o material de forma não-convencional, dar socos nos objetos ou treinando com sparring no ringue sem o equipalnento necessário, ou, pior ainda, simular Uln confronto 74 - Lo"ic Wacquant I .1 fora do ringue (os "incidentes no solo" são tão raros que perma- neceln inscritos na memória coletiva da acadelnia, ao contrário das violências rotineiras da rua). Deve-se obrigatoriamente vestir o jockstrap (sunga) debaixo da toalha quando se sai das duchas, e roupas secas quando se deixa o ginásio. Finalmente, as crianças da creche e da rua que vêm admirar os exercícios dos mais velhos não devem, sob pretexto algum, se aproximar dos aparelhos. Até mesmo a linguagem é objeto de cuidado estrito: DeeDee não per- mite que se fale em "lutar" [to fight] em lugar de "boxear" [to box ou to spar, para os assaltos de treinamento I; nem ele nem os fre- qüentadores do clube usam termos grosseiros ou palavrões eln suas conversas no clube. A lnaioria das cláusulas desse "regulamento interno" iInplíci- to exibe-se no porte e no comportamento dos regulars, que pou- co a pouco interiorizam-nos, e elas são objeto de apelos à ordem, quando são infringidas.(22l Os que não conseguem assiInilá-las são prontamente advertidos por DeeDee ou firmemente convi- dados a freqüentar outra academia. Em resumo, como se irá cons- tatar ao examinar o regime e a moral do treinamento, o gym fun- ciona como uma instituição quase total, que pretende regulamen- tar toda a existência do boxeador - seu uso do tempo e do espaço, a gestão de seu corpo, seu estado de espírito e seus desejos. Isso a ponto de os pugilistas, muitas vezes, compararem o trabalho na sala com O engajamento no Exército. BUTCl-I: No gym, você aprende a disciplina, o controle de si mes- mo. Você aprende que esperam que você esteja de pé cedo, que deve acordar cedo, fazer seu roadwork [corrida de resistência, pela manhã 1, cuidar de si mesmo, comer a comida que tem que comer. Aí, teu corpo é uma máquina, é preciso que ela esteja em ordem. Você aprende a se controlar quanto às saídas, a treinar, a não ficar dando bobeira, fazendo bobagem na rua [rippin' an' ml A maioria dos outros gyms que observei em Chicago ou visitei em outras cidades penduram seus regulamentos, sob forma de lista escrita padroni- zada e emoldurada, na porta de entrada ou na parede, ou, ainda, suspensa ao leto. para que da fique visível para todos. Parece que quanto mais inslá- vel e ljuanto mais socialmente disparatado for O recrutamento de uma aca- demia, mais explícito é o regulamenlo. Corpo e alma - 75 eSCSH I UFRGIJ runnin' the streel]. Isso dá pra você exatamente a mentalidade de um soldado, como no Exército, e isso é bom pra você. CURT1S: O cara médio que treina nessa sala, um jovem ou um homem, ele se torna maduro, saca só, 85% mais do que se ele estiver fora, na rua. Porque isso, a disciplina, é você tentar se tornar adulto, tentar ter espírito esportivo, ter um sentido de estratégia no ringue [ring generalship], tipo assim, nem sei o quê ... [Ele se confunde.] É mais assim, eu poderia ficar aqui falando, tá sabendo, mas você pode resumir isso assim: funciona como se você estivesse no Exército, mostra a você como ser um cavalheiro, tudo o mais, e isso te ensina a ter respeito. Assim, o salão de boxe define-se em uma relação de oposição simbiótica com o gueto que o rodeia e encerra: ao recrutar pessoal entre a juventude do gueto, ao se apoiar em sua própria cultura masculina de coragem física, de honra individual e de desempe- nho corporal, ele se opõe à rua como a ordem à desordem, como a regulação individual e coletiva das paixões à anarquia privada e pública, como a violência controlada e construtiva - pelo menos do ponto de vista da vida social e da identidade do boxeador - de Ulna troca estritamente policiada e claramente circunscrita se opõe à violência sem razão dos confrontos ünprevistos, sem limites e sem sentido, que a criminalidade das gangues e dos traficantes de drogas que infestam o bairro simboliza. A LEI DO GYM Acolhida de uma nova revista pelo treinador Mickey Rosario, no gym do East Harlem [bairro porto-riquenho), em Nova York.40 - Ok, o primeiro truque que você precisa saber é o regulamento. É probido xingar aqui. :f: proibido lutar sem ser no ringue. Não estou aqui pra fazer você perder o seu tempo, e você não está aqui pra me fazer perder tempo. Eu não fumo, eu não bebo e não fico correndo atrás de mulher. É claro que eu gosto de mu- lher. Mas me contento em ficar só olhando pra elas, é só. Tenho uma mobília boa lá em cima, na minha casa. Quando eu quero, posso levar minha mulher pra sair, pra jantar fora na cidade. Eu trabalho. Trabalho num hospital, e se não puder mais trabalhar no hospital, trabalho como mecânico. Tenho licença números dois e três. Posso dirigir qualquer tipo de caminhão. Posso tra- balhar nas mercearias. Tá entendendo? 76 - Lo'ic Wocquant o menino evidentemente não estava entendendo. - O que eu estou dizendo é que sacrifico minha mulher e meus filhos por você, então, você também tem interesse de se sacrifi- car por você mesmo. Regulamento é regulamento, o meu regu- lamento ninguém discute. Entendido? - Entendido, disse o menino. Ele agia como se estivesse sendo puxado pela ponta de um fio até chegar na frente do escritório do treinador. - Se você acha que tem razão e não está de acordo comigo, é porque você está errado. Entendido? - Entendido. - Quando eu digo "seis roundsna corda", não são quatro rounds. Quando eu digo "pular", quero que você pule. - Certo. - E você não pode parar enquanto eu não mandar. - Certo. - Só existe um chefe aqui. - Certo. - E ele está na tua frente. - Certo. - Sacou? - Saquei. - Você ainda quer treinar? - Quero. - Ok, eu preciso que você me dê sua papelada. Eu preciso de quatro retratos. E preciso de 15 dólares para a licença ABF [American Boxing Federation]. E mais 25 dólares de taxa de ins- crição para o ano todo. [ ... ] O que você está fazendo agora du- rante o dia? Você vai ao colégio? Trabalha? - Bom, vamos dizer, estou entre uma coisa e outra ... - Então você é um vagabundo [bum l. O menino pulou para trás como se tivesse levado um soco. Fi- xou o treinador com dois olhos incrédulos. Depois lançou um olhar vivo à sua volta, para ver se mais alguém tinha ouvido aque- la provocação. [ ... ] Depois do que, ele disse: - Pode crer, eu sou um vagabundo. Mas estou justamente a fim de deixar de ser. - Você vai me detestar, disse Mickey, adoçando finalmente o tom. Isso é só no começo. Depois você vai me adorar. Corpo e alma - 77 Uma prática sabiamente selvagem Se o próprio da prática é, como propõe Pierre Bourdieu, obe- decer a "uma lógica que se efetua diretamente na ginástica corpo- ral", sem passar pela consciência discursiva e pela explicitação que envolve a reflexão,4I ou seja, excluindo a apreensão contemplati- va e destemporalizante da postura teórica, então há poucas ativi- dades que sejam mais "práticas" que o boxe. De fato, as regras da arte pugilística remetem a movimentos do corpo que só podem ser apreendidos completamente €ITI ato e que se inscrevem na fron- teira do que é dizível e inteligível intelectualmente. Além disso, o boxe consiste de UlTIa série de trocas estratégicas, em que os erros são pagos no próprio ato, em que a força e a freqüência dos gol- pes encaixados estabelecem o balanço instantâneo da performance: a ação e sua avaliação confundem-se, e o retorno reflexivo está, por definição, excluído da atividade. Isso quer dizer que não se pode fazer a ciência dessa "arte social" cmn a economia de uma iniciação prática em tempo e situação reais. Compreender o uni- verso do boxe exige que mergulhemos nele pessoalmente, que fa- çamos sua aprendizagem e que vivamos suas principais etapas, a partir do interior. A apreensão indígena é, aqui, a condição indis- pensável de conhecimento adequado do objeto. (23) . A "cultura" do boxeador não é feita de uma soma finita de informações discretas, de noções transmissíveis pela palavra e por modelos normativos que existiriam independentemente de sua operacionalização, mas de um complexo difuso de posições e de gestos que, continuamente (re)produzidos pelo e no próprio fun- cionamento do gym, só existem, por assim dizer, em atos e no traço que esses atos deixam nos (e sobre os) corpos - o que expli- ca a tragédia da impossível reconversão do boxeador no final de carreira: o capital específico que ele detém está inteiramente in- (23) Sem dúvida, é por essa razão que os estudos sociologicamente mais perspi- cazes permanecem sendo, cerca de trinta anos após a elaboração, os dois breves artigos já citados de Nathan Hare (um jovem boxista profissional que se tornou doutor em sociologia na Universidade de Chicago) e do par formado por Weinberg (um sociólogo boxista amador) e Arond (um trei- nador). 78 - Lo"ic Wacquant 1 corporado e, uma vez usado, fica desprovido de valor em um ou- tro campo. O pugilismo é um conjunto de técnicas, no sentido que lhes atribui Mauss, isto é, de atos tradicionalmente pratica- dos pela sua eficácia,(24) um saber prático composto de esquemas imanentes à prática. Disso resulta que o ato de inculcar as dispo- sições que formam o boxista relaciona-se, essencialmente, a um processo de educação do corpo, a uma socialização particular da fisiologia, em que "o trabalho pedagógico tem por função substi- tuir o corpo selvagem [ ... ] por um corpo 'acostumando', quer dizer, temporalmente estruturado"42 e fisicamente remodelado segundos as exigências próprias ao cam po. O trejnamento do pugilista é uma disciplina intensiva e fati- gante - quanto mais alto nível tiver o clube e quanto mais exigen- te for o técnico, embora aparentemente pareça nada pedir -, vi- sando a transmitir de modo prático, por incorporação direta, um controle prático dos esquemas fundamentais (corporais, emocio- nais, visuais e mentais) do boxe. O que de imediato choca é seu caráter repetitivo, árido, ascético: suas diferentes fases repeteln- se ao infinito, dia após dia, semana após semana, com ínfimas variações. Inúmeros são os candidatos que se revelam incapazes de tolerar a "devoção monástica, [ ... ] a subordinação total de si mesmo"43 que esse treinaInento pede, e que o abandonam ao fi- nal de algumas semanas, ou que vegetam no gym até que DeeDee convide-os a ir buscar suas carreiras sozinhos. "A primeira qualidade de que um treinador necessita é a pon- tualidade e a regularidade, de sua parte e da parte de seus boxistas."44 A academia abre todos os dias, exceto aos domingos, durante as horas eln que DeeDee está presente, ou seja, de lueio- dia às sete horas da noite (com algumas variações sazonais). Os atletas vêm quando querem ou podem; a maioria treina entre as quatro e as seis horas da tarde e ocupa invariavelmente o mesmo intervalo de horas, durante o qual eles repetem os mesmos exer- cícios até a saturação. O imperativo de regularidade é tal que bas- (24) "Chamo de técnica um ato tradicionalmente eficaz", escreve Marcel Mauss, antes de destacar que o corpo é "o primeiro e mais natural objeto de técni- ca e, ao mesmo tempo, meio técnico do homem" (op. cit., p. 371). Corpo e alma - 79 ta que um boxeador de renome pare de treinar por um período prolongado para que logo se espalhem os rumores mais absurdos a seu respeito. Assim, em fevereiro de 1989, depois que Curtis parou momentaneamente de vir ao gym, corria o boato de que sua carreira tinha terminado: ele estava "na esbórnia" com as mulheres do bairro e tinha pego Aids ... Os membros do Boys Club treinam na academia, em média, de quatro a cinco dias por semana, às vezes mais. Ao longo de uma sessão, que dura entre 45 e 90 minutos, encontram-se sem- pre os mesmos ingredientes que cada qual vai dosando segundo seu gosto: na ordem, shadow-boxing diante do espelho e no rin- gue, trabalho no saco de bater e no speed bag [pêra de velocida- de], salto de corda e abdominais. A freqüência e a duração das sessões flutuam sensivelmente ao longo do tempo e de um para outro pugilista. A descrição que se segue vale para a maior parte dos pugilistas que está se preparando para um combate. Essa é, por exemplo, uma sessão típica de Pete. Chegando um pouco antes das cinco horas, ele tira suas roupas da mochila e troca-se rapida- mente: camiseta de boxe "Leonard-Hearns - The War 11", boti- nhas de cano alto brancas, bermuda colante preta. Depois de ter bandado as mãos, enquanto conversa com DeeDee e seus colegas, na sala dos fundos, está na hora de pôr-se ao trabalho. Começa com três rounds de shadow-boxing diante do espelho pequeno, encadeando os golpes (jabe, jabe, direita, gancho de esquerda), avançando e recuando diante de seu reflexo - e, às vezes, usando pesos (curtos cilindros de metal) amarrados em cada punho, para aumentar a tração muscular. Depois) ele sobe no ringue para três rounds de boxe simulado, onde, em lances com um adversário imaginário, ele repete suas esquivas, lapida suas fintas e multipli- ca os deslocamentos ao longo das cordas. Desce para calçar um par de luvas de treino no escritório antes de encetar três rounds contra o saco mole de bater: séries de jabes seguidos de diretos com as duas mãos, uppercuts, ganchos e esquivas de corpo a cor- po simuladas - toda a paleta do pugilista está aí. No último round, Pete solta seus golpes, deixando escapar gritinhos guturais que enchem o salão. É (] tempo de encharcar o rosto de água no esgui- cho coletivo que fica perto do ringue, e ele passa a um último round de exercícios no saco de bater uppercuts, que fica preso à 80 - Lok Wacquant " Floorwork": Tooy no saco de bater; ao fundo, Anthony treina shadowna frente do espelho. parede. Seguem-se duas novas etapas de speed bag para apurar a velocidade do braço e a coordenação entre olhos-mãos. Pete ter- mina sua sessão com três rounds pulando corda em altura e séries de abdominais variadas (designadas pelo termo genérico de tablework, literalmente "trabalho de mesa", por analogia com a roadwork - corrida a pé - e o floorwork - conjunto de exercícios de chão) e "flexões" (clássicas, os pés sobre uma cadeira, apoiado sobre os punhos fechados, ou batendo palmas a cada flexão). A esse esquema de base, que pouco varia, acrescentam-se ou- tros exercícios, como o trabalho no jab bag ou no double-end bag (uma punching-ball simples ou dupla, bola teto-solo, que fica presa por elásticos ao chão e ao teto), flexões e movimentos circulares com UlTIa pesada barra de metal, assim como exercícios expressa- mente concebidos para reforçar a estrutura muscular defensiva: uma vez por semana, Pete pacientemente deixa que Eddie lhe bata no abdômen COm golpes de punching-ball; uma sessão sim, uma não, sentado em cadeira, com um capacete cheio de pesos na ca- beça, ele passa longos minutos fazendo tração no pescoço. O tra- Corpo e olma - 81 " TabJework": abdominais, ajudado pelo 82 - Lo"ic Wacquant "Ringwork" : trabalha nos l balho no pad, em que ele se exercita encadeando golpes nas manoplas acolchoadas que o treinador lhe oferece, fazem a liga- ção entre °box"de efeito" do shadowe o trabalho com o saco de areia, de um lado, e o treino com sparring no ringue, de outro. Aos exercícios no salão) juntam-se intermináveis sessões de footing os boxistas de Woodlawn percorrem uma média cotidiana de cinco a oito quilômetros) cerca de seis dias por semana, tanto no inver- no como no verão. o TRABALHO NOS PADS Dia 2 de março de 1989. Estou pronto: roupão azul, calção preto e camiseta vermelha, saltito sem sair do lugar, esperando Eddie, que enfia com aplicação os pnds (espécie de largas almofadas chatas),; ele ajusta seus dedos no fundo, pedindo a ajuda de O'Bannon para enfiar a segunda mão e fechar o punho. DeeDee gincha: "Time, work.r" Eddie planta-se diante de mim e ergue a mão direita no ar: "Jabe!" Avanço e bato com meu punho es- querdo na manopla de couro que ele estende para mim. Paf, paf, paf, faz o golpe, estou com sorte, e meus golpes saem certos _ sabemos logo, logo se erramos, porque o pad estala, em lugar de fazer um barulho surdo. Meu punho jorra da esquerda a cada um de seus apelos. No momento em que toco sua mão, Eddie dá um pequeno golpe seco de punho para baixo, para fazer força contra meu jabe. "Aumente a força do jabe, é isso ... Force, force teu jabe." Lanço golpes furiosos sobre o pad, que agora ele me estende alternadamente à direita e à esquerda. O barulho enche-me de alegria e redobra minha energia. Já estou encharcado de suor. "Um-dois, jabe e direita encadeada, vamos, um-dois." Como não consigo muito bem fazer com que os dois punhos funcionem, retomamos então os jabes simples. É extenuante. Eddie desloca- se com pequenos passos em arco, à minha volta. Tento perma- necer todo o tempo em movimento, não me afastar dele. "Agora mande uma direita sobre o corpo, é assim." Paf, paf! O barulho certo recomeça. Tch-tch, paf-paf! Eddie muda o exercício: "Agora mande um jabe no rosto [o pad alto, no ar], jabe no corpo [pad a meia altura]! Dobre o jabe no corpo, ei, está bom, continue." Avanço batendo regularmente, minha respiração toma o ritmo dos golpes. Eddie, sempre rodando à minha frente (dir-se-ia que Corpo e alma - 83 é um pequeno lutador de sumô, de tanto que ele roda por toda parte), estende-me as duas manoplas de couro ao mesmo tem- po: "Agora dispare um jabe, esquerda-direita-esquerda, e acabe com um cruzado de direita, ok?" Avanço a pequenos passos, dando jabes, paf-paf-paf-paf, pulando sobre o pé que está atrás e esticando-me ao máximo para tocar bem o alvo no último di- reito. "Continue [keep goin'], continue, mantenha o ombro es- querdo alinhado quando joga a direita." "Time out!" Ufa, eu já não agüentava mais; meus pulmões queimam, meus braços pe- sam cem toneladas. Respiro fundo durante o intervalo para ten- tar recuperar o ritmo. Só tenho trinta segundos. Concentro-me para reunir todas as minhas energias. Nesse ritmo, faço dois rounds, nunca três. "Time in!" Eddie estende-me OS pads virados para o chão, para treinar uppercuts rápidos. É um movimento mais difícil, que vem menos "naturalmente" (se é que alguma coisa me vem natural- mente quando estou no ringue). Esse golpe é dado de baixo para cima, com a mão perpendicular ao cotovelo. É preciso girar o punho para dentro, mas sempre tenho a sensação de que o alvo escapa-me, mesmo quando o atinjo. Inclino-me um pouco para passar sob a guarda invisível de Eddie. "Vamos, você consegue, direita, esquerda, continua se mexendo, mexe os pés." Uppercut direito, uppercut esquerdo. Lancinante. "Está bom, mantenha o punho direito no ar depois do jabe, continua!", ruge Eddie, re- cuando para forçar-me a combinar golpes e deslocamentos. En- cadeio um uppercut de direita, um uppercut de esquerda, um jabe para alongar o braço, depois um duplo uppercut de direita e de esquerda, flexionando bem os joelhos com uma girada de qua- dris - é mortaH Já não sinto mais meu punho direito nem meus ombros. Procuro aspirar, enquanto continuo distribuindo uppercuts como um autômato. Quando eles soam bem contra a manopla, isso me motiva a bater mais forte o golpe seguinte. Mas não agüento mais mesmo, tenho de baixar a guarda para retomar a respiração. Começamos um novo exercício: "Agora, você faz um-dois, abaixa pra evitar minha direita e responde com um outro um-dois do outro lado". Não entendo a manobra de imediato, mas depois de duas ou três vezes, encontro o ritmo: jabe de esquerda no pad direito, gancho de direita no mesmo pad, gancho de esquerda imediato no outro pad, girando o braço flexionado em forma de 84 - Lo'ic Wacquant arco, e novo gancho de direita; Eddie responde disparando-me um amplo gancho, que eu evito inclinando meu tronco até o ponto necessário, antes de responder com dois ganchos curtos. Se ele me ataca da direita, eu evito e contra-ataco com direita- esquerda, e vice-versa. É genial, mas ainda mais cansativo que as outras seqüências. Paf, paf-paf-paf-paf, esquiva, paf-paf! Tenho tendência a perder meu eixo de equilíbrio. A voz de DeeDee ressoa: "Fica sobre seu apoio, mantenha a perna direita atrás e vire o pé para dentro". Persigo Eddie por entre os apare- lhos. Ele interrompe alguns segundos para ajustar os pads. Du- rante esse tempo, giro em volta dele, fingindo aparar golpes ima- ginários. Retomamos o exercício. "Vai, cara, manda brasa! Ei, assim mesmo, bata, está bom, Louie, força nesse jabe!" Ele grita para mim essas fórmulas de encorajamento cada vez mais alto. Não vejo mais nada, a não ser as placas negras que ele me esten- de, e que eu preciso atingir a todo custo, e seu largo tronco gor- do e azul que desliza à minha volta. Meus pulmões vão explodir; não tenho nem pernas nem forças. Sigo-o lançando jabes numa névoa de fadiga, suor e excitação. Meus punhos estão se tornan- do muito pesados, meus braços estão imensos. Estou exausto, mas continuo boxeando como uma máquina de soltar golpes. Paf-paf, bam, bam-bam. Perco minha energia com uma veloci- dade com "V" maiúsculo, e meus golpes não fazem mais o ruído certo. Eddie me anima com sua voz: "Vamos, mais um, mais um, keep it up, Louie!" Em um estado de semicoma, continuo a bater e a soprar em ca- dência, lançando um golpe a cada baforada de ar que expulso. Tenho a impressão de ter subido em um maquinismo do qual sou, ao mesmo tempo, motor e personagem. Eddie solta para mim seus gritos de encorajamento. Arrasto-me para prosseguir, bater, co- locar meus punhos no lugar certo, atinar com o objetivo, bater. Reúno minhas últimas reservas para acabar essa série. "Vamos, você está esquentando, você está chegando lá! [You're cookin', you're cookin' in the kitchen!] Vamos, Louie! Você está queiman- do no forno! [Mind over matter!] Vamos, você consegue chegar lá, é tudo na cabeça, você está quente!" Ainda um esforço, paf- paf, bam, pum-pum. "Time out!" Finalmente acabou! Estou à beira da asfixia, paralisado de exaustão, totalmente esvaziado, em seis minutos. Tenho a impressão de que vou cuspir os pul- mões e que vou desmaiar. Corpo e alma - 85 Muitas vezes, os boxeadores foram cOlnparados aos artistas, mas Ulna analogia mais exata conduziria nosso olhar para o mun- do da usina ou da oficina do artesão. Porque a Nobre Arte se parece, em todos os pontos, com um ofício manual [craft] quali- ficado, repetitivo.(25) Os próprios boxeadores profissionais enca- ram o treinamento como um trabalho ("F, um serviço que eu te- nho de fazer", "li preciso que eu faça meus deveres", "li como ter um segundo emprego"), e seu corpo, como um instrumento. Como têm consciência de que seu desempenho no ringue depen- de diretamente de sua preparação na academia, eles exercitam-se com ardor, de modo a ficar no auge da forma física e de controle técnico no momento de passar entre as cordas e, assim, cortar a ansiedade. "li no gym que você ganha seu combate", diz um adá- gio bem conhecido dos freqüentadores. A preparação pode se re- velar tão intensa e desafiadora que, perto dela, a luta irá parecer fácil; aliás, vários boxeadores acham que o treinamento é o aspec- to mais penoso de seu ofício. A descrição que George Plimpton faz da preparação do legendário campeão Joe Frazier vale para a infinidade de anônimos "boxistas de clube":4ó "li um feliz maso- quista no gym, ele mesmo se castiga sem tréguas em busca da du- reza [toughness] que o tornará insensível aos assaltos de seu ad- versário [ ... l". "Trabalho tão duramente durante meu 'campo de treinamento' que castigo a mim mesmo, e, assim, quando chega a verdadeira prova, é mais fácil para mim. Quando toca o gongo, estou pronto, estou turned on [ligado, aceso, excitado ]." Os sacrifícios exigidos do boxeador não param na porta da academia. O devotamento monacal exigido pela preparação do combate imiscui-se até mesmo na vida social fora dali e impregna todos os domínios da esfera privada. Para chegar a seu peso óti- mo de luta, todo boxeador deve seguir uma dieta estrita (evitar (15) Como Gerald Early observou, com justeza, "a palavra que, mais que qual- quer outra, vem imediatamente à cabeça quando se observam os boxeadores em atuação no gym é 'proletariado'. Esses homens estão engajados num la- bor [toilillg] honesto e ao mesmo tempo assustador, e o que é mais espanto- so é que esse trabalho é ainda mais grotesco que o pesadelo da linha de mon- tagem. E proletariado é uma palavra totalmente apropriada para esses boxeadores que são chamados de duros e vagabundos [stiffs alld bums]" .45 86 - LoTe Wacquant açúcares, féculas e frituras, comer peixe, carnes brancas e legu- mes cozidos, beber água e chá), manter horários regulares e im- por-se um toque de recolher precoce, para dar a seu corpo o tem- po de se recuperar. Ensinam-lhe, além disso, desde que ele entra na academia, que deve renunciar a qualquer contato sexual du- rante semanas antes da luta, sob pena de perder seus fluidos vitais e de minar sua força física e sua energia mental. 47 E mais ainda que o treinamento, essas regras de abstinência tornam a existên- cia comum do boxeador profissional difícil, talvez até mesmo ter- rivelmente penosa. Como observa Jake, um peso ligeiro de Gary que veio "calçar as luvas" uma tarde em Woodlawn, o "sacrifício" mais doloroso exigido para sua preparação para uma luta não é malhar todo dia na academia, mas "não poder tocar no junk food, os hambúrgueres-com-fritas, nada de sexo, sacou. Me amarro em cerveja, nada de cerveja, e tem mais, nada de cerveja nem light, sacou, é a abnegação, quando é preciso pesquisar no fundo das suas tripas para saber o que você quer - é preciso dizer: 'Bom, nada de mulheres esse mês', sacou, e nada de hambúrgueres. [Mui- to rapidalnente seu tom sobe uma oitava de indignação somente diante dessa simples idéia.] Saca o que é deixar de se engazopar de junk food durante um mês inteiro, nada de Coca-Cola, de sorvete, de cookies de chocolate? É o inferno, não é?" A extrema monotonia do treinamento não exclui que o pugi- lista procure um monte de pequenos prazeres, sem os quais seria difícil para ele perseverar. 4X Há, por um lado, a camaradagem vi- ril do gym, que se manifesta por olhares e sorrisos, papinhos, pia- das e encorajamentos assoprados durante os intervalos ou tapi- nhas afetuosos nas costas ou na mão (os boxeadores saúdam-se ritualmente batendo os punhos enluvados alternadamente para cima e para baixo).12ó) Como eu mesmo aprendi ao boxear fre- (16) Sublinhemos que as formas de respeito correntes no gym são as formas exclusivamente masculinas, que afirmam não somente a solidariedade e a hierarquia dos pugilistas entre si, mas também, e de um modo ainda mais eficaz, quanto mais for dissimulada a consciência, a superioridade dos ho- mens (isto é, dos "verdadeiros" homens) sobre as mulheres, gênero fisica- mente ausente, mas simbolicamente onipresente em negativo na acade- mia, assim como no conjunto do universo pugilístico. Corpo e alma - 87 \ ~ . qüentemente com Ashante, uma fraternidade carnal muito parti- cular liga entre si os parceiros de sparring regulares, fraternidade baseada no risco que cada qual corre com o outro e que faz o outro correr. Em seguida, vem o prazer de sentir o corpo desa- brochar, adelgaçar-se, "fazer-se" pouco a pouco pela disciplina que lhe é imposta. Além do sentimento de cansaço e de plenitude corporal amiúde vivaz que ele proporciona,(27) o treino é, nele mesmo, sua própria recompensa, quando o lutador consegue dominar um gesto difícil, que oferece a sensação nova de ter re- dobrado sua potência, ou quando obtém uma vitória sobre si mesmo (como sobrepujar a angústia do treino com um parceiro sparring férreo). Enfim, os pugilistas saboreiam o fato" de perten- cer a uma pequena confraria" à parte, reputada por sua bravura física e por sua rudeza; apreciam saber que eles "são diferentes das outras pessoas. Eles são lutadores".511 Essa satisfação, embora seja discreta, nem por isso é menos real, e os freqüentadores do clube marcam-na ostentando escudos, camisetas, casacos ou bo- nés bordados com as insígnias do ofício. A isso acrescenta-se o apego emocional ao seu gym, que os pugilistas comparam espon- taneamente à "sua casa" ou a «uma segunda lnãe". o que fala bem da função protetora e nutriz que lhe é própria, aos olhos deles. A simplicidade da aparência dos gestos do boxeador não pode ser mais enganosa: longe de serem "naturais" e evidentes, os gol- pes de base (jabe, gancho, direto, uppercut) são difíceis de serem executados corretamente e supõem uma "reeducação física" com- pleta, uma verdadeira remodelagem de sua coordenação ginásti- ca e até mesmo uma conversão física. Ulna coisa é visualizá-los e compreendê-los em pensamento, outra bem diferente é realizá- los e, mais ainda, encadeá-los no fogo da ação. "Para que um gol- pe seja realmente eficaz, é in imaginável o número de condições que devem ser reunidas."sl Por exemplo, lançar o jabe para man- ter o oponente a distância, ou ajustá-lo, tendo em vista um ata- que, tudo exige, entre outras coisas, colocar em posição simulta- (27) Os pugilistas comparam a experiência sensorial do treinamento intensivo (e do combate) com uma c6pulaou um orgasmo. Para um paralelo instru- tivo sobre o sentimento de" tlow' entre os alpinistas, ver o estudo de R. G. Mitchel\, Mountain Experience. 49 88 - loic WacC\uan\ neamente os pés, os quadris. os Olnbros e os braços; deve-se "jo- gar" o braço esquerdo em direção ao adversário (visando o rosto ou o corpo) no momento oportuno, avançando um passo, com os joelhos levemente flexionados, o queixo encostado nas omo- platas; alinhar a mão e o ombro para adiante, virar O pulso no sentido dos ponteiros de um relógio em 45 graus no momento do impacto - nunca antes -, fechando o punho; e transferir o peso do corpo para a perna da frente e depois sobre a perna de apoio, a de trás, mantendo a mão direita próxima da bochecha, de modo a bloquear ou desviar o contra-ataque do adversário. O domínio da teoria tem muito pouca utilidade, uma vez que o gesto não está inscrito no esquema corporal; e é somente quando o golpe é assimilado no e pelo exercício físico repetido ad nauseam que ele se torna, por sua vez, completamente claro para o intelecto. Há, de fato, uma compreensão do corpo que ultrapassa - e precede - a plena compreensão visual e mental. Somente a experimentação carnal permanente que constitui o treinamento como complexo coerente de "práticas de incorporação"52 permite que se adquira esse domínio prático das regras do pugilismo, o qual exatamente dispensa que essas regras se constituam como tal na consciência. Para descrever adequadamente o processo quase insensível que era uma pessoa a jogar e a investir no jogo (às vezes, mais até do que se desejaria), que leva do horror ou da indiferença iniciais, misturados com a vergonha do próprio corpo e o embaraço, à curiosidade e depois ao interesse pugilístico, talvez ao prazer car- nal de boxear e à vontade de lutar no ringue, seria preciso poder citar in extenso as notas tomadas depois de cada sessão de treina- mento ao longo dos meses. A própria redundância dessas notas permitiria que se apreendesse concretamente a lenta evolução que se efetua, de uma semana para outra, em direção ao controle dos movimentos, à compreensão - na lnaior parte das vezes, retros- pectiva e puramente gestual- da técnica pugilística, e a modifica- ção que ocorre na relação com o corpo e na percepção do salão e das atividades de que ele é suporte. A assimilação do pugilismo é o fruto de um trabalho de aperfeiçoamento do corpo e do espírito, que, produzido pela repetição ao infinito dos mesmos gestos, pro- cede por uma série descontínua de deslocamentos ínfimos, difi- cilmente demarcados individualmente, mas cujo acúmulo, ao lon- Corpo e alma - 89 go do tempo, produz progressos sensíveis, sem que se possa ja- mais separá-los, nem datá-los, nelTI lTIedi-los com precisão. O que tem lnais chance de escapar ao observador externo é a extrema sensualidade da iniciação pugilística.I2X1 É com todos os nossos sentidos que nos convertemos pouco a pouco ao mundo do boxe e a seus jogos; para dar toda a força a essa proposição, seria preciso poder restituir todo O conjunto de odores (a secre- ção assoprada com toda a força pelas narinas, o suor que flutua no ar, o fedor da prancha de abdominais, o cheiro do couro das luvas), os barulhos cadenciados dos golpes, cada aparelho com o seu ruído próprio, cada exercício com a sua tonalidade, cada pu- gilista com a sua própria maneira de fazer "estalar" o speed bag; o bater ou o galope dos pés que ressoam no chão ou que escorre- gam e rangem na lona do ringue, os bufados de cansaço, os asso- bios, chiados, assopros e gemidos, os gritos e suspiros caracterís- ticos de cada atleta, e sobretudo a disposição coletiva e a sincroni- zação dos corpos, que, somente por serem vistas, já bastam para produzir efeitos pedagógicos duráveis, sem esquecer da tempera- tura, cuja variação e intensidade não são as menores das proprie- dades do salão. Sua combinação produz uma espécie de embria- guez sensorial, que é parte integrante da educação do aprendiz de boxeador. A INICIAÇÃO [15 DE OUTUBRO DE 1988] Entro na sala pela porta de trás. DeeDee está sentado no escritó- rio, com o imenso Butch e três jovens. Cumprimento todo mun- do e aperto as mãos (sempre: é o rito cotidiano e uma marca de respeito muito considerada). DeeDee pergunta-me desde logo: "Louie, você está com o seu protetor de dentes [mouthpiece] aí? - Sim, aqui está, por quê?" O velho coach sacode lentamente o queixo, com um olhar travesso. Compreendo que é hoje o meu (ZI!) J: com razão que ela escapa ao leitor, que só pode entrar no universo pugi- lístico pela intermediação da escrita. Ora, a simples passagem para a escri- ta transforma irremediavelmente a experiência que se trata de comunicar. O que Alfred Willener diz sobre a música aplica-se muito bem aqui, ao boxe: "Um dos obstáculos de qualquer sociologia da música permanece sendo que não se sabe como falar dela. É preciso retraduzir um sentido musical em linguagem não-musical."53 90 - Lo"ic Wacquant ~ batismo de fogo: vou fazer a minha primeira rodada no ringue! Sinto uma ponta de apreensão, e, ao mesmo tempo, de satisfa- ção, por chegar finalmente a esse rito de passagem. Não tinha previsto isso e fico inquieto, pensando se estou realmente em forma; além disso, ainda sinto uma dor teimosa no pulso direi- to. Mas é impossível recuar. E depois, tenho pressa de começar, afinal, há semanas espero por esse momento - é mesmo esquisi- to estar excitado com a perspectiva de ter a cabeça coberta de pancadas ... Dou um giro ali em volta para saber quem vai me aplicar o pri- meiro corretivo no ringue. Seria Butch? Aí chega Olivier. DeeDee diz-lhe que ele também vai lutar com sparring e que, portanto, deve se preparar: "Quero ver seu nariz sangrar. Como você é médico, pode cuidar de você mesmo. Só quero ver o seu nariz sangrar um pouco, eê." Humor negro. O doutor e eu tentamos nos reconfortar mutuamente, rindo alto enquanto nos botamos a postos ... É exatamente Butch que vai nos iniciar. Ele se aquece fendendo o ar com golpes raivosos, vestido com sua malha azul sem mangas. Diante da idéia de tê-lo à minha frente entre as cordas, acho-o ainda mais encorpado, colossal mesmo: ele é quase uma cabeça mais alto do que eu; seu tronco e seus braços são semelhantes a toras de ébano que reluzem sob a luz pálida dos plafonniers do salão. [ ... ] É razoável subir ao ringue para enfren- tar esse atleta? Ele pede-me que eu amarre suas luvas de sparring. Aproveito para lembrar-lhe que realmente é a primeira vez que vou boxear, é melhor não haver mal-entendidos (meu camara- da Butch, esse é um Butch gentil) ... Ele murmura que seu últi- mo combate no Park West foi anulado, porque seu adversário não tinha o peso regulamentar. Ele não tem qualquer dificulda- de para perder peso: basta prestar atenção à alimentação e cor- rer como um desesperado. Mas, mesmo assim, ele tem cerca de 20 libras a mais que eu (seria menos intimidante se ele fosse um pigmeu de 40 quilos). Peço a DeeDee que ponha as bandagens nas minhas mãos - que seja ele que o faça, hoje, que a luta é a sério. Eu ataco um round em shadow diante do espelho. Hoje somos seis, entre os quais Reese, Boyd e Tony, e todos se aquecem em seus cantos para se preparar para o treino com sparring. Faço exercícios na pêra de velocidade para destravar o punho direito, mas quando inicio uma nova série diante do espelho (jabe-direita, avançando, giro Corpo e alma - 91 e gancho de esquerda, jabe, recuo), DeeDee grita para mim: "Louie, será que você pirou? Não desperdice tanta energia as- sim, senão você vai ficar sem nada para o sparring. Você vai cair de bunda logo, logo". "De qualquer jeito ele vai bater em mim". O velho treinador chama-me ao escritório para pôr minha coquilha: essa sunga de couro que protege a região das virilhas e o ventre, que se parece com um arreio rígido, na qual enfiamos as pernas antes de ela ser fechada com cadarços, na parte de trás. Tenho dificuldade para enfiar meu traseiro naquela coisa. De- pois ele estende-me um capacete [head-guard] que se parece mais com uma rede grossa com malhas de couro do que o verdadeiro elmo que Butch usa (um semicírculo cilíndrico maciço que lhe cobre todo o rosto, com duas fendas em forma de cruz que só deixam aparecer os olhos, o nariz, a boca e o queixo). Encaixo minha cabeça no capacete e amarro-o; muito apertado e ... do lado avesso! Viro-o pelo direito e volto a amarrá-lo de novo. DeeDee ajusta-o. "Está muito apertado? Onde está o seu mouthpiece?" Coloco meu protetor bucal de plástico branco na arcada superior, o que me faz parecer, de verdade, um animal que está sendo preparado para o matadouro. DeeDee manda que eu besunte meu rosto de grease. Meto dois dedos no pote e começo a passar com nervosismo a vaselina na testa, nas bochechas, nos supercílios ... Mas exagero na quanti- dade e provoco risos: "Não tanto assim, somente na ponta do nariz e sobre os olhos, faça isso na frente do espelho." Tiro o excesso de vaselina e espalho-a cuidadosamente pelos supercílios e pelo nariz - não se trata de me moer de pancadas no treina- mento. Pergunto a DeeDee se isso pode acontecer: é claro ... O velho técnico extrai do armário do canto um par de velhas luvas vermelhas, nas quais me faz enfiar meus punhos bandados, duas enormes almofadas acolchoadas, duas vezes maiores que minhas mãos - as luvas de competição são bem menores e mais leves. Ele faz com que eu feche o punho lá dentro e depois amar- ra a luva, passando cuidadosamente o cadarço sobre o punho antes de fechá-la com a ajuda de uma fita adesiva de cor cinza- prata, que ele cola com perícia sobre o cadarço. Enquanto calço as minhas luvas, DeeDee segue, pelo canto dos olhos, a evolução dos dois jovens que estão no ringue. O maior chama-se Rico, é um atleta magnífico, robusto e longilíneo, magnificamente mus- culoso e dotado de uma técnica que lhe dá o porte de um profis- 92 - Lo'ic Wacquant siona1. Fico surpreso quando me dizem que ele só tem 14 anos. "Ééé, ele é jovem, mas tem muito caminho pela frente. É preciso que ele trabalhe mais do que isso. Mas é um bom menino." En- tre duas séries, um rapazinho baixo como uma tampinha dá vol- tas no ringue jogando uma simulação de boxe, antes de vir para DeeDee lhe calçar um par de luvas de miniatura: ele tem nove anos e já luta em competições. [ ... ] Acho que pirei, quando me descubro no espelho, metido em roupas de um perfeito boxeador. Será que sou eu, assim ridicu- lamente vestido com essa coquilha preta que me prende os qua- dris até a metade do ventre e da qual saem minhas pernas de caniço de dentro de umas calças cor de violeta? As gigantescas luvas vermelhas dão a impressão de que tenho membros artifi- ciais; o capacete de couro aperta minha cabeça e diminui meu campo visual; com ü rnoulhpiece na boca, fico com uma cara de mongol. Uma verdadeira metamorfose! Fico, ao mesmo tempo, espantado, impressionado e incrédulo. Não há mais tempo de ficar angustiado. Olivier desce do rin- gue, dobrado em dois de fadiga. É a minha vez. Escalo rapida- mente os degraus da escadinha e passo entre as cordas - como em um filme. E logo em seguida, vendo-me sozinho no ringue, que me parece, ao mesmo tempo, imenso e minúsculo, menta- lizo brutalmente que sou eu quem vai enfrentar Butch, e que ele vai me arrebentar a cara. Estou arriado e, ao mesmo tempo, tenho uma furiosa vontade de ver no que isso vai dar. Submerjo no sentimento superagudo do meu próprio corpo, de sua fra- gilidade, e na sensação carnal de minha integridade corporal e do risco que o estou fazendo correr. Ao mesmo tempo, a cara- paça de couro na qual estou amarrado me dá a sensação irreal de que esse mesmo corpo escapa-me - como se ele estivesse transformado em uma espécie de tanque humano. A coquilha prende meus movimentos abdominais e trava meus desloca- mentos. O capacete prende e toma a minha cabeça toda. Em lugar de mãos, tenho dois grandes apêndices, como se fossem martelos moles no final de braços teleguiados que só me res- pondem de modo imperfeito. Lanço uma olhada furtiva para o lado de Butch, que saltita sem sair do lugar, bufando, com o ar impenetrável. Olivier já desceu e não há motivo para que seja diferente comigo. E se eu levasse um golpe de mau jeito e me deixasse burramente ferir? E se ele me pusesse a nocaute? Va- Corpo e olmo - 93 mos, é só um mau momento que temos de atravessar, como no dentista, o que é isso? A voz rouca de DeeDee ressoa.: "Time!" É a partida para os três minutos de desconhecido. Abaixo-me e ando em direção a Butch, que faz a mesma coisa. Tocamos nossos punhos no centro do ringue. Troca de jabes simpáticos. Golpe, aproximação, recuo, golpe, nós nos observamos. Tento uma enfiada de jabes de di- reita para levar imediatamente com a luva amarela de Butch em pleno rosto. Primeiro golpe encaixado, não muito desgaste. Puf- fiu, a coisa é,rápida! Avanço hesitando, jabe, ele se esquiva; novo jabe e nova esquiva; ando resolutamente em direção a Butchj ele desliza pa.ra longe, evita-me com uma simples torção de tronco, gira e desaparece do meu campo visua.l. Começa um jogo de es- conde-esconde que irá durar cerca da metade do round. Sigo-o passo a passo, jabe-jabe-jabe; ele tem sucesso em desviar meus punhos, dispara-me um direto que eu aparo com minha luva esquerda, um outro que eu bloqueio ... com o nariz. Tento apro- ximar-me e, como aluno aplicado, busco repetir os movimentos mil vezes executados na frente do espelho. Tento um direto de esquerda seguido por uma direita, como se estivesse treinando no saco de areia, para levar três Jabes em cheio. Isso põe fogo em minhas ventas. Bato em retirada, perseguido por Butch, que pa- rece decididamente ser um gigante. Tem uma empunhadura enorme e mexe-se muito rapidamente: nem bem partiu meu jabe e a cabeça dele já não está lá, enquanto ele me manda um piccolo de esquerda. Ahh, sempre é tarde demais quando vejo o enorme punho dele chegando: paf, mais uma vez no meio da cara! Reajo com a.lguns jabes. Finalmente disparo uma esquerda no tórax dele, uau! Mas nove entre dez de meus golpes só atingem o vazio ou vêm morrer na.s luvas dele. Butch enfia um direito tão pesa- do que faz com que minha. cabeça estale para trás; ele fica com medo de ter me machuca.do e se interrompe: "Você tá legal?" Faço sinal para que ele continue, ajustando mais ou menos o capacete. Esgrimo a.o avançar sobre ele, tentando executar bem os meus gestos, olhar, bater, girar, mas tudo em vão: sou inca- paz de encadear minhas séries levando em conta os movimentos dele e antecipando o que vai fazer. "Time oul!" Ufa, retomar o fôlego depressa. Volto para o meu córner, respirando em grandes golfadas. Inexplicavelmente já estou extenuado. De fora, parece fácil, mas 94 - Lo"ic Wacquant uma vez dentro do ringue, já não é a mesma coisa. O perímetro de visão estreita-se e satura-se ao extremo: seria incapaz de dizer o que se passa além de um círculo de dois metros à minha volta. É preciso que eu me mexa o tempo todo, e a tensão sensorial é máxima, embora eu já esteja encharcado de suor. A percepção do adversário: parece-me que as luvas dele tornaram-se enor- mes a ponto de cobrir o ringue todo; entre a cintura dele e suas grossas patas amarelas, não vejo nada em que bater quando che- go perto. Meu próprio corpo também me parece estar diferente e não me obedecer tão prontamente quanto eu desejaria. Os golpes não provocam tanto mal (porque não estamos lutando de verdade), mas irritam: quando "engolimos" diversos jabes de enfiada, isso é vexaminoso e temos a desagradável sensação de ficar com a cara inchada. Os punhos chegam com a velocidade de um raio, enquanto do exterior tudo parece ser lento e previ- sível. Sobretudo, o Gua na sua frente se mexe e se esquiva, o que modifica sem cessar a equação que deve ser resolvida. Pergunto- me o que Butch está pensando. Impossível adivinhar, porque o rosto de um boxeador envolvido no capacete e deformado pelo protetor bucal não revela grande coisa - mesmo o ar de malvado produzido pelo moulhpiece é criado artificialmente, dando ao mais belo dos atletas a feição de um prognata. N em bem recuperara o fôlego e, da sala dos fundos, DeeDee berra de novo "Time!" Já é o segundo round? Droga, nem vi passar o minuto de repouso! Retomamos nossa dança no meio do rin- gue. Minha apreensão abandonou-me e decido fazer pressão sobre Butch. Mas ele percebe que eu me animei e também passa para uma velocidade superior - o suficiente para me desmontar permanentemente. Tento um longo gancho de esquerda que provoca uma viva reprimenda. por parte de DeeDee: "Que é que você está fazendo? Pare com isso agora mesmo, Louie, não estou sacando o que você está fazendo." No mesmo insta.nte, recebo um direito de ferro em pleno rosto, que me faz pensar sobre meu erro. A luta acelera-se e, no entanto, esses três minutos pa- recem intermináveis. Tenho a impressão de que minhas luvas são muito pesadas, muito volumosas, ebs me atrapalham. Não consigo enxergar direito atrás do capacete e não atino com os movimentos do meu adversário. Estou sempre um segundo ou dois atrasado: nem bem consigo perceber que meu adversário manda um jabe e o golpe já me atingiu na cuca.. Como descrever Corpo e alma - 95 o que sinto, quando o punho de Butch vem direto sobre mim? Vejo um disco amarelo que rapidamente aumenta de tamanho, de maneira vertiginosa, borrando inteiramente minha visão e hum! Piados, algumas estrelas e a tela clareia de novo. O disco amarelo retira-se, volta a claridade. Mas antes mesmo que eu possa esboçar a menor reação, o disco voador volta subitamente para se espatifar de novo no meu rosto. Levo uma bela desenferrujada. Butch toca-me a cada golpe - felizmente sem bater forte, senão há muito tempo eu já estaria a nocaute. Tenho a impressão de que estou sangrando e enxugo as narinas com os punhos: há traços de sangue na minha luva, mas ele está seco, portanto, não é meu (ufa!). Esforço-me para me aproximar de Butch e dar-lhe um gancho. Mas é impossível encontrar um lugar para bater: em toda parte, só há luvas ama- relas e os braços de músculos rígidos. Ele, em contrapartida, bate em mim do jeito que quer. Separo-me e avanço com temerida- de, e tanto pior para os jabes na cara: é preciso que eu também lhe meta pelo menos um jabe. Consigo encadear alguns jabes e, de repente, divina surpresa, acerto uns mil de direita em pleno rosto dele. Instintivamente, tento dizer a Butch, em voz alta: "Sorry!" - mas isso é impossível com o protetor bucal. Decidida- mente, não tenho a mentalidade do boxeador! Sinto-me vaga- mente culpado de tê-lo acertado em pleno rosto, pois não tinha a menor intenção de machucá-lo. Mas, sobretudo, temo as re- presálias. De fato, elas vêm depressa e caem por toda parte. Butch roda à minha volta como uma ave de rapina e logo me acerta. Sinto meus punhos partirem um pouco para todo lado, enquan- to ele me semeia de jabes curtinhos. Bruscamente, sinto uma irreprimível vontade de fugir e chego a fazer meia-volta com- pleta, dando as costas para o meu parceiro, para proteger-me dos golpes que chovem. "Time out!" A voz da liberdade! Nem bem DeeDee ululara o fim do round e eu já escorregava entre as cordas sem me dar conta de nada: estou va-zi-o! Pulo do ringue para me lançar aos braços de Eddie, que ri sem parar. "Você ainda está vivo? Sobreviveu? Quantos rounds?" "Dois. É a primeira vez que luto com sparring'. "Tá brincando. A primeira vez? Agora você é um big boxer." Ele gargareja de prazer, en- quanto retira minhas luvas e ajuda-me a desenrolar as bandagens das mãos, que estão quentes e úmidas. É superestafante. Não consigo entender de fato como os profissionais fazem para agüen- 96 - Lok Wocquant tar dez ou doze rounds, e ainda mais mandando ver suas porra- das. Butch desce do ringue, e eu bato em suas luvas, em sinal de agradecimento. Olivier diz-me que estou com o rosto completa- mente vermelho. Sinto minhas arcadas e meu nariz queimarem, mas fico agradavelmente surpreso de constatar no espelho que não estou com o rosto tão inchado como imaginara. Resfolego, pingando de suor, até o escritório de DeeDee, que está jubiloso por trás de sua barbicha. "Está bom, Louie, agora vá pular um pouco de corda." [ ... ] Fecho a sessão com três séries de corda e duzentas abdominais. Olivier e eu vamos falar de nossa satisfação a DeeDee. "Vocês se viraram bem. Vocês vão se recuperar." "Eu espero!":t: bem mais cansativo do que trabalhar sem parar no saco de areia ou na frente do espelho. Cumprimentamos todo mundo com um grande ce- rimonial antes de agradecer mais uma vez a Butch, que está tro- cando de roupa no pequeno vestiário. Apertos de mão caloro- sos. "Sou eu quem agradece, cara, foi uma boa estréia. Vocês vão aprender, aprender a bater, aprender a se tornar espertos: é tudo uma questão de aprendizagem." Lógica social do sparring Se o boxeador típico passa a maior parte do seu tempo fora do ringue, a se exercitar incansavelmente diante de um espelho e nos sacos de areia para aprimorar sua técnica, ampliar a potência e agudizar a coordenação e a velocidade de execução, e mesmo fora da academia, percorrendo quilômetros de roadwork que mantêm sua resistência, a marca e a medida de todo treinamento é o exercício com sparring. O exercício de ((assalto" - fala-se tam- bém em "calçar as luvas" ou de "atuar" - esforça-se por reprodu- zir as condições do combate, embora, nessas condições, usem-se um capacete e luvas acolchoadas, e, como iremos ver, a brutalida- de do confronto seja fortemente atenuada. Sem prática regular no ringue, em situação, o resto da preparação não teria de fato muito sentido, porque a mistura de qualidades que o combate exige só pode ser avaliada entre as cordas. Muitos boxeadores que "parecem valer um milhão de dólares no chão", nos exercícios de solo, revelam-se bem menos brilhantes, quando confrontados com um adversário. Como explica DeeDee, "treinar nos aparelhos é Corpo e alma - 97 uma coisa - correr, bater no saco de areia, o shadow-boxing, tudo isso é uma coisa, e o sparringé outra coisa cem por cento diferen- te. Porque você utiliza seus músculos de maneira diferente, en- tão, é preciso fazer o treino com sparring para se colocar em forma para o sparring. Eêê, a menos que você seja um diabo de boxea- dor, que seja relax ... [ ... 1 É preciso que você fique relaxado, coo/, a respiração fica diferente, tudo é diferente. Está tudo aí. Isso vem com a experiênóa." "Será que podemos dizer a um pugilista como ele deve ficar relaxado e como respirar nos exercícios de solo?" "Hell no! Não. Uhuh, você não pode dizer a ele. Pode até dizer o que você quiser, mas não funciona." O sparring, que tem seu próprio tempo (exceto quando está chegando a hora de uma luta, só se "joga" com sparringem inter- valos amplos, para minimizar a usura do corpo),I2"1 é simultane- amente uma recompensa e uma prova. É, antes de mais nada, a recompensa por uma semana de duro e obscuro labor - é no sá- bado que a maioria dos boxistas amadores do Woodlawn Boys Club confronta-se nas cordas. Os treinadores da academia são vigilantes quanto à condição de seus pupilos e não hesitam em banir dos assaltos aqueles que desdenham a preparação: "Little Anthony, hoje ele não vai calçar as luvas, DeeDee", urra Eddie, numa tarde de agosto. "Ele não faz a corrida, ele não tem com- bustível lhe got no gas]. não tem energia, é uma sujeira deixar ele subir [no ringuel. Seria uma vergonha." O sparringé, em segundo lugar, um teste de força, de coragem e de malícia perpetuamente renovado e sem pre temível, nem que (29) Aí, mais uma vez, é preciso observar as variações marcantes segundo a aca- demia e os indivíduos: alguns pugilistas preferem "jogar" regularmente, mesmo quando eles não têm lutas em vista, seja para estarem prontos quan- do se apresentar uma ocasião de última hora, seja porque eles gostam par- ticularmente do combate. Outros clubes de Chicago, mantidos por treina- dores menos meticulosos (ou menos competentes), concedem mais liberdade a seus membros. O gym municipal de Fuller Park, por exemplo, é notório por sua liberalidade no assunto: segundo vários boxeadores que treinaram lá antes de vir para o Woodlawn Boys Club e de acordo com as observações que lá fiz, as sessões de sp<lrring em que parceiros de nível muito desigual lutam com violência, sem qualquer freio, talvez sem super- visão, eram moeda corrente. 98 - lok Wacquant Curtis dispara um jabe raivoso em Ashante. seja porque não pode ser descartada a eventualidade de uma con- tusão séria, apesar de todas as precauções tomadas. Dois boxea- dores tiveram os narizes quebrados enquanto "jogavam" sparring durante o ano que se seguiu à minha entrada no clube. Em julho de 1989, duas sessões particularmente rudes com três dias de in- tervalo - uma com Smithie, um peso meio-pesado que me tirou sangue do rosto (com o horror culpado de DeeDee, que se ausen- tou por um momento para ir buscar uma sopa no Daley's), e ou- tra com Anthony "Ice" Ivory, um peso médio de jabe seco e ner- voso que eu não conseguia evitar -, valeram-me experimentar a mesma sorte. Alguns pugilistas tornam-se "punchy" (quer dizer, desenvolvem a síndrome do "boxista abobado"), não por causa das punições sofridas durante os combates oficiais, mas sob o efeito cumulativo dos golpes absorvidos na academia durante os trei- nos com sparring. Os cortes no rosto são raros, porque usa-se um capacete protetor previsto para esse efeito (e não para amortecer a força dos choques), mas os olhos roxos, as bochechas tumefactas, os lábios inchados, os sangramentos de nariz, as mãos e as costas contundidas são o prêmio comum daqueles que calçam com fre- qüência as luvas. Sem falar no fato de que, cada vez que sobe no ringue, mesmo que seja para se "desenferrujar" [to shake out] com um iniciante, todo boxeador põe em jogo lima parte de seu capi- tal simbólico: a menor das falhas, como um knock-down ali um desempenho medíocre, provoca um embaraço imediato, para ele Corpo e alma - 99 mesmo e para seus companheiros de acadelnia, que se apressarão a colaborar COln ele no corrective face-work necessário para resta- belecer a hierarquia abalada do gym. 54 Para fazer isso, os pugilis- tas dispõem de uma ampla gama de desculpas socialmente váli- das, que vão desde problemas de doença ("Estou com uma gripe, man, ela está me derrubando") até contusões imaginárias (uma falange quebrada, uma omoplata luxada), passando pelo álibi mais comumente alegado, particularmente pelos treinadores, uma vio- lação da sacrossanta regra da abstinência sexual durante a fase de preparação próxima a um combate. 55 Embora ele ocupe, em termos quantitativos, somente Ulna parte mínima do tempo do pugilista, o sparring merece ser exa- minado, porque ele demonstra o caráter altamente codificado da violência pugilística. Mas, além disso, como se situa a meio cami- nho entre o exercício "individual" e o combate, ele permite que se veja melhor, como através de uma lente de aumento, a sutil mistura, em aparência contraditória, de instinto e de racionalidade, de emoção e de cálculo, de abandono individual e de controle coletivo, que é a pedra de toque do trabalho de fabricação do pu- gilista e que marca o conjunto dos exercícios de treinamento, até o mais anódino deles. 1. A ESCOLHA DO PARCEIRO Tudo, no sparring, começa com a escolha do parceiro, que, sendo crucial, deve receber necessariamente o aval de DeeDee. O emparelhamento de opostos deve, de fato, ser ajustado para que os dois boxeadores aproveitem igualmente o exercício e para que haja poucos riscos de contusão. Considerações de honra refor- çam essas razões técnicas: idealmente, não se faz sparringcom um adversário muito mais forte do que você, sob a pena de ter de se administrar uma "bela cagada" [a good ass-whuppin'], nem com um muito fraco, para poder treinar a defesa. As flutuações do efetivo, aS divergências de horários e de calendário de competi- ção, no entanto, fazem com que nem sempre se tenha a sorte de encontrar um parceiro regular que convenha ao triplo plano da técnica, da força e do estilo. É necessário, por conseguinte, esfor- çar-se para manter as boas relações, no gym, com o seu ou os seus parceiros, administrar as suscetibilidades dele, respeitando um 100 - LoTe Wacquant [ certo equilíbrio na luta (um pugilista que se deixa surrar muitas vezes diante de seus pares irá se recusar a continuar boxeando com quem lhe impõe tal humilhação), e estar pronto para "de- volver" uma sessão de sparring àquele que o ajudou em alguma ocasião. Em resumo, o parceiro de sparring faz parte do capital social específico do pugilista. Por isso, pedir que um boxista "cal- ce as luvas" com você é sempre delicado: é interferir na rede de obrigações recíprocas que ligam você a seus parceiros presentes e passados; é melhor não fazer isso, quando se acha que a resposta será negativa. Na falta de parceiros adequados, cai-se na pior das possibili- dades, isto é, lutar COln boxistas de lnenor valor ou com iniciantes. No entanto, deve-se sempre manter um equilíbrio relativo, sob a pena de haver desvantagem deliberada para um dos protagonis- tas. No caso de um emparelhamento muito assimétrico, o pugi- lista mais aguerrido põe-se tacitamente a aparar os golpes e a tra- balhar seu jogo de pernas e suas esquivas, enquanto o mais fraco concentra-se no ataque e nos SOCOS.(311) Quando um dos dois é um noviço, é essencial escolher um "iniciador" que controle per- feitamente seus golpes e suas emoções. Se DeeDee esperou cerca de oito semanas antes de me deixar subir para combater no rin- gue, foi não apenas porque era preciso que eu adquirisse os rudi- mentos técnicos, mas sobretudo para encontrar um parceiro ide- al para mim: "Precisa que seja alguém que se controle. Não quero que qualquer um faça de sparring pra você e te arrebente em no- caute, Louie. Precisa que ele saiba se controlar". Alguns boxeado- res têm um estilo ou uma mentalidade que tornam difícil o "jogo" com eles, porque não sabem se adaptar a seu parceiro. Como eu conversasse sobre tática com Curtis, DeeDee pensou que eu queria treinar sparring com ele. Ele chamou-me do chão (30) Se um dos boxeadores, muito superior em peso ou em técnica, se esquece de se controlar e impõe um castigo ao parceiro de spclrring. é certo que ele será repreendido com veemência por DeeDee. O peso meio-pesado Smithie foi assim vigorosamente admoestado por ter continuado a lutar comigo depois de ter aberto o meu nariz e me coberto de sangue durante uma sessão especialmente dura (ainda mais porque ele já havia posto meu ami- go Olivier em nocaute, na semana anterior). Corpo e olmo - 101 '.- -: .... ~ \ ~ • n r : ~ com insistência e advertiu-me: "Nada de sparring com Curtis, entendeu bem, Louie? Nem que seja para se divertir no ringue! [ ... ]" "Por quê?" "[Aborrecido com a minha ignorância fingida: já era a centésima vez que ele me lembrava dessa proibição.] "Porque ele não tem um milímetro de juízo no ringue, é por isso. Ele não tem bom senso, e você sabe disso muito bem, Louie. Ele te poria a nocaute logo, logo." [Nota de 6 de março de 1989·1 Sentados na sala dos fundos, observamos Mark, que trabalha no saco de bater. Ele fez progressos incríveis, e seus gestos são tec- nicamente muito bons; suas seqüências funcionam, ele tem o jeito de um verdadeiro profissional. Pergunto se posso "jogar" com ele. DeeDee responde com uma negativa: "Ele bate muito seco. Ele é muito potente. Olha pro corpo dele, pras pernas. Ele só tem 57 quilos, mas não tem pernas, olha só como elas são finas. É por isso que ele é leve, mesmo com esse tamanho de tórax que tem. Ele é mais potente que todos os outros caras des- se gym. Potente de verdade." [Nola de 17 de abril de 1989·1 2. UMA VIOLÊNCIA CONTROLADA Assim como não é com qualquer um que faz sparring, tam- bém não se faz sparringde qualquer modo. A violência das trocas entre as cordas depende, de um lado, da relação de forças entre os parceiros (e ela é tão mais limitada quanto mais desigual for) e, de outro, dos objetivos perseguidos durante a sessão de sparring considerada, isto é, principalmente pela sua posiçãO na bolsa de treinamento e de competições. Quando se aproximam os encon- tros, as sessões tornam-se mais freqüentes e mais longas (até oito ou dez raunds cotidianos durante a última semana, antes do des- canso dos três últimos dias, para não "gastar a luta na academia"), o engajamento nelas é mais intenso, e os noviços são lnomenta- neamente mantidos afastados do ringue. Na véspera de uma luta importante, o sparring pode se tornar mais brutal que o próprio encontro. Quando estava se preparando para seu combate contra Gerry Cooney, o campeão do mundo de peso pesado, Larry Holmes ofereceu um prêmio de dez mil dólares para aquele dos seus parceiros de sparring que conseguisse fazer com que ele to- casse o joelho na lona, como forma de estimulá-los a bater sem escrúpulos." No entanto, como em todo campo de treinamento 102 - Lo'ic Wacquant 1 bem dirigido, esses parceiros foram devidamente selecionados, de modo a dar uma clara vantagem a Holmes em suas trocas, para preservar suas forças e reforçar sua confiança em si mesmo. Durante Ulna mesma sessão com sparring, o nível de violência flutua de maneira cíclica, segundo uma dialética do desafio e da resposta, entre limites variáveis balizados pelo sentido de eqüida- de que funda o acordo original entre os dois boxeadores - que não é nem uma norma nem um contrato, mas sim o que Goffman chama de um "warking consensus".57 Se um dos dois acelera a ca- dência e "afrouxa" seus golpes, o outro responde "instintivamen- te" endurecendo de imediato sua réplica; segue-se um brusco so- bressalto de violência que pode subir até o ponto em que os par- ceiros bateln mn no outro sem parar, antes de se separarem e retomareln, de comum acordo (muitas vezes, lnarcado por um sinal de cabeça ou um tapa nos punhos), seu diálogo pugilístico em um grau lnais baixo.(3!) A tarefa do técnico consiste em ouvir essa "conversa a golpes de punho", de modo a garantir que o com- batente menos aguerrido não seja brutalmente reduzido ao silên- cio, quando então ele dará ordens ao oponente para diminuir a pressão ("Você gira e dá um jabe, Ashante, já disse pra você não 'carregar' nos golpes! E você, Louie, mantenha essa mão esquerda pra cima, caramba!"), ou que os dois parceiros não deixem a in- tensidade da troca de golpes diminuir muito em relação à da luta, sem o que o exercício perderia seu objetivo próprio ("Que é que vocês estão fazendo aí em cima, os dois, estão transando ou o quê? Vamos, trabalhem seus diretos, quero ver belas direitas na saída dos golpes"). Volto para a arena e pergunto a DeeDee, que está terminando de tomar uma sopa pré-cozida de massa num pote plástico. con- fortavelmente sentado em sua poltrona: "DeeDee, sábado, se eu pudesse, gostaria muito de calçar as luvas. Talvez eu possa jogar com Ashante?" "Não sei, não, Louie, não sei, porque os meninos (31) Aqui seria necessário analisar, em uma perspectiva inspirada em Goffman, os "ritos de interação" específicos do spi:lrring, que servem para reafirmar periodicamente o caráter comedido e lúdico da violência que de põe em cena, para solenizar o respeito mútuo dos combatentes e para traçar os limites flutuantes de seus embates. Corpo e alma - 103 estão se preparando pra reunião da semana que vem, então eles não precisam se divertir agora: eles precisam lutar, e duro". E bate com a mão esquerda espalmada sobre o pulso direito. [Nota de 1" de dezembro de 1988. J De pé, no escritório, DeeDee, Eddie e eu olhamos Hutchinson- a-torre-de-controle (mais de 2,10 metros e 150 quilos. categoria superpeso pesado), que está fazendo sparringcom Butch. Este é um belo espécime, mas parece uma libélula superexcitada quando comparado com o corpo plácido e inatingível do gigante. Hutchinson desloca-se lentamente e mantém a guarda alta, com os punhos colocados diante dele, longe do corpo. Butch faz um esforço tremendo para atingi-lo, de tanto que o outro se distan- cia. Pensamos que ele pode vir a se chocar com o adversário. DeeDee preveniu Hutchinson para controlar seus golpes, por causa da diferença de tamanho e de peso em relação ao parceiro do momento. "Disse pra ele não bater forte. Se ele bater, sou eu que vou sair daqui e moer ele de pancada com o taco de beise- bol. Ele é grande demais. Cuidado com ele!" Isso tudo é dito com um tom vivo e vigilante. Ao final dos três rounds, Butch sai bastante castigado (e, no entanto, parece que o outro mal tocou nele): seus lábios estão tumefactos, o rosto, vermelho. e ele está sem fôlego. Mas sequer uma palavra de queixa. [Nota de 11 de novembro de 1988.J o princípio de reciprocidade, que rege de maneira tácita o ajus- te da violência no ringue, reza que o mais forte não deve tirar vantagem de sua superioridade, mas também que o mais fraco não deve se aproveitar indevidamente da contenção voluntária de seu parceiro, como descobri durante uma vigorosa sessão de sparringcom Ashante. No dia 29 de junho de 1989, fiquei surpre- so ao saber que este último tinha se queixado a DeeDee de que eu batia muito e que ele era obrigado a replicar, metendo-me bons socos na cara: "Ele me disse que não pode mais jogar com você, que você bate muito forte. Agora você já fez muitos progressos, é preciso que ele tenha cuidado pra não deixar que você toque nele, senão você pode derrubar ele. Se você bater no lugar certo, pode botar ele na lona. Ele estava fazendo queixa que você não recua e não pára de bater quando ele está nas cordas, você continua a bater pesado. Você pegou ele [nailed him] com uma direita, se 104 - LoIc Wocquont \ ..... você tivesse disparado logo outra direita, ele teria ido à lona. Vê só, quando você cOlneçou, ele podia jogar com você sem risco, mas agora você ficou brigão [tough], ele precisa tomar cuidado." Fiquei de tal modo surpreso que fiz ele confirmar que era meSmo a meu respeito que Ashante estava falando. "Ééé, ele quer que eu diga pra você segurar os golpes, porque você pode machucar ele [hurt him] agora. [ ... ] Agora você sabe bater. É por isso que ele é obrigado a te dar uma pancada de vez em quando. Não que ele queira te machucar, mas ele precisa mostrar que não está brin- cando lhe mean businessJ, e ele precisa devolver os golpes pra que você se controle um pouco mais.» O treinador evidentemente desempenha um papel importan- te na regulamentação dessa violência mútua consentida. Se os pu- gilistas de Woodlawn controlam com tanta atenção os seus gol- pes, é porque DeeDee incisivamente não tolera ((pancadaria» em sua arte. Mas também cada fase do sparring exige um nível apro- priado de intensidade além do qual é inútil (e perigoso) ir e abai- xo do qual é melhor não ficar, sob pena de o exercício perder todos os seus benefícios. Esse nível ótimo não pode ser determi- nado antes de se subir ao ringue; ele varia de acordo com os par- ceiros e as circunstâncias (cansaço, motivação, proximidade de uma luta etc.). Cabe aos pugilistas fixá-lo ao término de uma es- pécie de pesquisa de tentativas de acertos e erros - tanto no senti- do próprio como no figurado -, que é realizada em comum, com a ajuda de DeeDee. Sempre atento ao que se passa no ringue, o treinador logo adverte asperamente o pugilista que se permite o uso imoderado do soco ou exorta o outro boxeador a ser mais agressivo. Ele não hesita diante da necessidade de mandar que o parceiro de um boxista indolente passe para uma velocidade su- perior, como quando ele grita, de sua poltrona, para Little John, que luta com Curtis: "John, pelo amor de Deus, faz com que ele mantenha a esquerda no ar quando ele 'jabei", meta uma bela direita nele [stick him with a good right] , porque ele não quer boxear e está mantendo os punhos nos joelhos. Ah! Se eu pudesse subir no ringue ... " Assim, aquilo que, aos olhos do neófito, tem todas as chances de passar por uma orgia selvagem de brutalidade gratuita e sem limite, é, de fato, um plano regular e minuciosamente codificado Corpo e almo - 105 de trocas que, por serem violentas, nem por isso deixam de ser constantemente controladas, e cuja realização supõe uma cola- boração prática e constante entre os dois oponentes, na constru- ção e na manutenção de um equilíbrio conflituoso dinâmico. Os boxeadores devidamente formados deleitam-se com o duelo in- cessantemente renovado que é o sparring, mas eles sabem que esse confronto é, a cada momento, limitado por "cláusulas não- contratuais" e que ele se distingue claramente do combate, mes- mo que dele se aproxime pelo fato de envolver sempre um ele- mento de "cooperação antagônica"" explicitamente banido de uma luta. Curtis exprime do seguinte modo essa distinção: Não tem nada que eu não goste [no sparring]. Gosto de todos os aspectos, porque ao mesmo tempo você está aprendendo. No gym, você não está lá treinando pra ganhar uma luta, você está lá pra aprender. Tudo é aprendizado. Você repete o que você quer fazer depois, durante o combate seguinte, sacou? [ ... ] não posso "derrubar" meu adversário ... [corrigindo-se} quer dizer, meus parceiros de sparring. Eles estão ali pra me ajudar, a mim, como eu estou lá pra ajudar a eles. Eles não vão subir no ringue pra tentar me machucar.l ... ] Bom, mas mesmo assim, devez em quan- do, você tem o seu golpinho pra esquentar [your little f1ashy stuJfl, em que ele vai bater duro, você vai aparar com um belo golpe, e você vai tentar responder e pagar com a mesma moeda ... Vários pugilistas exigem uma longa fase de ajustamento, antes de se dobrar ante essas normas tácitas de cooperação que pare- cem violar o princípio e o ethos públicos da competição desenfrea- da. Como no caso do ciclismo,5" essa "ordem cooperativa infor- mal" é particularmente problemática para os noviços, que, con- fundindo a fachada com o edifício, são incapazes de "dosar" sua agressividade e permanecem persuadidos de que devem bater com toda força para demonstrar seu valor, como fica indicado por DeeDee, nesta nota do dia 23 de novembro de 1989: "Esse nova- to, ele acha que pode desancar todo mundo: 'Vou dar uma surra nesse cara aí, vou dar um chute na bunda dele, espera só eu subir no ringue!', e ele quer o tempo todo brigar com qualquer um. Vamos.ter problemas com ele. Não sei o que faço, porque não podemos deixar ele jogar sparringcom esse tipo de atitude." Seria 106 - Lo"ic Wacquant I . ..L preciso ensinar-lhe in actu COlTIO "ler" as indicações discretas pe- las quais seu parceiro lhe é prescrito, fosse para ele recuar e pisar no freio, fosse, ao contrário, para aumentar a pressão e fazê-lo trabalhar mais. 3. UM TRABALHO DE PERCEPÇÃO, DE EMOÇÃO E FislCO Figura híbrida entre o treinamento - que ele prolonga e acele- ra - e a luta - da qual ele é o prelúdio e o esboço -, o sparring termina por operar uma reeducação completa do corpo e do es- pírito, durante a qual se coloca progressivamente em operação o que Michel Foucault chama de uma "estrutura plurissensorial"()() totalmente específica, que só pode se articular e se determinar em ação. A experiência no ringue multiplica a capacidade de percep- ção e de concentração, a força de estrangular as emoções, e que molda e endurece o corpo, em vista dos choques da competição. Em primeiro lugar, o sparring é uma educação dos sentidos e, sobretudo, das faculdades visuais; o estado de urgência perma- nente que o define suscita uma reorganização progressiva dos hábitos e das capacidades perceptivas. Para perceber isso, basta acompanhar a transformação que se opera na estrutura e na extensão do campo visual à medida que se progride no gradus do sparring. Durante todas as primeiras ses- sões, minha visão ficou parcialmente obstruída por minhas pró- prias luvas, saturada pelos sinais que afluíam de todas as partes, sem ordem nem significação. Os conselhos que DeeDee gritava- me e a sensação de estar aprisionado dentro da co quilha proteto- ra e do capacete, sem falar da angústia surda, mas onipresente, diante da perspectiva de levar socos, contribuíam para exacerbar essa impressão de confusão. Experimentei, então, a maior difi- culdade para fixar meu olhar sobre o meu adversário e para ver seus punhos vindo em minha direção, assim como ignorava os indícios que supostamente poderiam me ajudar a antecipar os seus golpes. Ao longo das sessões, meu campo visual clareou, ampliou-se e reorganizou-se: consegui bloquear as solicitações externas e discernir melhor as evoluções de quem estava diante de mim, como se minhas faculdades visuais aumentassem à pro- porção que meu corpo se moldava no sparring. E, sobretudo, ad- quiri pouco a pouco o "golpe de vista" específico que me permite Corpo e olma - 107 adivinhar os ataques de meu adversário, lendo os primeiros sinais em seus olhos, na direção de seus Olnbros ou nos movimentos de suas mãos e de seus cotovelos. SESSÃO DE SPARRING COM ASHANTE No dia 3 de junho de 1989, aqueci-me fazendo alguns movi- mentos na frente do espelho. Meu corpo estava fantasiado de boxeador, e já não tinha, como antes, a sensação de estar aprisi- onado em um equipamento que me atrapalhava. Escalei os de- graus e passei entre as cordas ... Agora, o sparringtornara-se uma rotina. Salto no mesmo lugar, na frente de Ashante. Ele está ves- tido com uma bermuda colante preta e verde, uma malha negra de lutador e com seu capacete pessoal amarelo-cheguei. Está brilhante de suor depois dos quatro rounds que acaba de lutar com Rodney. [ ... ] Tínhamos alguns segundos para TIOS obser- varmos mutuamente e fiquei surpreso comigo mesmo, quando me peguei perguntando o que estava fazendo nesse ringue dian- te desse carinha rechonchudo e tinhoso, que talvez se torne cam- peão de peso meio-médio de Illinois no fim do mês! "Time!" Ao trabalho! Nossas luvas tocam-se. Avanço sobre ele de imediato e mando-lhe jabes rápidos, que ele desvia. Ele me pára, dizendo: "Se você vai me caçar, mantenha as mãos altas ou eu vou mandar você pra lona [deck you]". Obrigado pelo conse- lho, o qual eu sigo, levantando minha guarda. Retomo minha marcha avante. Estou bem determinado a bater mais forte do que de hábito, correndo o risco de que Ashante também bata mais forte. É exatamente isso que acontece. Observamos um ao outro. Tento encontrar a distância. Alguns jabes e algumas di- reitas bloqueados de parte a parte. Toco o corpo dele com um jabe, antes que ele caia em cima de mim com uma combinação de esquerda-direita-gancho de esquerda. Rum! Na cara! Ele re- cua e contra-ataca em seguida. Em vez de me inclinar, espero-o com o pé firme, tentando aparar seus golpes. Ele dispara um direto de esquerda em plena boca. Penduro-me nele e surpreen- do-o graças ao meu bote favorito: finta de jabe e largo cruzado de direita no rosto, quando ele de desloca para a sua esquerda, para se esquivar. Pum! Meu punho bate nele bem no rosto! Ele me faz "ok" com a cabeça. Está surpreso, porque boxeio tão ar- dorosamente, e acelera a cadência. Avança sobre mim, com a boca deformada pelo mouthpiece, os olhos exorbitando de con- 108 - Lo"ic Wacquant centração. Recuo e disparo jabes para tentar me proteger. Ele simula um direto de esquerda e manda-me uma direita seca em pleno flanco: sinto o golpe e bato em retirada. (Sorrimos por um instante pensando no que ele tinha feito às minhas costelas na semana anterior). Cerco-o até um canto, jabe, direita, jabe, e surpreendo-o com um belo uppercut de direita, quando ele se abaixa para evitar o jabe. No entanto, ele bloqueia com muita eficiência a maior parte dos meus golpes: eu vejo a abertura muito bem, mas até que meu punho chegue, ele já fechou a passagem ou já se deslocou com uma rotação do tronco. (Pode-se dizer que é quase um balé, de tanto que Ashante antecipa bem onde meus punhos vão chegar.) Ele passa bruscamente para uma ve- locidade maior e trabalha a minha cabeça com curtos diretos que eu nem consigo ver chegar. O lado esquerdo de meu queixo pica-me corno abelhas. Sinto um pouco o golpe e decido (na verdade, não decido nada, é urna fórmula! Tudo acontece muito rapidamente, reage-se instintivamente, eu realizo, é só) avançar sobre ele, mas ele logo me pára com vários jabes no corpo. "Time ou!!", ressoa a voz de DeeDee. Separamo-nos, vou para o meu canto e recupero o fôlego. Não estou muito cansado, mas esse é só o primeiro round. Big Earl aconselha-me: "Mantenha ele a distância com jabes: jabe, jabe, não deixa ele cair sobre a sua guarda. Como [Sugar Ray] Leonard. Você quer água?" Ele sobe na mesa, dirige o caninho da água para minha boca e solta uma esguichada de água morna que eu engulo (o que um verdadeiro boxeador nunca faz). Vamos, re- começar. "Time i n ~ " Segundo round, os dois atacamos logo de cara, sem nem ao menos tocar as luvas: em um sinal amistoso. Ashante boxeia mais rapidamente. Batalho para seguir sua cadência, mas reajo melhor e protejo-me com mais eficácia do que da outra vez. Ele começa a bater de verdade: três ganchos nos flancos que passam pela minha guarda corno se ela fosse manteiga e cortam minha respiração. Tchouff! Esse pegou mal. Eu contra-ataco com alguns jabes, mas ele evita-os, deslocando a cabeça exatamente o necessário para que meu punho não a atinja. Ele paralisa-me diversas vezes e me enche de ganchos precisos e pesados. Chego a perder o prumo em alguns de seus ataques e fico totalmente desguarnecido. Felizmente, ele poupa-me e interrompe a chuva de golpes, contentando-se em mostrar-me que eu estou com a Corpo e alma - 109 guarda completamente aberta. Então lanço-me em um ataque malsucedido, porque já não estou controlando bem minha co- ordenação. Ashante recebe-me com uma combinação de direi- ta-esquerda-direita em pleno rosto que me deixa o nariz roxo; sinto meu lábio inferior inchar. Respondo de imediato, mas o máximo que consigo é roçar em seu corpo com uma direita se- guida por um gancho em pleno rosto. Ele tenta sempre suas es- quivas para baixo, e eu pego-o com dois ganchos no capacete. Vau! Isso faz com que ele reaja imediatamente. Ele persegue-me no ringue, andando em minha direção bem de frente para mos- trar que vai bater e que está achando graça da minha defesa. E faz uma finta com os dois punhos, um de cada vez, até que eu fique desguarnecido e bum! Um amplo gancho de esquerda faz minha cabeça sacudir para trás. Sinto o golpe e faço para ele um sinal de "ok, tudo bem". Estamos os dois face a face, um tanto surpresos com tamanha raiva. Jabes meus bloqueados pelos seus punhos contra jabes dele bloqueados por meu nariz. Estou ven- do melhor quando os golpes vêm, mas não consigo me mexer rapidamente o bastante. Mais uma vez, ele me atinge no rosto com uma direita que desloca meu capacete. DeeDee grita: "Mexe a cabeça, Louie!" Ela começa a esquentar de um modo ruim. Ashante metralha meu tronco, antes de cortar meu fôlego com um malvado uppercul de direita no peito (em algum momento, eu irei me lembrar disso). Eu ainda o agarro. Ele enche-me de golpes dados de perto, nas costelas e até nas costas, como se esti- véssemos em um combate de verdade (acho que é a primeira vez que ele faz isso). "Time out!" Mais uma vez, apertamos os punhos, para reafirmar o caráter controlado da troca. "Está bem, Louie, você está se virando le- gal, está batendo duro hoje, continue assim." "Éééé, o único pro- blema é saber se vou conseguir agüentar mais um outro round com esse ritmo". Estou cansado demais pelos golpes e pela ca- dência, que é muito rápida para mim. A duras penas, recobro o fôlego, apoiando-me às cordas. "Time in! Work!" No terceiro round, tudo acontece tão rápido, e não 'são poucos os golpes que recebo. [ ... ] O nível de violência aumenta pouco a pouco, mas de modo recíproco e gradual - isto é, perto do final, quando simplesmente não tenho mais for- ças ao menos para manter minha guarda e para responder, nem que seja minimamente, aos golpes, ele finge que está boxeando, 110- Lo'ic Wacquant mas só me toca superficialmente, ao passo que se ele continuas- se a boxear tão forte como no começo do round, teria me man- dado à lona. Ainda agarro-me a ele, mas já não tenho forças para responder. Meu santo, isso deveria ter acabado! Como demora! Não paro de dizer para mim mesmo "Time out! Time out!" Va- mos, DeeDee! Mas, puta merda, ainda não, ele nos esqueceu ou o quê? Já devem ter se passado uns bons cinco minutos! "Time out!" Ufa! Ashante cai em cima de mim e me aperta em seus braços, dando tapinhas na minha nuca com suas luvas. Uau! Como é bom tro- car socos entre colegas! Ele ri e está com uma cara feliz. "Como é que você está, como está se sentindo?" Vou tirar meus apetre- chos no escritório. Pela primeira vez, DeeDee cumprimenta-me: "Você melhorou, hoje você estava com tudo, Louie. Mas precisa que você se esquive quando ele lança a direita. Ou você bloqueia ela ou mexe mais com a cabeça. Você ainda está apanhando muito". Ele não deixa que eu me sente sobre a mesa. Minha res- piração acalma-se progressivamente. [ ... ] Quando volto do ves- tiário, o velho treinador me fala baixinho, lançando um olhar de entendimento para Kitchen: "Mas não vimos teu nariz sangrar. Louie. Será que ele sangrou?" [ ... ] Fiquei de tal modo extenuado com essa sessão de sparring que estou incapacitado para copiar minhas notas, até amanhã. Te- nho o queixo dolorido e todo o meu rosto está sensível (como se ele estivesse tumefacto por dentro), o lábio inferior inchado e uma tremenda mancha roxa sob o olho esquerdo. Mas foram, sobretudo, os golpes no corpo que me exaustaram. Os uppercuts nas costelas me deixaram uma grande marca que insensivelmente passará do vermelho ao preto e ao amarelo em uma dezena de dias. Esta noite, enquanto, moído, estou batendo essas linhas, tenho as mãos inchadas, a testa e a ponta do nariz quentes (como se todo o meu rosto vibrasse como um ventrículo) e algumas contusões no corpo me apunhalam a cada movimento. :t o ofí- cio que pesa. Mas o sparring não é somente exercício físico; ele é também o suporte de uma forma particularmente intensiva de "trabalho emocional",ó[ Como há "poucas falhas no controle de si mesmo [que sejam] tão pronta e severamente punidas quanto uma que- bra de humor durante um combate de boxe",ó2 é vital dominar a Corpo e alma - 111 "Fat" Joe e Smithie trabalhando no ringue. todo instante os impulsos de sua afetividade. Uma vez entre as cordas, é preciso ser capaz de gerenciar suas emoções; saber, de acordo com o momento, contê-las e repriIni-Ias, ou, ao contrá- rio, alimentá-las e ampliá-las; amordaçar certos sentimentos (de cólera, de irritação, de frustração), de modo a resistir aos golpes, às provocações e aos insultos de seu adversário; e "fazer livre ape- lo" a outras (agressividade e raiva, por exemplo), sem por isso perder o controle delas.(32) Quando calçam as luvas no salão, os boxistas aprendeln a se tornar" business-like" no ringue, a canali- zar suas energias mentais e afetivas, de forma a "fazer seu serviço" da maneira lnais eficiente e menos dolorosa possível. Um boxeador deve exercer, em todos os momentos, não ape- nas uma vigilância interior de seus sentimentos, mas também um "controle expressivo" constante sobre sua "sinalização" exterior,63 (32) Pode-se demonstrar que essa "educação emocional» não pára no pugilista; ela engloba o conjunto de agentes especializados do campo (treinadores, empresários, árbitros, juízes, patrocinadores etc.) e chega mesmo a atingir o público. 112 - LoTe Wacquant de modo a não deixar seu adversário ver quando seus golpes par- tem e quais são esses golpes. O legendário gerente-empresário Cus D' Amato, inventor de Mike Tyson, resume o problema da seguinte . maneira: "O boxeador domina suas emoções à medida que é ca- paz de escondê-las e controlá-las. O medo é um trunfo para um combatente. Ele. o faz se mexer mais velozmente, faz ele ficar mais rápido e mais alerta. Os heróis e os medrosos sentem exatamente o mesmo medo. Simplesmente os heróis reagem a ele de um modo diferente."", Essa diferença não tem nada de inata: trata-se de uma capacidade adquirida, coletivamente produzida pela submissão prolongada do corpo à disciplina do sparring. Explicações de Butch. BUlCH: Você tem que se controlar o tempo todo, porque tuas emoções vão gastar todo teu oxigênio, então. precisa ficar calmo [ele sopra 1 e relaxado, mesmo que você saiba que o camarada na tua frente está a ponto de tentar te arrancar a cabeça. Você tem que ficar calmo e relaxado. Assim você tem que enfrentar a si- tuação. LoulI·:: Foi muito duro aprender a controlar as emoções, como não ficar furioso ou não ficar frustrado quando o camarada é difícil de se bater e quando você não consegue nem tocar ele com seus golpes limpos? BUTCH: Foi difícil pra mim. Eu passei anos e anos e anos para pegar a coisa, e exaaatamente quando eu estava chegando no ponto em que eu estava me controlando de verdade, bom, então aí as coisas começaram realmente a rolar para mim. A coisa fun- ciona, bom, eu acho que, quando chega a hora, ela pinta. LOUIE: Foi alguma coisa que DeeDee ensinou pra você? BUTCH: Ele me falava o tempo todo pra ficar calmo, pra ficar relaxado. "Contente-se em respirar devagar." Mas eu achava isso difícil, ficar calmo e relaxado quando [em um tom meio diverti- do J você tem esse carinha no outro canto. e ele está a ponto de tentar te derrubar! Mas com O tempo a coisa acaba por baixar [sink in], e eu compreendi o que ele queria dizer. De fato, a imbricação mútua entre gesto, experiência conscien- te e processo fisiológico - as três componentes da emoção, se- gundo Gerth e Mills _ó5 é tal que a mudança de uma desencadeia Corpo e alma -113 a modificação instantânea das outras duas. Não conseguir domi- nar a experiência sensorial dos golpes que caem sobre você am- puta a capacidade de agir e altera, em contrapartida, o estado cor- poral. De modo recíproco, estar no auge da forma física permite estar mentalmente pronto e, portanto, com um melhor domínio <las emoções desencadeadas pelo fluxo de golpes. Enfim, o aspecto físico do sparringnão deve ser negligenciado sob O pretexto de que ele é dado: não se pode esquecer de que "o boxe consiste mais em receber golpes do que em dá-los. Boxear é sofrer".66 No idioleto pugilístico abundam, aliás, as expressões que designam e glorificam a capacidade de absorver os golpes e de suportar a dor. Ora, além de sua reserva somática de partida, como um "maxilar de aço)) ou essa qualidade reverenciada que eles chamam de "o coração" (que tem um lugar central também na cultura masculina da rua), só há uma forma de se endurecer diante do mal, de habituar o organismo a encaixar os golpes, que é exatamente encaixá-los com regularidade. Porque, contraria- mente a uma idéia amplamente difundida, os boxeadores não têm qualquer especial afeição pela dor e não apreciam as brigas. Um jovem peso meio-médio ítalo-americano do Windy City Gym, que acaba de se tornar profissional, fica indignado quando men- ciono o estereótipo profano do boxeador "sadomasoquista":llll "Nãão, somos humanos, merda! Somos humanos, tá entendendo, SOlllOS como qualquer pessoa, nossos sentimentos são a mesma coisa, a mesma coisa que os teus sentimentos, você que é ... Você pode nos afastar, sei lá [com veemência], mas não somos diferen- tes de você. Estamos no mesmo mundo, somos feitos da mesma carne, do mesmo sangue, do mesmo tudo, sei lá." Contudo, os boxeadores elevaram bastante seu limite de tolerância à dor, sub- metendo-se a ela de maneira medida e rotineira. (33) Encontra-se esse estereótipo em inúmeros trabalhos universitários, como a tese histórica sobre a evolução esportiva, de Allen Gutman, From ritual to recorel: lhe llilture of modem sports,f,7 ou com afinidade universitária, como a enciclopédia de lugares-comuns acadêmicos e jornalísticos, com muitas deformações relativas ao boxe, compiladas em artigos de jornais ç revistas esportivas por André Rauch, Boxe, vioJellce du XXeme siecle - obra que compreende, além do mais, um plágio grosseiro de meu artigo de 1989, que serviu de base para este livroJill 114 - Lo'ic Wacquant Essa aprendizagem da indiferença à dor é inseparável da aqui- sição da forma de sangue-frio própria ao pugilismo. A socializa- ção adequada do pugilista supõe uma habituação aos golpes, cujo inverso é a capacidade de domesticar o primeiro reflexo de autoproteção que produz uma falha na coordenação dos movi- mentos e que dá vantagem ao adversário. Mais do que a força dos golpes do adversário, é essa aquisição progressiva da "resistência à emoção", como diz Mauss,6" da qual é muito difícil saber se vem do registro da vontade ou se é de ordem fisiológica, que toma conta dos noviços durante suas primeiras sessões de sparring. Porque, além da atenção superaguda que o duelo no ringue exige, é preciso combater a todo instante seu primeiro reflexo de do- brar-se, cabe proibir o corpo de desobedecer, voltando-se de frente para o oponente, separando-se, fugindo de seus punhos em um "salve-se quem puder" generalizado. Em 23 de março de 1989, caí sobre Ashante, que estava enfiando as luvas diante da mesa de abdominais. Brincalhão, ele me ati- rou: "Hei, Louie, como é que você está se sentindo? Suas coste- las estão boas? [Referindo-se às minhas costelas, que ele havia esmurrado durante a nossa última sessão de sparring e que me haviam impedido de treinar durante vários dias.]" "Estou indo, você não me quebrou as costelas, só machucou-as [bruisedJ". Ele sorri e aperta minhas mãos afetuosamente entre seus pulsos enluvados. "Eu sabia que eu não tinha quebrado elas. Mas você precisa começar a fazer abdominais seriamente e se pôr em con- dições de lutar. Você precisa fazer abdominais para proteger o corpo. Saca só, eu trabalhei teu corpo porque eu não queria te tocar muito no rosto, porque você (linda não está acostumado a levar muita pancada na cabeça. Foi por isso que eu bati mais no teu corpo. O que acontece é que teu corpo está cansado, porque você também não está acostumado a levar golpes no corpo. Sei muito bem que bati em você muito secamente, mas você precisa ver que também me bateu bastante." Aprender a boxear é modificar insensivelmente seu esquema corporal, sua relação com seu corpo e o uso que dele fazemos habitualmente, de maneira a interiorizar uma série de disposi- ções inseparavelmente mentais e físicas que, ao longo do tempo, fazeln do organislno uma máquina de dar e receber socos, mas Corpo e alma - 115 uma máquina inteligente, criativa e capaz de auto-regular-se, ino- vando-se no interior de um registro fixo e relativamente limitado de movimentos em função do adversário e do momento. A imbricação mútua das disposições corporais e mentais atinge um tal grau que mesmo a vontade, o moral, a determinação, a con- centração e o controle das emoções transmutam-se em reflexos que dão sete vidas ao corpo. No boxeador já formado, o mental torna-se uma parte do físico, e vice-versa; o corpo e a mente fun- cionam eln siInbiose total. É o que exprilne esse comentário or- gulhoso que DeeDee lança para os pugilistas que perguntam se eles não estão "preparados mentalmente" para um combate. De- pois da derrota de Curtis, durante sua primeira luta televisionada e transmitida nacionalmente de Atlantic City, DeeDee fulminou: "Ele não perdeu porque ele não estava 'preparado mentalmente'. 'Preparado mentalmente', isso não quer dizer nada. Se você é um lutador, você está preparado. Eu estava mesmo dizendo a Butch: 'Preparado mentalmente' não é porra nenhuma [that's bullshit]! Você é um lutador, você sobe no ringue e você bate, não tem nada de preparado ou de não preparado. A coisa não é mental. Não tem nada de mental nisso. Se você é um pugilista, você está preparado e bate, é só isso. O resto é merda." É essa estreita imbricação do físico e do mental que permite aos boxeadores experimentados continuar a se defender e even- tualmente se recuperar, depois de ter sofrido o nocaute: nesses Inomentos de semi-inconsciência, seu corpo continua a boxear sozinho até que você retome seuS sentidos, às vezes, minutos mais tarde. "Agarrei meu parceiro e ele levantou a cabeça e me dispa- rouum golpe por baixo no olho esquerdo que me cortou e derru- bou. Então, ele recuou e me lnandou uma direita na cara COln toda força que ele tinha. Ele me atingiu por baixo, pegou firme e me deixou pregado no lugar. SelTI cair e sem ao menos balançar, perdi completamente a consciência, mas continuei a boxear ins- tintivamente até pô-lo a nocaute. Um outro parceiro de sparring subiu no ringue. Boxeamos três rounds. Eu não me lembro de nada do que aconteceu."711 Durante o famoso" Thilla in Manilla", um dos combates mais brutais da história da Nobre Arte, joe Frazer e Mohammad Ali, todos os dois, disputaram a maior parte da luta em um estado que beirava a inconsciência. «Smokin' Joe" 116 - Lo"lc Wacquant contaria, vários anos depois da "clássica" luta entre os grandes rivais da década, como, desde o sexto round "eu não conseguia pensar. Tudo o que eu sei é que o combate estava ali, na minha frente. O calor [perto de 40 graus], a umidade [de verão filipino] ... Nesse combate, eu não conseguia nem mesmo pensar, eu estava ali, tinha um serviço a fazer. Eu só queria fazer o meu serviço".71 Ele continuaria a avançar sobre Ali, embriagado de golpes e cega- do pelos hematomas em volta dos olhos, até que seu treinador, temendo que ele se deixasse matar no ringue, jogou a toalha no décimo quinto e último assalto. Num primeiro momento, boxeadores e treinadores parecem ter um julgamento contraditório sobre o aspecto "mental" de suas atividades. De um lado, eles sustentam que o boxe é um jogo de estratégia, um "thinking man'sgame" que eles comumente com- param ao xadrez. Por outro lado, eles insistem que, entre as cor- das, não se trata de raciocinar. "O ringue não é lugar para ficar pensando: lá, o negócio são os reflexos! Quando chega a hora de pensar, chegou também a hora de pendurar as luvas", é o sermão de DeeDee. E, no entanto, o velho treinador de Woodlawn con- corda totalmente com Ray Arcel, O deão dos treinadores do país, ainda firme nos seus 96 anos, depois de ter produzido dezoito campeões do mundo, quando ele afirma que "no boxe, é o cére- bro que prima sobre o músculo. Não estou nem aí para saber quais são as suas qualidades como lutador. Se você não sabe pen- sar, você não passa de um babaca a mais [just another bum in the park]"J2 A contradição desembaraça-se logo que realizamos que a capacidade que o boxeador tem de cogitar e de raciocinar no ringue tornou-se uma faculdade indivisa de seu organismo - o que john Dewey chamaria de "body-mind complex [complexo corpo-espírito]" .73 A excelência pugilística pode, portanto, ser definida pelo fato de que o corpo do boxeador pensa e calcula por ele, imediata- mente, sem passar pela intermediação - com o atraso que isso envolve, e que poderia ser caro - do pensamento abstrato, da re- presentação prévia e do cálculo estratégico. Como exprime, com concisão, o antigo campeão Sugar Ray Robinson: "Você não pen- sa. Tudo é instinto. Se você for parar para pensar, você está ferra- do." Opinião confirmada pelo treinador Mickey Rosario: uma vez Corpo e alma - 11 7 sobre o ringue, "você não pode pensar. É preciso que você seja um aniInal."74 E pode-se acrescentar: UlTI instinto cultivado, um animal socializado. O corpo é que é a estratégia espontânea: ele sabe, compreende, julga e reage, tudo ao lTIesmO tempo. Se fosse de outro modo, seria impossível sobreviver entre as cordas. Por ocasião dos encontros de amadores. reconhecemos imediatamente os noviços. com seus gestos mecânicos e apressados. com suas combinações "teleguiadas" e lentas, cuja rigidez e o academicismo traem a interferência da reflexão consciente na coordenação dos gestos e movimentos. Assim, a estratégia do boxeador produz o encontro entre o habitus pugilístico e o próprio campo que o produz, apaga a dis- tinção escolástica entre o intencional e o habitual. o racional e o emocional. o corporal e o mental. Ela emerge da ordem de uma razão prática que, incrustada no fundo do corpo, escapa à lógica da escolha individual. (34 ) De fato, pode-se dizer da estratégia do boxeador no ringue o que o antropólogo Hugh Brody disse dos caçadores esquimós Athabascan, do Noroeste do Canadá: "Fazer uma boa escolha de caça, bem pesada, sensata, é aceitar a interconexão de todos os fatores possíveis e evitar o erro que con- siste em tentar focalizar racionalmente essa ou aquela considera- ção tida como primordial. Ou melhor ainda, a decisão é tomada no ato propriamente de agir; não há separação entre teoria e práti- ca. Por conseguinte, a decisão - COlTIO a ação, da qual ela é inseparável- pode sempre ser modificada (de modo que não po- deríamos, com todo o rigor, tratá-Ia como uma decisão)".75 O confronto no ringue apela para julgamentos sinópticos mar- cados por respostas prontas e flexibilidade, efetuados na hora e para aquela hora, informados por uma sensibilidade pugilística incorporada, e que são a antítese das decisões maduramente re- fletidas e pensadas da "razão raciocinante". Foi isso que Joyce Carol Oates viu, quando escreveu: "'Livre escolha', 'bom senso', 'racionalidade', nossos modos típicos de consciência estão fora (34) Pode-se entrever de passagem tudo o que a sociologia inspirada na teoria dos jogos poderia ganhar se tomasse como paradigma um jogo muito "cor- poral" como o boxe, e não um combate eminentemente intelectual, como o jogo de xadrez e a estratégia militar. 118 - Lo'ic Wacquant de propósito e talvez sejalTI até mesmo nefastos, no universo do boxe"." Uma vez no ringue, é o corpo que compreende e apren- de, que faz a triagem da informação e armazena-a, que encontra a resposta certa no repertório de ações e de reações possíveis, que se torna, enfim, o verdadeiro "sujeito" (se é que há um sujeito) da prática pugilística. A aprendizagem bem-sucedida do boxe supõe, assim, a com- binação de disposições quase antinômicas: pulsões e impulsões ins- critas no mais profundo do "indivíduo biológico", tão caro a George Herbert Mead,77 que podem ser qualificadas de "selva- gens", no limite do cultural, casadas com a capacidade de canalizá- las a cada instante, de regulá-las, de transformá-Ias e explorá-las segundo um plano objetivamente racional, embora inacessível ao cálculo explícito da consciência individual. É essa contradição inerente ao habitus pugilístico explicativa de que a crença no ca- ráter inato das qualidades do boxeador possa se acomodar sem fricção com uma moral inflexível do trabalho e do esforço. O mito indígena do dom do boxeador é uma ilusão fundada na realida- de: o que os boxeadores tomam como uma qualidade de natureza ("É preciso que você tenha isso em você.") é, na verdade, essa natureza particular que resulta do longo processo de inculcar o habitus pugilístico, processo que muitas vezes começa desde a mais tenra infância, seja no interior do próprio gym - onde vemos cri- anças que são regularmente trazidas pelos membros do clube e que treinam boxeando -, seja, ainda, nessa antecâmara do salão de boxe, que é a rua no gueto. Páginas inteiras de anotações de campo poderiam ser citadas como apoio à idéia segundo a qual "se nasce boxeador". Iremos nos contentar com esse trecho de lo de outubro de 1988, em que DeeDee insiste longamente sobre as qualidades inatas do lutador que o treinador só faz virem à tona: "Se você tem isso em você, não há nada que possa impedir de surgir. Vai acabar surgindo, de uma forma ou de outra. Agora, se você não telTI isso dentro de você, nem vale a pena. Há um monte de camaradas que podem treinar toda a vida, eles treinam e boxeiam aqui, eles fazem o sparring, mas nunca na vida eles vão chegar lá. Eu digo isso a eles. Eu não mantenho eles aqui. Há um monte de camaradas em Chi- cago para quem eu disse que estava na hora de eles irem embora: Carpa e alma - 119 'Não vale a pena vir ao gym, porque você nunca vai chegar lá'''. E Eddie ainda aumentou a coisa: "Meu filho vai lutar boxe se ele quiser. Mas eu não vou obrigar ele a boxear. É preciso que isso venha dele mesmo. Porque você tem que ter essa coisa dentro de você, não se pode trapacear nisso. Então, não sou eu que vou obri- gar ele." A expressão "boxeador natural" [a natural], que muitas vezes retoma ao vernáculo das academias, designa essa natureza cultivada, cuja gênese social tornou-se invisível para aqueles que a percebem por meio das categorias mentais que são o produto dela. Uma pedagogia implícita e coletiva A uma prática essencialmente corporal e pouco codificada, cuja lógica só pode ser apreendida em ação, corresponde um modo de inculcar implícito, prático e coletivo. A transmissão do pugilismo efetua-se de uma forma gestual, visual e mimética, sob o custo de uma manipulação regulada do corpo que somatiza o saber coleti- vamente detido e exibido pelos membros do clube a cada pata- mar da hierarquia tácita que o atravessa. A Nobre Arte apresenta, nesse sentido, o paradoxo de um esporte ultra-individual, cuja aprendizagem é totalmente coletiva. E pode-se chegar a ponto de afirmar, parafraseando Émile Durkheim, que o gym está para o boxe assim como a Igreja está para a religião: a "comunidade moral", o "sistema solidário de crenças e práticas" que a torna possível e que a constitui enquanto tal. O que significa dizer, de passagem, que as formas privadas da prática pugilística que os novos empreendedores da gestão do corpo, sempre em busca de exercícios exóticos com os quais renovar um mercado de fitness razoavelmente atravancado, procuraram durante um tempo po- pularizar só tem boxe no nome. (35) (3S) Penso, por exemplo, no livro de Peter Pasquale, The Boxer's workout: fitness for the civilized man, que convida as pessoas dinâmicas a descobrir as ale- grias do boxe ... em domicílio. somente batendo em um saco de areia, na garagem: "Este livro é dedicado às crescentes legiões de colarinhos bran- cos, de contadores a atores, passando por corretores da bolsa. médicos e empresários, para quem o treinamento de boxe é um ingrediente impor- tante para O sucesso profissional." Nenhum dos pugilistas de Woodlawn tem um saco de areia em casa. Para DeeDee, treinar em casa é um non- sense, embora a maior parte dos exercícios específicos, de fato, possa ser realizada em uma garagem. 78 120 - lciic 'NacCluanl ~ .. Compreende-se facihnente, por todas as razões anteriormen- te levantadas, que não é possível aprender a boxear "no papel". Não há surpresa alguma, pois, que o treinador do Woodlawn Boys Club dedique uma hostilidade aberta a manuais, desenhos, recei- tas e métodos livrescos de ensino, tal como com prova a nota a seguir. Enquanto seco o corpo com minha toalha, deixo escapulir: "Veja, DeeDee, você nem sabe o que eu encontrei na biblioteca do campus no outro dia. Um livro chamado O treinamento comple- to do boxeador, que mostra todos os movimentos e exercícios de base do boxe. Será que vale a pena ler o livro para aprender os rudimentos do boxe?" DeeDee faz uma cara de nojo: "Não se aprende a boxear nos li- vros. Aprende-se a boxear na academia." "Mas isso pode ajudar a ver os diferentes golpes e compreender eles melhor, não é?" "Não, não ajuda em nada lit ain't helpful]. Não é lendo livros que você aprende a boxear. Eu conheço bem esses livros, lá den- tro tem fotos e desenhos que mostram como colocar os pés e os braços, o ângulo que o teu braço direito faz e tudo isso, mas é tudo de araque! Você não tem o menor sentido de movimento. O boxe é movimento, é o movimento que conta." Eu persisto: "Então não dá para aprender nada sobre boxe nes- ses livros?" "Não, não dá." "E por que não?" Com um tom irritado pela minha insistência, como se a coisa fosse tão evidente para qualquer um que de pouco adiantasse ele ficar repetindo: "Não dá. Ponto final. Acabou. I Yau can't! Period.] Não dá. Num livro, tudo é estatística. Eles não mos- tram o que acontece no ringue. Essa coisa não é boxe, Louie. Não dá pé, é só." "Mas para um iniciante como eu, talvez não faça mal compreen- der mentalmente, antes de vir pra academia." ":t claro que não faz mal, principalmente quando a pessoa é iniciante. Esses livros vão te ferrar completamente [mess you up campletly]. Se você aprende num livro, nunca será um bo- xeador." Corpo e olmo - 121 Opinião confirmada por Eddie, o "pupilo" de DeeDee. Quando pergunto-lhe Como nos tornamos treinadores de boxe, ele ex- plica-me que há um pequeno exame técnico que se faz na Fede- ração, mas que o essencial é "treinar nos bons gyms, como este, e pouco a pouco você pega a coisa. Não é algo que você possa aprender nos livros". o que o treinador denuncia nos escritos é seu efeito de totalização e de destemporalização. A virulência de sua reação revela, na prática, a antinomia que existe entre o tempo abstrato da teoria (isto é, da contemplação) e o tempo da ação, que é constitutivo dessa própria ação. Considerar o boxe do ponto de vista soberano de um observador de fora, extirpá-lo de seu tempo próprio, é fazer com que ele sofra uma mudança que o destrói enquanto tal. Porque, como a lTIúsica, o boxe é uma prática "in- teiramente imanente ao tempo-duração, [ ... ] não somente por- que ele é jogado no tempo, mas também porque ele joga estrate- gicamente com o tempo, e, em particular, com o andamento do tempo".7 9 Se os conselhos dos manuais e os desenhos dos méto- dos escolares têm qualquer coisa de irreal, aos olhos de DeeDee, é porque o mais belo dos uppercuts é destituído de valor quando é lançado em mau momento; isolado, o gancho tecnicamente mais perfeito não é nada, e é coisa alguma quando ele não está integra- do no andamento de troca e ao estilo do boxeador. Ao contrário de outros esportes de combate mais codificados, tais como o judô e o aikidô,xlI em que o mestre desmonta e de- monstra à vontade as tomadas com um cuidado de detalhes e de análise que pode chegar até ao estudo teórico, e em que a pro- gressão é marcada por sinais e títulos oficiais (como as faixas), a iniciação ao boxe é UlTIa iniciação sem normas explícitas, sem eta- pas claramente definidas, que se efetua coletivamente, por imita- ção, por emulação e por encorajamento difusos e recíprocos, e no qual o papel do treinador é coordenar e estimular a atividade ro- tineira, que resulta ser "uma fonte de socialização bem mais po- derosa do que a pedagogia da instrução".(36) (36) Jean Lave mostra que, mesmo no caso da aritmética, saber eminentemente intelectual, se é que é um saber, não é possível separar o corpo, o eu, a ativi- dade-suporte da aprendizagem e o quadro social e físico de sua utilização.Hl 122 - Lok Wacquant j 1 De fato, o "método" de ensino de DeeDee não é uma pedago- gia pensada e organizada segundo um plano de conjunto. Nunca ouvi ele declinar o porquê dos gestos de base, nem descrever, de maneira resumida, a disposição deles, nem decompor os diferen- tes estágios da progressão esperada. Os conselhos que ele destila com parcimônia e intermitentemente são, antes, descrições su- márias do movimento a ser executado e que constituem verda- deiros pleonasmos com relação à realidade, consistindo, na mai- oria das vezes, de observações parciais e negativas: "Não deixe cair a mão esquerda quando você solta o jabe"; "Não balance o pulso para trás"; "Mantenha a perna direita sob o corpo o tempo todo". Como os gestos do pugilista são, para ele, de uma simpli- cidade e de uma transparência evidentes, DeeDee não desiste da idéia de que eles não exigem qualquer exegese. "É mais fácil do que contar até três"; "Não há nada a explicar, o que é que você quer que eu te explique?"; "Vamos ver isso mais tarde, por en- quanto, contente-se em boxear". Quando não se compreendem de imediato as suas indicações, ele limita-se a reiterá-las, se for necessário juntando o gesto às palavras, selTI dissimular seu abor- recimento, ou então ele se zanga e pede a um de seus acólitos que tome seu lugar. Se um pugilista não consegue executar correta- mente um movimento depois de alguns exercícios "sozinho", o sparring oferece um procedimento pedagógico de ültimo recur- so. Sem conseguir obter o que desejava com conselhos e com pa- ciência, DeeDee resolveu, bem contrariado, apelar para o reflexo de autodefesa para domar um gesto rebelde. - O que foi que eu já disse pra você, Louie? Onde é que você tem que pôr a mão direita, hein, onde? É isso"aí no alto, contra a face direita, para se proteger do gancho de esquerda, e não lá embai- xo. Você vai deixar que arrebentem tua cabeça [you gonna get your head busted], Louie. Você não protege ela como é necessá- rio. Vou pedir a Ashante para te mostrar onde você tem de man- ter a mão, essa bendita mão direita. Da próxima vez [que você lutar em sparring com ele], vou dizer a ele pra te ensinar com o gancho de esquerda dele, se você não quiser me ouvir. - É a melhor maneira de aprender, não é? - Não. Não é a melhor maneira [best wayJ. É a maneira mais Corpo e alma - 123 pesada [hard wayJ. Prefiro que você aprenda por si mesmo, quan- do eu falo isso pra você, e não deixando que te quebrem a cara [get your face beat upJ. [Nota de 17 de maio de 1989.J Quando corrige um boxeador, DeeDee faz isso da maneira mais pública possível: na maior parte das vezes, a reprimenda é gritada com uma voz forte, vinda da sala dos fundos, e ouvida por todo mundo. Como a acústica do lugar é deplorável, nunca se pode saber com uma certeza total a quem ele está se dirigindo. Na dú- vida, todo mundo tende a levar em conta a reprimenda e a redo- brar sua atenção e aplicação. Mesmo quando DeeDee está aboletado em sua poltrona, atrás do vidro do escritório, de onde ele descortina com o olhar toda a área de exercício, é difícil dizer quem ele está observando exatamente; também nesse caso, é me- lhor supor que ele está olhando para você e boxear da melhor fonna possível, para não haver risco de atrair seus raios. Enfim, o fato de que possamos ficar dias, talvez semanas, sem receber qual- quer apreciação de sua parte, positiva ou negativa, gera uma ansie- dade por saber se estamos progredindo ou não, se o que estamos fazendo é bom ou ruim. Essa incerteza dá a sensação de que estamos avançando às cegas e força o aprendiz de boxe a ser sério e a caprichar em cada sessão, em cada um dos exercícios.(37) Des- se modo, cada uma de suas intervenções e a própria maneira pela qual ele as manifesta agem como um mecanismo de correção cole- tiva permanente. Pode-se mesmo especular que quanto mais ra- ras são as intervenções visíveis de DeeDee, mais duráveis e frutí- feros são os seus efeitos. O que poderia passar por uma falta de interesse do treinador, ou por uma carência de acompanhamento, é, de fato, a própria essência de seu método de ensino. Guiado por seu senso pugilís- tico, fruto da experiência acumulada de décadas de prática, DeeDee esforça-se para colocar em operação, de maneira empírica, por meio de ajustes sucessivos, a combinação de reprimendas sempre (37) É durante essas fases que descubro que, a exemplo do pesquisador no campo acadêmico, não tem nada de pior para um boxista, no gym, do que a indi- ferença. E é com alívio que acolho as repreensões com as quais DeeDee põe fim a essa ansiedade. 124 - Lo"ic Wacquant repisadas, a atenção silenciosa, as indiferenças ostensivas e as exor- tações, com a finalidade de fazer entrar o esquema prático no es- quema corporal do aprendiz de pugilismo. Tudo acontece como se suas instruções só tivessem por função facilitar e reforçar o efeito próprio da manipulação do corpo, tornando-a mais vigo- rosa, mais aplicada e mais intensa, e instilando no boxeador a crença de que existe um laço causal entre os esforços exigidos dele e os resultados prematuros, a despeito do caráter repetitivo e descosido dos conselhos que ele recebe. o CHEFE DE ORQUESTRA DeeDee (DD ou DeDe, trata-se de um apelido que ele deve ao irmão, que debochava dele pelo seu falar tatibitate quanto era pequeno) nasceu em 1920, na Geórgia, onde seus pais eram meeiros nas terras de uma família da alta sociedade branca de AIlanta. Desde 1922, como milhares de negros do Sul, eles fo- ram para "Dixieland", rumo a Chicago, em busca de um clima racial menos opressivo e de condições de vida menos duras.1 U Seu pai conseguiu um serviço como gari na Prefeitura Munici- pal, emprego remunerado com regularidade e bem-conceitua- do entre a comunidade negra da época, mas eram a fabricação e a venda ilegal de álcool para os brancos, durante a Lei Seca, que asseguravam à família seu sustento cotidiano. Ele ganhava com isso um pouco de dinheiro, antes de ser apagado pelos 'membros de uma quadrilha rival de traficantes - "Ele não puxava muito a vassoura, morou, ele puxava mais sua calT9ça de moonshine [ál- cool de contrabando] do que a vassoura". DeeDee tinha sete anos. Durante a Grande Crise e até a guerra, DeeDee morava em uma casinha pegada a uma horta e a um galinheiro, no centro do gueto de South Side, com a mãe e os cinco irmãos e irmãs. "Ninguém tinha trabalho, naqueles anoS, ninguém. Nem os brancos, nem os negros. Todo mundo procurava trabalho desesperadamente, estava à cata de dinheiro. Precisava viver se virando, naqueles tempos. Só a guerra nos tirou dessa sinuca. Eu sei que, com cer- teza, eles fizeram a guerra exatamente para que a gente saísse da crise. De repente, todas as fábricas procuravam mão-de-obra. Havia emprego em tudo que era canto! As pessoas ganhavam muita grana. Vendia-se ferro-velho a preços absurdos: os caras que tinham um monte de ferro-velho nos seus quintais torna- Corpo e alma - 125 "" .... Imóvel em sua cadeira, com o cronômetro na mão, DeeDee segue atentamente, da sala dos fundos, a evolução de seus pupilos. ram-se milionários da noite para o dia, quando se amassava todo metal disponível para fazer aviões e bombas. O chumbo tornou- se uma mina de ouro."X3 Desordeiro notório desde os seis anos de idade, DeeDee iniciou- se no boxe na escola, desde a adolescência, em uma época na qual "todo mundo só sonhava com uma coisa, ser Joe Louis" - o primeiro grande campeão negro da era moderna.(3X} Depois de uma carreira breve e sem glórias no ringue (ele disputou qua- renta combates amadores e uma luta profissional contra um dos pugilistas que ele treinava, e que, por cortesia, ainda deixou que {3H} "O bombardeiro de ébano", cuja ascensão coincide com a segunda "idade do ouro" do boxe profissional na América do Norte, era então o herói nacional, por ter simbolicamente arrasado, com seus punhos, o nazismo, na pessoa do campeão alemão Max Schmelling, em junho de 1938, mas também, e sobretudo, era uma lenda viva para a comunidade afro-ameri- cana, para a qual de deu o orgulho étnico e a autoconfiança, ao destruir no ringue o mito da inferioridade congênita dos negros.H 4 126 - LoTe Wocquont ele fizesse alguma coisa), ele passou definitivamente para o ou- tro lado das cordas. Porque, embora sofra de artrose nas mãos e nos joelhos, o jovem Herman indubitavelmente tem o olho e a mão necessários para ensinar a Nobre Arte, da qual ele descobre as figuras infinitamente variadas nas academias do South Side e nos filmes que ele devora, mesmo quando não tem fome. "Ti- nha essas máquinas de filmes nos bares, onde você colocava um nickel [5 cents l, e você podia olhar no visor uma pequena quan- tidade de filmes de boxe. Eu passei horas vendo esses filmes, e foi assim que eu aprendi." Na cola de Jack Blackburn, o treina- dor de Joe Louis que o tomou por um breve período sob prote- ção antes de morrer, DeeDee logo construiu para si uma reputa- ção primeiro regional e mais tarde nacional. Entre 1978 e 1985, ele leva uma dezena de boxeadores ao top ten das classificações internacionais, e dois de seus pupilos ganham um título mundial: Roberto Cruz, entre os pesos meio-médios e Alphonso Ratliff, na categoria dos meio-pesados. Ele sempre exerceu seus talen- tos em Chicago, com exceção dos seis anos passados no Japão e nas Filipinas, treinando alguns dos melhores pugilistas asiáti- cos, e de uma breve estada em Los Angeles, sob a instigação de um grande agente da Costa Oeste. Considerado por seus pares como um dos melhores treinadores da história do boxe norte- americano, DeeDee foi eleito, em 1987, para o Boxing Hall of Fame, o Museu de Boxe de Louisville, em Kentucky. Mas ele não teve recursos para pagar a viagem e faltou à cerimônia de entronização que deveria marcar a apoteose de sua carreira. Hoje em dia, DeeDee sobrevive com 364 dólares por mês, que ele recebe a título de Supplemental Security Income, um pro- grama de auxílio destinado às pessoas de terceira idade que não têm recursos e que sofrem de invalidez. Ele não tem bem algum. nem aposentadoria, tendo trabalhado como assalariado somen- te dois anos e meio, no total. "Fiz todo tipo de traba.lho, em res- taurantes, hotéis, como cozinheiro, copeiro, faz-tudo diarista, e morei na rua. Você faz qualquer coisa para sobreviver na rua, Louie, está sacando o que eu estou dizendo?" Entre os ofícios que ele exerceu, nem que fosse por pouco tempo, ao lado de sua atividade principal de treinador: manobrista, operário metalúr- gico, lavador de vidros, leão-de-chácara de boate, motorista de táxi, vendedor ilegal, "exterminador" de baratas e outros insetos e roedores que infestam os cortiços do gueto, pintor de paredes Corpo e alma - 127 e guarda-costas de um bordel.(3':1) Ele não se queixa. "Conheço caras que trabalharam vinte anos, trinta anos, e que recebem o quê? Nem mesmo 500 dólares de aposentadoria! Recebo o mes- mo e nem cheguei a trabalhar". DeeDee reserva, toda semana, um ou dois dólares para comprar alguns bilhetes de loto em um liquor store (bar da esquina). De vez em quando, ele melhora seus ganhos recebendo uma "contribuição privada" sobre os ra- ros pugilistas do clube que têm meios de lhe dar "alguma coisi- nha, cinco ou dez dólares". Nessa época, a responsável pela cre- che que fica anexa à academia de boxe dava-lhe os restos de merendas depois das festas infantis. Quando há combates na ci- dade, pode acontecer que o empresário de Curtis traga-lhe al- guns sacos de frutas e de legumes de seu sítio. A ascese coletiva, cujo mestre-de-obras no ginásio é DeeDee, é construída à imagem de sua vida pessoal espartana: levantar cedíssimo, dormir cedo, alimentar-se à base de legumes cozi- dos, peixe fresco e carne magra (frango e peru), jamais tomar pop [refrigerantes 1 nem comer doces, raramente tomar um copo de bebida alcoólica (com exceção do Armagnac, que trago para ele da França toda vez que viajo) e fazer uma visita ao médico a cada seis meses (no sistema médico gratuito, por causa de pro- blemas de circulação e da artrose nos punhos, que o impede de dirigir). DeeDee divide um exíguo apartamento alugado na rua 67 com uma sobrinha adotiva, menina-mãe que faz seu curso em uma pequena escola privada de estética para obter um di- ploma de cabeleireira e manicura, e que ajuda o treinador cui- dando da casa, em contrapartida do direito de morar. Para ela, esse diploma é o supra-sumo, e ela fala dele como de um sucesso excepcional, que, em grande parte, ela atribui ao apoio moral inquebrantável de DeeDee - quando ela pensava em abandonar a escola, ele ameaçava-a: "Se, por acaso, você não terminar seus estudos, eu vou te dar a maior surra da tua vida [whuppin'], que você vai se lembrar até na hora do seu enterro". DeeDee não tem outras atividades além do boxe, e ele passa a maior parte dos seus dias no clube, mesmo quando não aparece quase ninguém por lá. Seu tempo divide-se entre a supervisão (3Y) Essa "dupla atividade" é típica: com exceção dos monitores de boxe em- pregados pelo Departamento de Parques e Jardins da cidade, todos os trei- nadores de Chicago exercem uma atividade profissional fora de seus gyms. 128 - Lo"ic Wacquant do treinamento e intermináveis conversas telefônicas e discus- sões com os visitantes habituais da academia. O emprego que ele faz do seu tempo é regulado como uma partitura musical: um pouco antes do meio-dia, ele pega o ônibus perto de casa, passa para tomar uma sopa no Daley's (o restaurante familiar da esquina de Cottage Grove com a rua 63), depois ele abre o giná- sio. Pouco depois das sete horas, terminado o treinamento, ele fecha de novo a pesada grade que protege a fachada do Boys Club e pede que um dos boxistas O acompanhe até em casa. À noite, ele toma conta do sobrinho-neto Will, enquanto assiste aos combates de boxe transmitidos pelos canais esportivos pa- gos de televisão, que ele recebe em casa graças a um gatilho no cabo, feito, em troca de vinte dólares, por um de seus sobrinhos. Nunca vai ao cinema, não está acostumado a jantar fora, não freqüenta mais boates à noite (onde, antigamente, ele adorava exibir seus reconhecidos dotes de dançarino) e execra passeios. As reuniões que seus boxeadores promovem são as únicas saídas que ele dá. DeeDee é encarregado do clube de boxe de Woodlawn desde a sua abertura, em 1977, mas ele recusa-se a considerar isso como "trabalho". Primeiro, porque ele não é remunerado para isso- "Eles não pagam coisa nenhuma, é tudo de graça. Todo ano, eles me mandam uma bela placa para me agradecer por eu fazer tudo funcionar, e só. Mas placa não se come." Em segundo lugar, porque ele não imagina nem a possibilidade de ir para outro lugar ou de fazer outra coisa: "Saca só, Louie, eu não trabalho aqui. Isso não é um emprego. Eu passo o tempo [hang around] no ginásio, é tudo. Já espaireci por outras academias, no Fuller Park, no John CuUon, do West Side. Se eu não estivesse aqui, provavelmente estaria no Fuller Park. É preciso encontrar uma academia onde ficar, para passar o tempo ... Preciso estar na aca- demia, ver os meninos boxearem, a pessoa precisa estar mergu- lhada no boxe, porque tem o boxe no sangue. Eu não poderia passar sem isso." O resto do tempo é ocupado seguindo os com- bates dos boxeadores que ele treina e para os quais oferece o serviço de "segundo", em troca de uma pequena remuneração que os lutadores insistem em lhe dar (cerca de dez por cento de seus modestos cachês, ou seja. alguns bilhetes de vinte dólares por sessão). Seja por princípio, seja por falta de recursos finan- ceiros, DeeDee nUnGl assiste a uma reunião local, quando não Corpo e olma - 129 pode entrar nela gratuitamente: acha totalmente absurda a idéia de pagar para ver uma luta. De resto, sua notoriedade no lugar é tamanha que só muito excepcionalmente não dispõe de ingres- sos para convidados. Como a maioria dos treinadores, sobretudo os da "velha esco- la", DeeDee mantém relações complexas e ambíguas com seus pupilos, para os quais ele é, ao mesmo tempo, treinador, mentor, guardião, conselheiro sentimental e confidente, e que devotam a ele um respeito filial que ultrapassa de longe a admiração pro- fissional.!!5 Esse era o caso, antigamente, de Alphonso, para quem DeeDee chegava a cozinhar, no gym, todas as tardes, para ter certeza de que ele iria comer os alimentos apropriados. É o caso, hoje, de Curtis, que ele trata com um misto de fingido desinte- resse e afeição áspera que, muitas vezes, beira o autoritarismo, e com o qual ele desenvolveu, ao longo dos anos, uma relação quase paternal. Na frente dele, DeeDee afeta uma atitude de indiferen- ça com relação ao seu comportamento fora do ginásio, quando, na verdade, esse comportamento inquieta-o constantemente: como prova disso, ele mantém contato telefônico cotidiano com Sherry, a mulher de Curtis, para saber se ele segue suas instru- ções nos compartimentos da existência que julga afetar o de- sempenho dele entre as cordas: sua alimentação, as relações fa- miliares, as práticas sexuais. DeeDee faz a intermediação entre Curtis e seu empresário; ajuda a administrar suas relações tu- multuadas com a responsável pela creche que ocupa uma parte do prédio do Woodlawn Boys Club, onde Curtis trabalha como faxineiro auxiliar; segue atentamente o curso de seus aborreci- mentos financeiros, seus problemas de moradia e seus conflitos com o seguro social. Em resumo, o velho treinador está estreita- mente ligado à vida privada de Curtis, que, por sua vez, conside- ra-o como seu segundo pai, levando em alta conta sua sabedo- ria: "DeeDee e eu, a gente se relaciona, a gente fala, a gente fala bobagem um pro outro O tempo todo, mas também temos papos sérios - eu acredito em tudo o que ele me diz, mesmo porque [ele abaixa a voz para marcar seu respeito 1 não é à toa que ele chegou aos 70 anos, hein? Você sabe que ele não nasceu ontem, então ele sabe muito mais coisa do que eu. Talvez eu nem possa chegar lá. Mas precisa que a gente tenha uma briga de vez em quando, só pra dar a ele um pouco de prazer. Assim, quando eu saio da aca- demia, ele pode sorrir e balançar a cabeça, essas coisas ... " 130 - loic Wacquanl Assim, na manhã do dia da luta em que Curtis iria arrebanhar o título de campeão do estado de Illinois, DeeDee queixa-se - en- tre sério e irônico, e, sem dúvida alguma, orgulhoso - de que Curtis trata-o como uma criança, não deixando ele fumar e be- ber, quando ele deveria ter o direito de se entregar a esses peque- nos prazeres, na sua idade: "Se ele me vê fumando, ele vem e berra comigo: 'Larga esse cigarro, DeeDee, apaga isso imediata- mente', e começa a gritar alto como se eu fosse uma criança. [Rosnando.] Ei? Eu tenho 69 primaveras, se a gente não pode se dar ao direito de um pouco de prazer com 69 primaveras. então, eu não sei quando ... Se ele me vê com um copo de vinho ou qualquer outra birita, fica furioso, pega no meu pé e me xinga, diz pra eu ir descansar. A mesma coisa com o cigarro. O que é isso? Eu não sou pai dele, está certo, mas ele não é meu filho, não, pra ficar me dizendo o que eu devo e o que eu não devo fazer." Rimos e provocamos ele, sublinhando que, a p ~ s a r de tudo, ele tem sorte de Cm·tis se preocupar tanto com ele, e que isso só vai fazer ele viver mais. Mas a pedagogia pugilística não visa somente a transmitir uma técnica: ela tem também por função constituir de maneira prática as expectativas objetivamente racionais que irão facilitar a ascensão do aprendiz de boxe na hierarquia do gym. Para en- contrar e conservar seu lugar no universo pugilístico, é preciso, com efeito, conhecer e levar em conta, em todos os momentos, seus limites físicos e morais, não deixar suas aspirações "desco- larem" de maneira ir realista, não buscar educar-se mais rapida- mente e além da medida do razoável, sob o risco de ter suas energias dilapidadas, fazer-se demolir pelos oponentes superio- res e expor-se a quebrar a cara. É por isso que as instruções do treinador, muitas vezes, tomam a forma da incitação à modéstia, de convites a repetir até a exaustão os mesmo gestos, sem procu- rar ultrapassar suas capacidades, respeitando o ritmo aparente- mente estacionário que ele imprime à aprendizagem. Por meio de suas observações, de suas críticas, seus encorajamentos, mas também de seus silêncios prolongados, ou por sua presença, DeeDee educa aqueles que, por falta de confiança em si mesmos ou por timidez, consideram-se abaixo de seu valor ("Agora você sabe boxear tão bem como todos os outros, Louie: se eu deixo Corpo e olmo -131 você lutar com Jeff, você vai meter ele numa boa encrenca))), e rebaixa aqueles que, embevecidos por seus progressos na acade- mia ou por seus sucessos no ringue, vangloriam-se, acreditam que "chegaram lá» e tentam boxear acima de seus lneios. A pe- dagogia pugilística é, pois, inseparavelmente, uma pedagogia da humildade e da honra, que tem por finalidade incutir em cada qual o sentido dos limites (que é também um sentido do grupo e de seu lugar dentro do grupo), como atestam esses dois frag- mentos de meu diário. No dia 22 de outubro de 1988, por ocasião da noitada "de gala" organizada todo ano para recuperar as finanças do clube, Little John (24 anos, estudante e agente de seguros em uma cidade HLM) combate pela primeira vez. Ele está nervoso e atrapalha- do, bate muito forte e um pouco de qualquer jeito. [ ... ] Vejo DeeDee, que está furioso em seu escritório. De repente, ele rom- pe pelo salão, com o olhar fulminante, e vocifera em direção ao ringue: "O que é que você acha que está fazendo, John, hein? Pára com essas babaquices [cut out this buIlshit] e contente-se por boxear. Você está tentando fazer uma cara de boxeador, mas não está com cara de nada!" Dá meia-volta com um ar de desgos- to e vai para a sala dos fundos, para enrolar as bandagens nas mãos de Rico. No dia 22 de março de 1989, Curtis foi para a Carolina do Sul, para se recuperar na fazenda de seu empresário, de modo a pre- parar seu primeiro combate em Atlantic City, no mês seguinte- uma boa chance para ele traçar os planos para seu ingresso na classificação internacional. Pergunto a DeeDee se ele foi de avião ou de ônibus. "Porra, Louie, ele foi de ônibus! Quem é ele pra andar de avião, hein?" Killer Keith espantou-se com isso: "Não é cansativo, para ele, ficar tanto tempo num ônibus, DeeDee, por- que isso dá o quê? Quinze, dezoito horas de ônibus?" "São dezenove horas para ir até a Carolina do Sul pela Greyhound [uma companhia barata de ônibus]. Isso, pra mim, não é nada. Quem o Curtis acha que e'? Ele não é ninguém, não é nada. Eu já falei pra você. Todo esse tempo no ônibus, isso vai dar tempo pra ele pensar e pôr alguma coisa naquela cabeça." Essa propedêutica da modéstia aplica-se muito particularmente aos noviços, que ainda estão tentados, por vontade de aparecer 132 - Lok Wocquant misturada à ignorância, ou por admiração por seus colegas mais adiantados, a queimar etapas, enfrentando exercícios que exigem uma técnica que eles ainda não têm. Eis a reação de DeeDee quan- do, em 10 de janeiro de 1989, sucumbi a essa tentação, tentando boxear a double-end-bag, como fazia Tony, um pugilista profis- sional que tem seis anos de experiência. Quando já estou trocando de roupa, DeeDee sai e me dá a bron- ca: "Você é uma verdadeira desgraça [disgrace] nessa bola, Louie, horrível de verdade, um terror de se ver." Escutei mal e tive a infelicidade de pedir-lhe que repetisse sua observação. Ele não se aborreceu nem um pouco: "Você estava dando o maior vexa- me, pulando em volta da bola e sacudindo os braços [swinging]. O que você acha que está fazendo nessa bola? Ela é pra trabalhar os jabes, e o que você fez foi balançar o corpo pra todo o lado, sem manter as mãos no alto, um horror! O que é isso? Eu nem conseguia olhar, de tão horrível." Fiquei totalmente envergo- nhado: percebi bem que eu não sabia boxear no jab bag, mas, mesmo assim! "Da próxima vez, eu vou chegar mais cedo e você pode me mostrar como a gente usa esse aparelho." "Não tem mistério nenhum [Ain't nothing to it], Louie, não te- nho nada pra mostrar pra você, o que você quer que eu te mostre? Basta você trabalhar teu jabe, teu timing, é só isso." Depois disso, ele sai comigo do escritório e toma posição diante da bola, que ele soca, enquanto explica: "Basta ficar perto da bola, jabe, jabe, você deixa rolar, um-dois, jabe, um-dois, jabe, como no speed-bag. Se ela volta na tua cara, você bloqueia ela com a mão direita." Ele soca a punching-balI com curtos de es- querda, em cadência com o balanço, devagar, as pernas ligeira- mente flexionadas, o tronco inclinado para a frente - ele é bem gracioso. Esmero-me em lançar alguns pequenos jabes ritmados, lentamente, como ele; é evidentemente mais fácil do que o que eu estava tentando fazer antes. "Taí, é isso, é só isso que você tem que fazer. Ninguém está pe- dindo pra você fazer mais do que isso. Se a bola vem até você ba- lançando, você bloqueia ela assim [com a palma da mão direita aberta, perto do rosto]. "Tá bem, da próxima vez, vou tentar fazer melhor, DeeDee." Ele já desapareceu na cozinha. Corpo e alma - 133 Se DeeDee pode-se permitir uma tal economia de palavras e de gestos, é porque o essencial do saber pugilístico transmite-se fora de sua intervenção explícita, por intermédio de uma "comu- nicação silenciosa, prática, de corpo a corpo",Hfi que não é um diálogo só entre o mestre e seu aluno, mas uma conversa a mui- tas vozes aberta ao conjunto dos participantes regulares do trei- namento. O ensino do boxe no Woodlawn Boys Club é um en- sino coletivo sob três pontos de vista: ele efetua-se de maneira coordenada, no interior do grupo, que cria a sincronização dos exercícios; ele faz de cada participante o modelo visual potencial, positivo ou negativo, de todos os outros; enfim, os pugilistas mais aguerridos servem, ao mesmo tempo, como auxiliares que se revezam, reforçam e, segundo a necessidade, complementam a (in)ação aparente do treinador, de modo que cada boxeador colabora, sabendo disso ou não, para a formação de todos os outros. No interior do dispositivo de aprendizagem pugilística, en- contra-se o ritmo comum que envolve todas as atividades da aca- demia, impregnando-as com sua temporalidade específica. Como um cronômetro vivo, DeeDee pontua o tempo de duração do dia gritando alternadamente "Time in!", para indicar o início de um round de exercícios, e "Time out!)), para marcar seu fim. Ao som do "Time in!", todos os boxeadores põem-se à obra, como um único homem. Cada intervalo de três minutos assim modulado é seguido por um tempo de repouso de trinta segundos (um minu- to, se está havendo, simultaneamente, uma sessão de sparring), durante o qual se instala uma calma precária, antes que mll novo "Time in!" coloque o engenho novamente em marcha. Nada de tempo morto, nada de tempo livre. Seja qual for a hora em que eles comecem o treino, sej31ll quais forelll os exercícios que fa- çam, os pugilistas trabalham sempre em concerto, porque o res- peito por esse andamento é um imperativo que não conhece qualquer exceção e que se impõe a todos por ele mesmo - é impensável que ele se exerça como um contratempo, e um bo- xeador que, por distração, se esqueça do início do round ou que o confunda com o sinal de repouso, é logo chamado à ordem por DeeDee ou por algum de seus parceiros ("DeeDee disse 'Time-in!', ao trabalho, cara"). 134 - Lok Wacquant o tempo do gym é um tempo pleno, impositivo, que marca o corpo e modela-o segundo seu ritmo. O exercício cadenciado do grupo habitua progressivamente o organismo a alternar esforço intenso e recuperação rápida segundo o andamento específico do jogo, até habituá-lo a essa necessidade.(40) Quanto à duração, ela regula o "relógio biológico" do boxeador até o ponto que seu pró- prio corpo pode, por ele mesmo, dividir a sucessão dos rounds (dei-me conta de que meu corpo se tornara capaz de contar por intervalos de três minutos, num dia de inverno em que DeeDee havia saído cedo da sala, e eu treinei sozinho com o cronômetro). Ciente de que a temporalização da prática pugilística forma a própria base de seu aprendizado, compreende-se que o controle do andamento coletivo do treinamento adquire uma importân- cia particular: exceto em circunstâncias específicas, somente DeeDee, Charles Martin e o aluno-treinador Eddie estão habilita- dos a gritar o" Time!", e ninguém está autorizado a usar o cronô- metro de DeeDee sem sua permissão expressa. Esse cronômetro é, para o velho treinador de Woodlawn, o que o skeptron era para os reis das cortes medievais, segundo Émile Benveniste,H7 o sím- bolo e o instrumento da autoridade que ele exerce sobre o coleti- vo, assim fragmentado; tirá-lo dele seria pôr essa autoridade em questão, privar DeeDee do único emblema de sua função no gym (além da camisa pólo azul-marinho "Staff, Chicago Boys and Girls Club", que ele não tira). Sem dúvida, é por isso que o ginásio de Woodlawn, ao contrário de muitos outros, não tem uma minuteria elétrica que marca automaticamente os rounds.(41) Sem contar que, depois de uma vida inteira passada em academias de boxe, o cro- nômetro tornou -se, para DeeDee, uma espécie de órgão suple- mentar, como uma extensão de seu corpo. Mesmo suas conversas (40) Uma luta de boxe compreende três assaltos, entre os amadores, e quatro, seis, oito ou dez rOllnds, entre os profissionais, segundo o nível (doze para um título mundial). Cada rolllld dura três minutos, com um minuto de repouso entre dois rotlllds consecutivos. (41) As academias descritas por Hauser (op. cit.) e Plummer (op. cit.) estão equipadas com relógios automáticos que sinalizam o início e o fim dos roll1lds, por meio de duas campainhas distintas. Todos os outros gyms de Chicago funcionam C0111 um sistema elétrico de marcação do tempo. Corpo e alma - ll5 DeeDee dá o "Time!" do sparring, sentado em sua mesa, com Bernard e Reggie. telefônicas são interrompidas pelo refrão ritmado dos" Time in!" e" Time out!". e pode acontecer, às vezes, ao fim de mn longo dia, que ele continue a engrenar mecanicamente os rounds, mesmo depois que o último boxeador presente já tenha terminado seu treinamento. A simples sincronização dos movimentos no tempo e a proxi- midade física dos pugilistas no espaço fazem com que se vejam, o tempo todo, corpos em ação - inclusive o próprio corpo, quando se boxeia diante do espelho. Esse reforço visual e auditivo perma- nente gera um estado de "efervescência coletiva", uma reminis- cência completa da excitação frenética das grandes celebraçôes totêmicas aborígenes," que tem por efeito facilitar a assimilação dos gestos e que contribui para derrubar as inibições, para "rela- xar" o corpo e para fustigar as energias. O fato de que sejamos vistos o tempo todo e por todos os outros também força a que caprichemos, por medo do ridículo, como se pode perceber nessa anotação datada de 26 de setembro de 1988. Hoje foi uma loucura, nunca vira tantos boxeadores no gym: começamos com quinze e acabamos com trinta e cinco, um ver- dadeiro zoológico! É impressionante ver todo mundo se exerci- tar com tamanho afinco. DeeDee grita seu "Timei Work!" com 136 - Lo·ic Wocquont uma voz forte, acentuando particularmente o "work!"; ao c o n ~ trária, sua voz cai e morre quando grita "Time out!" Digo bom- dia a uns e outros. Os meninos sucedem-se ininterruptamente no ringue, para vigorosos rounds de sparring. Uma verdadeira engenhoca de boxeadores invade, em ondas, a sala dos fundos, paramentam-se, besuntam o rosto com vaselina, enfiam as lu- vas, fecham-nas com fita adesiva, saltitam nervosamente no mesmo lugar ou retiram o capacete e a coquilha antes de ir para a frente do espelho, para prosseguir no seu treinamento. [ ... 1 Estou cansado, mas faz um bem imenso trabalhar assim. em unís- sono, em uma tal tempestade de golpes, de assopras, de esqui- vas, saltos. esforços de todos os tipos, nesse alegre ambiente de algazarra física. Depois de um momento, fica-se como em um estado de semiconsciência, como que levado pela cadência coletiva dos exercícios e pelo barulho ensurdecedor (sobretudo, quando Smithie está no saco de areia e Ratliff na pêra de velocidade: pa- recem tiros de bazucas misturados com saraivadas de metralha- doras). Entusiasmados de se agitarem ao mesmo tempo que os outros, todos entregam-se ao treinamento. "Time in, work!" Três minutos de pauleira. "Time out!" Todo mundo imobiliza-se ao mesmo tempo. Os meninos aproveitam para trocar algumas pa- lavras, muitas vezes, breves observações, porque antes de mais nada é preciso retomar o fôlego, e os trinta segundos de repouso não deixam tempo para uma conversa. Ou então, eles bebem em silêncio, no esguicho coletivo que fica perto da mesa, próxi- mo ao ringue, antes de cuspir a água no balde. "Time, work-work- work!" E recomeçamos com mais vontade! A coordenação temporal dos exercícios faz com que todo bo- xeador tenha permanentemente sob os olhos um repertório com- pleto de modelos em que se inspirar. O saber pugilístico é trans- mitido, assim, por mimetismo e contramünetismo, olhando como os outros fazem, observando seus gestos, espiando suas respostas às instruções de DeeDee, copiando sua rotina, imitando-os mais ou menos conscientemente, isto é, sem a intervenção explícita do treinador. Ao longo das sessões, aprende-se, assim, do modo tá- cito documentado por Michael Polanyi,"' a determinar os mode- los potenciais, situando-se em seu nível na hierarquia sutil, a um só tempo fluida e precisa, imperceptível para o não-iniciado, que estrutura o espaço do gym. Se a prática efetiva, em situação, é, Corpo e olmo - 137 aqui, a passagem obrigatória (methodos) para a compreensão dessa "arte social" que é o pugilismo, é porque somente ela permite encaixar a solicitação mútua que se dirige um corpo e um campo que se interrogam e provocam um ao outro. É só a partir do mo- mento em que o habitus do aprendiz de boxe sabe "reconhecer" os estímulos e os apelos do gym que a aprendizagem torna-se ple- na. Cada gesto, cada posição do corpo do pugilista possui, com efeito, uma infinidade de propriedades específicas, ínfimas e in- visíveis para aquele que não tem as categorias de percepção e de apreciação apropriadas, e que os conselhos de DeeDee só fazem veicular.1421 Há um "olho de boxeador" que não se pode adquirir sem um mínimo de prática efetiva do esporte, e que, por sua vez, a torna significante e compreensiva. O treino ensina os movimentos - o que é mais evidente -, mas ele inculca também, de maneira prática, os esquemas que permi- tem melhor diferenciá-los, avaliá-los, e, portanto, ao final, repro- duzi-los. Ele põe em ação uma dialética do corporal e do visual: para compreender o que se deve fazer, olha-se os outros boxearem, mas só se vê verdadeiramente o que eles fazem quando isso já foi um pouco compreendido com os olhos, isto é, com o corpo. Cada novo gesto assim compreendido torna-se) por sua vez, o suporte, o material, o instrumento que torna possível a descoberta, e de- pois a assimilação, de um outro gesto. UMA APRENDIZAGEM VISUAL E MIMÉTICA Ajusto minhas luvas vermelhas de treinamento e subo no rin- gue. Primeiro, fico sozinho, e é um pouco intimidante boxear diante de todos os veteranos e do matchmaker Jack Cowen, que me observam, do pé do ringue. Esmero-me por lançar bem meu jabe, para redobrá-lo, encadear meus ganchos de esquerda lá de trás, mantendo meus apoios e girando o tronco corretamente. (42) As observações de Howard Becker sobre a fotografia aplicam-se muito bem aqui: assim como cumpre saber decifrar uma chapa segundo um código específico, de modo a fazer ressaltar toda informação sociológica que ela contém,')(J o pugilista iniciante não consegue retirar todas as vantagens dos "conselhos visuais" que ele recebe de seus pares enquanto não sabe deci- frar todas as mensagens emitidas à sua volta. 138 - Lo'ic Wacquant Eddie (de costas) supervisiona Lorenzo e Little Keith (que se aquece em shadow no solo, diante do espelho, enquanto espera o sparring); Jimmy e Steve (que "atuam" no ringue), e "Boxhead" John na speedbag. No último round, Smithie (jaqueta e calções azuis, mãos bandadas de vermelho, bandana branca na testa) sobe no ringue, e eu pos- so observá-lo de perto e imitar seus movimentos. Ele parece uma máquina de boxear: o tronco ligeiramente inclinado para a fren- te, as mãos dispostas em leque diante do rosto, seus gestos são curtos, precisos, contidos, quase mecânicos de tão bem coorde- nados. Ele está brilhando de suor e exibe uma fisionomia séria, a ponto de parecer contraída; cada gesto retira dele uma careta homérica. Sigo-o como se ele fosse um modelo vivo: quando ele redobra o jabe, eu redobro também; quando ele flexiona as per- nas para lançar uma série de uppercuts breves, passando debaixo da guarda de seu oponente imaginário, faço a mesma coisa. f: bárbaro, isso faz com que eu capriche. E eis que Cliffpassa tam- bém por entre as cordas e vem juntar-se a nós no ringue. Adoro seu jabe curto e baixo e tento imitá-lo. Sigo-o de perto e boxeio como ele (em todo caso, eu tento). "Timeout!" Bufamos. Rodney, por sua vez, sobe ao ringue. De repente, decido continuar. Com uma voz rouca, DeeDee lança um "Time work!" enérgico. Divir- to-me no ringue, estimulado por estar entre Smithie, Cliff e Rodney. Durante três minutos, nossos quatro corpos desenham um ruidoso balé espontâneo: chiando, bufando, suando, ran- gendo, gritando, socando o ar com os punhos, esgrimimos sem Corpo e olmo - 139 repouso. Isso duplica minha energia e fico dois rounds mais do que o previsto. Sinto que meus golpes saem melhores e aplico- me para atingir meu alvo fictício com cada um deles. Rodney finge lutar a distância com Smithie; eles movimentam-se para simular ataques, esquivas e contra-ataques vívidos. Eu supero- me, encadeando jabes aperfeiçoados, seguidos por direitas e uppercuts antes de recuar, sempre lançando séries de ganchos e diretos e bloqueando os golpes de meu "adversário mental". Ufa! Não agüento mais, saio do ringue aos pedaços, mas fui como que transportado pela presença de meus companheiros. [Notas de 30 de maio de 1989.1 Enfaixo as mãos e venho postar-me entre Mark e em·tis, diante do espelho pequeno, para três séries. É empolgante jogar shadow ao lado do campeão de IIlinois. Acompanho-o com o canto do olho e tento imitar todos os seus gestos: ganchos e jabes curtos, movimentos nervosos, rápidos, secos, com um "giro" de om- bros, movimentos laterais ágeis e precisos. Imito-o da melhor forma possível e tenho a franca sensação de ser um verdadeiro boxeador, no entusiasmo do momento. À minha esquerda, Smithie mostra a Ashante uma esquiva que este aparentemente não tem em seu jogo - como sempre, ternos alguma coisa a apren- der. [Notas de 24 de junho de 1989.1 Enfim, o ensino do boxe é uma empreitada coletiva, no senti- do de que o treinador é assistido, em suas funções, por todos os membros do clube. De início, pelos boxeadores profissionais mais experimentados, que colaboram de maneira informal, mas ativa, na formação dos noviços, assim como pelos outros treinadores ou pelos veteranos que vêm de vez em quando passar uma tarde na academia. (A intervenção deles é aceita, desde que se dirijam aos boxistas amadores; no caso dos profissionais, apenas o trainer ao qual o boxeador está ligado por contrato está habilitado, junto com DeeDee, a supervisionar o treino.) Desde que tenha demons- trado seriedade, por sua assiduidade, abnegação e coragem entre as cordas, todo "novato" é cuidado pelo grupo; seus progressos provêm, então, de uma responsabilidade coletiva difusa. Durante minha iniciação, recebo conselhos dos principais freqüentadores do clube, que, um de cada vez, tomam a iniciativa de me corrigir, de me encorajar, um deles retificando a posição de minha perna 140 - lok Wacquant Reggie demonstra o gesto de uppercut a um novo recruta atento. de apoio, o outro, o ângulo do meu uppercut, enquanto um ter- ceiro indica-me como bloquear os golpes de meu adversário mo- vendo os cotovelos e iniciando-me nos segredos da esquiva. Ashante, Smithie, Big Earl, Anthony e Eddie, cada um deles ensi- na-me uma faceta do ofício, seja por conta própria, seja em com- binação com DeeDee, substituindo-o ou complementando suas indicações. Depois de um ano de treinamento regular, DeeDee pediria que, por minha vez, eu mostrasse os rudimentos de jogo de pernas no ringue e a utilização da pêra de velocidade a um novo recruta, vindo, como eu, da Universidade de Chicago. Cada membro do clube passa para aqueles que estão abaixo dele na hierarquia objetiva e subjetiva do gym o saber que recebeu daqueles que estão situados mais acima. Os boxeadores de forças equivalentes também compartilham sua experiência e ensinam- se mutuamente técnicas e truques. MeSlTIO os maus boxeadores têm a virtude de servir aos outros como modelos negativos: à maneira de crimes contra a "consciência pugilística coletiva", fun- cionam igualmente como lembretes vivos da norma prática que se deve esperar e que cumpre respeitar. Tal organização não é Corpo e alma - 141 própria à academia de Woodlawn, porque o salão que pertence a Mickey Rosario, em East Harlem, opera segundo um mesmo es- quema coletivo e graduado, que Plummer caracteriza com essa analogia: "O gym funciona como uma família na qual os filhos maiores ou mais experientes cuidam de seus irmãos e irmãs me- nores, menos aguerridos ou menos capazes. O saber técnico trans- mite-se como as roupas vão passando, em uma família numero- sa, descendo na escala das idades. Cada menino é o guardião do savoir-faire do mais velho, que o confiou a ele, e esse saber, em contrapartida, deve ser transmitido ao mais novo" .• ' Eis, por exemplo, como, em um belo dia de maio de 1989, DeeDee e Anthony aliaram-se para ensinar-me como se bloqueia o jabe do adversário: Primeiro, fiz cinco rounds diante do espelho. Tento mexer bem a cabeça da direita para a esquerda, entre um golpe e outro. Lá da sala dos fundos, DeeDee diz para eu virar meu punho direito para dentro, para segurar o punho de meu oponente, tudo ao mesmo tempo. "Faz um movimento que nem uma tigela [make a cup], faz uma volta com a mão para agarrar a luva, Louie ... Mantenha seu cotovelo contra a parte lateral do corpo, seu co- tovelo não deve se mexer, é só a mão que se mexe ... Mantenha a mão direita no ar e faz uma volta com ela, tua cabeça vai pro lado direito." Não compreendo bem o que ele está gritando para mim e vou até a sala dos fundos. DeeDee mostra-me como fazer meu punho girar, abrindo a palma para o lado de dentro e en- curvando os dedos de modo a formar um ninho no qual reco- lher o jabe do adversário. "É fácil, é como o abecedário [it's like A, B, el. Você somente gira o punho para fora, curva os dedos e agarra a luva, mas teu cotovelo não se mexe. É fácil, Louie, é nada [ain't nuthin' to it], olha só." Éééé, é fácil para quem sabe fazer. Capricho para repetir o gesto que DeeDee me mostra, mas sem conseguir, de fato, realizá-lo. Meu cotovelo continua levantan- do, contra a minha vontade. "Não mexe o teu cotovelo, Louie, o que é que eu falei pra você? Você vê o carinha na tua frente, você diz a ele: 'Você quer mandar seu jabe, meu camarada? Ok, man- da brasa!' E aí você bloqueia ele com a mão direita, e, depois, vuuum! Gancho no corpo, assim." [Ele dá essa demonstração 142 - Lo"ic Wacquont sentado em sua poltrona.] "Não é fácil, DeeDee." "Mas claro que é fácil, droga, é como recitar o ABC, já te falei isso." Decididamente, toda vez que se acredita ter dominado um ges- to, percebe-se que não foi nada disso o que aconteceu, que é tudo mais complicado. Eu achava que sabia como esquivar a cabeça e bloquear os jabes, mas nada disso. Não é tanto a cabeça que se desloca, mas a mão, que segura o punho do adversário, vindo interromper sua trajetória; a cabeça, ela só faz é girar no eixo por trás do ninho protetor formado pelo punho. Anthony interrompe-me, durante a tentativa seguinte, para me mostrar como agarrar seu punho. É vergonhoso ter de ouvir novamente a explicação desse movimento aparentemente tão simples, mas que, na verdade, não tem nada de simples: o pulso gira, a mão forma um ninho, o cotovelo imóvel, depois o peso do corpo é transferido para a esquerda, para contra-atacar com um jabe ou com um gancho de esquerda. Anthony imita um jabe que ele me faz aparar com a mão direita, depois ele teleguia meu outro bra- ço para executar o contragolpe de esquerda. Meu punho esquerdo passa muito baixo e encontra minha outra mão. Ele mostra-me tudo de novo, uma, duas vezes. DeeDee também continua a me dar conselhos lá de sua poltrona. Acho que começo a perceber melhor a mecânica, mas é difícil passar da compreensão mental à realização física. Recomeço meu round assim que Anthony se afasta. Em vez de tentar, logo em seguida, refazer os movimentos que ele me mos- trou, inicio encadeando diretos e jabes, para deixar passar o ner- vosismo. DeeDee passeia pela sala, passando de um em um os outros rapazes, quando não está falando ao telefone. Quando passa perto de mim, ele corrige meu jogo de pernas. "Teus joe- lhos devem sempre ficar 10% flexionados. Não gira essa bomba desse pé direito, basta levantar ele". Tanta atenção honra-me e intimida-me ao mesmo tempo. Mas, mesmo assim, é superlegal. fico feliz. [Notas de 17 de maio de 1989.J Essa forma particular de learning by doing coletiva pressupõe certas condições. De início, condições de número: de acordo com minha experiência, é preciso que não haja nem muita nem pouca gente. Além de cerca de vinte pugilistas, há uma tendência a desa- parecer na massa, e torna-se difícil atrair a atenção de DeeDee ou os conselhos de seus pares. Em contrapartida, se há menos de Corpo e alma - 143 quatro ou cinco, o efeito de "efervescência coletiva" anula-se, e dispõe-se de muitos poucos modelos atuando, ou os modelos fi- cam muito longe para serem fisgados - quando isso acontece, no final do dia, e com a ajuda do cansaço, pode ocorrer, por vezes, que DeeDee se desinteresse momentaneamente do treinamento, a ponto de se esquecer de gritar O "Time!" A segunda condição é que o volume de capital pugilístico coletivamente detido pelos membros do clube (aí incluída a forma objetivada, uma vez que não se pode omitir de computar, no número de instrumentos pe- dagógicos do ginásio, todos os equipamentos, roupas, móveis, pôs teres e cartazes, títulos, copas, fotos etc.) ultrapasse um limite mínimo, mas também que a distribuição das competências seja suficientemente contínua para que ninguéln se ache a uma dis- tância muito grande de seus vizinhos imediatos na hierarquia es- pecífica (o que vale igualmente para o sparring, em que um boxea- dor que não disponha de parceiros adequados na academia pode se ver obrigado a trazer um de fora, por vezes mediante remune- ração). A terceira condição é um núcleo estável de boxistas pro- fissionais (que inúmeros gyms têm um grande trabalho para fi- xar) que dê ao ensino mútuo sua continuidade no tempo, contra- balançando fluxo e refluxo de noviços. É preciso, portanto, evitar o erro que consistiria em focalizar a atenção sobre O treinador, porque, nesse aspecto, à semelhança do rei da sociedade de corte dissecada por Norbert Elias,92 é so- mente por meio e graças à rede completa das relações que consti- tuem o espaço das trocas (físicas, sonoras e visuais) - que é a aca- demia do Woodlawn Boys Club - que DeeDee exerce sua eficácia própria. No interior desse dispositivo espaço-temporal, ele fun- ciona à maneira de um chefe de orquestra implícito, passeando entre seus alunos e corrigindo seus gestos por lneio de pequenos to- ques, seja em voz alta, por reflexões de ordem geral- que, como não visam a ninguém em particular, recebeln a atenção imediata de todos -, seja por observações pontuais ("Mantenha a guarda mais alta"; "Gire bem o pulso para dentro, ao impacto"; "Mande uma direita no rosto em vez de ficar com o braço balançando") que cada boxeador tem o cuidado de interpretar por conta pró- pria, mesmo quando elas dirigem-se aos outros, seja, enfim, por sua presença atenta, que é suficiente, na maioria das vezes, para 144 - Lo'ic Wacquant provocar Ulna autocorreção espontânea dos lnovimentos do pu- gilista que se sabe observado por ele. Essa pedagogia negativa e silenciosa, que pouco se utiliza das palavras e das ações visíveis, pretende, em primeiro lugar, assegurar que cada um respeite o andamento comum e permaneça no lugar que lhe cabe no dispo- sitivo coletivo. A todo momento, opera-se uma correção mútua pelo grupo, que propaga e multiplica os efeitos da menor das ações do treinador. A adesão dóxica a esse modo tradicional de transmissão expri- me e perpetua um "sentido de honra" pugilística fundado sobre o respeito à herança recebida e sobre a idéia, aceita por todos como condição tácita da admissão no universo específico, de que cada qual deve pagar com sua pessoa, que não deve tentar abreviar, não deve trapacear com o corpo e com o esporte, buscando ino- var com métodos heterodoxos. A recusa da racionalização do trei- namento e da explicitação da aprendizagem ancora-se em dispo- sições éticas, cuja interiorização é a face oculta da aprendizagem da técnica gestual: uma moral do trabalho individual, do respeito mútuo, da coragem física e da humildade, nutrida pela "crença no caráter sagrado das regras que sempre existiram", como diz Max Weber. 93 Essa recusa não se deve simplesmente à penúria, bastante real, de meios materiais do clube. Prova disso são os equi- pamentos inusitados, tais como o aparelho de remar, os halteres ou a prancha inclinável para abdominais que jazem em um canto em poeirada da sala dos fundos. O uso que o gym faz da técnica do vídeo é sintomático dessa recusa deliberada dos meios tecno- lógicos avançados e da relação "culta" com o boxe que elas veicu- lam: quando DeeDee pega emprestado o aparelho de vídeo da creche vizinha para assistir aoS combates dos membros do clube que estão gravados em fita, é somente por desejo de se divertir, para animar a rotina do treinamento, mas nunca com uma inten- ção pedagógica. É claro que se pode ver o mesmo combate várias vezes e que ninguém se priva de comentar os momentos mais marcantes; mas não passaria pela cabeça de ninguém a idéia de voltar a fita e assistir à mesma passagem várias vezes seguidas ou em câmera lenta, nem de decupar as fases da ação em segmentos visuais distintos, com a finalidade de analisá-los. Outro sintoma dessa recusa da racionalização, sob cujo título Corpo e alma - 145 pode-se igualmente incluir o fato de que os exercícios e as dietas alimentares que os boxeadores seguem não são objeto de qual- quer tipo de cálculo ou planejamento metódicos:(43) o desinteres- se total dos membros do Boys Club com relação a seu futuro opo- nente, depois da aprovação de um contrato de combate. Essa in- diferença, tanto do lado dos boxeadores profissionais ("Isso não tem importância, não estou nem aí, eu devo combater o meu com- bate") quanto dos treinadores (que, uma vez feito o contrato, não se dão ao menor trabalho de conhecer o adversário de seu pupilo, para saber de antemão qual o estilo dele, sua estratégia preferida, seus trunfos e suas fraquezas),(44) parece, à primeira vista, contra- dizer o ethos da preparação ótima e minuciosa que, incessante- mente reafirmada, impregna a atmosfera da academia. Sem dúvi- da, essa recusa das técnicas modernas de observação e de treina- mento está ligada à indivisibilidade relativa das funções de supor- te e à tarefa de inculcar, no espaço pugilístico: lá onde outros es- portes deram nascimento a complexas burocracias compostas de uma multiplicidade de funções ultra-especializadas, o boxe con- tinua a operar com a tríade artesanal treinador-assistente-empre- sário - e pode acontecer que a mesma pessoa assuma as três fun- ções. De modo mais profundo, é um princípio ético, uma outra relação COln o corpo e com o esporte que assim se afirma, e talvez mesmo uma outra era do boxe que sobrevive.(45l (43) Nenhum treinador ou boxeador de Woodlawn tem qualquer registro es- crito no qual ele anote a seqüência das sessões de treinamento, a alimenta- ção, a duração e a quilometragem das corridas de treino. ou mesmo o peso. tal como é recomendado, por exemplo, pelo método de boxe ]ean-Claude Bouttier e Jean Letessier.':I4 (44) Assim se faz 110S esportes mais racionalizados e burocratizados, como o basquete ou o futebol americano, em que os técnicos são secundados por uma miríade de assistentes especializados que assistem a fitas de jogos das equipes adversárias, colecionam quilômetros de estatísticas detalhadas so- bre cada um dos jogadores e sobre suas tendências e vão "espioná-los" durante os treinos etc.':I5 (45) Se um adversário de um de seus boxeadores promete levantar problemas particulares (por ser canhoto e boxear com uma "guarda inversa", por exemplo), Eddie utiliza, às vezes, o vídeo para assistir a seus combates an- tes, se existirem fitas, e pode mesmo (mas é excepcional) deslocar-se para 146 - Lo'ic Wacquant É claro que seria totahnente fútil tentar distinguir O que, no saber adquirido pelo aprendiz de boxe, vem das intervenções de- liberadas de OeeOee do que vem da influência dos pares ou de esforços e "talentos" pessoais.(4ó) Porque a energia motriz dessa máquina pedagógica auto-regulada que constitui o gym não reside nem na imitação mecânica de um gesto, nem na soma de exercí- cios incansavelmente repetidos por todos, e menos ainda no "sa- ber-poder" de algum agente (no caso, o treinador) situado no ponto nevrálgico do edifício, luas, antes, no sistema indiviso das relações materiais e simbólicas que se estabelecem entre os dife- rentes participantes, e principalmente na disposição de seus cor- pos no espaço físico da acadelnia e em seu tempo específico. Em uma palavra, é O "pequeno ambiente" do gym como um todo, "como feixe de forças físicas e morais",Y7 que fabrica o boxeador. Administrar seu capital-corpo Existem poucas práticas nas quais a expressão "pagar com sua própria pessoa" assuma sentido mais forte do que no boxe. Mais do que qualquer outro esporte, o desenvolvimento bem-sucedi- do de uma carreira, sobretudo profissional, supõe uma gestão ri- gorosa do corpo, uma conservação meticulosa de cada uma de suas partes (muito especialmente as mãos, mas também o ros- tO),(47) uma atenção contínua, no ringue e fora dele, para o bom observá-lo no ringue. O que tende a confirmar a hipótese da ascensão de um novo modo de preparação, mais "moderno", no interior do Woodlawn Boys Club. O que se sabe da preparação dos campeões por meio das auto- biografias e da imprensa especializada não permite decifrar, em um senti- do ou outro, a questão da racionalização do treinamento pugilístico: os mesmos que adotam as técnicas científicas, dietéticas e médicas mais avan- çadas estão prontos a voltar aos veneráveis métodos estabelecidos pela tra- dição, depois de tuna derrota (mas não vice-versa). (46) Se é que se pode dar algum sentido à noção indígena de "talento", depois da crítica radical que dela fez Daniel Chambliss.':I6 (47) São as duas partes do corpo de um pugilista expostas às penas mais seve- ras: fraturas das mãos (metacarpo, polegar, articulações), do nariz e do maxilar, cortes cutâneos, descolamento da retina, lesões cerebrais crônicas que podem levar à dcmentú, pugjJjstici:!, hematomas de repetição nos ou- vidos que produzem descolamento do pavilhão.W' Corpo e olmo - 147 funcionamento do corpo e para sua proteção. Dito de outro modo, uma relação extraordinarialnente eficiente, no limite do geren- ciamento racional do capital específico que seus recursos físicos constituem. Isso porque o corpo do pugilista é, ao mesmo tempo, seu instrumento de trabalho - arma de ataque e escudo de defesa - e o alvo de seu adversário. Essa relação, contudo, não é nem o produto de uma atitude deliberadamente maximizadora, guiada por decisões individuais tomadas com pleno conhecimento de causa, nem o efeito mecânico de imposições externas que agem sem mediação sobre o organismo (ao modo da "vestimenta", se- gundo Foucault),"" mas a expressão de um sentido prático pugilís- tico, de um sentido de poupança corporal adquirido insensivel- mente no contato durável com os outros atletas e com os técni- cos, ao longo dos treinamentos e nos combates, e que permanece, enquanto tal, inacessível ao controle consciente e deliberado, a despeito dos esforços conjugados de boxistas, treinadores e em- presários mais inclinados à racionalização de seus ofícios.(4H) O conhecimento que os pugilistas têm do funcionamento de seu corpo, a percepção prática de que há limites que não devem ser ultrapassados, os trunfos e os pontos fracos de sua anatomia (uma base baixa ou uma grande velocidade de braço, um pescoço mui- to fino ou mãos frágeis), o comportamento e a tática que adotam no ringue, seu programa de preparação, as regras da vida que se- guem, tudo isso vem, de fato, não da observação sistemática e do cálculo refletido da linha ótima a ser seguida, mas de uma espécie de "ciência concreta"llIl de seu próprio corpo, de suas potenciali- dades e de suas insuficiências, retirada do treinamento cotidiano, assim como da "terrível experiência de apanhar e bater repetida- lnente".1 ll2 Existem inúmeras técnicas para preservar e fazer frutificar seu capital-corpo. Desde a maneira de banda r os punhos (e o tipo de bandagem protetora utilizada) até o modo de se respirar durante o esforço, passando por todos os golpes de esquiva, o emprego de (4!\) Lembremo-nos de que "o sentido prático orienta 'escolhas' que, por não serem deliberadas, nem por isso são menos sistemáticas, e que, sem serem ordenadas e organizadas com relação a um fim, nem por isso são menos portadoras de uma finalidade retrospectiva".'oo 148 - Laic Wacquan\ I Ashante, em seu sweat suit, tira as bandagens das mãos, no fim do treinamento. pomadas, ungüentos e elixires especialmente manipulados, os exercícios e os regimes alimentares especiais, os boxeadores do Woodlawn recorrem a uma gama extensa de dispositivos que vi- sam a preservar e a reproduzir suas reservas de energia e a prote- ger seus órgãos estratégicos. Alguns deles imitam o antigo cam- peão Jack Dempsey, célebre por embeber suas mãos na salmoura para endurecer a pele das falanges. Outros, antes do treino, be- suntam o tronco e os braços com alboleno, um óleo que "esquen- ta o corpo e distende os músculos" (segundo a bula), ou, depois do exercício, vaporizam a aresta do punho com uma solução à base de vitamina E.I") Um outro esfrega uma esponja seca sob os hand-wraps, como forma de atenuar o impacto dos choques re- petidos contra o saco de areia, enquanto outro, cujos ossos são frágeis em relação ao soco, é acompanhado regularmente por um terapeuta de mãos. Os profissionais que têm meios para con- tratar os serviços de um trainer (técnico-terapeuta) remunerado, tais como Ed "Smithie" Smith ou o antigo campeão do mundo Adolphe Ratliff, terminam cada uma das sessões de treinamento com uma longa massagem [rub-down J feita pelas mãos experien- tes desses treinadores. E eu poderia retomar inteiramente a des- crição que Weinberg e Arond fazem dos gyms de Chicago, no iní- cio dos anos 1950, de tal modo ela se aplica ao que eu observei no Woodlawn Boys Club: (49) William Plummer rclara pr<Ílicas similares em uma academia de East Harlcm, em Nova York (op. cit., p. 62). Corpo e alma - 149 Os boxeadores chegam a considerar seu corpo e particularmen- te suas mãos como seu capital profissional [stock-in-trade]. Os pugilistas têm diversas fórmulas para impedir que suas mãos inchem, fiquem muito doloridas ou sofram fraturas. O que não quer dizer que exista aí um interesse hipocondríaco, uma vez que eles valorizam a virilidade, aprendem a enrijecer-se e a des- prezar o comportamento excessivamente cuidadoso. Mas os boxeadores não param de experimentar remédios e exercícios que têm como finalidade melhorar seu corpo. Um deles pratica- va a ioga, outro tornou-se um adepto do culturalismo. um ter- ceiro jejuava periodicamente; outros pesquisavam loções, vita- minas e outros meios de fazer aumentar a rigidez, a vivacidade e os socos. 1 03 Esse é um dos principais paradoxos do boxe: é preciso usar seu corpo sem gastá-lo, mas a administração adaptada a esse objetivo não obedece a um plano metódico e pensado, nem que seja pelas precárias condições de vida daqueles que o praticam. O pugilista navega, portanto. tendo sob seu "campo de visão" duas rochas igualmente perigosas. e ainda mais porque elas não são visíveis. mas são variáveis no tempo e, em grande medida, subjetivas: de um lado, o excesso de preparação que dilapida em vão os recur- sos e abrevia inutihnente a carreira; de outro, Ulna falta de disci- plina e de treinamento que aumenta os riscos de contusão grave e com promete as chances de sucesso no ringue, ao deixar inexplo- rada uma parte das capacidades do combatente. O par formado por Butch e Curtis oferece uma realização ide- al dessa oposição. De um lado, a frugalidade pugilística em forma de homem: Butch treina e boxeia com sobriedade e economia; ele sabe evitar, durante períodos bem longos, qualquer desvio ali- mentar, sexual, emocional ou profissional. Tudo em sua prepara- ção minuciosa exprime um sentido agudo de equilíbrio e de lon- go prazo. Mas seu ascetismo, que, em seu rigor, beira a abstinên- cia com relação a qualquer coisa que poderia prejudicar sua pre- paração. em alguns mOlnentos torna-se ansiedade e leva-o, en- tão, a treinar em excesso, a consumir suas forças até o ponto de esgotá-las. De outro lado, Curtis encarna o déficit de racionalidade que se manifesta por um treinamento às vezes irregular e por uma higiene física e moral flutuante. Em primeiro lugar, fora da aca- 150 - Ldic Wacquant demia, onde ele nem sempre sabe privar-se dos mínimos prazeres da existência (bebidas gasosas, doces, comidas gordurosas) e onde sua temperança sexual conhece altos e baixos. Depois, na acade- mia, porque lhe acontece deixar de treinar durante longos perío- dos (sobretudo depois de um combate), ao contrário de Butch, que "marca o ponto" no clube com uma regularidade milimetrada. Por contraste com este último, Curtis faz de seu corpo um uso tumultuoso, desabrido, quase ((louco" - isto é, desviante com re- lação aos cânones do boxe racional-, como acontece quando ele avança sobre o adversário, por vezes seu parceiro de sparring, dei- xando cair a guarda de modo a lhe oferecer o rosto descoberto como uma forma de provocação, o que o coloca sob a ameaça de sofrer um ataque. Assim, ele usa seu corpo para nada, expondo- se gratuitamente a um ferimento ou à ira dificilmente contida de DeeDee. Essas diferenças de meios entre os dois boxeadores são multi- plicadas pelas suas constituições e seus respectivos caracteres: Butch é doce, plácido, com um humor inalterável; já o humor de Curtis é cambiante, imprevisível, suas emoções são bruscas e à flor da pele, seu nível de energia é bem irregular. Enquanto a pro- gramação de treinamento de Butch raramente é perturbada por problemas de saúde, Curtis fica doente com freqüência (DeeDee adora dizer que "Curtis tem um resfriado dia sim, dia não"), a ponto de seu empresário insistir para que ele vá passar os dias mais rigorosos do inverno em sua fazenda da Carolina do Sul, para não sacrificar preciosas semanas de preparação com uma gripe tremenda. Esse contraste de personalidades está estreita- mente correlacionada e é reforçada pelas diferenças de condição social entre os dois companheiros de clube: um é proletário, mem- bro da aristocracia operária, tem um emprego e uma renda está- veis; o outro é subproletário, sem qualquer tipo de segurança so- cial e econômica, submetido aos ciclos de emprego dos serviços desqualificados. ISO) E eles divergem até em suas expectativas eco- nômicas com relação à profissão: Butch reconhece que suas (50) Volta-se aqui a encontrar uma oposição clássica, estabelecida por Bourdieu para o caso da classe operária argelina, entre dois tipos de posição social e entre dois sistemas de expectativas e de meios que lhe correspondem. 104 Corpo e alma -151 chances de ganho são mínimas; já Curtis sonha acordado com uma ascensão fulgurante que o faça subir miraculosamente ao topo da escala social. CURTIS: "Posso GANHAR UM MILHÃO DE DÓLARES NUMA NOITE" Com 56 quilos e 1,70 de altura, Curtis Strong luta na categoria dos pesos superligeiros. Ele tem 27 anos e boxeia há três anos entre os profissionais. Chegou à Nobre Alie tardiamente, de- pois de ter feito um certo nome como "vagabundo" no seu bair- ro. "Como eu era pequeno, sempre tinha um monte de caras pra me encher, então precisei aprender a bater. Quando eu era garo- to, eu brigava antes da escola, durante a escola e depois da escola. Precisava me defender." Depois de uma série, como amador, de 37 vitórias e seis derrotas, tornou-se profissional em 1986, após ter arrebanhado o título das Chicago Golden Gloves, o mais fa- moso torneio amador da cidade. Mais tarde, justificou todas as esperanças postas nele por parte do clube, vencendo oito com- bates consecutivos, antes de ganhar, uma heróica luta, o título de campeão de Illinois, batendo por pontos um mexicano temí- vel pela experiência e pelos golpes, por ocasião de um encontro Curtis, vitorioso, posa com seus irmãos. que brandem o recém-conquistado cinturão de campeão de Illinois. 152 - Ldic Wacquant cuja luta principal era do legendário Roberto "Manos de Piedra" Duran - que, aos 37 anos de idade, arrebatou o seu quarto título mundial e a 97 a vitória entre os profissionais. O empresário de Curtis, Jeb Garney, um branco rico e criador de cães, que tem várias fazendas e haras em minais e na Carolina do Sul, que tem assento no conselho administrativo do clube e alimenta para ele grandes ambições: "em·tis não sabe o quanto ele é bom. Se você assistisse aos filmes dos maiores boxeadores, como Johnny Branton, Sugar Ray Rohinson, Sandy Saddler ou Henry Armstrong, ia ver que ele tem alguns golpes e movimen- tos desses maiorais. Ele tem isso dentro dele [He's got it in him]. Ele é jovem e inexperiente, tem muito pra aprender. mas sinto que ele pode se tornar um grande boxeador." E, no entanto, fal- ta a Curtis um mínimo de disciplina pessoal, e ele nem sempre impõe a si mesmo a higiene de vida exigida por sua carreira. O Boys Club arrumou para ele um emprego em tempo parcial, uma espécie de zelador [jnnitor] , para permitir que Curtis treine em boas condições e para controlá-lo melhor. Depois de seu trei- namento diário. Curtis espera a academia fechar, para varrer o salão, passar o pano no chão dos vestiários, aspirar o tapete de entrada, esvaziar as latas de lixo e colocar em ordem as mesas da creche. Boxeador felino e impulsivo, dotado de uma grande velocidade de braço e de reação, assim como de um agudo sentido de res- posta, seu comportamento excepcionalmente agressivo entre as cordas, no limite da perda de controle sobre si mesmo e do re- gulamento, tudo isso valeu-lhe ser conhecido, e com razão, como uma "fera" dos ringues. Essa personalidade esportiva raivosa combina perfeitamente com seu estilo, que é o de submeter seu adversário a uma pressão constante, caindo incessantemente sobre ele e batendo de todos os ângulos. E, no entanto. é da fé cristã que Curtis retira sua inspiração entre as cordas: usa sem- pre um crucifixo pendurado no pescoço, que ele sorrateiramen- te coloca dentro da sapatilha durante os combates e que nunca se esquece de beijar, com cerimônia, antes e depois de cada en- contro. Nunca sobe ao ringue sem previamente ter rezado du- rante um tempo junto com seus cinco irmãos e o primo, que é pastor. Quando lhe perguntei se ele tinha "feito a festa" depois da surpreendente vitória sobre o campeão estadual. no Interna- tional Amphitheater, o pugilista estrela do Woodlawn respon- Corpo e olmo - 153 deu-me com sobriedade: "Eu não fiz a festa, eu agradeci a Deus. Dediquei meu combate a Deus. Não faço nada que Ele não te- nha me mandado fazer. A única coisa que faço é executar os planos que Ele tem para mim no ringue e fora do ringue, e eu agradeço. É tudo." A ambição de Curtis é a mesma que a de muitos jovens pugilistas em ascensão, que só "vêm O céu como limite": arrebatar o título mundial ou, melhor ainda, unificar os três títulos de suas categorias e, de lambuja, embolsar os cachês, cotados em milhões de dólares. Curtis é egresso de uma família subproletária, no limite da men- dicidade (nove filhos, pai ausente, mãe que trabalha de modo intermitente como barmaid e que sobrevive principalmente de seguro-desemprego), cuja reputação é grande na rua. DeeDee conta que "todos os irmãos dele são brigadores de rua [street- fightersl. Todos eles sabem brigar. Mas nenhum deles vem à aca- demia, só ele. Tem um irmão mais velho que é menor do que ele, maS ainda é mais fera, é uma fera de verdade. [Com um certo lamento na voz.] É pena que ele não freqüente a academia, dro- ga. Ele é duro, de uma dureza de verdade, é um natural [a natu- ral]. Mas não tem muita coisa na cachola lhe ain't got to much upstairs] , fica cansado de pensar. É um pouco como Curtis, tam- b · " em. Emérito freqüentador de prostíbulos durante muito tempo e pai de um garotinho de dois anos e de uma menininha de um ano, Curtis foi obrigado a se casar com a mãe das crianças quando esta ameaçou-o com a separação, depois de quatro anos de vida em comum difícil. Quando um amigo lembrou-lhe que "DeeDee diz que só há uma coisa pior que junk food [para um boxeador], que são as mulheres", Curtis concorda: "Béé, foi por isso que eu me casei. Todos os combates que eu perdi foi quando eu ficava azarando as meninas. Depois, minha mulher falou que se a gen- te não se casasse, ela ia me largar e ponto. Isso me fez pensar, porque eu gosto dela, e tudo isso, então eu disse, não quero per- der ela, isso não, e depois esse negócio ferra você, esse negócio liqüida com o meu boxe também [aU this messin' around messes up my boxin']. Então eu casei com ela." Como suas rendas são poucas e irregulares (seu emprego no Boys Club rende-lhe menos de 100 dólares líqüidos por semana e não inclui seguro social e de saúde), os fins de mês são muito difíceis de atravessar, e os tíquetes-alimentação [food stampsJ, que a fa- 154 - Lo"ic Wacquant mília recebe do governo, são um recurso vital - Curtis, de vez em quando, vende-me tíquetes para ter dinheiro sonante, quan- do suas finanças estão totalmente a zero. Sua mulher, como ele, abandonou os estudos no meio do caminho, aprendeu datilo- grafia em um curso noturno, com a esperança, um tanto irrealista, de um dia tornar-se secretária do escrivão no tribunal de polícia da cidade. Enquanto espera, ela trabalha, há três anos, como gar- çonete em um bar que vende quentinhas, mantido por uma fa- mília tailandesa em um setor mal-afamado do bairro negro de South Shore, ao sul de Woodlawn. "Saca só, Louie, o que é bem legal é que cada um tem a sua car- reira, não é como esse pessoal que um tem que carregar o outro nas costas. Minha mulher tem a carreira dela, ela trabalha pra valer, e eu tenho a minha carreira aqui, posso me concentrar na minha carreira, ganhar pra minha carreira. Eu, tudo o que eu tenho que fazer é lutar pra valer, e Deus vai me ajudar a enfren- tar a grande luta que vai fazer eu ganhar muita grana, ganhar o título mundial e uma boa bolada. Vou me tornar um big man, é isso." Ele ri e finge boxear a minha barriga. Rio junto com ele, mas a cena é antes patética, ele com a vassoura e a pá na mão, desenhando um quadro tão atraente quanto improvável e rego- zijando-se das "carreiras" inexistentes, pelo menoS naquele dia, enquanto eu, jovem graduate das universidades de elite, venho perder a timidez nesse clube de boxe, por horror e cansaço da rotina acadêmica, com os seus privilégios. BUTCH: "AGORA NÃO POSSO DEIXAR CAIR A PETECA" Wayne Hankins, 1,87 metros de altura e 78 quilos de músculos, 29 anos, boxeou durante sete anos entre os amadores. antes de se tornar profissional, em 1985. Mais conhecido no clube pelo apelido de "Butch", é um dos raros membros do clube que pode se gabar de ter uma profissão estável e invejada: ele é bombeiro- encanador da cidade de Chicago, um emprego público muito bem remunerado (cerca de três mil dólares por mês) e devida- mente protegido pelo poderoso sindicato dos funcionários da Prefeitura (o que lhe vale uma cobertura de seguro-desemprego e de saúde, assim como o direito a férias remuneradas). Por oca- sião dos encontros, "The Fighting Fireman" - é seu nome de guerra - apresenta-se no ringue vestido com um magnífico rou- pão vermelho cintilante, 'com o logotipo e a sigla do sindicato Corpo e olmo - 155 Wayne Hankins, Butch, o eterno plácido, soca a pêra de velocidade. dos bombeiros do município bordados nas costas, e uma fiel legião de colegas de trabalho vem aclamá-lo ruidosamente das grades, toda vez que ele aparece. Casado e pai de uma família numerosa ("Na minha casa, tem quatro filhos, meu pai, um ca- chorro, um gato, sete passarinhos e um aquário gigante"), ele acumula esse emprego de bombeiro com outro, bem menos pres- tigioso e, sobretudo, bem menos remunerado, de bagger (empacotador) em uma loja da cadeia de supermercados Jewel, para melhorar a qualidade de vida de sua família. Na época, du- rante o fim de semana, ele cortava cabelos e aparava bigodes na cadeira de barbeiro que instalou em sua garagem. Butch é famoso e admirado pela disciplina implacável que se impõe, tanto no treinamento como fora do ginásio, por uma vontade feroz de ser bem-sucedido, mas também por sua fleu- ma, seu sangue-frio e o controle total sobre si mesmo, perfeita- mente adaptado à sua estratégia de "boxer-puncher". Entre as quatro cordas, ele é o arquétipo do lutador cada golpe é computado, cada esquiva é planejada, cada deslocamento do corpo é milimetricamente ajustado de modo a minimizar seu gasto de energia e a maximizar o desgaste de seu adversário. Será que é a racionalização objetiva da existência que seu emprego de bombeiro impõe (que não tolera atrasos nem incertezas quanto a horários e à disponibilidade) o que sustenta esse pugilista, ou, 156 - Lok Wacquant ao contrário, uma predisposição geral para a economia e para a eficácia com frugalidade teria levado-o, ao mesmo tempo, a essa profissão manual e ao ringue? t. difícil responder. De todo modo, existe uma afinidade espantosa entre a regularidade e a previsi- bilidade das práticas cotidianas que sua inserção profissional demanda - e que prolonga a do pai, antigo operário de constru- ção - e a maneira que Butch tem de empenhar seu corpo no gym e no ringue. Em 1983, Butch também arrebatou as Golden Gloves de Chica- go e passou a nutrir a esperança de ganhar o título nacional de amadores de peso médio, o que lhe valeria participar dos Jogos Olímpicos, integrando a equipe norte-americana. Mas, seriamen- te enfraquecido por uma contusão sofrida durante um treina- mento (lábios cortados e língua lacerada por um uppercutleva- do depois do gongo, que significaram quinze pontos de sutura na boca), ele perdeu por um triz na final, depois de ter vencido heroicamente pelas quatro rodadas eliminatórias. DeeDee lem- bra-se, com um tremor de admiração na voz, como Butch recu- sara-se a desistir, mesmo quando não conseguia comer pratica- mente nada e emagrecia a olhos vistos, já perto da luta nacional. "Eu disse a ele: 'Você não pode boxear assim, isso não adianta nada, vai ser péssimo, é preciso que você se declare incapacita- do.' E ele me respondeu: 'Nem pensar, DeeDee, depois do que eu já suei para chegar até aqui, não posso deixar cair a peteca'. E ele foi." Depois dessa amarga desdita, Butch passou três anos sem boxear. Preferiu a segurança do emprego de bombeiro, que então lhe ofereciam, às perspectivas bastante aleatórias de uma carreira de pugilista profissional. Foi a essa altura que ele casou-se e for- mou uma família. Mas o demônio do ringue rapidamente pre- valeceu, e Butch voltou a encontrar o caminho da academia, com uma vontade de ganhar reduplicada. Sua paixão pelo boxe não o impede de permanecer lúcido e realista: interroga-se sobre seu futuro esportivo e nem pensa em abandonar seu trabalho para jogar tudo no ringue; o sucesso entre as cordas irá decidir por ele até aonde ir. Por agora, ele fixa como seu objetivo tornar-se "o melhor de Chicago", e calcula suas esperanças de ganhos, na melhor das hipóteses, em dezenas de milhares de dólares. Toda a sua família apóia-o nessa "segunda carreira" pugilística que se abre (cinco vitórias consecutivas, sendo quatro por nocaute e Corpo e olma - 157 um empate); a mulher e o pai, que, no início, eram reticentes, assistem a todos os seus combates e são pródigos em encoraja- mentos, em todos os instantes, tanto em casa como durante os encontros, quando fazem parte dos torcedores mais animados de Butch. Uma das obsessães dos praticantes do Manly art é manter-se, senão no peso ótimo, pelo menos nas proximidades de seu peso regulamentar. 1511 A velha balança metálica de braço que reina na sala dos fundos, está ali para lembrar a todos essa exigência. O folclore pugilista é cheio de relatos de boxeadores obrigados a fazer rocambolescas proezas atléticas de última hora - muitas ve- zes, perigosas do ponto de vista médico -, de modo a perder os quilos a mais antes da fatídica pesagem.(52) Os membros do Woodlawn Boys Club recorrem a dietas draconianas ou a inter- mináveis corridas para livrar-se dos quilos em excesso antes de um combate; outros treinam vestidos com várias calnadas de rou- pas, ou enrolados em sacos plásticos, ou, ainda, COIn o tronco apertado por uma cinta de borracha, que se julga ajudar a ema- grecer. Em um verão, Clift perdeu mais de quatro quilos corren- do a tarde inteira das vésperas de uma luta vestido com casacos, (51) Sempre é possível combater na categoria superior, caso se engorde muito. Mas isso constitui uma desvantagem considerável, por razões puramente físicas de diferenças de peso (e de altura) entre divisões às quais estão asso- ciadas diferenças táticas. Raros são os pugilistas que podem subir uma cate- goria "levando seus golpes com ele", segundo uma expressão consagrada. (52) No plano local e regional, tanto amador quanto profissional, os desvios de peso raramente são decisivos, e é excepcional que um empresário decida retirar seu pupilo de uma luta no último momento sob pretexto de que o adversário está ligeiramente acima do peso regulamentar, como é permiti- do pelo contrato previamente combinado. No entanto, quanto mais se sobe na hierarquia da Nobre Arte, mais a gestão do peso torna-se acurada, so- bretudo nas categorias intermediárias, dos pesos ligeiro ao médio. Uma diferença de meio quilo pode bastar para influenciar o resultado de um combate muito disputado. No primeiro encontro entre Thomas "The Motor City I-litman" Hearns e Sugar Ray Leonard, em 1981, por exemplo, os especialistas explicam com naturalidade a derrota de Hearns por no- caute técnico [TKO: fechniCi.l1 knock-oHI], no décimo-quarto assalto, pelo fato de que ele havia dado um ponto de graça ao adversário quando subira à balança com o peso abaixo do máximo autorizado para sua categoria. 158 - lok Wacquant um espesso gorro de lã e duas calças, debaixo de um sol de rachar. Em uma bela tarde de junho, encontro os vestiários fechados e saturados de vapor d'água, a ponto de parecerem um banho tur- co: Tony estava boxeando o ar, correndo no mesmo lugar, perto da ducha quente, que jorra às cascatas, enfiado em um grosso sobretudo, com a cabeça e o tronco metidos em um colete com capuz de plástico transparente: "Preciso perder nove quilos, Louie, puf-puf, é por isso que eu estou aqui, puf-puf. A pesagem é ama- nhã de manhã, puf-puf. Vou conseguir pelo menos uns dois." DeeDee exerce uma vigilância minuciosa e contínua sobre o estado físico de seus pupilos, para assegurar-se de que eles não estão muito longe do peso de combate, seja para baixo, o que indicaria um perigoso excesso de treino (ou, eventualmente, uma doença grave),153) seja para cima, de longe, o caso mais freqüente. Para conduzi-los ao caminho certo da frugalidade, ele recorre ora ao hUlTIOr, ora ao afeto, ora à autoridade bruta ou ao sarcaSIno, como se pode constatar nessa nota de campo datada de 25 de agosto de 1990. Ashante lutou sparring com Mark, depois com Reese, em três rounds cada vez. Havia um pouco de "carburante" demais, nesse caso, mas ele ainda parecia pesado e continua a treinar no rin- gue. DeeDee ficou inquieto: "Isso não está legal, o Ashante. Ele não vai conseguir se livrar de seus quilos e já não tem a menor velocidade. Reese acertou O alvo em tudo o que passou balan- çando na frente dele hoje, e Ashante fica plantado diante do Reese." É verdade que Ashante não está com a menor vivacida- de, nem com movimentação lateral, ele, que de hábito esquiva- se dos jovens amadores que "atuam" com ele. Quando ele che- gou, logo depois, DeeDee apressa-se por fazer a pergunta bas- (53) Esse foi o caso trágico de Big Ear!, um peso pesado truculento que adorava "atuar" com amadores mais leves, para fazê-los trabalhar a técnica ofensi- va. Muitas vezes, DeeDee manifestava inquietação, em voz alta, pela súbita perda de peso de Big Ear!, que lhe parecia desproporcional ao esforço feito no salão, tanto pela sua amplitude como pela rapidez. De fato, Big Ear! seria internado no hospital algumas semanas mais tarde, com uma leucemia fulminante, provocada pelo manejo de produtos tóxicos em seu emprego como técnico de uma firma de fotocópias. O velho treinador, infelizmen- te, estava certo quando supunha que Bir Ear! estava gravemente enfermo. Corpo e olmo - 159 tante vexaminosa: "Que onda é essa?" (vestido de jeans e cami- seta, percebe-se facilmente que Ashante ganhou peso). Ashante responde com um sorriso meio aborrecido, fingindo não com- preender que era a ele que DeeDee se referia: "Que onda, onde?" "Ali, bem na tua cara, diante dos teus olhos." Ashante não res- pondeu palavra e se mandou, com um jeito bem chateado. Um bom treinador não tem a menor necessidade de pôr seus boxistas na balança para saber que eles estão mais pesados: sabe "ler" o peso a partir da aparência física deles, em sua agilidade e mesmo somente de observar os movimentos de seus pés. Um dia de agosto de 1990, Lorenzo reaparece na academia depois de vá- rios dias de ausência sem avisar e dando uma desculpa esfarrapa- da para seu treinador, Eddie. Este diz-lhe, com um tom reprovador e falsamente interrogativo, medindo-o com o olhar: "Você está pesando quanto, ISO?" Lorenzo não se dá por achado; observa-se dos pés à cabeça no espelho, pesa-se rapidamente: "Estou um pouco acima do meu peso [ou seja, 139 libras], mais ou menos umas 145, eu acho." "Você está com cara de estar com 150 libras quando anda." "Não, tenho certeza de que são 145, mais ou me- nos." Fim do argumento, mas não do problema. Uma das principais funções do par formado por treinador e empresário é modular ou ajustar a trajetória de seu pupilo no tempo, de forma a otimizar o "retorno do investimento" pugilís- tico do trio, isto é, a relação entre o capital corporal aplicado e os dividendos obtidos pelos lutadores sob a forma de dinheiro, de experiência pugilística, de notoriedade e de contatos úteis com agentes que têm influência no campo, como é o caso dos promo- tores. Essa gestão efetua-se em três ordens relativamente inde- pendentes, que ela deve se esforçar para fazer coincidir: a temporalidade da carreira individual do boxeador, a trajetória dos adversários potenciais e o "tempo econômico" dos promotores. O ideal é levar seu boxeador ao ponto ótimo (mesmo que este seja local) no momento em que se oferece a ocasião de pô-lo em confronto, por um cachê considerável, com um boxeador de re- nome que esteja no limite de uma fase de declínio, e que, portan- to, ainda desfrute de um capital simbólico acumulado (prêmios, títulos e fama) claramente superior às suas capacidades pugilísti- 160 - Lo"ic Wacquant cas.(54) Mas quanto mais se sobe na hierarquia do campo pugilís- tico, mais o controle do tempo escapa aos lutadores, passando a fazer parte da incumbência dos agentes econômicos especializa- dos e, sobretudo, dos promotores e dos responsáveis pelas trans- missões esportivas nas emissoras de televisão que programam as grandes lutas mediáticas. Como observa, com muita proprieda- de, Thomas Hauser, "o tempo é o inimigo" dos boxeadores, e não somente porque eles envelhecem e desgastam-se.!O" Essa gestão da passagem do tem po começa com os amadores, entre os quais alguns, por conta própria ou mal aconselhados, desgastam-se na busca de uma efêmera glória regional ou nacio- nal COlTI repercussões econômicas incertas) de modo que) quando entram na categoria de profissional, já consumiram seriamente seu capital-corpo e não podem mais esperar por uma carreira longa e profícua. Segundo DeeDee, esse é o caso de Kenneth "The Candy Man" Gould, que recentemente ganhou uma medalha olímpica norte-americana em SeuL e desgastou-se lTIuito entre os amado- res, disputando, nessa categoria, mais de 300 encontros: "Ele já lutou demais. Não sobrou muita energia pra ele [not enough peps [eft in him I. Não sei, não, precisa ver. Há anos, eu disse pra ele virar profissional." Por que ele não fez isso? Munido de um em- presário inexperiente ou mal situado nas redes de influência, Gould teimara a todo custo em disputar as Olimpíadas de Seul (onde o francês Laurent Boudouani venceu-o na semifinal). O futuro de Kelcie Banks, de 22 anos, outra jovem esperança de Chicago (ex-freqüentador do Woodlawn Boys Club e campeão do mundo como amador), do mesmo modo vencido nas preli- (54) A luta pelo título mundial dos superleves, na versão WBC, disputada em fevereiro de 1989, por Renê Jacquot e Donald "The Cobra" Curry, é um bom exemplo de gestão bem-sucedida por parte do pugilista francês e sua entourage. Transcendido pelo evento, Jacquot "colheu" Curry no momento em que este último ainda desfrutava de um grande prestígio, embora sua fama já estivesse bastante diminuída (ele acabava de sofrer duas sérias der- rotas antes de voltar a ganhar o cinturão de campeão do mundo). E aquilo que, para o Cobra, deveria ser uma simples luta de aquecimento para se preparar para o "próximo evento", a "eliminação direta de um adversário obscuro e pobre", transformou-se em derrota, dando à França a oportuni- dade inesperada de "entrar na lenda" do boxe. lOS Corpo e alma - 161 minares das últimas Olimpíadas, parece estar ainda mais com- prometido: mais de 600 combates amadores, chegando até a três encontros por semana, em pequenos torneios sem expressão: "Isso quer dizer um bocado de socos e um bocado de desgaste [wear and tear] para um corpo jovem ... muito desgaste", rumina DeeDee, quando evocamos esse caso. Alguns meses mais tarde, sua profe- cia parece estar em vias de realização: "Kelcie? Ele não faz nada, não vai fazer nada: ele está prejudicado [washed out], acabado. Pensa só, ninguém quer alguém que já está prejudicado. Ele fre- qüentou esse campo de treinamento no Texas [onde os jovens recrutas profissionais são selecionados pelos grandes agentes na- cionais], mas isso não adiantou de nada. Ninguém assinou nada com ele. Se ele tivesse ganho os Jogos Olímpicos, teria ganho tam- bém um bônus de trinta ou quarenta mil dólares, na bucha. Mas ele deixou que batessem nele e não pegou nada. Está muito mal- tratado [beat up], ninguém vai pôr um centavo num carinha que já está liqüidado." Para se designar um boxeador no final de carreira, fala-se que ele "já deu o seu tempo" e que "passou a sua hora", que ele está "liqüidado" [washed up], ou, ainda, "detonado" [shot], ou, pior ainda, que entrou na categoria de "carne morta" [dead meat]: seu capital-corpo está muito desvalorizado para que ele possa esperar vencer lutadores mais jovens, mais vigorosos e menos cansados. Na melhor das hipóteses, ele pode ambicionar que os organiza- dores de reuniões mantenham-no como "valorizador" de estrelas em ascensão; a superexploração de seu capital-corpo, nesse caso, permite que esses pugilistas novos aumentem suas vitórias com um menor desgaste de seu próprio capital-corpo, tal como indi- cam essas anotações de campo: Enquanto DeeDee ajusta minhas luvas, dirijo-lhe perguntas so- bre Hightower - com o mouth-piece na boca, mastigo as pala- vras, embora se pudesse achar que eu estava falando como um negro norte-americano. o que não parece atrapalhar em nada a compreensão de DeeDee. Hightower é um antigo profissional do clube que decidiu voltar ao ringue aos 38 anos completos; ele teima absolutamente em fazer sparringcom Butch. DeeDee não gosta muito dele, porque boxeia com muita brutalidade e sem qualquer controle, sem dúvida, para restaurar seu prestígio na 162 - Lo"ic Wocquant bolsa de valores pugilísticos: "Ele pensa que pode voltar a lutar, mas está acabado. Ele está acabado, mas o carinha continua a sonhar, ele sempre tem esse sonho [de glória]. Acha que pode segurar a onda e voltar a lutar, mas ele está muito gasto. Está muito tarde. Antes, ele era um bom pugilista, mas agora ele está castigado demais [bmt upj." [Nota de 17 de dezembro de 1988.] O imperativo de entesourar a energia corporal afirma-se tam- bém no curto espaço de uma sessão de treinos. Comprovação disso é a insistência com que DeeDee nos proíbe de fazer exercí- cios no saco de areia antes de subir para "jogar" no ringue: "De- vagar, devagarinho, Louie, guarde suas forças para o sparring. Já falei pra você deixar esse saco de areia em paz, droga!" É essa mesma necessidade de deixar o corpo repousar que justifica as "folgas" periódicas, sobretudo no dia seguinte ao de um comba- te difícil. DeeDee, em geral, concede uma longa semana de folga para seus boxeadores depois de uma luta - duas semanas, se o combate foi particularmente duro do ponto de vista físico. De- pois que, com tristeza, interrompi meu treinamento durante duas semanas, por ocasião das festas de Natal, o velho técnico conso- la-me: "De vez em quando, precisa sair da sala, arejar um pouco, faz bem. Depois, quando você retoma, tem mais gás. Mas é pre- ciso não parar por muito tempo, de jeito nenhum. Senão você perde a forma, perde a velocidade, seu timing fica desregulado." [Nota de 5 de janeiro de 1989.] A regulação da violência no ringue faz parte integrante do dis- positivo geral de preservação do corpo do pugilista. N o trecho de minha caderneta que vem a seguir, DeeDee lembra essa regra de gestão a Eddie, após um incidente de 'parring. No segundo round, Rodney ficou vendo estrelinhas, atingido por Ashante, que explica: "Vi logo, logo que eu tinha machucado ele e estava preparado para segurá-lo, DeeDee, caso ele tivesse caí- do. Eu bem sabia que a gente devia ter parado." Mas os dois amigos de clube continuaram a boxear, mesmo depois que Rodney mal se sustentava sobre as pernas. DeeDee lançou a Eddie um olhar severo e, com um tom vivo de reprovação: "Quando teu menino é atingido desse jeito durante o sparring, você tira ele do ringue. Você não deixa ele levar uma surra ou que tente se virar por conta própria. Você tira ele do ringue. Esse é o teu servi- Corpo e alma - 163 ço, tirar ele nesse exato momento, entendeu?" Eddie, envergo- nhado, em voz baixa: "Tudo bem, DeeDee, tudo bem. Eu não sabia. Da próxima vez, eu já estou sabendo, eu tiro ele logo." o domínio prático do tempo é uma dimensão central do sucesso da aprendizagem do ofício de boxeador. ~ ' I s s o leva tempo", "Apro- veite o tempo", «Persevere, isso vem com o telnpo", "Não se pre- cipite", essas são expressões que voltam sem cessar dentro da aca- demia, seja qual for o nível do boxeador, e que contribuem para que cada qual aprenda a demonstrar seu investimento físico e moral na duração temporal específica do campo. É também esse investimento corporal no tempo, o lento processo de incorpora- ção da técnica pugilística e de somatização de seus princípios bá- sicos, que marca a fronteira entre os praticantes ocasionais e os boxistas regulares e que interdita a passagem imediata de uma categoria para outra. O treinador assistente Eddie lembra essa dis- tância com um sarcasmo deliberadamente exagerado para um vi- sitante que tentava desajeitadamente bater na pêra de velocidade: "Ei! É melhor você parar com isso: leva anos de serviço pra você aprender a bater nesse aparelho." Para um antigo boxeador, bem conservado fIsicamente, é preciso um mínimo de três meses de treinamento intensivo para voltar às condições de combate; para os amadores, são precisos, no mínimo, dois ou três anOS de práti- ca regular antes de se dominar razoavelmente a panóplia básica do pugilista, e três anos mais antes de se produzir um profissional completo. O boxe é "uma escola de paciência, de disciplina e de perseverança", o antípoda da "gratificação imediata". 107 Testemu- nha disso são essas três anotações de campo, entre centenas de outras que se poderiam citar aqui. Em 19 de novembro de 1988, Eddie vem encorajar-me, enquan- to estou pulando corda: "Eu estava te vendo trabalhar no saco de areia, Louie, você melhorou tremendamente, tua coordena- ção melhorou." "Obrigado, maS agora o que eu preciso mais é fazer sparring." "Não confunda as coisas, isso ia ser perda de tem- po, continue a trabalhar e você chega lá. Isso é uma questão de tempo." Em 17 de dezembro do mesmo ano, foi Butch que, enquanto retomava o fôlego estirado sobre a mesa entre duas séries de abdominais, disse-me que eu estava fazendo progres- 164 - Lo"ic Wacquant sos, mas que ainda levo muitos golpes: "Você precisa se proteger melhor. Você vai aprender. Isso não pinta num dia. Mas leva tempo." Em 4 de março de 1989, Butch, mais uma vez: "Quan- do você começa a sentir teu jabe, quando você sente que pode manter teu adversário a distância com teu jabe, o resto pinta por si mesmo. É preciso trabalhar, o resto pinta devagar. Há quanto tempo você está treinando?" "Cerca de seis meses." "Hum, isso não é nada. É preciso dar tempo, é preciso continuar." Persistir com paciência, esperar sua hora sem relaxar, dosar o esforço no tempo, demonstrar suas expectativas e, ao mesmo tem- po, ocultar suas emoções: estas são as qualidades decisivas da aprendizagem do boxe. Se o boxeador não as possui, o técnico pode compensá-las impondo-as de fora; por exemplo, privando o pugilista do sparringdurante um período predeterminado, caso ele seja muito impaciente, ou amiudando suas lutas de modo a quebrar o andamento de sua rotina. Além dos conselhos dos pa- res e das diretrizes do treinador, é o corpo que, por ele mesmo, regula, em última instância, a velocidade e a tendência da pro- gressão. Um excesso de treino rápido ou repetido provoca contu- sões que, mesmo quando são leves, logo revelam-se suficiente- mente incõmodas, a ponto de forçar uma quebra da cadência: pequenas feridas reincidentes na aresta do pulso ou muitos vasos rompidos entre os dedos limitam o trabalho no saco de areia; um joelho doído impede que se pule corda; uma costela dolorida, depois de uma sessão de sparring brutal, não permite que se fa- çam abdominais. Mais do que as contusões sérias, é o acúmulo de pequenas mazelas e de perturbações físicas que serve como regu- lador natural da carga de trabalho, como comprova essa passa- gem de meu diário de campo, de 6 de outubro de 1988. Ontem, quarta-feira, acordei com o pulso direito inchado e muito dolorido: forcei demais a barra no saco de areia, na terça-feira, batendo como um animal, e agora pago por isso! Ainda hoje ele está frágil, e eu não consigo flexioná-lo nem pegar um objeto pesado com essa mão. Portanto, não poderei trabalhar no saco de areia, para minha grande tristeza. Mesmo assim, vou ao gym. [ ... J DeeDee, que bem me avisara, mas em vão, aconselha que eu me contente em fazer shadow, para poupar o pulso. O treina- Corpo e olma - 165 menta é terrivelmente doloroso: sinto uma dor medonha na mão direita, não consigo pular corda. Chego mesmo a fazer uma sé- rie no speed bag com uma única mão. E logo meu braço esquer- do também se faz sentir; ele está formigando, como se estivesse morto, a ponto de eu ter vontade de parar apenas depois de dois rounds diante do espelho. o esgotamento físico resultante de um excesso de exercícios diminui a vivacidade e o tônus no ringue, aumentando as chances de contusão e de uma interrupção prolongada, e, portanto, de uma falta de treino. Uma parada forçada pode, por sua vez, levar a uma retomada muito acelerada, e, daí, a um novo excesso. E assim por diante. Para boxear ao longo do tempo, é preciso apren- der, por meio de uma dosagem progressiva, a ajustar o esforço de modo a entrar num círculo vicioso em que o treinamento na aca- demia e o confronto no ringue alimentam-se e reforçam-se mu- tuamente e em que suas temporalidades próprias entram em sinergia. Os quatro trechos de notas de campo que se seguem ilus- tram as diversas maneiras como o problema da gestão do corpo, da preservação de sua integridade e de sua energia apresentam-se para os boxeadores, tanto na academia e no ringue como na vida cotidiana. ALGUMAS FIGURAS DA GESTÃO DO CORPO Depois do empate de Butch no Park West [8 de maio de 1989] Primeiro obstáculo para a vitória profissional de Butch: depois de cinco vitórias, sendo quatro por nocaute antes do terceiro round e com apenas um dos combatentes indo até o final da luta, ele pas- sou por dificuldades ontem, na reunião de Park West. Será que o adversário era muito forte? DeeDee fala com ironia: "Você está falando, Butch ficou enjoado de se lançar numa luta perdida. Ele não tinha mais nada no bolso desde o segundo assalto. Nenhum gás [no gas]. O outro camarada não sabia boxear, mas Butch não conseguiu mandar ele à lona. Bem que ele tentou, mas não conse- guiu. É sparring demais. Eu falei pra ele não abusar do sparring, droga, mas ele arrumou um jeito de 'jogar' oito rounds no sábado passado! Resultado: ele não teve gás para o combate e precisou correr atrás do camarada o tempo todo pra nada. [ ... ] 166 - Lo'ic Wacquant "Não é o desgaste (it ain't no wear and tear] dos combates; é um excesso de treinamento. Butch é ansioso, nervoso, e ele treina muito pesado, treina demais. Está sempre com medo de não es- tar preparado. Já briguei com ele o bastante, já briguei muito com ele exatamente por causa disso. [Com veemência.] Já disse pra ele não fazer tanto sparring. Já disse pra ele não passar muito tempo no saco de areia depois do sparring. Tudo o que ele preci- sa fazer é descontrair, trabalhar o jabe, é só. Mas ele não quer escutar meus conselhos. Está bem. está certo! Ele vai ver na pele quem tem razão. E ali. ele ficou enjoado. e me saiu com esse empate, mas bem que ele poderia ter perdido, porque já estava exausto desde o segundo round. Além do mais, isso não é da minha conta [that's none of my business]. Esses caras que não querem escutar, tudo bem, pior pra eles! Ele quis fazer sparring, tudo bem. Eu bem sabia que ele ia ser massacrado, queimado [worn out, burned out]. Você tem os caras, eles se acham mais espertos, acham que já sabem de tudo." O velho técnico lança um olhar de aborrecimento para o teto. Depois do combate difícil de Curtis em Harvey [7 de dezembro de 1988] DeeDee sai dos vestiários móveis de madeira, seguido de perto por Curtis, já vestido em calças jeans e suéter de lã. Eles sentam- se a distância, no fundo da sala, para tirar as lições do combate. DeeDee, com o olhar severo, inclina-se em direção a Curtis, para passar-lhe um sermão vigoroso. Ele está furibundo por Curtis ter se deixado tocar tanto por seu adversário sem se esquivar melhor e sem se proteger. Que este último estivesse evidente- mente fora do peso (ele pesava 137 libras, em vez das 130 regu- lamentares, contra 132 libras de Curtis, que não parava de repe- tir que "esse cara era um pitbull. man, toda vez me mandam um pitbulf' não era desculpa para que Curtis se deixasse levar pela sorte. Ele tomou muitos golpes e saiu bastante arriado, com o rosto tumefacto, um corte feio na bochecha direita e um pro- fundo talho no olho esquerdo, que certamente iria precisar de alguns pontos. Segundo a opinião geral, Curtis devia ter "arra- sado" com seu oponente no segundo round, quando o havia man- dado à lona com uma combinação de golpes cortantes. Em todo caso, ele devia ter lutado de modo mais inteligente, mantendo- se a distância, em lugar de ceder às provocações do adversário e Corpo e alma - 167 aferrar-se a um corpo a corpo brutal. O'Bannon confiou-me. mais tarde: "Curtis não vai muito longe se ele deixar que um tipo desses o esmurre, será que não sabe se poupar melhor que isso? A estrada é longa. Caras como esses, a gente tem que se livrar deles rapidinho." Os próprios boxeadores estão prontos a atribuir a queda súbita de um dos seus a uma falha na disciplina e na higiene corporais que todo pugilista deve impor-se fora do ringue. Toda infração, na ascese mundana que define o regime espartano do boxeador ideal, é prontamente interpretada como a causa direta de seus fracassos no ringue. o declínio físico e pugilístico de Alphonso [19 de novembro de 1988] Curtis imita golpes, fendendo o ar com seus punhos e soltando "Hamm! Hamm!" sonoros. Butch acompanha-o com atenção. Levo alguns minutos para compreender que eles falam do com- bate da última quinta-feira, em que A1phonso Ratliff perdeu o título nacional e, segundo eles, deixou-se tomar uma bela enfia- da de golpes (foi à lona duas vezes, no quarto assalto, antes de ser posto a nocaute, no quinto). Curtis: "O carinha conseguia encaixar todos os golpes e batia nele, no corpo e na cabeça, e nunca nas luvas. Alphonso contentava-se em deixar os braços assim [ele se pôs em guarda, com a cabeça protegida pelos ante- braços] e ficava parado." Curtis e Butch não escondiam sua re- provação pelo fato de que Alphonso contava muita vantagem antes da luta. "Ele berrava: 'Vou acabar com esse cara, ele não vai agüentar cinco rounds contra mim', e você nunca fala coisas desse gênero antes de um combate, cara! E depois foi ele que apanhou." A luta fora transmitida por uma rede de TV a cabo de Chicago, o que se tornara ainda mais penoso para a reputação de Alphonso. Curtis e Butch concordam que ele está chegando ao final da carreira. "Ele está despencando ladeira abaixo [goin' downhill], com certeza. Seria melhor que pendurasse as luvas. Está acabado, cara, acabado. Nunca mais ele vai lutar um com- bate valendo o título, cara." Pergunto por que Alphonso deixou-se esmurrar tão facilmente: seu adversário era tão superior assim, ou Phonzo estava mal pre- parado? Butch: "Saca só, cara, o camaradinha tem 33 anos ago- 168 - Lo"ic Wacquant ra, Louie. Quando você está nessa idade, precisa se manter em forma. Não se brinca com álcool, não se brinca com drogas, não se brinca com mulheres." Sentado em seu banquinho, ele imita uma cópula, com um inequívoco movimento de quadris. "Esse treco cobra seu preço [take a toIl on you l. Se você não se mantém afastado dessas coisas, aos 33 anos, cara, você está acabado, arra- sado. Olha pra mim. Eu não brinco com nenhuma dessas coisas e me mantenho em forma. Mas Alphonso, ele brinca com as três, principalmente com as mulheres." Novo movimento sugestivo dos quadris. "Ele agora está muito velho pra esse tipo de coisa, cara. Já passou o tempo dele. Ele devia abandonar os combates, pendurar as luvas, de verdade." o escândalo do pugilista que fuma [28 de julho de 1989] Ashante conversa com Luke, que acaba de concluir sua sessão de treinamento, tendo, ao fundo, o barulho ensurdecedor que Smithie faz no speed bago Ele conta a história de um cara chama- do Ray, que era "o melhor peso pesado da cidade. Cara, esse sujeito era superbárbaro, tinha um golpe daqueles. Mas depois, ele não tomou muito cuidado com ele mesmo, não era sério a esse ponto. Ele fazia de tudo e não treinava pra valer - todo mundo sabia disso. Mas no dia em que eu vi, com meus própri- os olhos, ele fumando um cigarro logo depois de uma luta, aí eu entendi que ele nunca mais ia ser bom naquilo." Luke fica mudo, sem reação durante dez segundos. Depois, brus- camente, como se realizasse com atraso a enormidade da coisa, lançou sobre Ashante um olhar incrédulo. E com o tom de um padre que acaba de ouvir uma blasfêmia na sala da sacristia, ex- clama, rolando os olhos escandalizados: "Ele estava fumando depois de uma luta?!! Ele estava fumando nos vestiários, depois do combate? [Como se essa fosse uma monstruosidade inconcebí- vel. J" "Não, não nos vestiários, na platéia. Eu vi ele sentado na platéia depois da luta, tragando um cigarro. junto com um cole- ga dele. E aí então eu saquei que, prn ele, estava tudo acabado, cara." A sabedoria específica do técnico é conseguir estimular e do- sar os esforços de seus pupilos ao mesmo tempo com relação a seus corpos e com relação às múltiplas temporalidades próprias Corpo e alma - 169 à instituição e assegurar o funcionamento harmonioso da com- plexa maquinaria coletiva que transmite o saber e suscita os in- vestimentos dos boxeadores (no duplo sentido da economia e da psicanálise). Ao orquestrar as múltiplas ações que, imbricando- se, definem o gym como configuração móvel de agentes interde- pendentes, DeeDee contribui para produzir e para cristalizar a crença pugilística. Ao contrário do que sugerem Weinberg e Arond, essa função moral não se manifesta apenas em momen- tos de crise, em que o desencanto torna-se subitamente ameaça- dor, mas de modo constante, na rotina cotidiana da academia. As situações críticas, como os dias seguintes às derrotas, lnuitas vezes geradoras de um questionamento prático da illusio pugi- lística, em que o treinador desempenha abertamente o papel de confidente, de sustentáculo e de prosélito, dissimulam O traba- lho anódino de treinamento e de produção contínua da crença que se efetua no dia-a-dia, de maneira invisível e inconsciente, pela mediação da própria organização da academia e de suas atividades. Ao final desse caminho iniciático - temporariamente inter- rompido pelo trabalho necessário à objetivação -, o boxe revela- se uma espécie de "ciência selvagem", uma prática eminentemen- te social e quase culta, exatamente porque ele parece pôr em jogo somente os indivíduos que arriscam seus corpos no ringue, em um confronto singular de aparência rudimentar e desenfreado. E o pugilista emerge como O produto de uma organização coletiva que, embora não seja pensada ou desejada enquanto tal por al- guém, nem por isso deixa de ser objetivamente coordenada pelo ajustamento recíproco das expectativas e das demandas daqueles que ocupam diferentes posições no espaço do gym. Esses ele- mentos de uma antropologia do boxe como "fenómeno biosso- ciológico"IO" põem em evidência o lugar central da razão prática, nesse caso limite da prática que é o pugilismo, e convidam-nos a superar as distinções tradicionais entre o corpo e o espírito, entre o instinto e a idéia, o indivíduo e a instituição, 110 mos- trando como os dois termos dessas antinOlnias perenes consti- tuem-se em conjunto e servem-se como suporte mútuo, especi- ficam-se e reforçam-se, mas também enfraquecem-se, em um mesmo lnovimento. 170 - Lo"ic Wacquant Notas 1. George Plimpton. Shadowbox. Nova York: Putnam, 1972, p. 38. 2. Percebe-se isso à primeira vista, comparando-se, por exemplo, as descri- ções do New Oakland Boxing Club, de Oakland, na Califórnia, com as do célebre Kronk Gym de Detroit, feitas por Ralph Wiley (Serenity: a boxing memoir. Nova York: Henri Holt and Company, 1989, p. 28-29, 153 e ss.); do Rosario Gym de East Harlem, em Nova York, por William Plummer {ButterclIps {lnd strong boys: il sojOUrll <1t the Golden Claves. Nova York: Viking, 1989, p. 51 e ss.); e do Cabbagetown Boxing Club, no subúrbio de Toronto, por Stephen Brunt (Mean business: the rise ilnd fall of Shawn Q'Sulliviln. Markham: Penguin, 1987, p. 43-69). O livro da fotógrafa Martine Barrat, Do ar die (Nova York: Vicking, 1993, prefácio de Martin Scorcese), fornece uma tradução visual fid da atmosfera de um salão de boxe em Nova Yorkque não deixa de evocar o saboroso retrato que Ronald Fried fez do Stillman's Gym no seu auge (Comer Mell: Great Boxing TraiIlers, Nova York: Four Walls Eight Windows, 1991, p. 32-53). 3. t:mile Ourkheim. L 'f'ducatioJ1 morale. Paris: PUF (I 902-1903), 1963. 4. Guy Lagorce. "Mort dans l'apres-midi?". L'Express, 17 de março de 1989 (sobre o fracasso no ringue do boxeador da Costa do Marfim David Thio). Para uma ode à Nobre Arte, pode-se ler George Peters (Pleins feux sur les rings. Paris: La Table Ronde, 1970, especialmente p. 199-200). Pode-se encontrar uma recapitulação dessa dialética do culto fascinado e da con- denação horrorizada do boxe no Estados Unidos no breve estudo históri- co de Jeffrey Sammons (Beyond the ring: the role of boxing in American society. Chicago: University ofIllinois Press, 1988). 5. Pierre Bourdieu. "Programa para uma sociologia do esporte". In: [Coisas ditas] Choses dites. Paris: Minuit, 1987, p. 214. 6. Mareei Mauss. "Les techniques du eorps". In: Sociologic eC anthropoJogie. Paris: PUF, (1936) 1950, p. 368-369, grifos nossos. 7. Marcel Mauss, ibid., p. 383. 8. Martíll Sánchez- Jankowski.lslcwds in lhe street: gillJgS in American society. Berkeley: University of California Press, 1991; Mercer Sullivan. 'Cetting p,úd': youlh, crime ilnd work in lhe inllercity. Ithaca: CorneU U. P., 1989; Philippe Bourgois.ln ofrespect: sdling crack in El Barrio. Cambridge: Cambridge U. P., 1995. 9. Para essa comparação, encontra-se uma sociografia sucinta da deteriora- ção acelerada dos bairros negros do gueto de Chicago em LOle Waequant e William Julius Wilson. "The cost ofracial and class exclusion in the inner city". AlllWls of the AmeriCC111 Academy Df Political and Social Science, n. 501, janeiro de 1989, p. 8-25. 10. Para retomar o nome dado por St. Clair Drake e Horace R. Cayton em seu grande livro, Black Metropolis: a study Df Negro Jife i1l a Southern city. Chicago: The University ofChicago Press, (1945) 1994. 11. Para um estudo histórico sobre a rígida divisão racial da moradia em Chi- Corpo e alma - 171 cago, que sobredetermina toda a história da cidade e de suas populações, ver Arnold Hirsch. Making the sccond ghetto: nlCC and hOllsing in Chicago, 1940-1960. Cambridge: Cambridge U. P., 1983; para uma análise global das relações cambiantes entre desigualdade de classe e dominação racial na América durante esse período, ler a obra clássica de William Junus Wil- son. The decJining significilllce of rilce. Chicago: The University of Chica- go Press, 1980, especialmente p. 88-143. 12. Os dados que se seguem foram retirados de: Chicago Fact Book Consortium, Local commwúty felCt book: Chicago metropolitan arca. Chicago: Chicago Review Press, 1984, p. 114-116. Para uma análise aprofundada da trans- formação do gueto negro de Chicago ao longo do último meio século, re- meto a Lo'ic Wacquant, "The new urban calor live: the state and fate ofthe ghetto in Posfordist America". In: Craig J. Calhoul1 (ed.). Social theory and the polities of identity. Cambridge: Basil Blackwell, p. 231-276 [trad. bras.: "O estado e o destino do gueto: retraçando a linha de cor urbana na América pós-fordista", Estudos Afro-Asiáticos, 11. 26, setembro de 1994, pp. 99-140. Republicado em Os condenados da cidade - Estudo sobre il marginalidilde aVil11çada. Rio de Janeiro: Revan, 2001 J. 13. Chicago Tribune, Ali Americ<ln miJlstolJe. Chicago; Nova York: The Review Press, 1986, p. 170. 14. Melvin, L. Otiver. "The urban black community as nctwork: toward a soci- al network perspective". The Sociological QLwrterly, v. 29, n. 4, dezembro de 1988, p. 632-645. 15. Chicago Tribune, An AmeriCiIll millslone, op. cit., p. 170. 16. A extrema concentração da criminalidade violenta no gueto e seus efeitos devastadores sobre os jovens negros, ao longo das duas últimas décadas, sâo descritos e analisados por: JewelIc Taylor Gibbs et ai. (ed.). Young black alld 1Diile in Americ<!: an endangereel species. Dover: Auburn House Publishing, 1988; Darnell F. Hawkins (ed.). Elhnicity, raee and place. Albany: State University of New York Press, 1995; e Joan McCord (ed.). Violwet' and ehildhood in the inncr city. Cambridge: Cambridge U. P., 1977. 17. Leonard Gardner. F<It city. Nova York: Farrar, Strauss & Giroux, 1969. 18. Citados por Thomas Hauser. The black lights: inside the world of professiOllal boxillg. Nova York: McGraw Hill, 1986, p. 113 e 186. 19. Citado em Judith Folb. RW11ling down some Jincs: the language and culture ofblack teenagers. Cambridge: Harvard U. P., 1980, p. 39. 20. David Halle. Americéln 's workillg mano Chicago: The University of Chica- go Press, 1984, capo 9. 21. Para uma descrição do processo de marginalização da juventude negra dos guetos, ver: Douglas G. Glasgow. The bJaek twderclass: paverty, unemployment and cntrapmcnt af ghetto youth. Nova York: Vintage Books, 1980; Terry Williams and Williams Kornblum. Growing up poor. Lexington: Lexington Books, 1985; John M. Hagedorn. People and folks: gangs, crime .mel tht' ulldcrc1ass in Ruslbe11 City. Chicago: Lakeview Press, 172 - Lo'ic Wacquanl 1988; e William Julius Wilson. Whell work disappears. Nova York: Knopf, 1997. Uma série de perfis de prisioneiros do gueto pode ser encontrada nas reportagens de sucesso da Newsweek, retomadas por Sylvester Monroe e Peter Goldman com o título de Brothers: bL1Ck and poor - a true story of courage and survival. Nova York: William Morrow and Co., 1988; e no relato retirado do documentário radiofônico realizado por dois jovens do South Side, LeAlan 10nes e Lloyd Newman. Our America: life illld death on lhe SOllth Sidc ofChicago. Nova York: Washington Square Press, 1997. 22. A interdependência estreita dos Inundos do espetáculo, da política, do esporte e da religião, nas comunidades negras norte-americanas, é magnificamente documentada por Charles KeiI em Urban blHes. Chicago: The University of Chicago Press, 1966. 23. Cf. T. Hauser. The bbck fighls, op. cit., p. 146-171 e 179-183; Jdfrey T. Sammons. Bcyond the ring, op. cit., p. 235-245; Stephen Brunt, Mean Busincss, op. cit., pilssim; Sam Tperoff. Sugilr Ray Lconard i:111d other lloble wMriors. Nova York: McGraw-Hill, 1987; Andy Ercolc e Ed Okonowicz. Dave Tibcri, lhe ul1crowJled eh<l1npioll. Wilmington: The Jared Company, 1992. 24. Georg Simmel. "The sociology of sociability". Americall Joumal of Socia/agy, n. 55, 1949, p. 254-268. 25. Ned Polsby. Hustlers, beMs ilnd others. Chicago: The University ofChica- go Press, (1967) 1985, p. 20-30. 26. A administração do capital corporal é analisada mais em detalhes em Loi"c Wacquant. "Pugs at work: bodily capital and bodily labor among professional boxers". Body iJ1ld Society, v. 1, n. 1, março de 1995, p. 65-94. 27. Ver Roger D. Abrahams. Positively b/;"k. Englewood Clifts: Prentice Hall, 1970; Martín Sánchez- lankowsli. IslillJds in the street, op. cit.; Judith Folb. RunniJlg down some fivcs, op. cit. 28. S. K. Weinberg e Hcnri Arond. "1'he occupational culture of the boxer". AmericillJ Jour1l<ll of Sociology, v. 62, n. 5, 1952, p. 460-469 (para os dados sobre o período de 1900-1950); T. J. Jenkins. Changes in ethnic and racial reprcsentatioll among professiolliJ! boxers: <l study ill ethnic successioJl. Chicago. Tese de mestrado, Universidade de Chicago, 1955 (inédita); Nathan Hare, "A study of the black fighter". The Blaek scholar, V. 3, n. 3, 1971, p. 2-9; John Sugden. "The exploitation of disadvantage: the occupational sub-culture o[the boxer". In: John Horne ct ai. (org.). Sport, lcisurc ilnti socÍi.!l rclalions. Londres: Routledge and Keagan Paul, 1987, p. 187-209; Jef[rey T. Sammons. Beyond the ring, op. cito Sobre a trajetória dos judeus americanos no boxe durante a primeira metade do século, Stephen A. Riess. "A fighting chance: the Jewish-American boxing experience, 1890-1940". American Jewish History, n. 74, 1985, p. 233-254; para o contexto geral, Benjamin G. Rader. American sport: from lhe age of folk g<lI1lC$ to lhe age of Englewood Chiffs: Prentice Hall, 1983. 29. Peter Nids I-Icllcr. Bad intentions: lhe Mikc Tyson story. Nova York: Da Capo Press, 1995. Sobre as múltiplas significações da trajetória de Tyson Corpo e alma 173 como emblema vivo de masculinidade, ver o artigo estimulante de Tony Jefferson. "Muscle 'Hard Men' and 'Iron' Mike Tyson: reflections on desire, anxiety and the embodiment of masculinity". Boely & Society, n. 1, março de 1998, p. 77-98. 30. Stephen Brint e Jerry Karabel. "Les 'community colleges' américains et la poli tique de l'inégalité". Acres de la Recherche en Scie1Jces Sociales, 11. 86- 87,1987, p. 69-84. 31. Lo·ic Wacquant e William lulius Wilson. "The cost af racial and class exclusion in the inner city", art. cit, p. 17, 19 e 22. 32. Citado por David H.lpem. "Distance and embrace". In: Joyce Carol Oates e David Halpern (org.). Reading the fights. Nova York: Prentice-Hall, 1988, p. 279. 33. Para uma crítica metódica desse verdadeiro falso conceito e seus usos so- ciais, ler Lorc Wacquant. "L"underclass' urbaine dans l'imaginaire social et scientifique américain". In: . I 'cxclusion. I 'ét,Jl des savoirs. Paris: La Découvertc, 1996, p. 248-262 [trad. bras.: "A 'underclass' urbana no imaginário social e científico norte-americano", Estudos Afro-Asiáticos, n. 31, outubro de 1997, pp. 37-50. Republicado em Os condenados da ci- dade, op. cit. J. 34. Betty Lou Valentine. Hustling anel other h,Jrd work: Jifestyles in lhe ghetto. Nova York: Free Press, 1978. 35. Loic Wacl}uant e William Julius Wilson. "The cost of racial and class exclusion in the inner city", art. cit., p. 24. 36. Henri Allouch. "Participation in boxing among children and young adults". Pediatrics, n. 72, 1984, p. 311-312. 37. Kurt Wolf. "Surrender and community study: the study of Loma". In: Arthl.lr J. Vidich e Joseph Bensman (org.). Reflections on community studies. Nova York: Wiley, 1964, p. 233-263. 38. Cf. LOlc Wacquant. "A fleshpeddler at work: power, pain, and profit in the prizefighting economy". Theory and Society, v. 27, n. 1, fevereiro de 1998, p. 1-42. 39. Thomas Hauser. The black lights, op. cit., p. 135. 40. William Plummer. Buttercups Jl1d strong boys, op. cit., p. 57. 41. Pierre Bourdieu. Ie sem pratique. Paris: Minllit, p. 130. 42. Pierre Bourdieu. Esquisse d'une rhéorie de In pri:ltique. Genebra: Droz, 1972, (reed. Seuil, 1999) p. 196. 43. Joyce Carol Oates. On boxiJlg, op. cit., p. 28-29. 44. Gil Clancy (famoso treinador-empresário), citado em Thomas Hanson. The bbck lights, op. cit., p. 43. 45. Gerald Early. "Three notes toward a cultural definition ofboxing" .ln: Joyce Carol Oates e David Halpern. Reading the fights, op. cit., p. 20. 46. George Plimpton. "Three with Moore". In: Joyce Carol Oates e David Halpern, ibid., p. 173. 47. LOlc Wacquant. "Pugs at work", art. cit., p. 75-82. 48. Para observações entre os nadadores de competição californianos, ver 1 74 - Lo"ic Wacquant Daniel F. Chambliss. "The mllndanity of excellence: an ethnographic report OIl Olympic swimmers". Sociological Theory, v. 7, Il. 1, primavera de 1989. p.70-86. 49. R. G. Mitchell. Moulltnin experience: the psychology and socioJogy of advellture. Chicago: The University ofChicago Press, 1983. 50. George Bennet e Pete Hamill. Boxers. Nova York: Dolphin Books, 1978, p. 23; também Jeffrey T. Sammons. BcyOlld the ring. op. cit., p. 237; S. K. Wcinberg e Henri Arond. "The occupational culture of the boxcr", art. ci!., p. 463; Nathan Hare. "A study ofthe black fighter", art. cit., p. 7-8. 51. "Avancer, rectder, riposter", entrevista com O treinador nacional Aldo COllsentino. Libératioll, 11-12 de fevereiro de 1989, p. 31. 52. Paul Connerton. How socit·ties remember. Cambridge: Cambridge U. P., 1989. 53. Alfred Willener. "Le concerto pour trompette de Haydn". Acres de la Rechcrche e11 Sciences SoÔiJles, n. 75, novembro de 1988, p. 61, grifos nos- sos. 54. Erving Goffman. Interactioll rituaIs. Nova York: Vintage, 1966. 55. Lo"ic Wacquant. "The prizefighter's three bodies". Ethnos, v. 63, ll. 3, espe- cial, novembro de 1998, p. 342-345 [trad. bras.: "Os três corpos do lutador profissional" .In: Daniel Soares Lins et ,lI. A dominJplo masculina revisitada. Campinas: Papirus, 1998, pp 73-96J. 56. Thomas Hauser. The bhJCk lights, op. cir., 199. 57. Erving Goffman. The prcsentation of sel[j/1 everyday life. Harmondsworth: Pengllin, 1959. 58. Tomo essa noção emprestada de William Graham Summer. Folkways. Boston: Ginn, (1906) 1940. 59. Edward Albert. "Riding a line: competition and cooperation in the sport of bicyclc racing". Sociology of Sport jounwl, n. 8, 1991. p. 341-361. 60. Michel Foucault. N<Jiss;wce de la clinique. Une élrchéologie du regarei médici:ll. Paris: PU F, 1963, p. 168 [trad. bras.: O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998J. 61. Sobre a noção de "trabalho emocional", ver Arlie Hochschild. "Emotion work, feeling rules and social structure". Americall JOllrllaJ ofSociology, v. 85, n. 3, novembro de 1979, p. 551-575. 62. Konrad Lorenz. 011 agressioll. Nova York: Harcourt, Brace and World, 1966, p. 281. 63. Erving Goffman. The presel1liltioll of self in everyday Ide, op. cito 64. Stephen Brunt. Me<l11 bUSÚ1CSS, op. cit., p. 55. 65. Hans Gerth e C. Wright Mills. Characler i:llld social structHrc. Nova York: Harcourt, Brace, Jovanovitch, 1964. 66. Joyce CaroI Oates. 011 boxillg, op. cit., p. 25 e 60. 67. Allen Gutman. From ritui:ll to record: the lJature of modem sports. Nova York: Columbia U. P., 1989, p. 160. 68. André Rauch. Boxe, violellce du XXeme siecle. Paris: Aubier, 1992. Esse livro compreende, além do mais, um plágio grosseiro de meu artigo "Corps Corpo e alma - 175 et âme", publicado em 1989, em Actes de la Recherche ell Sciellces Sociales, nas páginas 222, 225, 226, 227-237 e 278-279 (assim como na p. 362, nota 172; p. 363, nota 185; p. 368, nota 205; p. 408, nota 172), em que Rauch retoma integralmcntc, sem citar a fonte, minha descrição do treinamento na academia de Woodlawl1, citações e números de páginas aí incluídas (ver as notas 47, 48, 62, 73, 86, 88 e 90, p. 389-395), entremeando, sem qual- quer habilidade, para disfarçar sua trapaça, fragmentos de declarações de boxeadores e de treinadores franceses retirados de L'Equipe; o supra-sumo da desonestidade foi a nota 103 (p. 398), que copia, compactando-a, mi- nha análise da rdação de oposição simbiótica entre o gym e o gueto para atribuí-la ... a uma entrevista que Rauch tivera "com L. Dechanet, secretá- rio geral dos Anciens de la Boxe, em setembro de 1990"! 69. Marcei Mauss. "Les techniques du corps", <lrt. cít., p. 385. 70. Gene Tunney, antigo campeão de peso pesado, citado por Jeffrey T. Sammons. Beyond the ring, op. ci/., p. 346. 71. The Thrilli:l in MiJnílla, videocassete da luta "Ali-Frazier Heavyweigh t tide fight", NBC Sports Venture, 1990. 72. Citado por David Anderson. In the comer: greilt boxing traillers talk <lbollt theirart. Nova York: Morrow, 1991, p. 121. 73. John Dewey. Experíe1lce i:lJld llatHrc. Chicago: Open Court, 1929, p. 277. 74. Sugar Ray Robinson é citado por Thomas Hauser (The black líghts, op. cit., p. 29); Mickey Rosario, por William Plummcr (Bllttercups alld strong boys, op. cit., p. 43). 75. Hugh Brody. Maps ilnd drenJ11s. Nova York: Pantheon Books, 1982, p. 37, grifos nossos. 76. Joyce Carol Oates. On boxing, op. cit., p. 108. 77. George H. Mead. "The biological individual", adendo a George Herbert Mead, Mi1ld se}f ,1J1d society from the stand point of a social behaviorisl. Chicago: The University of Chicago Press. 1934, p. 78. Peter Pasquale. The boxer's workoHf: fitness for the civilized mall. Garden City: Doubleday, 1988. 79. Pierre Bourdieu. Le sellS pratique. op. cit., p. 137. 80. Jean-Pierre Clément. "La force. la souplesse et l'harmonie. Étude comparée de trois sports de combat: lutte, judo, aikido". In: Christian Pociello (org.). Sporls cI societé. Approche socioculturelle des pratiques. Paris: Vigot, 1987, p.285-30l. 81. Jean Lave. Cog1litio1l i1l pri!clice: mÍlld, mathcmatics and culture i1l everydny }He. Cambridge: Cambridgc U. P., 1989. p. 14 e ss. 82. Lorc Wacquant. "De la 'terre promise' au ghetto: la 'Grande Migration' noire américaine, 1916-1930". Actes de li! Recherche ell Sciences Sociales, Il. 99, setembro de 1993, p. 43-51. 83. Para um retrato intimista do South Side no meio do século, ler a obra clássica de St. Clair Drake e Horace Cayton. BlackmetropoJis, op. cit.; e Richard Wright. 12milliollS blilck ..... il folk history ofthe Negro in the Ullited State, fotos de Edwin Rosskam. Nova York: Thunder's Mouth Press, (1941) 1988. 1 76 - Lo"lc Wocquant 84. Cf. Mead. Champion: loe Louis, black hera Íll white America. Nova York: Charles Scribner's Sons, 1985; e Jeffrey Sammons. Beyond the ring, op. eit" p. 96-129. 85. Pode-se encontrar uma profusão de notações precisas sobre essa mistura de relações de autoridade e afeto entre treinadores e seus pugilistas em Ronald K. Fried. Conler mell, op. cito 86. Pierre Bourdieu. "Progrnmme pour une sociologic dt! spod', art. cit., p. 214. 87. Émile Benveniste. Le vocnbulaire des institlltions indo-européennes. Pa- ris: Edit.io]"lS de Minuit. 2 v., 1969. 88. Emile Durkheim. Les formes élémelltaires de la vie re1igieuse. Paris: PUF, (1912) 1960 [trad. bras.: As formas elementares da vida religiosn: o siste- ma totêmico na Allstnília. São Paulo: Martins Fontes, 1996J. 89. Michae1 Polanyi. The tacit dimension. Garden City: Doubleday, 1967. 90. Howard Becker. "Photography and sociology". In: Doing thÚlgS together. Evanston: Northwestern U. P., 1986, p. 223-271. 91. William Plummer. Buttercups aIld strong boys, op. cit., p. 67. 92. Norbert Elias. La societé de couro Paris: Flammarion, (1969) 1985 [trad. bras.: A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001]. 93. Max Weber. Economie ct societé. Paris; Plon, (1918-1920) 1971, p. 301. 94. Jean-Claude Bouttier e Jean Letessier. Boxe: la techlll·que, J'elltraínement, la tiKtique. 95. Sobre o processo histórico de racionalização do esporte, sobretudo nos Estados Unidos, ler Allen Gutman. From ritual to record, op. cit., especi- almente capo 2. 96. Daniel F. Chambliss. "The mundanity of excelIence", art. cit., p. 78-81. 97. tmilc Durkheim. Les formes élémelltaires de la vie rc1igicuse, op. cit., p. 637. 98. G. R. Me Latchie. "Injuries in combat sports". In; Tim Reilly (org.). Sports fitlless <lnd sports iJljuries. Londres; Boston: Faber and Faber, 1981, p. 168-174. 99. Michel Foucault. Surveiller et punir. NilÍssallce de la prison. Paris: Gallimard. 1975, p. 172-196 [trad. bras.: Viginr e pUllir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2001]. 100. Pierre Bourdieu. Le sens pratique, op. cit., p. 111. 101. Tomei essa expressão emprestada de Claude Lévi-Strauss. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962, especialmente capo I, "La science du coneret" [trad. bras.: O pens<!1ne1Jto selvagem. Campinas: Papirus, 1989J. 102. Jeffrey T. Sammons. Beyolld the ring, op. cit., 236. 103. S. K. Weinberg e Henri Arond. "The occupational cl1lture ofthe boxer". ,1ft. cit., p. 462. 104. Pierre Bourdieu. Algérie 60. Structures écollomiql1es ct structures temporellcs. Paris: Minuit, 1977. 105. Astolfo Cagnacci. Renê !<lCqUOt, J'artisi.l1l du ring. Paris: Denoe1, 1989. 106. Thomas Hauser. The blilck lights, op. cit .• p. 166 e S5. Corpo e alma - 177 107. William Plummer. Buttercups 811d strong boys, op. cit, p. 108. Weinberg e Aron. "The oeeupational culture of the boxer", op. cit., p. 462. 109. Segundo a fórmula de Mareel Mauss. "Les techniques du corps", op. cit., p.385. 110. Para os que duvidarem da possibilidade de generalizar essa interpretação da prática pugilística, pode-se recomendar a leitura dos estudos de Jean Levi sobre a aprendizagem do cálculo (Cognitioll Úl practice, op., cit.); de Jack Katz, sobre a lógica moral e sensual das carreiras criminais (SeductioIlS of crime. Nova York: Basic Books, 1989); de David Sudnov, sobre o improviso entre os pianistas de jazz (Ways of the hand: thc organization ofimprovised conduct. Cambridge: Harvard U. P., 1978); Joan Cassel, sobre o ofício de cirurgião (Expected miri:lcJes: surgcons at work. Filadélfia: Temple U. P., 1991); e Joseph Alter, sobre a organização social, moral e simbólica da luta indiana tradicional (Bhé!riltiya kushti) em Benares (Thc wrcstler's body: identity and ideoJogy in Northenl IndúJ. Berkeley: University of California Press, 1992); para tomar cinco univer- sos deliberadamente diversos, entre outros. E lembrar, com Max Weber, que "na grande maioria dos casos, a atividade real desenvolve-se em uma obscura semiconsciência ou na não-consciência [UnbewuBlheit] do "sen- tido visado". O agente "sente" imprecisamente, mais do que conhece, esse sentido ou pensa "claramente" nele; trata-se, na maior parte dos ca- sos, de obedecer a um impulso ou ao costume. Só ocasionalmente toma- se consciência do sentido (seja ele racional ou irracional) da atividade. [ ... ] Uma atividade efetivamente significativa, o que quer dizer plena- mente consciente e clara, é apenas, na realidade, um caso limite" (Max Weber. bcollomie ct société, op. cit., p. 51). 178 - Lok Wacquant Uma noitada no Studio 104 S egunda-feira, 30 de julho de 1990. Despertar ansioso às oito e meia, tempo encoberto. Tomara que não chova. Um mês de preparação intensiva evaporado no ar, seria o cúmulo! A pesa- gem está prevista para as onze horas, no Illinois State Building, em pleno centro da cidade, a dois passos do rio Chicago. Passo de carro para pegar DeeDee na casa dele, como fora combinado, às nove e vinte, para irmos juntos ao gym. Ele está de excelente hu- mor: o cozido de peixe estava suculento e a meteorologia prevê que o céu vai abrir. .... L'.r..l .. -, L',.-;. ...... ___ ..lI ___ .L.! __ nr;: ............... ........ "'" nr;: ..... - •••••••••••••• ...... """" .... ,.""'" """"_ .............. ____ ..... "W" .... o Live Boxing U At Outdoors N S'I'-U-I>I<> :esL 104 Lounge D 2814 E. 104th St. 2 Blk. E. of Torrence T MONDAY JULY 30, 1990 W • AI Tickcts • DOO["5 Open At 7:00 CURTIS STRONG ' PAT DOWANIN O DANNY NIEVES ' JAMES FLOWERS PAT COLEMAN ' KEITH RUSH , WILLlE McDONALD Cartaz que anuncia a reunião do Studio 104. Corpo e alma - 179 Ao entrar no Boys Club, damos de cara com Curtis, sentado na sala dos fundos, com a porta fechada, inclinado sobre a escri- vaninha, com O tronco nu sob a jardineira azul, com um jeito de quem está estudando. Na frente dele, uma pilha de dinheiro, uma nota de cinqüenta dólares, um pacotinho de 20 e de 10, depois uma grande pilha de notas de um dólar cuidadosamente colo- cada ao lado de uma pequena pilha de tíquetes coloridos. t o dinheiro dos lugares que ele vendeu para a reunião desta noite, 61, no total- restam-lhe nove da quota que lhe fora dada pelo matchmaker Jack Cowen.(I) (Por ocasião das pequenas reuniões locais, não é raro que os boxeadores recebam, além de um "fixo" bem módico - 150 dólares por uma luta de quatro rounds, e entre 400 e mil dólares por um combate de quatro rounds -, um percentual dos ingressos que eles vendem para parentes, amigos e colegas de academia, sendo que o preço de um lugar oscila entre 15 e 20 dólares.) DeeDee pergunta-lhe, de supetão: "Já fez a conta?" "Já", as- sobia Curtis, antes de acrescentar, com um tom cheio de lamen- to: "Bem que eu gostaria de ficar com essa grana pra mim." O olhar do velho técnico fixa-se sobre a antiga balança de ferro que reina ao lado do escritório: "O que ela nos diz?" "t, é, 132 libras e meia." É um peso excelente, porque Curtis deve lutar com 133 libras. Pelo menos desta vez, não terá quilos a mais para perder na manhã de sua luta ... Ele desaparece nos vestiários. Barulho da descarga d'água. DeeDee pragueja: "É sempre a mes- ma história. No dia do combate, o intestino dele não quer fun- cionar." Curtis conta de novo seu botim e coloca as notas cuidadosa- mente em ordem. "Normalmente", observa DeeDee, «ele arruma elas nmna outra ordem, os valores lnenores em cima, e não em- baixo." Como resposta, Curtis confia-lhe cerimoniosamente a soma, assim como os ingressos restantes. O treinador, com pres- teza, desliza-os para o bolso da frente da calça (ele está com a camisa branca de algodão que veste nas grandes ocasiões e um (1) O matchmaker é o intermediário entre organizadores e empresários, que recruta e constitui pares de boxeadores. de modo a "completar" o progra- ma de lima noitada pugilística.\ 180 - Lok Wacquant boné branco com aba saliente). Curtis aconselha-o a pôr o di- nheiro no bolso de trás da calça, onde ficaria menos visível, e, portanto, correria um risco lnenor: nunca se sabe ao certo o que pode acontecer na rua. "Não, eu ponho eles ali, na frente: nin- guém vai vir catar qualquer coisa em mim." E depois resmunga, por sua vez: "Droga, eu bem que poderia ficar com esse dinheiro e usar ele, isso sim." Todo sorrisos, Curtis fala para ele: "Eu vou te espancar, DeeDee, e pegar a grana, depois a gente diz a Jack que alguém agrediu o senhor na rua e te surrupiou o dinheiro, certo?" "É, e depois Jack vai mandar você prestar contas diretamente ao gângster." "Você tem medo que eu me ferre, porque você já se ferrou" DeeDee, em seguida, passa a espinafrar o velho Page, um antigo freqüentador do gym, monitor de boxe empregado pela municipalidade e que já está prestes a se aposentar. Ele telefo- nou para DeeDee esta manhã, bem cedinho, para um dos seus longos monólogos habituais sobre o tema recorrente do "What shoulda been" [se as coisas tivessem sido como elas deveriam ser l. Segundo ele, DeeDee havia perdido o bonde: hoje poderia ser rico, com as vitórias que seus boxeadores conheceram entre as cordas ao longo dos anos. No mínimo, a Boxing Commission do Estado deveria ter-lhe dado um bom emprego. "Ele me diz o tempo inteiro [imitando a voz de choramingas de Pagel: 'Você não deveria estar assim, nessa situação, há formas de se arranja- rem as coisas, DeeDee. A Comissão poderia encontrar pra você um emprego de nove mil dólares por ano'." Curtis, surpreso: "Nove mil dólares por ano, mas que bosta é essa!" "Ééé, mas pelo menos eu teria meus beneficiozinhos [cobertura de seguro médico l ... Ele sempre me comunica que eu deveria ganhar uma baba, e depois: 'Agora a gente está acabado, DeeDee, não vamos mais sair dessa'. E eu respondo: 'Você está acabado, eu não. Eu estou doente, não posso trabalhar, ponto final, é isso. Tenho esse problema de saúde, é por causa disso'. Bom, se eu tivesse sido esperto, já teria ido embora há muito tempo. Nunca teria ficado em Chicago. Teria deixado Chicago pela Philly [Filadél- Corpo e alma - 181 fia], e, nesse momento, eu estaria em Philly."(21 Nenhuma nostal- gia na voz de DeeDee. Curtis está inquieto por causa dos sete ingressos que estão com Lorenzo, e cujo dinheiro correspondente à venda devia ter sido entregue hoje de manhã. Ele faz três tentativas de localizá-lo pelo telefone - e ainda iria tentar mais duas vezes, do downtown. DeeDee observa, com um tom contrariado, que Anthony fora, mais uma vez, treinar no Puller Park - a outra academia situada em pleno coração do gueto negro de South Side -, o que desaprova, porque a maneira como se trabalha lá não lhe parece conveniente: "Anthony não é mais o boxeador que era antes." "Por quê?" "Por- que ele escuta esse maldito Ford [o empresário dele, um chefezinho afro-americano de uma empresa familiar de limpeza, que é total- mente ignorante em matéria de boxe]. Ford quer que ele fique plantado lá e que ele lute corpo a corpo. Mas esse não é o estilo de Anthony: ele não é um batedor, não tem porte para isso. Antes, ele dançava e se esquivava dos golpes, você não conseguia tocar ele. Uma esquiva e um contragolpe, esquiva e contragolpe e pum!, ele te disparava um bom soco. Agora ele fica esperando, estático, com os pés plantados no chão, ele se deixa desgastar por camara- das mais pesados do que ele." (Se Ford pressiona Anthony para mudar de estilo, para ser mais agressivo e "dar combate" ao ad- versário é porque, a despeito de seu físico esguio e de sua predis- posição em contrário, os organizadores sempre preferem pôr em cartaz um boxeador ofensivo, embora medíocre, a um talentoso boxeador defensivo, sobretudo para as lutas televisionadas, que têm em vista um público inculto do ponto de vista pugilístico, e, portanto, é incapaz de apreciar a virtuosidade técnica e tática dos antagonistas. ) (2) Com uma longa tradição e inúmeros clubes que fervilham no gueto norte da cidade, a Filadélfia é um dos cadinhos do boxe norte-americano, e seus combatentes são famosos e temidos em todo o país, como particularmente fortes e ferozes - a exemplo de "Smokin'" Joe Frazier, grande rival de Mohammad Ali nos anos 70. A enfermidade a que DeeDee se refere é a artrose grave nos joelhos e nos pulsos, que ele tem desde a adolescência e que lhe rende uma pequena pensão por invalidez, assim como o auxílio médico gratuito (sem a qual ele estaria sumariamente reduzido à indigên- cia, pelo custo astron6mico dos cuidados com a saúde). 182 - LoTe Wacquant o outro inconveniente de treinar nas salas rivais da cidade é que logo seca-se o viveiro de adversários em potencial para os encontros locais: "Se você treina nos outros gyms e dá uma SUrra nos camaradas do teu gabarito, quando chega a hora de confrontá- los nas reuniões, eles não vão aceitar lutar com você. Aí, pode ser que nosso bom senhor Ford aprenda a lição ... Você não faz isso com 'valorizadores' [opponents].(31 Por que eles iriam te dar com- bate numa luta se você já massacrou eles na academia, hein, diga pra lnim? Foi o que aconteceu com o Butch [em um tom irôni- co]: o senhor Hankins pediu a Bama - você conhece o 'Alabama', Louie - para fazer sparring com ele aqui, no gym, porque sabia que, cedo ou tarde, eles iam acabar lutando. Porra, tive que dizer ao Butch para fingir, para ele fazer com que Bama pensasse que tinha passado um rolo em cima dele. Em vez disso, O Butch pro- meteu combatê-lo pra valer, e bateu um bocado nele. Resultado, depois disso, você pode ficar esperando: Bama nunca mais vai aceitar um combate com o Butch: pra fazer o quê?" São dez e vinte, está na hora de ir embora. Subimos no jipe Comanche de Curtis, cuja capota automática nunca está funcio- nando (ele acha isso engraçadíssimo, mas não é para valer, por- que ele não tem dinheiro para consertar a capota). Curtis perma- nece calado no seu banco e anuncia orgulhosamente que "não tocou em pussy" há dias e dias. E mesmo que, naquela hora mes- mo lhe oferecessem cinco meninas só para ele, na sua própria cama, ele recusaria, porque a luta vem antes de tudo. Nem bem damos partida e ele começa a ouvir tantos souls melosos quanto é possível, no rádio - DeeDee tem um sacrossanto horror ao rap- e eis-nos dirigindo pela Lake Shore Drive. A conversa volta para as recriminações do velho Page e para aquilo que ele percebe COmo as desditas da carreira de DeeDee. DEEDEE: Ele sempre me diz: "Cara, você está ficando velho, há muito tempo que você já devia ter embolsado uma bolada de grana [you shoulda been in d'money]", e eu digo a ele: "Cara, (3) Na linguagem pugilística, o termo "opponel1f' designa um adversário de qualidade inferior que se combate justamente porque ele oferece todas as oportunidades de uma vitória fácil. Corpo e alma - 183 não se preocupe com a minha vida". Droga, dizer que eu "de- via" isso, que eu "devia" aquilo. E "com todo esse pessoal bem colocado, todos os pistolões que você conhece, cara, que são tão encantados com você. assim, DeeDee ... " CUtrrlS: Mas é verdade. O senhor agora poderia ser rico, DeeDee, o senhor sabe disso, não sabe? O senhor bem que sabe disso, mas o senhor detesta até mesmo pensar a esse respeito, não é verdade? DEEDEE [desdenhoso]: Que nada, eu não devia estar rico, não. Se eu tivesse que ser rico, eu seria rico. CURTIS [e bem rapidamente, como querendo insinuar: "Eu bem que conheço as profundezas do seu pensamento"]: O senhor devia ser rico, mas sabe-que-o-senhor-está-ferrado, e é por isso que está sempre atrás de mim, no meu pé, para que eu não deixe passar a oportunidade. [com ênfase] O senhor tem medo que eu me ferre, porque o senhor sabe que já se ferrou [You scared I might mess up 'cause you know you messed up.]. DEEDEE [na defensiva]: Bal Vê só, se eu tivesse tido família, en- tão seria uma outra coisa diferente. CUlrns [sorrindo para meu gravador, que está ligado J: Tem um gravador funcionando aqui, DeeDee ... DEEDEE: Não estou nem aí [I wouldn't give a damn.]. CUR'l'IS [rindo, e eu rio junto com ele]: Ele quer escutar nossa conversa no caminho da pesagem ... DErDEE: Eu sei disso, eu sei disso. Um dia, vão apanhar esse aí e mandar um bom pé na bunda dele [when they get a whuppin' on his ass one day], e eu vou me divertir com o espetáculo. [Todos três rimos] Já te avisei, Louie, se você não prestar atenção - mas você é cabeça dura. [ ... ] Ei, o velho Page, droga, ele sempre está me dizendo o que eu devia ter, o que eu devia fazer, o que eu devia ser, e eu digo a ele: "Estou exatamente onde eu deveria estar - até aí [inaudível]." E ele me responde: "Você não foi tratado como devia, ir tirar o Ratliff da cama, como você fez, mas você nunca soube tratar ele como precisava ser tratado." CUlrl'ls: E se o Ratlifftivesse se cuidado por conta própria? Como o senhor ia controlar um cara que é adulto e vacinado? DEEDEE: Cara, você sabe o que eu disse a ele? [Com um tom aborrecido] "Você não sabe de nada: você tem cara de babaca de verdade." [ ... ] 184 - Lok Wacquant Um Alfa Romeo vermelho-cheguei ultrapassa-nos a toda velo- cidade, cantando pneu. Muito ereto no seu banco, Curtis sai atrás dele e baba de admiração diante da máquina rutilante. DEEDEE [virando-se para mim, que estou no banco de trás]: Quem fabrica isso, Louie? LOlilE: É um carro italiano. DEEDEE: Italiano, hum. Isso deve custar uma grana preta, hein? LoulE: É, principalmente aqui nos Estados Unidos. DEEDEE [elevando a voz]: Estou me perguntando o que custa uma Mercedes Benz, em comparação - quer dizer, eu tinha um amigo que tinha cinco Mercedes Benz [quando ele trabalhava para um grande promotor japonês nas Filipinas ] ... E lança-se com Curtis em um desses intermináveis papos rituais dos quais os dois compadres são useiros e vezeiros, a respeito das respectivas vantagens dos diversos tipos de automóveis ... Excitado, Curtis aproxima-se do Alfa Romeo e buzina frenetica- mente. DeeDee abaixa o vidro para falar com o motorista. DEEDEE [gritando acima dos ruídos dos motores]: Quanto custa esse carro? Quanto ele faz? [O motorista responde.] Uau, é bom ... Voltamos à nossa marcha e passamos na frente do estádio mu- nicipal de Soldier's Field, diante do lago. CUlrns: Trinta e cinco? Eu diria que é um pouco mais que isso. Esse calhambeque [o jipe Comanche] faz trinta e dois, ha-ha! E é um cadilaque. LOUIE: Meu calhambeque custa 300 dólares. Quem dá mais? Todos compartilhamos da pena pela carreira de Alphonso Ratliff, que não rendeu tudo o que ela prometera. O antigo meio- pesado de Woodlawn ganhou o título mundial WBC, em 1989, mas jamais recebeu altos cachês, e, depois desse breve momento de glória, tudo não passou de desgostos e de degringoladas. Em 1985, corroído pela droga, ele deixou-se demolir em dois rounds, em Las Vegas, por um jovem peso pesado que ascendia como uma flecha e carregava o nome de Mike Tyson. DeeDee tem uma pon- ta de nostalgia na voz e nos olhos: "Phonzo, qnando estava no auge de sua forma, era uma enormidade." Alphonso tinha purga- do seis anos de reclusão, por assalto a mão armada, em um cam- po de trabalho do Sul, onde ele desenvolvera sua musculatura já colossal e fortalecera sua determinação. De volta a Chicago, quan- Corpo e alma - 185 do saiu da prisão, inscreveu-se no Boys Club. Mas cinco meses mais tarde, DeeDee mandou ele embora do gym, depois que ele quebrou tudo nos vestiários, em uma crise de raiva, porque esta- va sendo regularmente vencido no ringue. O gigante de Woodlawn reconheceu sua culpa, pediu perdão, e o velho treinador tomou- o sob seus cuidados. A partir desse momento, Alphonso tornou- se indestrutível no ringue. Lutava como um possuído: "Nem bem levantava-se do córner e já começava a dar golpes, antes mesmo de cair sobre o adversário." O que pensa DeeDee de Riddick Bowe, a nova coqueluche de Nova York, e que todos prevêem que vá ser o campeão do mundo em todas as categorias? "Faz muito tempo que eu não vejo ele. Parou com as drogas. Mas é um menino de um bairro pobre e violento [project bay]. Tem o couro duro. Talvez, se ele estiver decidido, vá se firmar dessa vez. Ele é parrudo, como muitos me- ninos da cidade. Mas são todos selvagens [heathens], sejam eles quem forem.(4) Veja só, você tem caras que encontram uma for- ma de escapulir de suas cidades, mas outros camaradas não con- seguem sair: são muito selvagens, ficam todos concentrados no mesmo lugar, de tal modo que você tem só selvagens. E eles não saem nunca, porque não conhecem nada além daquilo, não sa- bem se comportar de outro jeito." A conversa vai para o combate entre Michael Carbajal e o campeão IBF tailandês Kittikasen, que passou na televisão ontem. Curtis está curioso para saber quanto era o cachê de Carbajal, quinze ou vinte mil dólares? DeeDee: «Você está de brincadeira?" «Trinta mi!?" «Xii, você está numa cadeia nacional de televisão, no prime time, num domingo à tar- de, o que é que você acha? Deve ter ganho, no mínimo, seis alga- rismos, cem ou cento e cinqüenta mil." Um outro mundo que, no entanto, parece estar muito próximo, ao alcance dos punhos ... Ao longo dos doze quilômetros que nos separam do centro da {4} No vernáculo local, o termo "heathcn" (literalmente, pagão, selvagem] designa um indivíduo tosco, sem educação nem modos, que se comporta violando as normas comuns da civilidade. Essa era uma palavra de uso corrente na academia de Woodlawn, onde podia ser invocada fosse sob a forma de acusação, fosse em um registro afetuoso - como se verá mais adiante, entre Curtis e DeeDee. 186 - Lo'ic Wocquont cidade, Curtis não pára de cuspir dentro de um saco de papel que ele segura com a mão esquerda, para perder o máximo de água, e, assim, fazer descer ainda mais seu peso, e faz isso tanto por hábito como por precaução. Eterno dilema do controle sobre o corpo.' Durante todo o trajeto, DeeDee e ele examinam intensamente as mulheres na rua e soltam uma profusão de comentários licencio- sos. Como se, nas manhãs de combate, fosse de praxe dar uma expressão pública - e, portanto, inofensiva - de seus apetites até agora ocultados. Cada qual, por sua vez, faz apreciações circuns- tanciadas sobre as formas e os talentos amorosos que várias tran- seuntes supostamente têm. A mesma coisa depois da pesagem, após sairmos do Illinois State Building. Curtis percebe duas mo- ças que estão se despedindo beijando-se na boca, e imediatamen- te chama a atenção do treinador: "Mas isso não é nada, meu ve- lho! Conheço um montão de mulheres que se beijam assim." Curtis responde, com uma careta excitada: "Eu devia pedir a elas que me dessem uma beijoca dessas, em mim, só pra ver." DeeDee grita, de dentro do carro, para uma matrona negra no volante de uma caminhonete que exibe um logotipo" Fish": "Eu também sou um peixe [pisces]!" Ele teima em afirmar que uma outra, tam- bém gorducha, estava espiando para ele com um olhar de entendi- mento, da calçada. Os dois cúmplices dobram-se de tanto rir, tro- cando olhares de desafio, enquanto andávamos atrás de uma enor- me negra com uma bunda gigantesca: "Você poderia tentar transar com ela, DeeDee, mas ela iria te amassar antes de você conseguir". "É claro que eu poderia fazer isso: eu ainda consigo ... " A pesagem no IlIinois State Building Estamos muito adiantados e paramos no estacionamento pago em Randolph Street, para ir a pé ao Illinois State Building. Desti- no: o nono andar pelo elevador de vidro que ultrapassa em altura o centro comercial. Curtis, espantosamente, está descontraído, o que difere radicalmente dos combates anteriores (de hábito, a es- pera de uma luta deixa-o sombrio, por vezes agressivo, e, nessas ocasiões, é melhor deixá-lo ruminando em seu canto). Damos de cara com O cutman Laury Myers, sentado em companhia do ve- lho Herman Mill na sala de espera, do lado de fora do Office Corpo e alma - 187 Professional Regulation (o organismo encarregado da supervisão das profissões liberais, e, portanto, também do boxe, por conta do Estado).(5) Mill é um old timer magro e grisalho que tem mais de duzen- tos combates na categoria de amadores e cento e cinqüenta com- bates profissionais em sua conta (com somente quatorze derro- tas); ele lutou com o legendário campeão de peso-pluma Willy Peps, nos anos 40. Na época, dividia-se entre O boxe e O tap dancing; um dia, fazia um espetáculo de sapateado e, no dia seguinte, su- bia ao ringue. Assim, ele lutava diversos dias na semana, até três ou quatro noites consecutivas, em boates, cinemas, galpões de esporte, pulando de cidade em cidade, viajando de trem. Nada de tempo para treinar: a dança mantinha-o em forma para o boxe, e vice-versa. Ele havia aprendido a dançar desde os três anos de idade e a boxear aos seis, com seu pai, um músico que formava um dueto de violino e banjo com o irmão. "Eu nunca parei, so- mente meu fogo foi se extinguindo pouco a pouco ... " Ele está terrivelmente caduco e conta-me várias vezes a mesma história _ como enfrentara um boxeador com vinte quilos a mais que ele em um bar de Minnesota, com dez graus negativos, depois que a cal- deira da sala pifou-, antes de terminar o relato tentando dar alguns alegres passos de sapateado. DeeDee e os outros nem ao menos fingem escutar: eles já ouviram essas histórias dezenas de vezes. Laury está estirado na poltrona, com um ar moroso. Ele veio, como vem a cada pesagem, oferecer seus serviços de segundo para (5) Não existe, nos Estados Unidos, organismo nacional responsável por ad- ministrar o boxe profissional. Cada estado está livre para regular (ou não) a profissão, de acordo com os princípios e as modalidades que lhe são pró- prios. Quarenta e quatro dos cinqüenta membros da União dispõem de uma "Comissão" encarregada dos negócios pugilísticos. A grande maioria é formada por organismos que não têm autoridade nem meios: colocadas sob a autoridade do Escritório dos Assuntos Veterinários ou dos Serviços de Proteção ao Consumidor, no início dos a110S 90, elas nem mesmo dis- põem de telefone ou de telecópia para verificar a identidade e as listas de lutas dos combatentes que licenciam. Isso explica porque os boxeadores são, de longe, os atletas profissionais menos protegidos do país. Como já provou uma Comissão de Inquérito do Senado, as irregularidades, os trambiques e as malversações são totalmente rotineiros.3 188 - Lo·ic Wacquont quem quiser. Sempre pronto a pôr as mãos à obra e com afinco. Entrego-lhe a foto que tirei dele durante a luta de Smithie em Atlantic City, no mês passado, o que faz com que ele fique subi- tamente alegre. Chama Curtis para um canto e exibe-lhe, orgu- lhoso, seu ignóbil colar de escudos montado com diamantes fal- sos que está preso a um pesado cordão de ouro, onde se lê "CUTMAN" em letras garrafais, e um outro, com as mesmas carac- terísticas, que ostenta a palavra "MACHO". E propõe ao boxeador de Woodlawn ceder-lhe o rutilante "MACHO" por um precinho camarada: "Sei que você adora ouro, Curtis, e eu quero vendê-lo, então, pensei em mostrar primeiro pra você. [Com um tom de confidência.] Vamos, eu deixo ele pra você por apenas 75 dóla- res, e isso fica entre agente." Curtis examina o objeto barroco com interesse, vira-o e revira-o na palma da mão, antes de devolvê- lo para o proprietário com uma careta de tristeza: "É bacana, de verdade, mas não estou com grana nesse momento." 1(0 BOXE É MINHA VIDA, MINHA MULHER, MEU AMOR" Há três longas décadas, Laury dá duro cinqüenta horas por se- mana como vendedor na mesma loja de móveis de um bairro popular, por um salário que lhe permite apenas fazer face às suas parcas necessidades. Aos 56 anos, divorciado, ele mora sozinho, sem contato com as três filhas e 0$ treze filhos que teve com cinco mulheres diferentes. Saído de uma família judia vinda da Itália, seu avô era alfaiate e seu pai foi boxeador profissional e depois operário nos matadouros de Chicago (imortalizados por Upton Sinclair em The Jungle) até o fechamento deles, em 1951. Quando ainda pequeno, o pai levava-o para as reuniões que en- tão aconteciam nos quatro cantos da cidade. Por devoção filial, Laury seguiu os rastros de seu pai no ringue e lutou entre os profissionais desde os 17 anos de idade, com uma determinação que só se igualava à sua inépcia: pesadão e desajeitado, ele sofreu 35 derrotas em 37 combates, entre os quais 17 acabaram antes do término: "Minha mãe costumava me dizer, quando eu volta- va pra casa com a túnica e o calção que ela tinha feito para mim, ela me perguntava, 'Você lutou esta noite?', e eu dizia, 'Bem, lutei, mamãe, por quê?', e ela me dizia, 'Porque você está com as roupas tão limpas ... ' [Com uma vozinha triste.] E é interessante isso, porque a gente não falava nunca da vergonha que eu tinha. Corpo e alma - 189 Laury Myers, cutman, em seu quarto de hotel em Atlantic City. Meu pai, esse ficava muito mal de ver que eu não conseguia de jeito nenhum ... Hoje, eu gostaria que ele estivesse vivo para ver meu sucesso e meu trabalho como cutman profissional. Isso ia dar a ele um bocado de força." Dessa dolorosa experiência entre as cordas, Laury retirou uma admiração fascinada pelos pugilistas que ele secunda, mesmo quando não se trata de meros figurantes de preliminares: "A maior parte das pessoas, elas não sabem muita coisa sobre os boxeadores. Mas eles são seres humanos também. Eu acho que um homem que sobe ao ringue para combater é uma pessoa es- peciaL Então, que seja tratado desse modo. E se ele cumpre o seu dever, se ele faz as coisas direitinho, que seja remunerado por isso." Ao final dos anos 70, ele tentou, por breve período, tor- nar-se empresário, mas sem muito sucesso. ("Eu parei depois de uns cinco ou seis meses, eu estava perdendo dinheiro, os dois boxeadores que eu tinha estavam me deixando louco.") Depois, por força de assistir às pesagens e de acompanhar 0$ segundos, acabou aprendendo os rudimentos do ofício e entendeu de em- pregar-se como cutman. Esse novo papel.permitiu que ele en- 190 - lok Wacquant trasse, enfim, nesse círculo mágico: "Não há nada que eu goste tanto quanto o boxe. Ele é a minha vida. É a minha mulher. É o meu amor. É tudo para mim. Tenho uma admiraçãO tão grande pelo boxe, e depois você encontra um bando de pessoas formi- dáveis. E meu orgulho é ser um verdadeiro profissional: você nunca vai ouvir contar sobre mim histórias de como não sou um profissional." A tarefa do segundo é velar para que seu boxeador não seja pre- judicado por um eventual ferimento no rosto durante o comba- te. Para tanto, ele dispõe de cerca de quarenta segundos, duran- te o minuto de interrupção entre os rounds, para fechar um ta- lho, cessar um sangramento no nariz, ou, ainda, para domar uma equimose que ameace obstruir a vÍsão do combatente, caso ela inche. Seus instrumentos são rudimentares: ataduras, saco de gelo, um dedal de ferro, frascos de produtos coagulantes (avotina, adrenalina diluída a um milésimo), vaselina, e a aplicação preci- sa de pressão sobre as feridas. Para ter meio de se empregar, Laury faz todas as pesagens da regiãO, inteira-se das reuniões que irão acontecer e oferece seus serviços nos gyms. "Com o amor que tenho pelo boxe e com meus conhecimentos, trabalho com qualquer um: trabalharia com o King Kong, se ele precisasse de um segundo." Pode acon- tecer-lhe de trabalhar por uma remuneração puramente formal, dez dólares na mão, somente para se fazer conhecer e reconhe- cer ("Que as pessoas vejam o teu profissionalismo"). O essencial é permanecer em atividade. Depois que a grande publicação pugilística mensal Ringside publicou um elogioso perfil dele (e ele comprou quarenta exemplares no jornaleiro do seu bairro), Laury alimenta a esperança de ser chamado logo, logo para um grande combate mediático, por ocasião dos quais chegam a ca- ber aos segundos até 2% do cachê dos boxeadores. O segundo bigodudo lê religiosamente, todos os meses, as revis- tas de boxe ("Eu tenho todas as revistas que saem"). Ele assiste avidamente a todos os combates que pode, na televisão ou em vídeo, e comparece a todas as reuniões na grande Chicago. "Pela TV, eu faço muitas críticas a vários assistentes de córner. É pre- ciso conservar a calma, não esquentar a cabeça. Precisa saber o que você está fazendo. Se você fica nervoso ou excitado, você projeta isso no boxeador e, de repente, teu pugilista está excita- do e nervoso. Enquanto se você fala a ele com calma e dá bons Corpo e olma - 191 conselhos, ele vai executar a estratégia que você fixou para ele. Meu bom Jesus! É preciso ser pro-fis-sio-nal." Segundo sua ex- periência, em um bom terço dos combates acontece um corte no rosto que necessita da intervenção do cutman, e cerca de um em vinte demandam um atendimento mais sério. Seu orgulho: em treze anos de atividade, nenhum dos boxeadores de quem ele cuidou perdeu uma luta por causa de um ferimento. "O que eu gosto mais na vida? Vai parecer ridículo: fazer o meu serviço. Cada combate é excitante para mim, seja uma lutinha, uma grande luta ou uma luta entre iniciantes. Cada oportunida- de que eu tenho de estar no córner ou no ringue, para mim, é o meu serviço, é o meu prazer. De estar ali com alguém que eu conheça ou não, todos os combates são excitantes para mim. Eu posso trabalhar todos os dias da semana. Eu adoro isso. t a mi- nha vida. Eu só penso no boxe e nas lindas card girls." A alguns metros dali, discretamente sentado do outro lado do sofá, um pequeno branco espadaúdo, louro, com corte de cabelo raso, um rosto burilado de traços selvagens, vestido com uma ca- miseta cinzenta e um capote verde gasto. Adivinho que é Hannah, o adversário de Curtis. Ele veio pesar-se sozinho - o único assis- tente de córner que figura na lista do programa da reunião é seu próprio pai, o que me faz gelar internamente. DeeDee fica impa- ciente e decide matar o tempo indo buscar um café. "Onde é que você vai?", grunhe Curtis. "Espera eu me pesar, man, depois a gente vai beber um café e comer juntos." Mas o velho técnico está com muita fome. De repente, CurtÍs desaparece lnais uma vez nos toaletes. Às onze horas em ponto, os oficiais fazem sua entrada e a sala de pesagem, um grande retângulo com ar-condicionado e atapetado de cinza, começa a encher-se pouco a pouco: o matchmaker Jack Cowen, que montou a programação desta noi- te; Doc Bynum, o médico habilitado pela Comissão para atestar o estado de saúde dos combatentes; as três secretárias, duas louras desbotadas e uma ruiva bonita, que expedem a papelada (licenças dos boxeadores e dos segundos, atestados médicos, recibos de res- ponsabilidade, cauções de cachês etc.); o árbitro Sean Curtin; o Comissário e seu bigode grisalho; os velhos técnicos locais, que gritam entre eles; e outros freqüentadores das manhãs de reu- 192 - LoTe Wocquant nião. Discuto um pouco com Sean Curtin, que me conhece por ter arbitrado minha luta na noite das Golden Gloves. Quando me espanto com o fato de que James "Jazzy" Flowers seja campeão meio-pesado do estado, com um desprezível cartel de quatro vi- tórias por duas derrotas, ele suspira: "Mas o que é que você quer, os caras estão ficando de tal forma raros ... Ele não tinha oponen- tes, é por isso." A penúria de combatentes é tão acentuada que logo será suficiente tornar-se profissional para se ver catapultado automaticamente a campeão do estado! Curtin opina sobre o tema, com um ar chateado, e torce sua cabeça de irlandês: "Você tem poucos caras que vêm agora para o boxe, muito poucos. [Asso- bia, com um jeito despeitado. J É incrível como a coisa declinou! Os pais não querem que os filhos façam boxe. Humm, fiuuu ... [Ele assobia de novo para acentuar sua decepção. J E você tem menos atividades, menos combates, também não tem mais publi- cidade. No meu tempo, quando eu era boxeador, toda vez que eu combatia, tinha um anúncio no Chicago Tribune [o principal jor- nal da metrópole J para qualquer um. O Tribuneera patrocinador das Golden Gloves. Todos os camaradas que lutavam nas Golden Gloves tinham o nome escrito no jornal. Eles punham a tua foto. Eu lutei pelo título de campeão das Golden Gloves, e minha foto pintou na primeira página da edição dominical. Você tinha pu- blicidade de monte, e quando você é novo, ter seu nome no jor- nal estimula, você adora isso. Eles não fazem mais isso - hoje em dia, as pessoas na rua, ninguém sabe quem é campeão das Golden Gloves». Enquanto isso, Jack se agita perto da secretária da Comissão, para se assegurar de que ela vai realmente remeter os resultados oficiais das lutas a todos os interessados, organizadores, treina- dores e comissões dos estados vizinhos. "Na última reunião, em Park West, Leon Sushay, por uma razão que eu ignoro, não re- cebeu a cópia dele. Você pode mandar outra?" Depois, ele faz sinal a DeeDee, indicando que Jim Strick.land, farmacêutico, trei- nador e empresário nas horas vagas, concorda em atuar como segundo no córner de Curtis, esta noite, uma vez que Ed Woods, seu cutman habitual, não estará lá - não conseguiu liberar-se do emprego para vir de carro de Indianápolis, onde ele foi morar recentemente. Jack, então, tratou de acrescentar o nome de Corpo e alma - 193 Stirckland à lista das pessoas autorizadas a entrar de graça esta noite no Studio 104. Curtis aproxima-se de Cowen, envergonhado, e avisa-lhe que Lorenzo está com os sete bilhetes que deveria vender por ele: por conseguinte, ele não tem o dinheiro que devia entregar a Cowen esta manhã. Jack responde com uma brincadeira de mau gosto: "Call the paliee". Meio aliviado, Curtis vai sentar-se no fundo da sala, enquanto DeeDee entrega a Cowen a soma correspondente à venda dos lugares que estavam sob a responsabilidade de seu pupilo. O matehmaker conta meticulosamente as notas, empi- lhando-as sobre a mesa, que fica longe do canto da pesagem pro- priamente dita - o que ocorre sem a menor cerimônia. Rapida- mente, ele faz as suas contas numa folha de papel, multiplicando o número de notas pelo seu valor impresso. Total? .. Surpresa! Faltam 300 dólares, o equivalente a quinze lugares. Ataque de pânico. DeeDee faz uma careta, Jack rapidamente faz a reconta- gemo é isso aí. Faltam 300 dólares. E, no entanto, Curtis tinha certeza de que o dinheiro estava certo. De repente, o rosto de DeeDee desanuvia. O enigma está resolvido: são os bilhetes que foram confiados a Jeb Garney, o empresário de Curtis. Jack sus- pira de alívio: "Ah! Está certo, então estamos de acordo." Ele con- ta quinhentos dólares, que estende a DeeDee: "Toma aí 500 para o Curtis, vamos acertar logo, logo. Mais tarde, quando a gente voltar, vamos ver qual é a comissão do CurtiS."(6) O que fazer com os nove ingressos que ainda cabiam a Curtis? Jack encarrega DeeDee de guardá-los, nunca se sabe, talvez ele tenha condições de passá-los de agora até de noite ... Informam-nos que Jeb Garney não irá comparecer à pesagem; ele irá encontrar-se com DeeDee e (6) O fato de dar o cachê do boxeador adiantado para o treinador, e na frente de todo mundo, é triplamente insólito: em regra geral, os pagamentos, no universo pugilístico, efetuam-se apenas depois da performance, a portas fechadas e entre organizador e empresário. Pode-se ver aí um indício do fato de que essa reunião fora montada muito de última hora, com uma colaboração estreita entre Jack Cowen e o Woodlawn Boys Club, de modo a manter Curtis atento, na eventualidade de surgir uma luta mais bem re- munerada em Atlantic City - por duas vezes, durante o mês anterior, Curtis deixara de ser chamado como adversário de um boxeador classificado mun- dialmente, para um encontro em um cassino, e que seria televisionado. 194 - Lo'ic Wacquant Curtis, às duas horas em ponto, no Daley's, o restaurante vizinho à academia, para o tradicional almoço antes da luta. Tudo indica que essa é uma cartada sem muito valor, um combate de rotina para a estrela do Woodlawn Boys Club: DeeDee e Curtis, portanto, arrecadaram 1.120 dólares com os ingressos, o que representa uma bela soma. Jack anotou em um papel o número de lugares correspondentes a cada boxeador nas vendas por "comissão". Curtis Strong, 70; Keith Rush, 20; Windy City, 150 (sala rival de West Side, da qual dois membros estão programados para esta noite); e dois nomes que não reconheço, com 50 e 20 lugares, respectivamente. Um total de 310 ingressos na conta dos pugilistas e seus acompanhantes, ou seja, 6.200 dó- lares garantidos - o que deveria cobrir facilmente a metade dos custos de organização da reunião. Isso supondo-se que todos os boxeadores do programa atinjam suas quotas-partes, o que daria uma quantia espantosa.'?) Vêm avisar a Cowen que o moço que deveria buscar os dois boxeadores de Milwaukee, e que chegarão de ônibus na estação da Greyhound dentro de dez minutos, não põde ir: ficou engar- rafado.IX) A contragosto, Jack decide mandar à estação Kitchen, um bebum crônico, habitual freqüentador dos gyms e das reu- niões, onde ele oferece seus serviços de fotógrafo amador. Com um tom falsamente formal e abertamente paternalista, Jack diri- ge-se a ele, que, como sempre, está zanzando por ali, à espera de uma ocasião para descolar alguns dólares. JACK: Bom, eu vou mandar Kitchen - não vejo outra saída. Vou dar a ele um pouco de grana e colocá-lo dentro de um táxi, se estiver careta [soberl !. .. [Dirige-se a Kitchen, que perambula com (7) De fato, eu iria saber, em seguida, que o total das entradas pagas nessa reunião chegou somente a 178 (das quais 104 ingressos vendidos por Curtis e sua roda) e que o empresário de Curtis teve de pagar de seu bolso o cachê do adversário, de modo a assegurar para seu boxeador a cabeça da progra- mação e, assim, "dar trabalho a ele". (11) A frota de ônibus Greyhouud, que liga aS principais cidades do país, é o meio de transporte de longa distância dos pobres, nos Estados Unidos. Ela é usada sobretudo pelas famílias do (sub)proletariado negro e latino que não possuem carro e não têm a menor condição de viajar de avião. Corpo e alma - 195 ar abobado, e puxa-o com autoridade pelo ombro.] Senhooor Kitchen, queira vir até aqui. O senhor está a ponto de encontrar a grande oportunidade de sua vida, ah, ah, ah ... KrrCHrN [humildemente]: Alguém está me chamando? IACK [condescendente]: Eu. O senhor já bebeu hoje? Kn'CHEN [sacode vagarosamente a cabeça]: Eu? Não. JACK: Você está em forma? KrrcHEN [com deferência]: Sim, senhor [Yessir]. JACK: Tudo bem! Então, aqui estão dez dólares. O senhor vai me pegar um táxi agora mesmo, para ir até a estação de ônibus da Greyhound, onde o senhor vai se encontrar com uma pessoa chamada Sherman Dixon. Ele deve ter chegado há cerca de cin- co minutos. Kn'CHEN: Está bem. Como é o nome dele? JACK: Sherman Dixon, um carinha encorpado. Um carinha ne- gro encorpado, com uma cara redonda. O outro menino se cha- ma Zeb qualquer coisa, é ... Eles são peso meio-pesado, os dois, e devem estar juntos. Kitchen não sabe onde fica a nova estação da Greyhound, que se mudou do centro da cidade, e Cowen teve de rabiscar o ende- reço, com seus garranchos de canhoto, em um pedaço de papel- não se pode contar de jeito algum com os motoristas de táxi, por- que, muitas vezes, eles são recém-imigrados que não conhecem a cidade. Em seguida, ele descreve-lhe minuciosamente o aspecto físico dos dois pugilistas de Milwaukee. (Por um instante, ele ten- ta convencer-me de ir no lugar de Kitchen, mas nem pensar: não quero perder a pesagem.) Um porto-riquenho bigodudo (mais tarde, eu saberia que se trata de Ishmael, um peso médio de Aurora que está debutando entre os profissionais) vem choramingar para Cowen, tentando que ele o inclua no programa. Despencou-se de seu subúrbio dis- tante, na esperança de que Anthony também estivesse lá e que J ack os pusesse no cartaz desta noite. Mas a presença de Anthony só estava mesmo prevista para uma eventual substituição de últi- ma hora. Ishmael faz uma cara catastrófica: "Man, eu treinei pra burro, estava com pressa pra lutar. Eu conheço o Anthony, a gen- tduta junto: é um desafio, man! Eu quero um desafio. Pra mim, saca só, é o supra-sumo do desafio. (Oh, droga, como eu ia ado- 196 - Lo"ic Wacquant rar lutar!)" Mais do que um desafio, é de dinheiro que ele preci- sa ... e deve ser uma necessidade premente para que ele tenha feito sessenta quilômetros na improvável esperança de lutar sem qual- quer preparação. lack não perde a oportunidade: em vez disso, ele propõe uma luta em Cleveland, no fim do mês que vem. Ele garante a Avandano, o treinador de Ishmael, que está todo ouvi- dos, que essa luta vai ser vantajosa para ele: seu adversário será um novato que já conta com três derrotas e um empate, e só tem duas vitórias ("O tipo é evidentemente vencível"). Avandano re- lata a informação a Ishmael com muitas sacudidas de cabeça. O jovem porto-riquenho parece ficar muito aborrecido, mas, por falta de alternativa, acaba por aceitar esse combate "no exterior" - é assim que Cowen desloca sua mercadoria de um mercado para outro, de forma a preencher os programas dos quais ele se encar- rega pelo Midwest. Um jovem fracote com a pele de cor amarelada, os cabelos finos encaracolados em volta de um rosto anguloso) vem, por sua vez, pedir a Jack que lhe marque uma luta. O matchmaker afasta- o sem poupar o sarcasmo: "Você nem sabe mais onde fica o salão de treinamento, anda, se manda." Diante da insistência lastimosa do suplicante ("Eu te imploro, me dá somente uma chancezinha, só uma, e eu vou te mostrar como sei lutar"), Jack aceita usá-lo para fazer propaganda, distribuição das luvas e outras tarefas su- balternas. Fico perguntando-me em troca de que salário de fome ... Tão miserável, certamente, como o da assistência que comparece à pesagem: duas dúzias de pessoas, contando com os funcioná- rios da Comissão. DeeDee adora contar como, nas décadas após a guerra, a sala regurgitava de boxeadores atraídos pela perspectiva de serem recrutados de última hora: "Você sempre tinha cinqüen- ta, sessenta camaradas que ficavam esperando, dizendo que tal- vez um sujeito não aparecesse, ou alguém torceu uma articula- ção, ou que O médico não ia autorizar que ele lutasse, porque estava com um corte mal fechado, e, assim, iam precisar de um substituto. É, a sala ficava cheia, até nos anos 60." Além disso, os boxeadores de antigamente eram muito mais duros: "Éê, todo mundo sabia lutar, naquele tempo. Quer dizer, eles sabiam lu- tar pra valer. Os camaradas de agora não teriam a menor chance contra eles." Corpo e alma - 197 Enquanto isso, a pesagem continua. Little Keith, James Flowers e Danny Nieves passaram pela balança e voltaram a se sentar, ca- lados, os semblantes fechados. A secretária da Comissão fala com uma voz fininha: "Não tem lutadores que estejam no programa e que ainda não passaram por aqui?" Chamam: "Curtis Strong!" Ele atravessa a pequena tropa, retira a jardineira e sobe na enge- nhoca sem maiores brincadeiras, vestido em sua bermuda bran- ca. Expira. Exatamente 133 libras. Inspira. Nada de poses espeta- culares nem de declarações intempestivas dirigidas ao adversário, que permanece quieto em seu canto, depois de ter pesado 129,7 libras. Está dentro do intervalo combinado de antemão pelas duas partes. Portanto, tudo em ordem. Os boxeadores vêm, um a um, assinar seu contrato, à medida que Cowen os chama - é na pró- pria manhã do combate que se rubricam os contratos, o que per- mite trocar o pessoal do programa até o último instante, em caso de necessidade, ou modificar a margem de peso de dois comba- tentes, caso um dos dois não tenha respeitado o limite.(9) A Curtis, caberão 500 dólares pelo seu desempenho, enquan- to Little Keith assina um contrato de apenas 200 dólares - é o pagamento que, no outro dia, ele me dizia achar "justo": 50 dóla- res por round, ou seja, a tarifa em vigor há anos. Espio por cima do ombro de Jeff Hannah que ele vai receber um cachê de 600 dólares. Foi preciso remunerá-lo melhor que a seu adversário, para convencê-lo a vir se bater em Chicago. É que se tornou difícil encontrar adversários para Curtis, desde que ele começou a lutar em dez assaltos (e encabeçando o programa): há poucos boxea- dores nesse nível, todos, além do mais, limitam-se a combater em seus locais de domicílio e evitam os «clientes sérios", para não correrem o risco de interromper seus cartéis de vitórias. (9) Se não há um substituto de última hora, um pugilista pode exigir do orga- nizador da reunião que ele aumente ligeiramente seu cachê, para enfrentar um adversário com um sobrepeso notável - excedente de grana que será garfado da remuneração do combatente que está com peso a mais. Um organizador pode modificar livremente o programa de combatentes até o último minuto, sem qualquer obrigação de reembolso. Assim, é comum que um ou vários pugilistas, cujos nomes figurem nos cartazes que anun- ciam a noitada (muitas vezes, com uma ortografia um tanto duvidosa). não estejam efetivamente no programa. 198 - Lo"ic Wacquant Curtis e DeeDee esperam a pesagem, sentados com Cliff e Eddie (em segundo plano). Curtis e DeeDee vão sentar-se no fundo da sala, perto de Eddie, que se senta na fileira atrás deles. Depois, Curtis levanta-se para ir apresentar-se a JeffHannah, que espera, sozinho, com os ombros encostados na parede, do outro lado da sala. Ele aperta a mão do seu adversário desta noite e conversa com ele um pouco, com um tom amigável- de longe, pode-se julgar que são dois amigos que se encontraram e que estão à vontade. Curtis dá tapinhas no peito de Hannah, brincando. (Assinalemos de passagem o mito mediá- tico segundo o qual os boxeadores devem ter "ódio" de seu rival para lutar bem, mito que tem o dom de irritar DeeDee, porque comprova a ignorância que o público tem da Sweet Science.) Aproveito O interregno para dar a Jack a conta que o dentista de Ashante mandou para ele, cobrando o pagamento imediato do tratamento feito no maxilar do pugilista, que foi quebrado du- rante uma luta em Cleveland, em fevereiro passado, e que o pro- motor de Cleveland ainda não acertou. Jack finge estar surpreso de que seu grande amigo Larry ainda não tenha liqüidado essa conta. Quando DeeDee toma conhecimento, fica bem chateado: "Man, você não vai dar iInportância, isso aí não é nada. Contas como essa você deixa pra lá, não paga e ponto final." Eddie finge umar descontraído, mas eu sei que ele está tenso como um arco, porque Keith luta hoje à noite. Corpo e alma - 199 Jack Cowen e seu assistente escolhem as luvas para o combate da noite. IIVOCÊ NUNCA PODE SUBESTIMAR UM BOXEADOR" Eddie, depois de urna reunião no lnternational Amphitheater LOUIE: Você fica nervoso quando teus boxistas sobem no ringue, por exemplo, quando Lorenzo ou Keith sobem no ringue? Ej)J)IE: Com todos eles. Todos, sejam quantos forem. Não faz a menor diferença quem seja. Com todos eles. f: um mal-estar que me dá nas tripas por todos os meus meninos, mano Tá enten- dendo? Você tem sempre um certo cagaço - não interessa quem é. Mesmo com o boxeador mais forte do mundo. Loull:: Você fica nervoso quando? Nos dias que antecedem, quan- do vocês treinam para o combate ou só no dia do combate? EJ)j)IE: Exatamente quando chega a hora do combate. Antes, eu fico relaxo Eu só quero que as coisas estejam bem, é só. LOUIE: E você fica tenso quando? EpI)JE: Às vezes, na pesagem. Isso depende. Às vezes, na noite do combate. Porque não existe luta fácil. Pelo menos, pra mim. Porque eu vi caras que o pessoal fazia vir como "valorizadores", e eles mandavam ver. Eu vi "aventureiros" [journeyman] pôr a nocaute postulantes a títulos [top contender]. Olha só, quando Larry Holmes [o campeão do mundo de pesos pesados] comba- teu Mike Weaver, Mike Weaver tinha nove derrotas, mas man- dou Larry Holmes à lona três vezes, e quando Larry Holmes tam- 200 - Lo"ic Wacquant bém mandou ele à lona, ele se levantou logo. E Holmes mal con- seguia disparar suas combinações de golpes [ele imita as combi- nações em câmera lenta, simulando cansaço], e o árbitro parou a luta. Porque ele estava com medo de que Weaver tocasse Holmes de novo e fizesse realmente um arraso. Então, isso te mostra, tá entendendo, que você nunca pode subestimar um bo- xeador, em nenhum momento, em nenhum lugar. E é isso que eu digo aos caras, eu digo a eles, "mesmo que o teu adversário pareça fácil pra você, mesmo assim é preciso que você esteja bem preparado e atento", porque isso faz parte do boxe. LOUIE: Porque, a cada vez que você sobe no ringue, você não sabe o que pode acontecer... Eplm:: É isso aí, é isso aí, é por isso que eu digo a eles, que eu insisto com eles o tempo todo: preparação, pre-pa-ra-ção. LOUIF.: Durante o combate, quando o adversário mete Lorenzo ou Keith em dificuldades, você fica ainda mais tenso? EDlm:: Não, bom, porque uma vez que eles estão no ringue, sei que estão preparados pra isso. Porque, conforme o jeito que eles fizeram no sparring, eles aprenderam a se sair dessas situações na academia. Porque quando você faz sparringcom Curtis, quan- do ele faz com Lorenzo ou Keith, eles vão ter que dar duro, por- que é assim que eles trabalham. Você vê, é por isso que tem tan- tos camaradas de outras academias que vêm pra nossa e que fa- zem sparring aqui. Porque eles sabem que se você pratica no Woodlawn, vai ter um sparring duro de verdade. Porque é assim que nós trabalhamos. Voltamos para Woodlawn. DeeDee, Curtis, Eddie, Little Keith e eu. No ano passado, Curtis lutou com o "vagabundo" de Milwaukee, com quem Keith deve se bater hoje à noite. No eleva- dor, Curtis dá uma força para seu companheiro de academia: "Não é um cara imbatível. Se você puser pressão sobre ele, ele vai cair, você não vai ter problema. Eu pus ele a nocaute no terceiro assal- to, de modo que não sei dizer pra você se ele consegue se manter a distância." De todo modo, é uma luta apenas em quatro rounds ... Ao sair do Illinois Center, chamo a atenção de DeeDee para a exposição de arte, no hall de entrada. Será que ele ia gostar de ter na sua sala esse tipo de quadro abstrato azulado, com relevo gra- nulado, que está exposto bem na entrada? "Man, não sei nem Corpo e olmo - 201 • i meSlno te dizer o que é esse treco, Louie." Em compensação, ele conhece as mulheres, e Curtis também. Na rua, as piadinhas e as olhadelas maliciosas recomeçam com freqüência cada vez maior. Enquanto o empregado da garagem desce o carro do estaciona- mento, Curtis rói uma barra de amendoim com chocolate e esbo- ça alguns passos de boxe no pequeno quartinho de concreto em que aguardamos. Aproxima-se um cara, dizendo que o reconhe- ceu: "Eu vi o senhor na televisão, o senhor é lutador de boxe, não é?" Ele aperta a mão de Curtis e saúda DeeDee com ênfase, visi- velmente impressionado de estar na presença de praticantes da Nobre Arte. No carro, discussão sobre boxe, sobre as lutas de ontem na televisão e sobre os respectivos adversários de Keith e de Curtis hoje à noite. Uma tarde de ansiedade De volta à rua 63, damos de cara com um velho caquético vestido espalhafatosamente com uma fantasia de carnaval inaudita, polainas brancas, colarinho e dragonas vermelhas, usando um chapéu extravagante que ostenta hélices espetadas com dezenas de bandeirinhas dos Estados Unidos. Ele, sozinho, é uma verda- deira feira humana ambulante! DeeDee e Eddie ficam surpresos, porque eu não o conheço - é um tipo do bairro - e sugerem que eu vá tirar uma foto dele, pois o cara adora isso. Pergunto ao ve- lho treinador se o camarada é louco: "Se eu usasse um chapéu desses e ficasse andando pela rua, o que é que você ia achar?" Curtis vai ligar de novo para Lorenzo, para tentar saber o que aconteceu com os ingressos. "Se você quer a minha opinião, eu te digo que não se pode contar com Lorenzo. Ele não é confiável. Agora você já está sabendo." Curtis e DeeDee ainda devem esperar mais umas duas horas, antes de ir almoçar no Daley's com Jeb Garney, que marcou um encontro com eles no restaurante. A hora do almoço é calculada emJunção da hora da luta, ou seja, cinco horas antes do combate, de tal modo que o boxeador já tenha feito a digestão, mas ainda conserve as calorias de sua última refeição. DeeDee não está com a menor vontade de esperar esse tempo todo - ele sempre fica com um humor massacrante à medida que as lutas aproximam- 202 - Lore Woequont se. Combinamos, então, que iremos nos encontrar para sairmos do gym juntos, às cinco e meia. Sherry, a mulher de Curtis, não vai à reunião, por causa da gravidez avançada, e Curtis também não irá carregar o pessoal da sua família, segundo ordem expressa de DeeDee. Os três iremos de jipe. Levo Eddie em sua casa, na rua 55. Enquanto rodamos na Cottage Grove Avenue, ele observa: "Os jovens, nesse bairro, não têm muita opção: ou seja, ou você cai na droga, ou você pára na cadeia. [ ... ] Você viu o blecaute no West Side?" Há três dias, um setor do gueto oeste da cidade está sem eletricidade, em conse- qüência de uma pane na estação de distribuição. Lmm:: É, eu ouvi falar nisso. El)!)H-:: Bom, a maioria das lojas foi pilhada. A maior parte delas era de comerciantes árabes_(1O) E eles tinham relações tão ruins com as pessoas do bairro que foram tungados. Loull-:: E por que eles têm essas péssimas relações? E])]l[}-:: Bom, você sabe, os árabes não respeitam os negros, por- que a maioria deles - você sabe, como eu já disse pra você, estamos num bairro urbano, em que a maioria das pessoas são bebuns, e então eles se comportam como idiotas, aí é por isso que eles não respeitam. Não existe tanto entendimento assim entre as pessoas. LOUIl-:: Ah, sei, você acha que a culpa é mais dos negros do bairro do que ... E[)j)]E: É - a culpa é igual dos dois lados ... LOUIE: Árabes ou coreanos? ElmlE: A culpa é dos dois. Pra começar, você já tem botecos em todas as esquinas, então, você sabe, é isso também. É culpa de um bocado de coisas. Loull--:: Por que tem tantos botecos nesses bairros? (lO) A vasta maioria das lojas do gueto negro é mantida por microempresários com origem no Oriente Médio (libaneses, sírios, palestinos) e da Ásia (co- reanos e chineses) que usam mão-de-obra familiar; suas normas culturais, em matéria de relações pessoais, estabelecem a distância e a reserva. Disso decorrem tensões vivazes com os moradores, que vêem os comerciantes como intrusos que, além de "dragar" o dinheiro da comunidade afro-ame- ricana sem qualquer retorno, tratam-na com frieza e até com desprezo. 4 Corpo e olmo - 203 "Se eu usasse um chapéu desses, Louie, você ia achar o quê?" Ej)])[E: Porque eles sabem muito bem [com um tom sombrio 1 que quando as pessoas são oprimidas, quando não têm empre- go, elas vão dar um rolé e passar o tempo bebendo. A única dife- rença entre um boteco e uma crack housef.. ll ) é que o boteco é legalizado. Ele é autorizado pelo Estado, é por isso, fora isso, você não tem a menOr diferença. Porque o mesmo tipo de nego que você encontra dando bobeira na crack house, na frente da crack house, você encontra na frente de qualquer boteco _ não tem grande diferença. [ ... 1 Loull":: E você já deve ter visto montes e montes dessas coisas? Epj)IE: É, é, a gente acaba se habituando, é a rotina ... LOUIE: E você não fica chateado, quando você está andando por aÍ... Enlm:: Não, pra falar a verdade, não. Só nas vezes que eu vou ao centro da cidade. Não sou o tipo de pessoa pra andar no Centro da cidade. Porque todo mundo está o tempo todo com pressa, cOlTendo. (11) Uma crack homt' é um estabelecimento (freqüentemente uma construção abandonada) em que se pode comprar e consumir, ali mesmo, nas "galerias" reservadas para isso, a cocaína, vendida sob a forma de "pedra".5 204 - Le"lc Wacquant De volta à minha casa, tento aproveitar o intervalo para fazer minhas anotações, mas estou de tal modo cansado pela noite de ontem e ansioso com as lutas iminentes que não consigo conti- nuar. Ashante chega ao apê perto das cinco horas. Hoje foi treinar mais cedo, porque sabia que o gym vai fechar logo, por causa das lutas. Fez um bom treino, mas que o deixou um pouco arriado - ele está com dificuldades de se recuperar depois da interrupção de três meses, por causa da fratura feia no maxilar. Ontem, ele foi ver os jogos de basquete do torneio "3 contra 3", patrocinado pela cer- veja Budweiser, no Grand Park, à beira do lago Michigan. Ashante acompanha-me em um giro de carro até o Yancee Boys Club, na Wabash Avenue, para levar a carta para a Soft Sheen Foundation (um pedido de financiamento para uma viagem de intercâmbio que estou tentando organizar junto com o clube de boxe de Vitry- sur-Seine).6 Ao chegar a esse bairro ainda mais arruinado que Woodlawn, Ashante grita: "Oh, boy, minha antiga escola, meu bom e velho colégio!" Estamos diante do estabelecimento onde ele seguiu seus estudos, antes de abandoná-los, no ginásio, e ele está emocionado por lembrar-se desses momentos, porque é a primeira vez que volta a essa área do South Side desde a adoles- cência. O colégio é uma construção maciça, de tijolos, com o por- te de um quartel, cercado de terrenos baldios e à sombra de dois grandes prédios de moradias populares, cujas paredes estão co- bertas de pichações e cujas janelas do térreo são gradeadas. ASHANTE: Não mudou nada, só que está tudo mais estragado. é claro ... A5 pessoas mudaram, não são as mesmas pessoas. As gangues também mudaram. Há dez anos, não tinha tantas cha- cinas como agora. Saca só, antes, quando dois moleques da gangue queriam brigar, você deixava eles brigarem, mas era um contra um. Mas agora não é a mesma coisa: se você quer brigar comigo, eu vou procurar meu berro e descarrego ele em você, morou? E quando você tem um berro, ele é a primeira coisa em que você pensa - nada de fazer acordos de paz e deixar os dois moleques brigarem e resolverem seus problemas como homens de verdade. Hoje, a coisa mete medo, porque os caras, eles não têm (elevando a voz bruscamente], quer dizer, eles não dão o menor valor à vida, a vida não vale nada pra eles. Pode ser mu- lher, behê, menino ... Corpo e alma - 205 LourE: E não era assim, na época em que você fazia parte da gangue? ASHANTE: Não, você tinha principalmente brigas de soco, na mi- nha época. Agora, os moleques se matam a tiro por nada, agora eles apagam três ou quatro garotos num drive-by shooting - por- ra, claro que não era assim. LOUJE: Antes não havia drive-by shootings? ASHANTE [pausa para pensar 1: Tinha, tinha, mas não como ago- ra. Não tantos como agora. Loulf':: E o tráfico de drogas, é verdade que ele está totalmente fora do controle? ASHAN'fE: A droga, a droga ... é uma encrenca [it' 5 a messJ . .t. pior. Porra, a droga não era nada, comparada com o que é agora. Saca só, antes, tinha alguns caras que estavam no tráfico, en- quanto agora, shit! Meu menino [o filho dele, de cinco anos), ele pode encontrar as drogas que ele quiser, se quiser . .t. pior, é pior, é mais grave do que nunca foi, por causa do governo e da eIA.(12) o que aconteceu com os jovens do bairro com quem ele anda- va na época? "A maioria está drogada, morta ou na cadeia ... " Defi- nitivamente, não se sai desse tríptico macabro, porque a resposta é mais ou menos a mesma dada por todos os boxistas negros que interroguei a esse respeito (mas não a de seus colegas brancos, para os quais ter um trabalho operário estável é o destino modal). Em seguida, passamos na Coop, onde compro frutas e filme para tirar fotos das lutas, antes de voltar para casa. o DESTINO MACABRO DOS COMPANHEIROS DE INFÂNCIA LonEN/,o: A maioria está em cana ou então morta e enterrada, quer saber, outros ainda estão na rua, dando bobeira, ou me- lhor, a maioria daqueles que eram realmente meus amigos, nes- (12) Alusão à teoria do "complô governamental" que circulou como boato e foi denunciada amplamente pela comunidade afro-americana, com o slogan de "The Plan", segundo a qual seria o Estado quem, por baixo do pano, forne- ceria drogas para os bairros negros, com a finalidade de minar a mobilização de seus moradores e de pôr fim à reivindicação de igualdade racial.7 206 - L6ic Wacquant te momento, está em cana - tem os que se dão bem, outros, não. t. uma coisa ou outra. I.oU1E: Você podia ter sido um daqueles que foi parar em cana? L1RENZO: Eu poderia, claro, bem que poderia. LouII":: O que impediu que isso acontecesse? LORENZO: Eu não sei, não tenho cabeça pra isso, somente fui por um outro caminho. TONY: Bom, agora tem caras que trabalham, tem os caras que estão drogados, os que vendem drogas, e tem os que casaram e ralam, mas tentam sobreviver - a mesma coisa comigo, você rala e tenta sobreviver. ANTHONY: Eles só fazem merda - alguns estão foragidos, com a polícia nO calcanhar, a maior parte se dá bem, mas com as dro- gas. E outros se viram bem direitinho, têm um emprego, mas, mesmo assim, eles passam droga. LoulI':: Por que agora tem tantos caraS que estão no tráfico? ANTHONY: Todos eles querem - não, não é só o dinheiro fácil [the quick morzey] , não é isso, eles querem, eles querem viver no sonho, sacou? [Com um tom calmo] Eles fazem um filme deles, é tudo o que eles querem: estar dentro desse filme. CURflS: Quando eu cheguei numa idade mais madura, e tudo isso, minha mãe falou pra mim, acho que foi quando eu tinha 14 ou 15 anos, ela me disse que ia vir um tempo em que você vai ver uma porrada de amigos seus, alguns deles vão morrer, outros vão parar na cadeia. E, como o previsto, eu vi isso acontecer, um monte deles, cerca da metade - bom, talvez não a metade, isso seria uma certa forçação de barra, maS uma boa parte dos meus amigos morreu, porque andava com as gangues [gang banging], ou um montão que vende drogas, tenho um bocado de amigos que só faz isso, só vende drogas, [sua voz eleva-se de indigna- çãO], eles passam drogas, vendem cocaína só pra comprar outro tipo de droga, ê - eles chamam essa coisa de Karachi, eu acho, é um downer [depressivo). [A voz dele baixa, com um tom mor- no 1 E um bocado de amigos meus está em cana. Alguns dos meus melhores amigos, quer dizer, amigos que terminaram o colégio, eu posso contar nos dedos da mão os que fizeram uma carreira, que têm um emprego, que estão tentando se tornar alguém. Posso contar nos dedos de uma mão só. Mas isso não impede que eu veja eles, quer saber, de falar com eles. Corpo e alma - 207 11 Ashante evidentelnente queria ir à reunião desta noite, ainda mais que Calhoun -um empresário e gângster do South Side, com o qual ele está tentando entrar em contato há várias semanas, na esperança de que se torne seu empresário - estará lá com toda certeza. Ele sonda-me desajeitadamente: "O que você vai fazer hoje à noite, Louie? Quem vai à reunião? DeeDee botou você na lista, não é verdade?" (a lista das pessoas autorizadas pelo organi- zador a entrar de graça). Pergunto-lhe se ele quer ir ao Studio 104 conosco. "Ah, é claro, mas estou sem grana no momento." Pro- ponho-me a comprar um lugar, porque eu achara que ia ter de pagar o meu ingresso, mas vou entrar de graça. "Beleza, Louie, é claro." Charles, o antigo empresário-treinador de Ashante, antes de ser levado prematuramente por uma crise cardíaca, sempre tinha bilhetes gratuitos e dava um jeito para que Ashante não ti- vesse de pagar para assistir a uma reunião. Se fosse preciso, ele tinha uma crise de cólera e berrava feito um louco na bilheteria até que o organizador fizesse o que ele queria. Mas Ashante não quer ir ao Studio 104, no final da tarde, co- migo, com Curtis e DeeDee: é cedo demais para ele. Prefere espe- rar até as sete horas para ir com Liz, minha companheira, sua amiga Fanette e Olivier (chamado de Le Doc). Combinamos, en- tão, que ele vai pegar o bilhete que era de Olivier. Liz tem o dela, e Fanette também. Quando Le Doc chegar ao Studio 104, ele só terá de pedir que me procurem, para eu comprar o ingresso dele daquela quota que sobrou de Curtis, em vez de comprá-lo na bi- lheteria, para aumentar as vendas de Curtis, e, portanto, sua re- muneração. "O quê? Mas isso é uma piada, Louie?", ri Ashante. "Ele não vai ter comissão nenhuma sobre a venda dos ingressos. Uma vez Butch vendeu duzentos bilhetes para uma luta dele, para seus amigos bombeiros, duzentos, tá escutando? E pra ele não ficou merda nenhuma." Proponho a Ashante que ele fique no apê para esperar Liz, mas, depois de pensar um pouco, ele declina do oferecimento: tem muito medo de ficar sozinho, fechado com Titus, meu ca- chorro esquimó de cinqüenta quilos, mesmo que este fique tran- cado na cozinha. (Um outro dia, ele iria me confessar: "Não su- porto ficar num quarto com um animal mais fedorento que eu.") Tenho apenas que abrir o carro, estacionado na frente do meu 208 - Lo'ic Wacquant prédio, e ele vai esperar lá dentro. Já que ia ficar lá fora, por que não se sentar na sombra, sobre a grama, na frente do prédio, e não ficar fechado na minha velha Plymouth Valiant, sem rádio nem ar-condicionado, debaixo do sol? "Fala sério, Louie. Nem pensar em ficar na frente da porta, você sabe que a polícia ia me prender logo, logo." "Por quê?" "Por quê [irritado]? Por nada, caramba. Eles vão me deixar sentado, assim, tranqüilo. Man, eles não querem negros no bairro, Louie, você está farto de saber dis- so. Já falei pra você que eu estava acostumado a ir ao Hyde Park e toda vez dava tudo errado, eu era apanhado pelos canas simples- mente porque tinha atravessado a rua.", 13) Insisto, mas nada a fazer: "Eles vão me prender por 'trespassing', porra, você sabe como é que é, Louie", exaspera-se Ashante. Vou embora, finalmente, deixando-o no carro, sob um sol a pino, esperando a chegada das duas moças. Desço a Ingleside Street a pé até o Boys Club para me encon- trar com DeeDee e os outros. A porta de entrada está aberta, se- gurada por um calço de madeira. Eddie está no campo de visão, conversando com Anthony e Maurice, seu tímido primo gordo que faz kick-boxing. Keith está deitado na mesa de abdominais, perto do ringue, a cabeça virada para trás, de olhos fechados: ele tenta dormir antes do combate, como recomendam os boxeado- res (para relaxar e preservar as energias), mas pode-se perceber a ansiedade em seu rosto sonolento. DeeDee chega da loja ao lado e aguarda pacientemente que Curtis apareça, sentado sobre uma outra mesa, em frente ao espelho de parede. Será que ele telefo- nou para a casa de Curtis, perguntando se este já estava a cami- nho? "Por que diabos você fica fazendo perguntas o tempo todo, Louie? Não tem o menor problema, não estou preocupado com isso." (13) Meu prédio fica na fronteira entre o gueto negro de Woodlawn e o bairro branco e próspero de Hyde Park, abrigo fortificado da Universidade de Chicago. Assim, a rua em frente ao prédio deve ser patrulhada pennanen- temente pela polícia da cidade de Chicago e por uma viatura da segurança privada da universidade (a terceira mais importante do estado, em termos de derivo). Tanto uma como a outra eram, e com razão, famosas por fazer o controle segundo a aparência física e por maltratar os jovens negros das redondezas. Corpo e alma - 209 Volta-se a falar do blecaute que atinge o gueto de West Side, assim coma uma parte do rico bairro vizinho de Oak Park, des- de sábado à tarde. Meia dúzia de lojas de produtos alimentícios foi roubada, mas nada de espetacular: "Foi merdinha, dessa vez. Não teve muita pilhagem. Nada como da outra vez. Se fosse, você ia ter caras, em toda parte desse bairro, vendendo televi- sôes em cores por cinqüenta dólares e tudo o mais. Você ia ter caras dentro do gym agora mesmo, passando sua mercadoria." (Mais tarde, Eddie e Ashante concordariam que, se eles moras- sem no West Side, iriam fazer a festa no comércio local, quando caísse a noite: "Se eu vivesse nas condições em que essas pessoas vivem no West Side, como se fossem animais, na mais negra miséria, man, é isso aí, eu ia sair toda noite pra encher minha carroça de mercadorias.") Ofereço-me para guiar, caso DeeDee queira que Curtis repou- se até a última hora: "Tá bom, dessa vez Curtis pode dirigir. É um trajeto curto, de quinze minutos." Outro sinal de que este é um combatezinho presumivelmente sem dificuldades para Curtis, uma vez que, por ocasião da defesa de seu título de campeão de Illinois, em Aurora (é verdade que a uma hora de Chicago), DeeDee insistira para que eu tomasse o volante. É, portanto, mais crucial ainda para ele ganhar esse combate, e de maneira convin- cente. Conversa-se tranqüilamente na penumbra morna da sala dos fundos, sobre boxe e sobre histórias de crimes e da rua. DeeDee sempre dá um jeito para sair muito tempo antes do horário das reuniões. "Eu adoro chegar antes da hora. Se eu vou a algum lugar, gosto de chegar cedo, sentar, tratar das minhas coi- sas, relaxar, tranqüilo, e depois fazer o que eu tenho pra fazer. Detesto chegar em cima da hora e me apressar, isso não. Sei que eu tenho que chegar cedo pra banda r as mãos de Keith, não tem outro jeito [no-how]. Strickland não vai estar lá no começo da noitada, e Eddie não sabe bandar as mãos de Keith. Então, sou eu que tenho que fazer isso." Ele odeia pessoas tagarelas: "Isso é uma coisa que eu gostava nos filipinos [ele morou nas Filipinas duran- te cinco anos, no início dos anos 70]: se um tipo falava muito e não sabia fechar a maldita matraca, levava uma porrada e ia a nocaute) vuuU1n! Lá eu vi coisas estranhas e costumes estranhos, é verdade, e eu dizia pra mim 'Caramba!'" 210- Lo"ic Wocquont Curtis chega finalmente, exibindo a camiseta "Salem", que um representante de uma marca de cigarros ofereceu-lhe para vestir esta noite. Traz também, dobradas no braço, as novas túnicas saí- das diretamente do alfaiate filipino de seus amigos. Elas são azul- marinho com um bordado em letras douradas, nas costas, "Curtis Strong". DeeDee faz uma careta: "Eles deviam ter posto um de- brum dourado nas mangas." Já são mais de seis horas, quando levantamos âncora no jipe de Curtis, com DeeDee, Anthony, Maurice e eu. Curtis pega ruazinhas transversais, parecendo enganar-se de direçãO várias vezes, como se estivesse com vontade de alongar o caminho - como resultado disso, levamos mais de meia hora para fazer um trajeto que normalmente leva a metade desse tempo. Ele passa, de propósito, diante de duas igrejas, diminuindo a veloci- dade para fazer o sinal-da-cruz em silêncio. Ao sul de South Shore, ele indica com o dedo um grande conjunto, no centro de um quar- teirão verde e residencial, em que ele morara antes de se mudar para a Bennett Avenue e para a rua 72. Era evidentemente melhor do que sua vizinhança de agora, cheia de dealers, à beira da linha de estrada de ferro, mas, por seiscentos dólares por mês, ele não conseguira agüentar. Bem-vindo ao Studio 104 Rodamos direto pela Dan Ryan Expressway até a rua 104, de- pois dobramos a leste em Torrence Avenue, para nos aproximar- mos de dois conjuntos de casas que ficam mais adiante, no final da rua, em frente a uma comprida construção de tijolos verme- lhos, espremida entre uma oficina de automóveis, "Bill's Used Auto Parts", uma fábrica de cerveja e um terreno baldio margeado por uma estrada de ferro desativada. Este é o Studio 104 (diz-se "one-o-four'), um restaurante-bar-discoteca situado há trinta anos nesse bairro operário em decadência, isolado do resto da cidade, no canto do South Side. Descobri o lugar no mês passado, durante uma reunião ao ar livre montada pelo proprietário, o famoso Lowhouse, um notó- rio larápio que aparentemente se serve das noitadas para lavar dinheiro proveniente dos diversos tráficos ilícitos que ele coman- Corpo e olmo - 211 da.(14) DeeDee, aliás, dissera-me que eu fosse discreto com o meu gravador, porque os marginais que agem na área poderiam achar que eu sou um policial undercover ou um agente do FBI. Percebi que o técnico de Woodlawn não estava brincando alguns dias depois dessa reunião, quando Jack Cowen voltou ao assunto, numa conversa no gym: "Louie deve estar correndo altos riscos com esse gravador, com todos esses gatunos que andam por aí. Se ele con- tinuar passeando assim com esse gravador, uma manhã dessas pode ser que a gente encontre um cadáver do outro lado da estra- da de ferro." Eis a descrição do Studio feita em minha caderneta de campo, por ocasião de minha primeira visita: O Studio 104 é um lugar de comércio, de distração e de socia- bilidade particulares à classe popular afro-americana. Aí o am- biente é bem distintivo: jovial, quase familiar e furiosamente "black". As pessoas vêm a esse bar não somente para beber, comer e dançar, mas também e sobretudo para encontrar os amigos, con- versar durante horas com os freqüentadores habituais.' Aí é pos- sível acompanhar os campeonatos esportivos, festejar aniversários e despedidas de solteiro, aí afogam-se as mágoas e exteriorizam- se as alegrias, ao ritmo da música, dos números de dança e dos espetáculos de pretensões eróticas, concursos de garota com "a camiseta molhada", ou das "pernas mais sexy" e outras competi- ções de strip-tease. O estabelecimento vive em osmose com o bairro e seus habitantes, como é comprovado pelas filas de picapes aber- tas que circulam em volta dele, no fim do dia. Na saída, garotos tímidos distribuem folhetos coloridos, anunciando piqueniques, organizados durante a festa nacional pelos políticos locais, e car- tazes impressos pelo deputado negro da circunscrição (recente- mente envolvido em um obscuro caso de assédio sexual por uma de suas auxiliares). (14) Um informante bem posicionado a quem perguntei se seria interessante encontrar-me com LowhollSC, respondeu-me bruscamente: "Esse cara é um criminoso, um ignorante, você não vai tirar nada dele. Eu aconselho você a não entrevistá-lo, é perda de tempo. Ele é grosso, desconfiado ... E os tipos que andam no bar dele são perigosos. Pra ele, essas lutas são apenas um busincss: de dá grana a alguém para organizá-las. e isso é tudo, ele não está nem aí e não sabe nada de nada. Aliás, ele não ia aceitar ser entrevistado." 212 - Lok Wacquant HEAR YOUR CONGRESSMAN: Gus Savage 10 TH ANNuAL REPORT, STATUS OF UEMOCRACY ON INUEPENUENCE DAY! (PENUING LEGISLATION) JULY, 4 TH 1 P.M., KICKAPOO Woous, 146 TH ANU HALSTEU.(15) Pencas de moços perambulam, e jovens musculosos ficam es- piando, sem participar, nos fundos do estacionamento, onde está montado O ringue, duros como estacas, arrogantes a ponto de exibir um toque ameaçador, com suas jaquetas estampadas, seus bonés com aba de pele de cobra e os pescoços carregados de pesa- dos colares e medalhões dourados. As mulheres que os acompa- nham - são raras as espectadoras desacompanhadas - são hiper- sexuadas, maquiladas e vestidas de maneira provocante, quase sempre sedutoras e obrigatoriamente boazudas; os vestidos cur- tos, com decotes profundos, e os penteados glamourosos são de praxe. Jeb Gardney está todo animado e põe-se a lamentar em voz alta por não ter vinte anos a menos. Fica-se contente de estar aqui, de se ver e de se mostrar, de abordar e rir às gargalhadas. Na platéia, todos os freqüentadores habituais das reuniões, treinado- res, velhos e apaixonados da Nobre Arte e inúmeros boxeadores profissionais da cidade, que vêm avaliar os possíveis rivais ou sim- plesmente para se fazer admirar, como "Jazzy" James Flowers, que passeia na platéia exibindo seu cinturão de campeão meio-pesa- do de Illinois (e os pontos de sutura que ganhou junto). Todos andam para lá e para cá entre o estacionamento e o bar, onde vão beber com generosidade. A cerveja corre solta, apesar do preço da consumação: 1,50 dólar por um copinho de Old Style ou um cachorro-quente, um dólar a lata de refrigerante, 50 cents o pacote de batata frita e 25 cents por um copo de água. O bar, por si mesmo, vale uma visita, com sua bancada de quinze metros de comprimento, um magnífico espelho com moldura dourada, uma (15) "Venham ouvir seu deputado: Gus Savage. Décimo Relatório Anual sobre o estatuto da nossa democracia no Dia da Independência (legislação em discussão), 4 de julho ... Corpo e alma - 213 Um figurão e sua bela. televisão colorida gigantesca no final, um banheiro de cada lado e oito mesas redondas rodeadas por cadeiras forradas de plástico imitando couro vermelho, no meio da sala, flanqueada, em um lado, por uma tabela de basquete na qual se joga atirando a bola na cesta, por 25 cents. Do lado de fora, seguem-se os combates com um olhar distraído, a não ser que se conheça pessoalmente o boxeador em ação; se é esse o caso, é uma explosão fanática: aplau- sos frenéticos, vociferações intempestivas, assobios estridentes, uiuis, risos desenfreados. Sejam eles iniciantes ou profissionais 214 - LoTe Wacquanf aguerridos, apóiam-se ruidosamente os pugilistas do pedaço, o patriotismo local (e racial) obriga a isso. Os nocautes são sempre muito apreciados, assim como a coragem na adversidade - quali- dade que os praticantes da Nobre Arte chamam de "coração". Nada além disso: não se trata de um monte de conhecedores, lon- ge disso. A vasta maioria dos espectadores das reuniões não tem o menor conhecimento em matéria de boxe e, por isso, é incapaz de apreciar os combates nos planos técnico e tático. Os pratican- tes da Nobre Arte, e particularmente os treinadores, consideram- nos habitualmente como "otários" [squares] a quem se pode em- purrar qualquer coisa - como os músicos de jazz fazem com o público das boates em que eles tocam.9 IISÃO OTÁRIOS" GENE [69 anos, treinador da academia de Fuller Park]: As pes- soas que vêm às reuniões são otárias [squares], elas vêm aqui [com um tom impregnado de ironia] e não querem outra coi- sa, só que um camarada quebre a cara de um outro camarada, você está entendendo o que eu estou dizendo? Elas não vêm para - elas não sabem de nada, elas nem sabem direito o que estão vendo. LOUIE: Não é um tanto desolador passar tanto tempo na acade- mia aperfeiçoando sua arte para pessoas que não têm capacida- de de apreciar isso? GEt\'E: A partir do momento em que eles pagam pela violência ... Eles não sabem fazer a diferença, tudo o que eles vêem é um camarada levando uma surra, eles pagam a entrada [a voz se transforma em um assobio agudo, sob o efeito da incredulida- de], tem pessoas que adoram isso, podes crer, tem gente que é assim. [ ... ] A maioria não saca nada, porque eles nunca sacaram nada [de um combate], eles falam de boxe, mas é tudo o que eles sabem fazer, falar, e não passa de blá-blá-blá. O fato de que os combates sejam ao ar livre aumenta o atrativo do cenário. As card girls que se pavoneiam no ringue, no intervalo dos rounds, para enorme delícia da platéia, duas grandes negras provocantes em micromaiós que quase não deixam margem à imaginação, são excitantes, no limite da prostituição. Um serviço Corpo e almo - 215 de segurança privada, composto de três espadaúdos negros bonachões, controla para prevenir os incidentes e evitar os trambiques. Mas não tem nada a fazer com cerca de vinte mexica- nos que espiam os combates aboletados sobre o muro de casa de madeira amarela, vizinha ao estacionamento. Desembarcamos DeeDee na entrada do clube, diante do qual Jeb Garney está saltando de impaciência, porque já começava a se perguntar se não tínhamos nos perdido no caminho. (Como de hábito, ele está vestido como um mendigo, embora seja milioná- rio, por causa da criação de cães de corrida e de suas fazendas.) Curtis, que se dirige a seu empresário com uma deferência de dar dó - "Mister Garney, queira fechar a porta, por obséquio, muito obrigado, senhor" -, entrega-lhe as três túnicas azuis "Curtis Strong". Garney também acha que está faltando alguma coisa: "Deviam ter posto um galão dourado para cada vitória." Os empregados do restaurante estão estendendo uma lona azul para separar o estacionamento da rua, de forma a impedir que os transeuntes possam ver o ringue. Eles têm a maior dificuldade de içá-la ao poste, por causa do vento forte que infla a lona como uma vela logo que eles suspendem-na. Cruzamos com Kitchen e sua eterna máquina fotográfica a tiracolo. Ele pressiona Curtis para que o deixe tirar fotos do combate. Curtis diz para ele ver isso com Garney, porque é o empresário quem controla a caixa. Kitchen teria preferido obter o aval de Curtis, para em seguida fazer pressão moral sobre Garney no sentido de comprar o máxi- mo de fotos, mas o boxeador de Woodlawn livra-se desta. Na frente da porta do clube, está estacionada uma enorme limusine preta, brilhando de luxo, com suas três fileiras de assentos insta- ladas nos dez metros de comprimento, atrás de vidros fumês. Curtis cochicha para mim, com um largo sorriso no rosto: "Logo vai ser a minha vez de passear num troço desses, Louie, você vai ver." Espero que ele não me esqueça no ponto quando chegar essa hora ... Dou uma olhada no programa oficial da noitada e descubro que o adversário de Little Keith, que teve quatro vitórias em cinco lutas, não é lá essas coisas, porque exibe um cartel de zero vitórias em treze combates. JeffHannah alinha 18 vitórias por 21 derrotas e um empate. Em outras palavras, é um sólido "guerreiro" deste- 216 - Lo'ic Wacquant mido, mas em curva descendente, depois de passar por um bom momento, e serve agora como "trampolim" para os boxeadores em ascensão, como Curtis. (Esse tipo de disparidade, à primeira vista chocante, não tem nada de anormal: é chamando para par- ceiros adversários sensivelmente mais fracos que um organizador oferece aOS pugilistas locais - e sobretudo àqueles aos quais ele esteja eventualmente ligado por um contrato exclusivo de patro- cínio, como é o caso de Jack Cowen com Curtis - uma vantagem decisiva, por não poder assegurar-lhes a vitória - uma surpresa entre as cordas nunca está excluída, como se verá adiante.)(16) Em vez de trocarem de roupa em um microônibus, no estacio- namento, onde está o ringue, como por ocasião da reunião do mês passado, os lutadores, desta vez, dispõem de um vestiário dentro do clube. Se é que se pode chamar isso de vestiário: como Curtis encabeça o programa, os pugilistas de Woodlawn tiveram de usar um quartinho de guardados atrás da bilheteria, na entra- da da boate. Uma peça de três por quatro, separada da bilheteria por uma cortina azul e apinhada de mesas e cadeiras de metal dobradas, cartazes de Baccardi, vários toldos, caixas cheias dos mais diversos objetos (cinzeiros, enfeites, filtros de café, guarda- napos, utensílios de cozinha), um rolo de mangueira de jardim, dois minibares de madeira vermelha desmontados, duas máqui- nas de pipoca fora de uso e quatro grandes pilhas de cartazes anun- ciando as festas semanais organizadas pelo Studio 104: "Sexy Legs Contests", "Happy Hours" e outros "Ladies Night". Como mal conseguimos caber todos nesse espaço, DeeDee pede aos meni- nos que não irão lutar esta noite que não permaneçam ali nos atrapalhando. Mal e mal montamos três cadeiras de ferro, para Keith, Curtis e Jeb Garney. DeeDee senta-se em um alto banquinho de bar (é o ideal para seus joelhos, que reclamam quando se do- bram) e começa logo a bandar as mãos de Keith, que vai lutar primeiro. Rolo de gaze, esparadrapo, tesoura. O olhar de Keith está velado de apreensão. Enquanto isso, os outros boxeadores (16) b assim que um empresário ou promotor "empurra" [to build] um boxea- dor, "nutrindo-o" [to [eed] de oponentes inferiores, até que ele disponha de um cartel que o permita postular combates mediatizados nos quais os cachês tornem-se vantajosos. 10 Corpo e alma - 217 trocam de roupa na sala de dança vizinha ao bar principal, na frente dos clientes, que conversam e bebem, encostados em um dos três balcões. Curtis cochicha para mim, com uma cara misteriosa: "Vem, Louie, vem comigo." É simplesmente para acompanhá-lo ao final do corredor, até o banheiro, que não é nada reluzente, com seus vasos malcheirosos rodeados de pingos de urina. Ele desaparece em um dos cOlnpartimentos, de onde continua a conversar comi- go, enquanto defeca ruidosamente: «Ah, como eu estava preci- sando descarregar. 00000 [são peidos em cascata I todos esses gases! ... Então, Louie, isso tudo não te deixa excitado? Não te dá vontade de lutar entre os profissionais?" Sim, é excitante, mas para lutar entre os profissionais seria necessário, primeiro, que eu ti- vesse as habilidades exigidas. É verdade que, com Curtis no pro- grama, há eletricidade no ar. Ele está com um jeito sereno, nada de ansiedade e de fuga, como acontecera nos últimos dias, no gym, com suas pretensas contusões no braço.(17) Os dias mais penosos são os que precedem a luta; depois, quando se aproxima o mo- mento do combate, Curtis retoma a confiança em si mesmo. Sabe que vai subir ao ringue, onde pode exercer seu talento de "artista de palco": uma vez entre as cordas, ele está em seu elemento, "no escritório" ou "at home", como os pugilistas adoram dizer.(18) "SEMPRE QUIS SER UM ARTISTA DE PALCO" CUR'rrs: É importante à beça ser um performer. Antes, acho que quando eu tinha uns 13 anos, mais ou menos, queria ser cantor. Meus irmãos e meus amigos, eles não queriam cantar. Aí, eu pegava eles, pensa só, na cozinha, eles estavam na geladeira, e eu (I?) Nas duas semanas anteriores ao combate, Curtis queixara-se várias vezes de um misterioso mau funcionamento do ombro, que subitamente parali- sava-lhe o braço. uma forma de chamar a atenção do treinador (e, indire- tamente, do empresário) para sua situação financeira desastrosa, que a reu- nião no Studio 104 não seria suficiente para resolver. (I!\) Essa atração pelo palco não é particular aos boxeadores: os ofícios do cor- po e o sentido de performallCe ocupam um lugar de epicentro na socieda- de urbana dos negros norte-americanos, da música à religião, passando pelo esporte, pela comédia e a política. I I 218 - Lo"ic Wacquanf pegava eles I com um tom superexcitado J: "Venham! Venham ver esses passos que eu quero mostrar pra vocês." A gente ia pro quarto e repetíamos o passo juntos. a gente imitava os Jackson Five, mas eles estavam sempre cansados, eles ficavam logo can- sados, eles não eram - eu acho que eles não queriam dar um show, como eu queria: sempre quis ser um artista de palco [entertainer], e isso teve um papel muito importante na minha vida, sacou. Você vê, na televisão, o Michael Jackson: vê só [murmurando de admiração], vê corno ele é bem preciso - como ele desabrocha feito uma flor, e tudo o mais, no meio das pessoas, no público. Eu quero ser exatamente um entertainer quando estou no rin- gue, eu sinto que preciso estar no meu máximo, para que eu dê o meu melhor espetáculo. Sei que estou dando o máximo e que ele [meu adversário] está dando o máximo dele também, é pre- ciso que alguém ganhe, não é verdade? E a platéia vai ver o cama- rada que ganha, hein? Então, se estou dando o máximo, eu pos- so ter a atenção da platéia para mim, mais do que se eu dissesse [com urna voz abafada]: "Sentem-se e escutem! Olhem pra mim!" Então, quer dizer, eu só tenho que subir no ringue e fazer o meu serviço, e todo mundo vai virar um fã ... [abaixando a voz para dramatizar melhor] de Curtis Strong. De volta ao quartinho que se faz de vestiário por uma noite. Conversa de cozinha. Eddie dá a orientação tática a Little Keith: "Vamos ver o que ele tem nas tripas no primeiro round, vamos descerfundo [downstairsJ, ver o que ele tem. Então, de cara, você pressiona e trabalha no corpo." Os boxeadores de Woodlawn tro- cam conselhos, enquanto DeeDee e Eddie ausentam-se tempora- riamente. Kr:rrH: A única coisa que me preocupa é que esse cara bate forte, porque hoje de manhã, na pesagem, ele tinha um jeitão bem pesado. CU!fns: Isso, e eu posso falar, porque ele não conseguiu me tocar de verdade quando lutei com ele. E passa a explicar que os adversários que mais o preocupam são os "aventureiros" [journeyman] valentes, astutos e duros no com- bate, exatamente por suas trajetórias de perdedores. Corpo e olmo - 219 CUlfns: Você se lembra daquele combate que você perdeu - você só perdeu um combate, não é isso? [Keith faz sinal que sim]. Você tirou algumas lições desse combate. Agora, pensa em to- dos os combates que esse cara perdeu e em todas as lições que ele tirou dessas derrotas, você está vendo onde eu quero chegar? Tudo isso é experiência, esses carinhas têm essa experiência. Ago- ra, eu não me preocupo mais com esse tipo de cara, pra falar a verdade. Se ele tivesse um cartel - imagine que o cara seja invencível, isso queria dizer que ele nunca lutou com alguém além de uns malucos, você tá sacando o que eu quero dizer, e é assim que ele se tornou invencível: o empresário dele "empurra ele pra cima" [builds him upJ, assim, ele nunca lutou com um sujeito de classe mundial. Esses caras que perdem todos os combates é que me preocupam ... É por isso que eu levo Hannah a sério. No programa desta noite, figura um profissional iniciante de Tinley Park, o pedaço de Craig "Gator" Bodznianowski (um bo- xeador local muito popular, que luta a despeito de um pé ampu- tado em conseqüência de um acidente de moto e que comprou uma sala de musculação nessa povoação branca operária com o dinheiro ganho no boxe). Um ônibus inteiro de meninos de sua sala está ali para apoiar o lutador. Isso deixa Curtis perplexo: "Mas como eles fazem pra trazer todos esses brancos de tão longe pro South Side assim, DeeDee?" Este último argumenta que a comu- nidade negra mal sustenta seus próprios boxeadores, sem dúvida por falta de renda. Ao que OB (apelido de O'Bannon, que se fala "ô-bi") objeta que, esta noite, é Curtis quem reúne a maior parte da platéia: "A atração é você, você tem um nome em Chicago." E, de repente, os três lançam-se em uma disputa verbal sobre o que diferencia negros e brancos. O carteiro dá a partida, saindo-se com essa: "Mas eu não sou de cor [I ain't colored], nunca fui à colheita de algodão, nunca fui uma besta de carga", e os outros também soltam a sua quota-parte." Todos os estereótipos do negro entram aí, da escravidão ao gueto. "Era isso que você devia gravar, Louie", cacareja OB. Para minha maldição, não apanhei esse entrecho de bravura retórica em meu gravador, e não iria arriscar-lne a transcrevê-lo de lnemória! Os irmãos de Curtis vêm cumprimentá-lo, um a um: Derrick, o machão; Lamont, o falso tímido; Bernard, com sua cabeça ras- 220 - Lo"ic Wacquant pada e um ar aluado, seguidos por meia dúzia de amigos que lhe desejam boa sorte na luta. Curtis pergunta a OB se ele não tem medo de perder Steve Cokeley (uma jovem esperança do clube, que o carteiro patrocina) como já perdera, antes, Cliff, seu boxea- dor de estimação. o B: Não estou nem aí. Quando ele está na academia. eu tenho pessoas que ficam de olho nele [com um olhar carregado em direção a DeeDee]. CUR'l'ls: Mas é exatamente por isso que eu estou perguntando. porque Steve não fica muito na academia. agora ... E você cuida- va muito bem do eliff, de verdade, a ponto de perguntar sempre se ele estava precisando de dinheiro e tudo o mais. OB: Oh! Mas Cliff era como um filho meu. As coisas que fiz por ele, meu Deus! [Ele gira os olhos.] Eu ia buscar ele para ir à aca- demia e levava ele de volta pIa casa todas as noites. Arrumei um emprego pra ele e um emprego pra mulher dele ... O carteiro bigodudo insiste enfaticamente no fato de que, se Curtis se dá bem no ringue, "é porque você tem uma mulher forte atrás de você, é isso que faz a diferença." Eddie interrompe-os para dizer a Curtis: "Teu pai está aí, na porta, você quer ver ele?" Silên- cio glacial- o pai de Curtis abandonou-o e aos sete irmãos quan- do ele era pequeno, e nunca manifestara o menor interesse por ele, até que sua carreira no ringue começara a deslanchar. Curtis, de repente, fica assombrado: "Não, diz pra ele que não, não quero ver ninguém até o fim do combate." OB acha que Curtis deveria falar com ele, porque não se dispensa um pai assim. "E por que não? Você pode ir ver ele, se quiser." DeeDee intercede em favor de seu pupilo: "E por que ele iria ver o pai? O que eles vão fazer, hein, olhar um pra cada lado? Não estamos precisando disso ago- ra." Curtis prontamente oculta-se por trás da autoridade de seu técnico: "Diz a ele que DeeDee não quer ninguém aqui, agora." Aliás, DeeDee pede que todos os recém-chegados evacuem o lo- cal, porque estamos literalmente uns em cima dos outros, Garney, Curtis, Keith, Eddie, Strickland (que vestiu a túnica "Curtis Strong" e será o terceiro assistente de córner, esta noite), Anthony e Maurice. Este último enfia-se no vestiário de modo que o servi- ço de segurança do clube não o encontre: ele entrou de penetra e Corpo e alma - 221 não tem dinheiro para pagar o ingresso; se barram ele na porta, não poderá assistir aos combates, e vai ter de ficar perambulando lá fora até o fim da noitada. Ashante e Liz acabam de chegar. Peço a DeeDee uma entrada da quota de Curtis, é a última. Vou entregá -Ia ao Doc, que passeia na porta, com Fanette. Eles não perderam nada, porque as lutas previstas para as sete horas só vão começar às oito. Volto ao ves- tiário, onde Ashante está exortando Curtis e Keith à batalha. Curtis surpreende-me quando estou tomando notas em meu diário de campo - desta vez, decidi fazer notas manuscritas detalhadas, e não registros orais (para não correr o risco de levantar suspeitas do pessoal do bar, com meu gravador) - "Você está escrevendo o que, aí?" Ele me olha intensamente e eu fico quieto. Alguns se- gundos de espanto silencioso e, em seguida, uma grande garga- lhada. Curtis descarrega: "Sabe de uma coisa? Um dia, você vai se suicidar, Louie, porque você escreve demais. Não é verdade, DeeDee? As pessoas vão perguntar [com uma vozinha inquietai: 'O que aconteceu com o Louie?' Mas nós vamos saber por que, ééé, nós vamos saber por quê." Que estranha profecia! Depois de dois anos entre eles, meus amigos do gym ainda ficam espantados de me ver agindo como um sociólogo. Essa é uma coisa que jamais cai com naturalidade, embora agora eles já estejam habituados a me ver passeando com o gravador na mão e já não se aborreçam mais com minhas per- guntas, a não ser pela maneira com que as faço. Eddie inclina-se para me cochichar discretamente: "Quando é que você vai escre- ver teu livro, Louie, daqui a dez anos, eu vou ser seu conselheiro técnico, valeu?" O jovem de cor amarelada que Jack não quis engajar em uma luta, esta manhã, vem nos distribuir as luvas - pares usados, o que contraria os regulamentos do Estado, que estipulam que se devam usar obrigatoriamente luvas virgens em todas as lutas ofi- ciais. Procura-se, às apalpadelas, dentro da enorme mochila mili- tar, um par que sirva em Curtis. A tensão aumenta impercepti- velmente, lnas mesmo assim aumenta, no quartinho transforma- do em vestiário. Fala-se menos e mais baixo. Medem-se os gestos. Toma-se cuidado para não exigir nada dos dois boxeadores que se preparam. 222 - Lok Wacquant O'Bannon está curioso para saber mais sobre a vinda de boxea- dores franceses a Woodlawn, que foi noticiada no Chicago Sun Times, no último domingo. Explico o plano, a organização do intercâmbio com a municipalidade de Vitry, a viagem, os encon- tros esportivos e os debates públicos previstos. "E quem vai pra lá?" Curtis corta-o: "É DeeDee quem decide." De fato, isso vai depender sobretudo da quantia que vamos conseguir reunir para cobrir os custos das passagens de avião. E onde vão ficar os seis pugilistas de Vitry que devem chegar no mês que vem? Está pre- visto que eles vão dormir no Boys Club de Yancee, na esquina da 63 com Wabash Avenue. Anthony mostra-se incrédulo: "O quêêê? Em Yancee, bem perto do centro da cidade? Man, aquele é um lugar barra-pesada, vai ser uma tremenda roubada." Curtis acres- centa: "Ééé, dá medo, é exatamente pegado ao centro. E depois, eles não são brothers [quer dizer, negros I: eles não vão poder sair na rua como eu e você, porque você nunca vê um branco na rua nesse bairro." Os pugilistas franceses não têm a menor idéia do universo em que vão se meter. De todo modo, não há a menor chance de eles saírem seja para onde for no South Side sem uma escolta, caso contrário, podemos estar certos de que vamos enter- rar uns dois cadáveres na mesma hora ... (I':!) Durante essa hora de espera, Curtis engana sua ansiedade cres- cente me enchendo o saco. Quando me vê puxar o gravador, ele cochicha, fingindo fazer uma confissão: "Xiii! Vamos, todo mun- do dizendo palavrão, Louie está com o gravador ligado, ha-ha- ha!" DeeDee aproveita para ironizar de novo o fato de que os bandidos [hoodlums] da esquina vão arrancar meu couro se al- gum dia me surpreenderem gravando no bar. E eu respondo: "Mas antes vou fazer eles experimentarem meu devastador gancho de esquerda". DeeDee, com um tom bem sério: "E eles vão te espan- car até a morte." Eu contraponho-lhe uma de suas tiradas favori- tas: "Então, eu direi a eles: 'Cuidado, eu sou o main mande DeeDee Armour, vocês estão interessados em me machucar? Ele comanda (19) De fato, os seis jovens franceses e seus três acompanhantes dormirão em camas de lona, nos vestiários do Boys Club de Yancee, com a porta do clube fechada à grade com cadeado pelo lado de fora, para evitar que um deles se arrisque a sair durante a noite pelo bairro. Corpo e olmo - 223 matadores'." O velho técnico balança a cabeça e não diz palavra. Tantas brincadeiras e conversas fiadas servem para despistar o medo e cortar a tensão, que insensivelmente sobe. "ELES ESTÃO TREMENDO DE MEDO" Comentário de LeRoy Murphy, boxeador do FuIler Park, antigo portador do título mundial de meio-pesado: Sei o que isso exige, subir no ringue, e, cada vez que passo entre as cordas, tenho medo, toda vez que subo no ringue. tenho medo. Só eu sabia disso, é uma coisa que você guarda em segredo, lá no fundo de você mesmo, e era assim que eu ficava. I ... ] Depois do meu footing, de manhã, eu volto pra casa, assisto a um canal a cabo, não saio do quarto. Começo a comer aos poucos, porque estou nervoso e o meu estômago fica enjoado. eu tento ... Ge- ralmente, depois da pesagem, eu me sinto melhor. [ ... ] Eu nunca consegui dormir na tarde do combate, ah, não. Os carinhas não dormem antes das lutas, eles deitam, descansam, mas eles estão tremendo de medo Ifull ofbutterfliesJ, todos os boxeadores, até [Mohammad] Ali reconheceu isso, ele tinha medo quando luta- va, e eu gosto disso: se você não tem medo, é porque tem alguma coisa que não está rolando legal. Toda vez que subo no ringue, tenho medo". Preliminares lastimáveis Os adversários dos boxeadores de Chicago acabam de se pre- parar na sala-bar em que está a pista de dança. Eles trocam de roupa em silêncio, com gestos lentos e cuidadosos, jogando as roupas e os equipamentos (bandagens, luvas, coquilhas, calções, túnicas) sobre as costas de uma cadeira. jeffHannah está sentado sobre uma mesa, com as pernas balançando, o ar ausente; amarra as sapatilhas, enquanto conversa em voz baixa com o pai, de ca- beça inclinada, como se estivesse querendo se destacar melhor de um ambiente que ele adivinha ser hostil. Sabe que é a vítima sacrificial oferecida à grande esperança local, diante de um públi- co fiel a seu adversário e de juízes que não irão lhe dar nada de presente, e, portanto, sabe que tem todas as chances de perder a luta. Esse é o destino comum dos opponents que "atuam" no cir- cuito: a única oportunidade que eles têm de ganhar, "no pedaço" 224 - LoTe Wacquant do rival, é pondo-o a nocaute. Devem-se passar coisas na cabeça e no corpo dele (eu não gostaria de estar na sua pele, nem hoje à noite, nem amanhã). Ao sair do bar, dou de cara com Liz, que me beija avidamente. Eddie pega-me pelo ombro, rindo, como um policial que prende um malfeitor: "Vamos, agora já chega, Louie, pára com isso, ela vai te amolecer de tanto te beijar assim, eu já te avisei. Você nunca vai estar preparado para a próxima luta."(20) Os projetores im- provisados, pendurados em postes metálicos, nos quatro cantos do ringue, são ligados. O espetáculo vai começar. Todos sentam- se onde dá - nada de cadeiras numeradas nem de "ala VIP" em torno do ringue para uma reunião desse naipe. já que não é de hábito, pula-se o hino nacional, para passar direto à costumeira apresentação dos oficiantes, juízes, árbitros e cronometrista, feita por um locutor gordo e barbudo, de paletó negro: Ladies and Gentlemen, welcome to Studio one-o-four, here, on Chicago's beautiful Southeast Side! Os combates que figuram no programa de vocês foram organizados e ficaram sob a supervi- são do Professional Boxing and Wrestling Board of Illinois, do Department of Professional Regulation, cujo presidente é o se- nhor Gordon Bookman, o secretário-executivo, o senhor Nick Kerasiotis, e o responsável de esporte, o senhor Frank Lira. A noite é produzida por Rising Star Promotions.(21) Os oficiantes são: os juízes Bill Lerch, Gino Rodriguez e Stanley Berg; cronometrista, Joe Mauricello; e os árbitros, Tim Adams e Pete Podgorski. (20) Os treinadores nunca deixam escapar uma oportunidade de lembrar a seus pupilos, mesmo que sob o disfarce de uma brincadeira, o mandamento do catecismo profissional do "sacrifício", que reza que o boxeador limite es- tritamente qualquer contato erótico, de modo a não enfraquecer esse ins- trumento de luta viril que é seu corpo. o (21) Rising Star Promotions não passa de um nome-fantasia local para Cédric Kushner (através de Jack Cowen), um dos quatro principais organizadores que dividem entre si o mercado nacional, junto com o Don King Promotions, Top Rank Inc. (a firma de Bob Arun) e Main Events (dirigi- dos pelo promotor de concertos de rock Shel1y Finkel e pelo treinador- empresário Lou Duval). Corpo e alma - 225 O'Bannon está na primeira fila, com Michonne, atrás do cór- nervermelho. Liz, Fanette e Le Doc sentaram-se nos lugares vizi- nhos, com a família de Curtis, Anthony e Ashante. jack está de pé, no corredor, e vela pelo seu gado. Laury não está por ali, sinal de que não conseguiu ser contratado para hoje. É Little Keith quem vai boxear na luta de abertura, quando a luz rasante do sol anuncia o fim do dia. Seu empresário, o elegante Elijah (pro- prietário de uma cadeia de tinturarias no gueto) forma um gru- po com DeeDee e Eddie, no córner. O adversário é um pequeno negro troncudo de Milwaukee, de técnica rudimentar, que tem visivelmente uma única pressa: "deitar" logo e voltar para casa com seu "paycheck". Nem bem Keith toca nele com algumas di- reitas no corpo, e logo atira-se ao chão, uma primeira, depois uma segunda vez, sob os olhares frustrados de Keith e do árbi- tro, que o instiga a lutar. Mas nada feito: quando o boxeador de Woodlawn coloca uma série bem fraquinha, o saco de batatas de Milwaukee cai como uma jaca e simula um nocaute. O árbi- tro ajoelha-se perto dele, ralha, e depois, vendo que suas admo- estações não têm efeito, retira o protetor bucal do lutador e manda-o para seu córner. Esse cara não é um simples "vaga- bundo" [bum], mas um autêntico "mergulhador" [diver], eper- gunto-me se ele vai receber seu pagamento - os juízes têm auto- ridade para suspender a remuneração de um boxeador que se recusa a lutar, e a confraria dos pugilistas reprova seriamente aqueles que faltam assim publicamente com a moral dos com- batentes. Elijah e Eddie aproximam-se de Keith e erguem-lhe os braços, em sinal de vitória, sob os assobios e os aplausos da multidão. Não é nada convincente. mas, mesmo assim, ficamos felizes por ele. 'J\VENTUREIROS, MALANDROS E MERGULHADORES II Um "aventureiro" [journeyman] é um carinha que, com toda probabilidade, nunca será um campeão, mas que é capaz de combater mais ou menos com qualquer um, e que, na maior parte das vezes, vai perder. mas que pode ganhar, em algu- mas noites. Porque eles levam uma luta de vez em quando e porque eles ganham dinheiro. E defendem-se bem, quando conseguem. 226 - LoTe Wacquant Corpo e alma - 227 Não estou falando de alguém que é um "mergulhador" [diver] e que vai subir no ringue aqui e se fazer nocautear no primeiro rouna, e depois a gente vai encontrar ele no programa em outro lugar, daqui a três dias, e ele vai de novo se fazer nocautear no primeiro assalto. Não falo desses - esses são os "vagabundos" [bums], é uma coisa que não tem lugar no boxe, mesmo quando parece que eles se dão bem. LOUIE: Não tem lugar. mas eles existem, e não são poucos ... JACK: Bom, eu não devia dizer que eles não têm lugar, porque é evidente que sempre têm lugar. Você tem camaradas, iniciantes, que estão começando, e eles precisam de adversários medíocres para ir adiante e para ver que eles são capazes, para ganhar con- fiança e se testar: e, uma vez entre as cordas, às vezes, eles perce- bem que não são melhores que os próprios bums - nunca se sabe! Começo a fazer uma contagem rápida da platéia, 80% mascu- lina e etnicamente mista, com uma ligeira predominância de bran- cos e latinos: 300 pessoas no lnáximo, no início da reunião, e cer- ca de 450 no final, sem contar os cerca de quarenta mexicanos que estão apertados contra o muro da casa vizinha ao estaciona- mento (depois de uma tentativa infrutífera, o gerente do Studio 104 desistiu de estender uma lona na frente da casa para bloquear a visão deles, para grande aborrecimento de Ashante, que insiste que se deveria cobrar deles mesmo que estejam sentados no jar- dim de sua própria casa). Isso é a metade do número exigido para que os organizadores cubram suas despesas.(22) E há menos cores do que da última vez: muitos dos grandalhões que controlam o tráfico nesse setor do South Side não vieram esta noite, dia de semana, e o vento que sopra, ameaçando tempestade, esfria razoa- velmente a atmosfera. (22) O déficit da transação é absorvido pelos empresários que investiram o di- nheiro inicial para montar a reunião, com a finalidade de manter seus bo- xeadores em atividade e fazer com que eles ampliem seus cartéis. Nesse nível do mercado pugilístico, o único que consegue retirar algum ganho financeiro nesse jogo é o matchmaker, uma vez que ele não investe nada de seu próprio bolso e leva uma comissão como intermediário, um percentual sobre os ganhos dos boxeadores (10%) e um fixo para se encarregar da coordenação. 14 228 - Lo"ic Wacquant A luta de abertura não foi legal. O segundo combate é lamen- tável a ponto de se tornar cômico. Ele põe em confronto dois "vagabundos" de primeira categoria: um branco gordo e flácido de Tinley Park, coberto de banha (parece que ele está esperando neném, de tanto que sua barriga estica o calção), contra um velho negro de Milwaukee, usando um pompom vermelho que lhe dá um ar tremendamente efeminado. É evidente que este último ja- mais "sentira O contato de uma luva" antes dessa noite: incapaz de manter a guarda corretamente, ele joga os punhos com as cos- tas das mãos para a frente (como se oferecesse flores) antes de fugir nas pontas dos pés, dando as costas ao adversário! Como defesa, tudo o que ele faz é aparar os golpes de seu oponente es- tendendo os longos braços para adiante e deslocando-os para a direita e para a esquerda, com o movimento de um pêndulo irre- gular que faz com que ele se pareça com um limpador de pára- brisas humano. Parecem dois retardados que brincam de boxe. Só que os dois estão aterrorizados por estarem no ringue. A cada break gritado pelo árbitro, eles levantam os punhos ao mesmo tempo, como se estivesseln lançando um encantamento, e sus- pendem as hostilidades com um alívio tão flagrante que chega a ser embaraçoso ... A platéia rola de rir e, por brincadeira, incita os dois combatentes com gritos de ânimo exagerados: "Dispara aque- la bomba!", "Vai nessa, campeão!". Estima-se que o branco de Tinley Park, que é mais truculento e que, de vez em quando, con- segue lançar alguns golpes mais ou menos carretos, vá ganhar- aliás, ele ganhou suas duas primeiras lutas, enquanto o adversário debuta entre os profissionais. Mas o velho com O pompom ani- lna-se e seu tape-tape torna-se mais preciso, enquanto o outro se cansa. No terceiro assalto, a platéia toma francamente o partido do bum negro, porque é claro que ele foi servido "como repasto" a seu adversário, segundo uma expressão consagrada. A simpatia do público não é apenas racial: o carinha de Milwaukee simples- mente não está à vontade no ringue. Mas, por acidente, ele dispa- ra no adversário Ulna direita seca no queixo, e acontece o impre- visto: o branco gordo e flácido cai de costas, tenta levantar-se, titubeia, exibe uma série de caretas contraídas de surpresa e dor ao mesmo tempo, antes de cair de joelhos, incapaz de controlar as próprias pernas. É o nocaute surpresa! Consternação no cór- Corpo e alma - 229 ner dos brancos de Tiniey Park que vieram apoiar o amigo, garga- ihadas entre o resto da piatéia. Ashante e Eddie só faltam cair no chão de tanto rir. E Kitchen está radiante, porque conseguiu se meter na cena como segundo do vencedor, o que irá vaier-ihe aiguns tostões. Interpelo jack Cowen, do final da fila, morrendo de rir: "Espe- ro que você tenha gravado essa luta em vídeo: é uma luta antológica, 'O Combate dos superbums!'''. Ai de mim, antes não tivesse dito nada! Com a expressão congelada, sacudindo a cabe- ça de incredulidade, jack está em pleno conciliábulo com os carinhas de Tinley Park, espremidos e ameaçadores em torno dele, que tenta explicar-lhes como foi que o cara feio de Milwaukee pôde derrotar seu herói, quando jack prometera uma vitória em um assalto.(23) (Mais tarde, quando me desculpei por ter dado aquela mancada, jack repreendeu-me: "Isso não me atrapalha, a mim, Louie, é por tua causa: é melhor que você não tenha que se explicar depois com esses carinhas, talvez você tivesse problemas.") Nisso, eis que surge Wylie, a jornaiista do Chicago Sun Times, a quem eu sugerira vir assistir à iuta de Curtis. Eia pede-me que ihe apresente a Jack Cowen, porque quer que seu namorado entre de graça, e os cérberos da porta estão barrando-o na entrada do clu- be. (Isso é típico da arrogância dos jornaiistas: eia não quer pagar nem um ingresso para assistir à primeira iuta que vê em sua vida?) Cowen não quer dispensar a ocasião de um eventuai artigo na imprensa, e vai dar ordens para que iiberem a entrada do moço. "Sou COMO ALGUÉM QUE VENDE E COMPRA AÇÕES NA BOLSA" Filho único de uma família judia imigrada da Rússia nos anos 20, Jack está 110 meio pugilístico há cerca de meio século. Quan- do era pequeno. seu pai, que tem uma cadeia de lavanderias, (23) Ilustração concreta do dilema com o qual todo ma tchmaker se vê confron- tado pela própria natureza de sua atividade: quando os combates dão cer- to, credita-se o resultado na conta dos boxeadores e de sua entourage, e o match11laker desaparece no cenário; caso se dê o contrário, é ele quem con- centra todos os descontentamentos e as recriminações, de modo que é, em toda parte, o "homem mais impopular da cidade", como observa o célebre 11latch11laker do Madison Square Garden, Teddy Brenner, em sua autobio- grafia OnIr the riJlg was square. 15 230 - LoTe Wacquant leva-o para assistir às noitadas de boxe da Chicago da grande época. aquela em que os combatentes judeus, que fizeram le- genda, lançavam suas últimas flamas sobre o ringue, e o Chica- go Stadium disputava com o Madison Square Garden de Nova York o título de Meca da Nobre Arte. Foi assim que ele conhe- ceu DeeDee e as principais figuras locais do pugilismo, quando ainda era garoto. "Meu pai me levou com ele pra uma reunião quando eu tinha onze anos, logo fiquei completamente fascina- do e implorei a ele que me levasse de novo, e isso tornou-se um hábito. Depois, logo que cresci o bastante pra ir assistir às lutas por minha própria conta, ia a todas as reuniões que podia, e havia lutas de monte nesses anos." Jack logo iria calçar as luvas no YMCA do bairro e disputar alguns combates amadores, mas sem sucesso, nem continuidade. Nada de mal: sua exposição pre- coce à Nobre Arte valeu-lhe o desenvolvimento de um juízo pu- gilístico indubitável. Depois de ter obtido seu diploma, Jack assumiu a direção da empresa familiar de lavanderias e lançou-se na fabricação de cos- méticos. Para preencher o tempo livre, montou, com um amigo de infância, uma casa de produção de espetáculos de music-hall. "Era uma espécie de hobby. Era o tipo de coisa em que organizá- vamos algo em torno de oito a dez shows por ano. A coisa fun- cionava bem, em conjunto. Mas era difícil, e as tendências da música mudaram, e aquilo foi ficando cada vez mais brabo. [Ele faz uma careta.] Não dava mais grana. Então, desistimos, mas queríamos fazer alguma coisa juntos. E o meu amigo era um fanático por boxe, então eu disse a ele: 'E aí? E se a gente pegasse um boxeador?' E foi isso que fizemos. Foi aí que me vi como empresário de boxeadores, a partir de 1957." Durante três déca- das, ele vai conduzir pessoalmente os negócios de lavagem a seco e a direção de um pequeno "curral" de combatentes. E quando as transformações econômicas do pugilismo - o encolhimento das vocações e o desaparecimento dos clubes de bairro, a des- qualificação dos empresários, a contração do mercado local e a nacionalização dos circuitos de comercialização - fizeram surgir a necessidade premente de um intermediário capaz de suprir o desgaste das redes tradicionais, Jack estava bem situado para lan- çar-se no matchmaking: "Muitos empresários contentavam-se em ficar ali, esperando, com a bunda pregada na cadeira, pedin- do que viesse alguém oferecer a eles um combate para seus bo- Corpo e alma - 231 xeadores. E eu era mais agressivo, e peguei os números de tele- fone e fiz os contatos, viajando sem parar com meus lutadores." No final de dois anos de tentativas, jack decidiu, em 1977, liqüidar seus ativos no ramo de lavanderias e tornar-se matchmaker em tempo integral. Seu sucesso, desde então, valeu-lhe. hoje, exer- cer um quase monopólio das reservas de combatentes na Gran- de Chicago. A atividade principal de Jack Cowen consiste em "completar o cartaz" das reuniões da região. recrutando oponentes para o bo- xeador-vedete e montando as lutas preliminares (que se chamam undercard). Por vezes, ele encarrega-se da organização material da noitada: ringue, administração, barracas de bebida e de ca- chorro-quente. bilheteria, publicidade. Jack produz, assim, cer- ca de trezentos combates por ano no Midwest, aos quais se jun- tam os encontros que ele arma, na qualidade de agente, para boxeadores a quem vende seus serviços nos mercados nacional e internacional (com seu colega da Flórida, Johnny Boz, ele ex- porta, a cada ano, várias dezenas de lutadores medíocres para a França e a Itália, onde eles servem de trampolim para as estrelas do Velho Continente). Também funciona como representante da Cédric Kushner Promotions, uma das majors da economia pugilística mundial, para a qual ele assina contratos com os bo- xeadores que são as grandes esperanças de Illinois. Finalmente, é co-proprietário da "franchise" das Chicago Golden Gloves, e sua mulher - que é afro-americana - empresa ria, sob sua super- visão. dois boxeadores. Concretamen"te, a jornada de trabalho de Jack divide-se em in- termináveis transações telefônicas com empresários. promo- tores e outros agentes (várias dezenas de chamadas, das seis às onze da manhã), o giro pelas salas da cidade, à tarde, para se manter por dentro da forma e da disponibilidade dos pugilis- tas locais, e nova fornada de negociações por fax e telefone, à noite. Ele passa seis semanas do ano "na estrada", para assistir às noitadas que promove nos estados vizinhos e no exterior: é vital avaliar de visu a qualidade dos boxeadores, o lugar, o pú- blico e a confiabilidade dos organizadores e de outras partes interessadas. A busca e o emparelhamento de boxeadores efetuam-se de acor- do com um processo interativo em cascata, as transações são fei- tas consecutivamente umas às outras, em função das condições 232 - Lo"ic Wocquont dos pugilistas: "É como fazer a lista das corridas de cavalo: eu es- tou procurando isso e alguém está procurando aquilo; e, de re- pente, me telefonam, e talvez eu procure outra coisa, ou, em vez disso, há necessidades que se combinam e, depois [ele franze levemente o supercílio], a luta se dá no plano econômico. Bom, porque não vamos trazer um boxeador da Ilha de Tonga para uma luta de quatro rounds em Gary, em Indiana. [ ... J Eu ligo para as pessoas, as pessoas me ligam. E uma rede. Há um certo número de pessoas que são agentes de boxeadores, além de se- rem matchmakers ou promotores, como eu. Isso não pára, você está sempre negociando alguma coisa com alguém. Às vezes, você pode passar a manhã inteira, e não acontece nada, nada. E de- pois, dois ou três telefonemas, e você fecha três combates em algum lugar e dá um tapa em mil dólares. [ ... ] É isso que eu faço: estou sentado na minha sala, sou como alguém que vende e com- pra ações na bolsa, se você quiser assim, ou talvez como um bookie que anota as apostas das corridas de cavalo. Tenho pessoas que precisam de alguma coisa e você tem pessoas que precisam de outra coisa, e a gente tenta combinar isso, pra que essas pessoas se encontrem." Um matchmaker tem de levar em conta três tipos de imposição, na montagem de um "card": primeiro, ele tem de cumprir as regras burocráticas estabelecidas pela Comissão do Estado em questão (o que não é nada difícil, pelo nível de tolerância). De- pois, ele deve garantir que os encontros sejam economicamente viáveis, que sejam até mesmo rentáveis, respeitando o orçamen- to estabelecido pelo promotor que o contrata. Enfim, na medida do possível, ele deve "emparelhar" boxeadores de forma a pro- duzir lutas que agradam a quem as assiste e que sejam relativa- mente equilibradas, dando uma certa vantagem aos boxeadores aos quais ele está ligado. As qualidades exigidas para tanto são um acentuado sentido de organização e boas noções de contabi- lidade, a capacidade de vencer, com sucesso, as barreiras sociais e raciais e um bom "olho pugilístico" para determinar, com pre- cisão, o valor, o estilo e o profissionalismo dos boxeadores engajados, qualidades que Jack tem, oriundas, respectivamente, de sua experiência como empresário da lavanderia, de sua ori- gem étnica e de seu contato precoce e prolongado com a Nobre Arte. "Eu entrei no boxe pelas beiradas, e depois você perde o controle da coisa: você pode entrar facilmente no boxe, mas você Corpo e alma - 233 DeeDee banda as mãos de Curtis no mafuá-vestiário. não consegue sair. Depois que você está lá dentro, você está den- tro de verdade. [Ele sorri, com calma.] Isso não é um problema, eu estou satisfeito. Eu gosto do que faço. Estou estabelecido. Depois de todos esses anos, ainda é bem divertido: vou fazer isso pra sempre." Depois dos primeiros combates, volto para os vestiários. Com um curto "lneias e sapatilhas") DeeDee ordena a Curtis que se apronte. Enquanto calça as meias, o lutador mostra ao empresá- rio que irá precisar de novas meias de treino. "Nada de sapatilhas de boxe, sapatilhas de gym, está vendo, pra correr e tudo o mais. Porque esses aí [ele indica os tênis semi-esburacados], eles estão me fazendo um mal danado aos pés, eles estão me dando bolhas." jeb Garney sugere que ele envolva a planta dos pés com fita adesi- va. Curtis enfia o crucifixo e o cordão dentro da sapatilha (é seu amuleto), sem nada dizer. DeeDee esmera-se ao bandar os punhos de seu pupilo. Pela primeira vez, nos dois anos que o acompanho, Curtis deixa que eu o fotografe em seu "camarim" exatamente antes de uma luta- nova prova de que ele está relativamente descontraído esta noite. Eddie aproxima-se do velho treinador e lhe faz um sinal discreto 234 - Lo"ic Wacquant com a cabeça em direção a Keith, e desliza uma nota de vinte dólares eln sua lnão, como pagamento de seus serviços desta noi- te. "Toma, DeeDee." "Awright." Ainda bandando os punhos de Curtis, DeeDee conversa sobre boxe com Strickland (que poderia facilmente passar por branco, porque tem a pele muito clara). No capítulo gastronomia, Curtis adquiriu o mau hábito de comer um Mars e beber um suco de laranja exatamente antes da luta, para se dopar rapidamente com açúcar, a despeito da interdição formal de seu treinador. Até o dia em que vomitou tudo no rin- gue, na hora de lutar, para satisfação de DeeDee. Este não cessa de lembrar a seus boxeadores as regras que se devem seguir, em ter- mos de alimentação e de sexo, mas sem nunca lhes explicar as razões disso: cabe a cada um aceitar os "sacrifícios" necessários) tendo confiança nele, ou sofrer as conseqüências da falta de ética profissional. "As pessoas devem aprender por elas mesmas, na dureza, Louie." Quando um oficial da Comissão chega para veri- ficar as bandagens das mãos de Curtis e rubricá-Ias, antes que ele calce as luvas, DeeDee anuncia que "Anthonyvai começar a bandar as mãos no gym. Eu dei a ele bandagens de gaze e ele me fez um bom trabalho com elas, no outro dia. Aí, ele sabe bandar bem direitinho, brother Anthony. E brother Louie, inteligente como ele é) talnbém deveria aprender a bandar.» "Certo) se você me mostrar como é." Eddie acrescenta: "Agora você já esteve nos com- bates de Curtis e em três lutas de Ashante, nos vestiários e no córner, com a gente, você viu como se faz." DeeDee e Strickland lembram-se de um combate de Young joe Louis, há alguns anos, cujas mãos foram mal bandadas pelo auxiliar de córner, e o luta- dor de Chicago teve de abandonar a luta no quinto assalto por causa de uma dor insuportável no pulso. Fico num vaivém entre o vestiário e o estacionamento para seguir as lutas preliminares e, ao mesmo tempo, ficar perto de Curtis. Ashante viu Calhoun, mas este está muito ocupado para conversar com ele agora; combinaram de se encontrar amanhã, no gym, mas duvido muito que Calhoun vá pintar lá. Curtis quer chewing-gum e pede para eu ir buscar. (N as horas que precedem o combate, a roda de um boxeador esforça-se por satisfazer seus caprichos, de modo a não contrariá-lo, para não correr o risco de prejudicar sua concentração.) Mas o bar não vende chicletes, e Corpo e alma - 235 também não encontro ninguém na platéia que tenha um. Quan- do volto ao vestiário com um pedaço tomado emprestado de um carinha de Tinley Park, já é muito tarde. Eddie passou a minha frente. Para me defender, observo que conheço menos gente do que Eddie. "Mas você conhece todo mundo aqui, Louie, e todo mundo te conhece!", gorgeia DeeDee, antes de acrescentar, com lástima: "É pena esses carinhas do Tiley Park, eles não têm difi- culdade de subir ao ringue, porque têm sempre dois ou três ôni- bus cheios de camaradas para torcer por eles, toda vez, isso dá um montão de ingressos." E um organizador sempre tem um lugar, nos cartazes, para um boxeador que tem seu próprio público. Mas não conseguimos entender direito como o gordo branco de Tinley Park, que abriu a reunião desta noite, poderia elevar-se acima da posição de um reles trampolim, ou, no melhor dos casos, de um "aventureiro" dos ringues. jack não tem, portanto, qualquer mo- tivo para "protegê-lo", procurando adversários à sua altura. "ELES MESMOS SE CLASSIFICAM" Pegue um boxeador que passa para profissional. Você tem uma leve idéia de como ele vai se comportar examinando seu cartel entre os amadores. A primeira coisa é isso, seu cartel como ama- dor. Depois, eu sempre tento, com cada tipo que passa para pro- fissional, tento fazer ele começar com duas ou três vitórias - para dar confiança ao cara, está entendendo? Depois, com isso, é pre- ciso avaliar o boxeador. Aqui comigo, na minha cabeça, preciso avaliar ele: será que esse cara pode se tornar um combatente de valor ou ele não passa de um boxeador entre muitos outros? E depois, eu penso que, afinal, os próprios boxeadores se dividem em categorias. Eles mesmos se classificam. Alguém como, vamos pegar Rodney Wilson, como um Lorenzo Smith, como um Curtis Strong: esses são caras que querem dar certo na profissão, querem chegar a ser alguma coisa. Não estão interessados em "Aí, olha só, eu posso te pagar 300 dólares para lutar aqui, em Chicago, contra um sujeito que eu acho que você pode vencer. Mas oh! Espere: eu estou disposto a te dar 1.500 dólares se você for lutar em Seattle, no Estado de Washington, e lá eu acho que suas chances de vitória também são boas." Eles diriam: "Vamos pegar a luta de Chicago", porque eles estão cons- truindo uma carreira. 236 - Lo"-c Wocquont E você tem outros boxeadores que têm qualidades, em diferen- tes níveis, e, em certos casos, eles são bons lutadores, mas se tor- nam "aventureiros" [journeyman l. A idéia deles é: "Bom, aí! Eu preciso arrumar com o que pagar meu aluguel: eu pego os 1.500 dólares, em vez do combate de 300 dólares." Ou, então, eu já vi caras que vão para a Europa, porque eles querem ir para a Euro- pa. Eles nunca viajaram. Eles iriam lutar com o King Kongsó para viajar e ver Paris. O terceiro combate é um mismatch rude, porque põe em con- fronto Loren Ross, um jovem colosso negro do Tennessee em plena ascensão, invicto em treze lutas, e a velha raposa dos ringues Danny Blake, um negro quarentão corpulento, cujas quinze derrotas con- secutivas indicam que sabe lutar, mas não representa perigo al- gum para seu oponente. (Smithie ganhou dele por pontos, em janeiro último, em Park West, quer dizer. .. ) A tática de Blake, caricaturada por sua fisionomia e pela falta de flexibilidade, é sem- pre a mesma: durante os dois ou três primeiros assaltos, ele cobre o rosto com as luvas e avança em crouch (joelho flexionado e o corpo meio inclinado para a frente) para perto do adversário, para compensar seu tamanho pequeno e a falta de porte, e ataca no corpo. Depois, durante todo o resto do combate, ele se planta no chão, protegido por sua guarda, e deixa que lhe batam como a uma pasta, mas sem sofrer sérios desgastes - seu ofício permite- lhe bloquear e amortecer a maioria dos golpes com as luvas, os ombros e os cotovelos. A platéia torce por Blake, que, passivo, absorve uma chuva de socos, volta e meia interrompida por ele, que sai da casca para disparar uma direita no corpo, antes de vol- tar a se dobrar sobre si mesmo. Um grandalhão com camisa pólo, sentado ao meu lado, grita para ele: "Pula em cima dele, vovô!" Ross demonstra uma técnica clássica impecável: usando plena- mente sua vantagem de altura e de envergadura, não encontra a menor dificuldade para arrematar todos os rounds, boxeando tran- qüilamente a distância. Mas O combate é vil e triste. Blake "engo- le" uma enfíada de diretos com as duas mãos, seu rosto torna-se púrpura e deforma-se sob um ricto que dá a impressão de que ele está chorando. A luta parece mais um exercício com o saco de areia, só que com um ser humano no lugar da punching-ball, do que uma competição. Corpo e alma - 237 Quando resumo o combate para DeeDee, o velho coach co- menta: "Blake, esse cara luta há um tem pão. Ele era um bom bo- xeador no seu tempo, ele sabe lutar. Isso acontece até com os melhores dos melhores, Louie, quando eles ficam por muito tem- po no ringue ... " E insiste que nunca devemos debochar de um boxeador, por mais medíocre que ele seja, porque sempre é preci- so uma dose mínima de coragem para calçar as luvas. É por isso que DeeDee jamais pronuncia palavras como" bum" e "stiff', "trial horse' ou "tomato can", com as quais geralmente designam:-se os pugilistas ineptos. "Cada camarada que sobe ao ringue é um bo- xeador, Louie, nunca se esqueça disso ... Você precisa ser um ho- mem bom de verdade para ser um boxeador. Eu tiro o meu cha- péu para qualquer um que suba no ringue, mesmo que seja um amador que lute três rounds. Quer ele perca, quer ele ganhe, se ele segura a onda, se dá o máximo e está preparado para isso, quer seja um profissional que luta dez ou doze rounds: se ele está pre- parado, eu dou os meus cumprimentos." A quarta luta preliminar opõe ainda duas nulidades: Danny Nieves, um grandalhão de pele branca e gordurosa, e Tony Lins, um brancão totalmente sem técnica. Eles empurram-se, agarram- se, chocam -se e amassam -se de todos os jeitos possíveis. O pior é que Nieves faz bonito no ringue! Ele se balança como um pato dentro do seu calção azul, num esboço de passo de dança, uma espécie de break, andando desajeitadamente, com as costas vira- das para o adversário, como que o desafiando, fingindo estar à beira do nocaute depois de se enfurecer. Logo procura agradar a galeria com suas palhaçadas - em detrimento do boxe. Mas a pla- téia não gosta nada do seu showboating e começa a torcer por Lins, que é visivelmente mais fraco, se é que isso é possível. De vez em quando, Nieves dispara-lhe um golpe em pleno rosto e pode- mos ver as gotas de suor voando sob as luzes dos refletores. Ao final de quatro assaltos, que parecem mais de luta livre do que de boxe, os dois adversários abraçam-se e dão a volta no ringue, sob as vaias da platéia. Meses mais tarde, eu deveria fazer uma entrevista com Danny Nieves. Ele, que trabalha como monitor de esportes municipal, em meio expediente, como leão-de-chácara de uma boate e como eletricista, à noite, explica sua atração pelo ringue nesses termos: 238 - LoTe Wacquant Eu me sinto bem, principalmente quando você está no ringue e as pessoas gritam teu nome, e tudo isso, é quase como se drogar. E, aí, estar no ringue, pra mim, é como ser ator, como estar no palco do teatro: você dá um espetáculo para o teu público, e foi assim que eu sempre lutei. É preciso que eu mostre sempre algu- ma coisa pro meu público, sacou, pra provar que eu sou um bom boxeador, e é por isso que estar no ringue é como uma segunda natureza pra mim: eu fico à vontade entre as cordas - eu conheço muitos carinhas, mas isso não acontece com eles, mas, pra mim, é fun [ ... ] [A reação do público I, é isso que te toca totalmente, quer dizer, é a única coisa que faz com que valha a pena. Você vai ouvir um bocado de gente que vai te dizer que é dinheiro, mas, sacou, mesmo quando esses carinhas ganham centenas de milhões, ain- da falta pra eles os holofotes [the limelight]. Olha só o Sugar Ray [Leonardj, o Larry Holmes e os outros - todos esses camaradas têm uma posição na vida, mas o boxe faz falta, é como um high. é por isso que você tem tantos boxeadores que fazem um come- back. [ ... ] [Depois de uma luta], se você ganhou, é como se sentisse um grande alívio, uma grande satisfação. Se você perdeu, é um bode, porque teus colegas estão perto de você, você ouve a voz deles, você vê eles, é tipo como se você decepcionasse eles. E você, eu, eu me sinto mal de verdade quando perco, eu me sinto mal du- rante uma semana inteira. É como ... acho que eu prefiro ir a no- caute do que perder urna luta [por pontos], detesto perder, de- testo quando você vai pro meio do ringue e o árbitro levanta o braço do outro cara [resmungando de raiva]. Eu odeio isso com todas as minhas forças. [ ... ] Se divertir, isso é excitante: você nunca sabe o que vai aconte- cer no ringue, e eu adoro isso. Detesto ficar me aborrecendo, fazendo a mesma coisa o tempo todo. E com o boxe, toda vez - eu poderia tocar as luvas com você dez vezes, toda vez ia ser um combate diferente. Aí, é isso que eu gosto no boxe: sempre acontece o imprevisto. É como Buster Douglas e Tyson: nin- guém achava que Buster Douglas ia vencer o Tyson. E tinha uma chance de 50 contra uma. Mas ele ganhou. [ ... ] Principal- mente com os pesos pesados, você nunca sabe quem vai se sair com um golpe devastador. O cara pode te mandar pro espaço, você pode mandar ele, e acabou, num segundo, e essa excita- Corpo e alma - 239 ção que sobe te dá um rush, é como ... "Vau, é isso que eu que- ro." Um pouco de perigo ... Anoto em meu diário de campo: essa reunião não valeu nada, hoje à noite. O que Cowen nos empurra não são nem produtos sem marca, mas mercadoria estragada. Não vai ser assim que ele irá criar um público cativo no South Side. E, desta vez, não há nem a desculpa de ter se deixado enganar por um "açougueiro"( 24 1 que ele não conhece, COlno na última reunião, visto que a metade dos combatentes do programa é formada por caras do Windy City Gym. É vexaminoso para Curtis ligar-se à produção de um cartaz como esse, pois ele aspira legitimamente a combater em reuniões televisionadas em nível internacional. Mesmo Wanda, a irmã louquinha dele, que não entende nada de nada, grita: "Não consi- go ver essa merda!" A platéia mais ri do que aplaude as lutas, que têm tanto de circo como de esporte - mas será que o boxe é um esporte? Mesmo o locutor, que atende pelo belo nome de Angelo Buscaglio (é um nome que não se inventa), é medíocre: ele preci- sa ler o texto, gagueja as palavras, não tem a menor dicção. E, para cúmulo de tudo, não há card girls. No início do quarto com- bate, uma das "dançarinas exóticas" do Studio 104 bem que ten- tou abocanhar a oportunidade: ela subiu ao ringue com o seu biquíni minúsculo, mas, COIUO não havia cartaz para anunciar o assalto seguinte, ela só conseguiu se sacudir estupidamente, fa- zendo "dois" com os dedos em forma de "V" ... Volta ao quartinho. Enquanto esperamos ansiosamente o momento em que Curtis vai subir ao ringue, Jeb Garney chama a minha atenção para o enorme relógio tiquetaqueante que ele usa no pulso, COln um enonne mostrador luminoso cor de violeta) rodeado de pedras. (24) f: assim que chamam a meia dúzia de salões e "campos de treinamento" espalhados no local e que fornecem, por encomenda ç em quantidades in- dustriais, valorizadores medíocres, "daqueles que se pode ter certeza de que vão perder para o boxeador da casa. Esses 'oponents' não têm qual- quer necessidade de encorajamento para perder. Faz tanto tempo que eles vão de derrota em derrota que isso já se tornou sua marca registrada. Com um monte de vitórias, o valor deles no mercado vai para o brejo: um orga- nizador que procura carne às toneladas não vai cair numa de se arriscar."16 240 - Lo"'c Wocquont TEB Você está vendo isso? Sabe o que é? [Para os outros) Vocês sabem o que é? São diamantes de verdade, e o resto é de ouro. CUtrl'lS [com um tom que é um misto de admiração e riso, por- que ele nunca ousaria pedir isso a sério]: Vau! Eu acho ele de- mais, você não quer dar ele pra mim, senhor Garney? JEB GARNEY: Você não sabe o que é [com um tom cerimonioso], é um Rollex Presidential, ele vale cinco mil dólares, só isso. CUHTIS [ele estica o pescoço para admirar melhor a máquina]: Verdade, senhor Garney, por que o senhor não dá ele pra mim? JEB GARNEY: Você está brincando? Não, vamos, eu vou te contar como é que eu consegui ele [rindo sozinho por ter nos engana- do I: eu comprei ele em Singapura por 29,95 dólares. Eles fazem a imitação lá, e elas são mais verdadeiras do que os verdadeiros. Eles põem o mesmo logotipo no fundo do relógio, olha só ... [Digo a mim mesmo que é chato fazer uma brincadeira dessas nas barbas de em·tis, que está nervoso, no momento em que ele vai subir no ringue por 500 dólares. O cara é inconscien te, ou o quê?] Pouco a pouco, as conversas de antes das lutas vão se extin- guindo, e o silêncio instala-se no quartinho. A tensão sobe até se tornar quase palpável. Curtis fala: "Todo mundo aqui está comi- go? Vocês estão comigo? Então, tudo bem, fiquem de joelhos para rezar, ha-ha-ha!)) Risos amarelos. Strong vence Hannah com nocaute técnico no quarto assalto Estamos no intervalo. O locutor berra: "Depois do show de boxe, os que têm ingresso podem assistir ao grande espetáculo oferecido no Studio por nossas exotic dancers. Esta noite, temos para vocês um show extraordinário! Não percam! E para os que não têm ingresso, eles ainda podem ser comprados, dois pelo preço de um ... " E lembra que os bilhetes de entrada para as lutas tam- bém dão direito a duas bebidas pelo preço de uma, no bar. Volto ao quartinho onde Curtis, Garney, DeeDee e Eddie dis- sertam sobre as felicidades e infelicidades de William "The Corpo e almo - 241 Refrigerator" Perry, um gigante bonachão, membro da equipe de futebol dos Chicago Bears, que, depois de ter sido adulado, foi condenado pela incapacidade de controlar o apetite pantagruélico - ele será dispensado no ano que vem por excesso ponderável tenaz, antes de converter-se, lamentavelmente, à luta livre. O di- nheiro. a glória deslustrada, as contusões, o divórcio e as desven- turas imobiliárias fornecem assunto para a crônica local: The Refrigerator teve de interromper a construção de sua casa de 2,5 milhões de dólares, porque seu agente "segurou" um dinheiro mensal, para forçá-lo a economizar. DeeDee observa que é preci- so ser idiota para construir uma casa assim tão cara, tendo em "Vista os impostos prediais que isso significa. Curtis ftlosofa: "Como todo dinheiro e glória que você tem podem te fazer cair mais fun- do ainda." Mas não consegue deixar de mencionar, com uma ad- miração invejosa, o fato de que The Refrigerator dera uma BMW de presente ao pai ... Está na hora do aquecimento. Curtis sai para o corredor e co- meça a pular sem sair do lugar e depois a descontrair, lutando em shadow. Eddie põe os pads e estende-lhes como alvo. Jabe, jabe, direita, gancho, uppercut. Os golpes nervosos estalam sob o olhar interrogativo dos clientes do bar vizinho. O suor brilha nas têm- poras do boxeador do Woodlawn, escorre pelo seu torso nu. Vêm nos avisar que dentro de cinco minutos é a nossa vez. Bato no punho fechado de Curtis e ele corresponde a essa saudação ritual pré-combate. Tensão. Apreensão. Excitação. DeeDeeconvida-nos a sair, para deixar Curtis orar com calma no vestiário, com os irmãos. Nós nos impacientamos na porta. O velho técnico mur- mura para Jeb Garney: "Vai dar uma olhada se acabou!" Acabou, a oração foi feita, a hora do "main evenf' soou. "Eight rounds Df boxing!" Atravessamos o bar em fila indiana, Curtis saltando so- bre os pés, a cabeça baixa sob o capuz, de roupão branco, com Jeb Garneya reboque, vestido com a túnica azul, DeeDee e eu atrás, e Strickland, que fecha a ftleira. Nós desembocamos no estaciona- mento sob os aplausos da platéia. "Let's Get Busy!", a música feti- che de Curtis, faz os alto-falantes vibrarem. O boxeador do Woodlawn sobe de quatro em quatro a escada e emerge entre as cordas. Delírio dos fãs, sobretudo dos irmãos e dos amigos, apertados no córner oposto, que fazem uma zona 242 - Lok Wacquant Curtis sobe ao ringue sob os vivas da platéia e o olhar do árbitro. incrível. Ele dá uma volta no ringue, pulando e batendo uma per- na na outra, o rosto enrijecido de concentração, durante todo o tempo que demora o anúncio do combate. Hannah está se aque- cendo, boxeando em shadow no outro canto, sem olhar para Curtis. Depois, os dois combatentes encaram-se no centro do rin- gue, para as últimas advertências do árbitro. Curtis volta ao seu córner, DeeDee destila suas instruçôes, Strickland massageia-lhe o pescoço e coloca-lhe protetor bucal. "Dingue!" A luta começa. Hannah joga a cabeça para adiante, imprensa Curtis até as cordas e, antes mesmo que os espectadores tenham tempo de se sentar, estupefação! Curtis leva uma direita seca no maxilar que o faz cair com um joelho ao chão. Um sopro de consternação mistura- da com incredulidade percorre a platéia. DeeDee endireita o cor- po para ver como seu boxeador vai reagir. Curtis levanta-se e co- meça primeiro a dançar, depois finca-se no lugar, escondido atrás das luvas. Hannah começa a socá-lo. Corpo e olmo - 243 DEfDH.: Começa, gel of! ma"! LOU1E [gritando em eco]: Vamos, Curtis!!! E])])IE: Sai das cordas! LOUIE [com uma voz histérica]: Sai das cordas!!! Get ofthe ropes!!! Get ofthe rapes!!' E[![)!I-:: Vamos, Curtis, combata! L()UIE: Curt!!! [Horror! Mas que merda ele está fazendo? Fica encostado nas cordas e deixa que Hannah soque-o à vontade, quando já caiu uma vez.] E[)])IE I urrando com uma voz rouca 1: Vamos, ao trabalho! Go to work! LOUIE [gritando em uníssono]: Go lo work! Go to work, Curtis!!! Com as duas mãos!! DEEDEE [calma, mas firmemente]: Vamos, agora está bom._. LOUII-: [berrando o máximo que consegue]: Saia das cordas! mos, agora está bom, saia das cordas!!! [Merda, ele ainda está com o seu "macho bog" de ficar imóvel, a guarda cruzada no rosto, deixando o adversário bater, numa exi- bição, para ele, de que é capaz de absorver os melhores golpes sem sentir! Não quer ouvir o que estão dizendo a ele.] Percebendo que agora tem uma oportunidade, Hannah força a barra e multipli'ca as séries no corpo e no rosto. Não se sabe se Curtis está sentindo ou não, porque ele deixa que o adversário esmurre-o de perto, contentando-se em bloquear os golpes, sem respondê-los. Finalmente, Curtis sai da casca e força Hannah a ir até o centro do ringue com uma série de diretos e ganchos, com as duas mãos. O outro faz um clinche e leva-o de novo às cordas. DeeDee vocifera: "Get of! the rapes." Eu passo, aos gritos, suas instruções para Curtis, que inexplicavelmente permanece impas- sivo e parece ter sentido o golpe. Estou com o coração na boca: será que ele está mal em pontos? (Estou prestes a atirar-me ao ringue para salvá-lo da derrota, pronto para criar um caso feno- menal.) A resposta chega fulgurante: Curtis contra-ataca com a velocidade de um raio e acua Hannah no canto oposto, onde uma tempestade de golpes no tórax e no rosto manda-o, por sua vez, à lona, exatamente quando soa o fim do round. 244 - Lo"ic Wacquant Strickland escorrega entre as cordas, coloca o banquinho do córner, no qual Curtis veln sentar-se. "Como é que você está se sentindo?", pergunta DeeDee, com lllna calma que destoa da eletricidade da atmosfera. Curtis nos reconforta: "Estou ótimo." Strickland comete o erro de querer passar a esponja molhada no pescoço de Curtis, que o afasta sem qualquer delicadeza: água sobre ele, nunca, senão seu corpo pode esfriar de repente. Du- rante o minuto de intervalo, DeeDee aconselha-o, com um tom calmo: afastar-se do corpo a corpo, boxear a distância, bater pri- Ineiro.(25) Segundo round. Hannah atira-se do córner Como um touro de sua baia e cai em cima de Curtis, com a cabeça abaixada. Este fecha-se de novo atrás das luvas e deixa-se encurralar no canto (o refletor improvisado que está pendurado ao poste balança e amea- ça se espatifar no ringue!) Vivas trocas em corpo a corpo, em que cada qual tenta encurralar o outro "de dentro". Gritamos para Curtis: "Afaste-se das cordas, trabalhe com as duas mãos, mande o direto, boxeie!" Mas ele só faz o que lhe passa na cabeça. Cowen escorrega para a minha direita e guincha suas frustrações: "Não sei o que está acontecendo com esse maldito Curtis, mas toda vez ele precisa fazer com que uma luta fácil fique difícil!" Aos poucos, o boxeador de Woodlawn passa à ofensiva com uma velocidade que põe o adversário em dificuldades, mas sem por isso ficar para trás. Hannah tem experiência e sabe como quebrar o ritmo do rival. Ele chega mesmo a baixar a guarda, fazendo para Curtis uma careta medonha, como convidando-o a lutar. Mas Curtis não se deixa desconcentrar. Terceiro round: DeeDee implorou a Curtis para que ele reto- masse o ritmo, para que se impusesse, deslocando-se lateralmen- te e, em seguida, encadeando golpes diretos. A luta fica animada. (25) As instruções dadas pelo treinador, durante um combate, são sempre pies e repetitivas ao extremo. Elas invariavelmente consistem em lembrar os fundamentos (manter a guarda alta, avançar depois do direto, bater em séries etc.) c, se for o caso, atrair a atenção do pupilo para uma falha ca ou para lima falha tática mais gritante do oponente. Isso tudo para con- centrar a energia mental do boxeador, sem, com isso, conter os automatis- mos que foram pacientemente criados no treinamento. Corpo e alma - 245 Belas combinações de um lado e de outro. Curtis mistura ata- ques, bloqueios e recuos para atenuar ou anular as séries de Hannah. Torna-se evidente que Curtis é muito rápido e muito potente para o adversário. O boxeador de Woodlawn dá revira- voltas em torno de Hannah, atrai-o para si, fingindo abrir a guar- da para melhor se esquivar e mandar diretos secos que atingem O alvo. Ele se dá bem nos corpo a corpo, girando para um lado e depois para o outro, e lança ótimos uppercuts com as duas mãos. Curtis começa a afirmar-se como o "dono" do ringue. DEEDEE: Avança depois do jabe. UlUI>.: Use o jabe, Curtis, depois do jabe! [Ruídos da luta, rangidos das sapatilhas que deslizam no chão, sons surdos de golpes, gritos e suspiros da platéia. J Elllm.: Manda uma esquerda. Trabalha ele com jabes! LOUIE [urrando]: Saia do canto! EDlm:: No meio não, no meio não! DEEDEr:: Está bom, por baixo agora. LOUIE: Por baixo! DEEDEE [insistindo]: Dá um passo pro lado. [Mais alto, com a voz rouca.] Um passo pro lado! EJ)[)[J';.: t. é, é, é isso, mais perto, em série! Krn:Hr:N: Work! Work! DEEDEE [aborrecido]: Vamos, man! Se aproxima dele! Com as duas mãaos. LOUIE [urrando]: Mais perto, mais perto, com as duas mãos, va- mos!! Uma série cruzada de esquerdo-uppercut de direita manda o boxeador de Indiana à lona pela segunda vez. Mas ele sabe apa- nhar e levanta-se sem titubear. No final do assalto, Curtis sacode Hannah nas cordas com uma tempestade de golpes que termi- nam com uma direita curta na cabeça. No momento em que o boxeador de Indiana cai para a frente, Curtis pega-o com um gan- cho de esquerda em pleno pescoço. Um joelho em terra, e Hannah cospe um fio grosso de sangue sujo bem na minha frente. Com o rosto retorcido de agonia, ele indica o pescoço com a luva, sinali- zando para o árbitro que fora atingido. Mas o gongo soa e ele é 246 - LoTe Wocquont mandado para o seu córner. Desaba sobre o banquinho, com o rosto tumefacto, respirando com dificuldade. Confusão. Acredita-se que Hannah irá se recusar a "sair do seu córner" ao chamado do quarto assalto. Mas não: ele faz o sinal-da-cruz e parte com valentia para a porrada. Sabe que está liqüidado e vai, portanto, botar para quebrar.'2ó) Curtis responde a essa última ofensiva desajeitada com uma enfiada de golpes de uma violência insuspeitada. Dança em volta do adversário, que, exausto, só consegue se proteger atrás das luvas e tentar um clinche. Parece um jogo de pega-pega. Curtis imprensa Hannah nas cor- das e manda-o ao chão. O outro quase rola para fora do ringue. Agora, tudo não passa de formalidades: Hannah está tão mal que Curtis irá "liqüidá-lo" no próximo ataque. Mas o adversário, ajoe- lhado, chama o árbitro e mostra-lhe a mão direita, como para indicar que está contundido. (Jack Cowen iria confirmar, depois, que ele tinha sérios problemas no ligamento do ombro, antes mesmo de subir ao ringue.) O árbitro abaixa-se para falar com Hannah, depois volta-se para a mesa dos juízes, indicando, com um gesto, que o combate está terminado. Curtis pula nas cordas, contra o poste do ringue, e levanta os braços para o alto, sob os vivas do público. Ele dá a volta ao ringue pulando de alegria, girando os punhos em sinal de vitória. Contentamento das primeiras filas, Le Doc, Liz, Ashante, os irmãos e irmãs de Curtis. Que alívio depois do susto do pri- meiro round ... Hannah vem lhe dar um tapinha nas costas, a títu- lo de cumprimento: "Bom trabalho, você bate duro, cara". Curtis aperta-o entre os braços. (Não posso evitar de ficar comovido por causa de Hannah, nem de pensar na tristeza de seu caminho de volta, com uma derrota a mais em seu cartel, o que confirma seu estatuto de opponent perfeito.) Enquanto o médico da Co- missão examina o boxeador de Indiana e aguarda-se o anúncio da decisão oficial, Curtis posa para os fotógrafos amadores de ocasião, com as pernas flexionadas, o punho esquerdo erguido para adiante, uma careta feroz. "Senhoras e senhores, o árbitro (2fi) No jargão pugilístico, essa tática do desespero é conhecida como" to go for broke". Ela consiste em jogar todas as forças e arriscar tudo em um último assalto, visando ao nocaute. Corpo e alma - 247 li; Hannah aliviado, Curtis feliz, Jeb Garney orgulhoso. 248 - LoTe Wacquant Strong vs. Hannah. t; .. Curtis em plano americano. parou o cOlnbate aos dois minutos e dez segundos do quarto as- salto, e o vencedor de vocês, no córner azul, por nocaute técnico [TKO, technical knock-out], é Cuuurtiiiis Strooong! Curtis Strong ... "(27) Depois desse epílogo arrasador, Curtis é assediado ao pé do ringue por seus amigos, parentes e fãs, que o felicitam. jeb Garney enxuga-lhe o rosto e DeeDee apressa-se para voltar o mais rápido possível para o clube, para que Curtis não apanhe um resfriado. Mas as pessoas param-no para abraçá-lo, apertar suas luvas de passagem, e a platéia fervilha diante da ünica porta que dá acesso à boate. Sugiro que ele segure as minhas costas e forço passagem em meio à onda de espectadores. (Estou orgulboso de trazer o campeão a reboque.) A platéia flui pelo bar, que se enche de festejadores. Nós manobramos assim, até o quartinho que faz as vezes de vestiário, seguidos por uma fotógrafa que metralha Curtis em elose e pela jornalista Wylie, que se apressa em demonstrar toda a sua ignorância a respeito da Nobre Arte, fazendo pergun- tas infmnes. Curtis está exuberante e loquaz como um pombinho volúvel. Ele agradece a Deus imediatamente e defende-se com vigor por ter sido mandado à lona logo no primeiro assalto, argumentando que não passara de uma" escorregadela". )eb Garney ri às garga- 1hadas. "Tá bem, é isso, mas então o que é que a luva dele estava fazendo no teu queixo? Você nos deu o maior susto, sabia?" Um dos membros da Boxing Commission, que se encarrega de fazer reportagens esportivas para um jornaleco local, vem entrevistar o boxeador de Woodlawn COln seu pequeno gravador; aproveito para gravar a conversa. Curtis explica que está pronto a combater com qualquer lutador, em qualquer lugar, a qualquer hora, seja em seis rounds, em Atlantic City, seja em dez rounds, em Aurora, contra Torres, para a revanche de defesa de seu título, se o empre- sário quiser: "Não interessa, contanto que eu me mantenha em (27) Diz o uso que os locutores do ringue devem sempre pronunciar duas vezes o nome do vencedor, com entonação c ritmos codificados; a primeira vez alongando as vogais com um grito, a segunda, brevemente e com uma voz mais grave. Corpo e alma - 249 atividade, é tudo o que eu quero. Se eu não estou em atividade, então o prazer e a determinação de boxear vão embora." Ajudo-o a tirar a co quilha protetora e seco seu tronco e seus braços com uma toalha. Ele está excitado como um piolho e salti- ta no lugar, de tanto contentamento. E tem motivo: vendeu cerca de mil dólares em ingressos, inscreveu uma vitória a mais em seu cartel e deu demonstrações de sangue-frio e de um excelente do- mínio tático diante de um adversário experimentado. Seu empre- sário não pára de repetir que JeffHannah enfrentou três ex-cam- peões do mundo - é verdade, mas isso já tem anos, e ele perdeu todas as três vezes. GAHNEY: Ele te pegou com uma esquerda, não foi um golpe terrÍ- vel, mas você estava desequilibrado. Bom, isso deu um pouco de gás pra ele, durante um tempo, ha-ha-ha [sorriso de alívio]. Não foi a coisa mais bonita que eu vi na vida ... Lou,,·:: E talvez você tivesse preferido um outro tipo de excita- ção, hein? GARNEY [rindo a valer]: Eu posso passar sem isso! Talvez você tenha gostado disso, você, Curtis, mas eu não achei os primeiros quinze ou vinte segundos nada engraçados. Aquele sujeito pare- cia um touro furioso na arena! CUlfl'!S: Bom, é por isso, eu segurei o meu tempo. Eu sabia que eu ia atingir ele, mais cedo ou mais tarde. GARNEY: Ah! É claro, é claro. CURTIS [com segurança]: Não estava com a menor pressa de fi- car a descoberto e de correr o risco de ele me mandar um golpe que me atingisse de surpresa, não ... Não, você tem toda a razão. CURTIS [satisfeito que seu empresário concordasse com seu ar- gumento]: Awright. GARNEY: Se você se deixasse levar numa troca golpe a golpe com um sujeito experimentado como aquele, que dá tudo o que tem ... STRICKJ.AN]): Era a estratégia dele. l.,oUIE: E, no quarto round, ele já não tinha recurso nenhum, não agüentava mais. GARNEY: Oh, eu só estava falando que eu não gostei dos primei- ros vinte segundos - isso não perturbou a ele [Curtis J, mas eu fiquei perturbado. [Todo mundo ri às gargalhadas.] 250 - Lo"ic Wacquant LE Doe [Ele passa a cabeça pela porta do quartinho e diz]: Foi o máximo, Curtis, bravo pra você, mano! CURTIS: Está bem, obrigado. KrrcHEN: Ei, Curtis, quando você tiver trocado de roupa, me avi- sa, quando você quiser que eu tire uma foto sua com essa meni- na ali... [Apontando para uma gatinha que fazia caras e bocas perto da porta.] CUlrrIS: Combinado. [Eu rio, e Curtis também, com a persistên- cia com a qual Kitchen batalha para abocanhar alguns dólares.] De repente, me dou conta de que há três mulheres no vestiá- rio, o que acontece pela primeira vez depois de uma luta - perce- be-se que DeeDee não está por perto. Curtis está radiante com a presença delas e tem enorme prazer em responder, com muitos detalhes e trejeitos - e, no entanto, com uma ingenuidade espan- tosa -, às perguntas que elas fazem. Depois, ele despe-se e veste suas roupas comuns (sem tomar banho, porque não há instala- ções para tanto). Logo que ele acaba de vestir as calças, a bilhetei- ra empurra a cortina e atravessa o quartinho, sem a menor ceri- mônia. Curtis, envergonhado, exclama: "Oh, oh! Essa é a noite de todas as dores ... e de todos os prazeres!" Risos. Eddie chega acom- panhado por Ashante, e eles retomam os comentários técnicos e táticos. Cada um dos dois dá sua interpretação sobre a "escorre- gadela/knock-down" de Curtis no primeiro round e colabora para a redefinição coletiva de um incidente embaraçoso como um sim- ples incidente. EDlm:: Ele estava frio, é isso. Curtis ainda não estava aquecido quando ele ... Depois, quando se levantou, já estava bem. Ele não estava aquecido, é isso aí. Ele estava frio. CUlrJ'IS: Quando ele me mandou à lona [sic] , eu sabia que estava imprensado. Porque não foi um knock-down de verdade. Mas como o árbitro contou oito pra mim, foi considerado um knock- down. Louw: E você, que quase pôs ele a nocaute no mesmo round, no fim do primeiro round. CURns: É, isso foi graças a Deus, tudo isso foi graças a Deus. EJ)[)n-:: Depois esse palhaço veio se plantar na frente da tua direi- ta, na cara do teu gancho de esquerda ... Corpo e alma - 251 CUlrrIS: Foi ele mesmo que terminou o combate. KrrcHEN: É, é, é, ele jogou a toalha, ele tinha levado muito. Voz não identificada: Era demais. CURTIS: Ele machucou a mão. L)UIE: Ele se machucou no ombro. KrrCHEN: Ah, o quê? Ele estava machucado? EDlm:: Mas foi principalmente porque ele começou a sentir os diretos do Curtis. Ele levou um monte de ganchos de direita tam- bém, hein? LOU!F: Sabe o que foi? Foi o gancho de esquerda no pescoço que pôs fim à luta, porque, depois disso, ele voltou pro Córner e fez um sinal. "Não, não, com isso chega." CUlfns: Ééé, ele levou a sua parte. LOUIE: Man, você estourou ele de bombas! CUlrns: Eu conseguia te ouvir gritando pra eu sair das cordas, mas DeeDee, ele sabia, ele não disse pra eu sair das cordas: ele sabe que o camarada manda golpes fortes, ele só disse pra eu fechar minha guarda e recuar direto, assim, pra eu girar. o pai de Curtis está ali, calado, escondido. Curtis não presta a menor atenção a ele. Confesso a DeeDee que eu estava prestes a me atirar no ringue e mandar Hannah à lona para impedir que ele pusesse Curtis a nocaute no primeiro round. "O quê? Mas o que é isso? Você tem que ficar calmo no teu canto, Louie, senão você não vai mais vir às reuniões." Abram alas para as "dançarinas exóticas" Saímos para o bar, que agora está cheio de gente. Cada qual vem, por sua vez, felicitar Curtis pela vitória. Ele repete, para quem quer escutar, que o knock-down do primeiro round não passara de uma simples escorregadela, e que, apesar das aparências, ele dominara o combate do começo ao fim. Declara-se frustrado por Hannah ter abandonado a luta: teria preferido "terminar o servi- ço" quando este último estava à beira do nocaute, no quarto round, mas, bem, isso não dependia dele ... Jeb Garney saboreia uma cer- veja gelada em companhia da mulher e da esposa de Jack Cowen, na mesa que fica no meio do salão. DeeDee está sentado um pou- 252 - Lok Wacquant STUDIO 104 EVERY NITE \f .. \ Wm$200 2814 E. l04th St. 2 Blocks East of Torrence 312-768-7109 Free Birthday Party, BirthdaJ Cale &: ChampagM. Corpo e olma - 253 co mais adiante, inclinado, conversando com os veteranos. Curtis circula de grupo em grupo, volúvel, afável, todo sorrisos. No salão de danças vizinho, um disc-jockey toca rap à toda e, de sua divisória de vidro que fica ao alto, à esquerda da pista, convida os clientes a dançar, mas sem grande sucesso. Somente dois casais sacodem-se freneticamente ao som agressivo da músi- ca. No outro salão, grupinhos bebem no bar. DeeDee, discreta- mente, manda lllTI uísque por debaixo do pano -lllTI pano auten- ticamente verde: é a garrafa que lhe dei de Natal, comprada em Montpellier, de um chapeleiro de Saint-jean-de-Luz. A tela da televisão exibe um jogo de beisebol. O fotógrafo da casa, "George Henderson Production, Video and Photography", que tira retra- tos coloridos com uma grande polaróide sofisticada sobre um fundo de jardim tropical (uma pintura cuidadosamente esticada, diante da qual os fregueses posam), não tem muito sucesso: por quinze dólares a foto montada em um quadro de papelão, não é de se espantar! Ele tira o retrato de uma moça gorda, de vestido azul, reclinada no meio de um mar de almofadas de náilon; de- pois, do trio formado por Ashante, DeeDee e um sujeito corpu- lento que eu não conheço, velho amigo de Charles. Foi ele quem insistiu para tirar um retrato com DeeDee, que se digna até mes- mo a sorrir para a teleobjetiva, o que é raro. O velho treinador reina em uma poltrona de vime, com Ashante e o gordo rodean- do-o, como dois cérberos. Enquanto isso, a equipe encarregada de desmontar o ringue já terminou o serviço, e o pessoal do Studio 104 dobrou as cadeiras, enrolou as lonas e rebobinou as cordas. O bar agora está meio vazio, porque a sessão com as exotic dancers começou, na sala ao lado. Depois da exibição do capital corporal masculino, manifestado pela força e pela violência, co- meça a exibição de seu equivalente feminino, no registro do sexo. As assim chamadas dançarinas revelam-se as mesmas moças que atendem na bilheteria e que de hábito servem como card girls, durante os combates. Mergulhada em uma penumbra alaranjada, COm uma luminosidade parcimoniosa (nem mesmo um estroboscópio ou uma bola espelhada girando), uma grande ne- gra magra, com uma plástica de manequim já meio ultrapassada, dança langorosamente no palco, diante de umas sessenta pessoas, sobretudo homens (muitos boxeadores, antigos e atuais), com os 254 - Lok Wacquant cotovelos apoiados sobre os dois bares que ficam na parede opos- ta. Ela está vestida com um biquíni fio dental prateado e com um sutiã combinando, do qual ela se desembaraça prontamente, an- tes de vir provocar os espectadores da primeira fila com os seios nus e rebolando o traseiro. Em vez de "dançarinas exóticas", trata-se mais de "dançarinas pornográficas": a moça não hesita em sentar no colo dos clientes para esfregar neles todo o seu corpo, em ajoelhar-se entre suas pernas para simular uma felação e em montar a cavalo nos seus ombros (em volta dos quais ela passa delicadamente um guarda- napo de limpeza duvidosa, que, em seguida, usa para abaná-los), mantendo ostensivamente o rosto deles entre as coxas. As mano- bras são de tal modo agressivas que vários espectadores que per- manecem ao fundo ficam perturbados, e recuam, como que de comum acordo, quando a tentadora avança em sua direção. Nem bem ela esboça vir para nosso lado, e Eddie já se manda, grasnan- do de horror "[ dan't want nane afthat", e eu faço o mesmo. Vá- rios carinhas saem, porque não querem ser provocados tão bru- talmente assim, ou porque têm medo de serem atraídos à força para o palco, para um strip-tease mútuo. Anthony permanece com prudência à porta; mais tarde, ele iria se indignar em voz alta, porque esse espetáculo estava acontecendo na nossa presença. (Ê verdade que ele é muçulmano. Há pouco tempo, dizia-me que é "preciso resistir à tentação, resistir ao pecado. Por que eu deve- ria olhar para outras mulheres quando tenho minha mulher em casa?") Passemos à fase da remuneração: os homens nos quais a dan- çarina vem se esfregar agora são convidados a escorregar notas de dinheiro em seu sutiã (que ela vestiu de novo, expressamente para essa finalidade) ou no biquíni, o que eles fazem de modo obedien- te. Ashante está com uma cara totalmente embaraçada diante desse espetáculo, mas quando a moça avança para ele, surpreenden- temente permanece em seu lugar, estóico. Ela esfrega-se langoro- samente em seu tronco e depois enrola-se em volta dele, de tal forma que literalmente o envolve com seu longo corpo quase nu (ela tem duas vezes a altura dele). Ashante fica assim, fechado nos braços tentaculares da dançarina, durante uns bons vinte segun- dos e, finalmente, quando ela o liberta, ele enfia uma nota de um Corpo e alma - 255 dólar no biquíni dela. Está vermelho como um pimentão, e eu não perco a oportunidade de brincar com ele: "Vimos os seus joelhos tremendo e seu rosto inchando" (ê assim que se fala de um boxeador que se deixa esmurrar). Saio do salão de dança e combino com Eddie de dizer a DeeDee que Curtis está no palco, fazendo strip-tease com a dançarina. "Uuu! Dá um tempo, eu não acredito! Man, Curtis está pelado com a gata." DeeDee levanta-se rapidamente do banquinho, com O copo de uísque na mão. "O que, deixa eu ver isso, onde?" Quan- do percebe que é uma brincadeira, começa a rir junto com a gen- te. "Estou ferrado! Eu punha o rabo dele a nocaute, knock him cald as a milkshake." Pergunto ao velho treinador por que brather Woods (o co-empresário de Curtis e antigo responsável pelo Boys Club de Woodlawn) não está aqui esta noite: "Eu não sei, ele de- via ter vindo. Mas isso não tem a menor importância, de todo modo [no-Iww], era só uma lutazinha de aquecimento." A segunda menina que faz um número de dança é mais «exó- tica" ainda que a primeira. Ela senta-se a cavalo sobre os clientes e imita evidentemente uma cópula, com muitas caretas e expres- sões de êxtase sim uladas; chega a deixar que um dos felizes esco- lhidos a amasse e dê um beijo guloso no rosto. No Studio 104, não se atua com delicadeza artística, nem segundo o simulacro baudrilladiano. Enquanto o espetáculo continua, assisto a uma provocação sexual entre a grande dançarina exótica (ela se sacode com um vestido de franjas desabotoado que deixa à mostra as nádegas nuas) e Tim Adams, o árbitro negro que oficiara a luta pelo título de Curtis, em Aurora. Ela berra que ele está com medo dela e que não é macho o bastante para uma mulher como ela. Ele responde com veemência, mas COln um sorriso nos lábios, que já conheceu muitas outras mulheres e que é ela quem está negaceando. Visto que está tão segura assim de sua feminilidade, ela só tem de segui- lo até o banheiro, onde ele terá o maior prazer de lhe mostrar o que sabe fazer. (Isso tudo é muito incoerente, já que Tim Adams está acompanhado pela sua namorada do momento.) A dançari- na devolve-lhe a resposta, desafiando-o a abrir a braguilha ali mesmo, na frente dela e de todo mundo, "para mostrar o que você tem aí". Tim não se faz de rogado e imediatamente abre a 256 - LoYc Wocquont da luta, a descontração e o prazer no bar do Studio 104; Eddie e DeeDee, um ri, o outro bebe. Eddie, Liz e DeeDee posam para a tradicional foto depois da luta. .... - , - - ..,{ .• .. li' •• 'I!" j , ,,1 ". ; I i' ,,', , , • 1 ,. j ',', _. "oi. ..'cr • -,- <, - - ' . .'- Liz, DeeDee e Louie. Corpo e olmo - 257 braguilha, pronto a exibir seus atributos de macho. Ela excita-o verbalmente: "Tira, tira, deixa eu ver." - Ah! Você quer ver, tem certeza? Você não vai ficar nem um pouco decepcionada, minha querida, eu posso garantir! Você quer? - Tira, estou dizendo pra tirar, deixa eu ver o que você tem aí. Eu aposto que você não vai tirar, porque você não tem nada pra mostrar de verdade. - Okay! Tim finge que vai tirar o seu membro viril da calça entreaberta, com um gesto teatral que dá a impressão de que se trata de algo de um tamanho excepcional. - Tira que eu faço um [inaudível]. Ela aproxima-se e mete-lhe a mão no baixo ventre. - Opa, estou avisando pra não me tocar. A última mulher que pôs a mão nele teve que ir buscar um doggy bag pra levar a sobra pra mamãe.(2ll) Risos unânimes dos amigos e curiosos que estão em volta dos dois. rim, mais uma vez, desafia a dançarina a tocá-lo, o que ela prontifica-se a fazer, quando ele segura-a vigorosamente pelo braço. - Vamos, vem pra esse quartinho aqui, vamos ver quem sai pri- meiro. - Não estou com medo de nada que você tenha pra me mostrar. Você pode me mostrar, que merda. - Combinado, então vem, entra aí, vamos ver quem vai sair cor- rendo. Os dois desaparecem no quartinho que, há duas horas apenas, servia-nos como vestiário, desencadeando a hilaridade irreprimí- vel do amigo de Tim. Sua namorada, em contrapartida, está lívi- da! Dois longos minutos lnais tarde, a dançarina seminua sai com um andar resoluto e felino, seguida de perto por um jovial Tim. Este lança para a geral: "Vocês viram quem saiu primeiro?" A moça (2!{) Um doggy bi!g (literalmente, "sacola para cachorro") é LIma sacola de pa- pel na qual os comensais de um restaurante levam os restos de scus pratos, no fim da refeição, para comê-los mais tarde em casa. 258 - Lo'ic Wacquant replica, brincalhona: "Mas eu estou correndo? Estou correndo? Você disse que eles iam ver eu sair do quarto correndo. Não estou correndo. )) DeeDee conversa um instante com um velho campeão de peso médio, membro da equipe olímpica norte-americana de 1960, junto com Ernie Terrel e Mohammad Ali. Apresenta-nos, a mim e a Liz, ao boxeador. Tiro fotos no bar e ensaio alguns passos de dança, para grande alegria de Ashante e de Lamar, que querem a todo preço que eu faça para eles o "Running Man" - minha já consagrada imitação do rapper M. C. Hammer - na pista.1291 DeeDee também começa a se balançar no lugar e, depois, dá um toque em Lamar, para roubar-lhe Wanda. Eles fazem umas revi- ravoltas sozinhos pelo salão - acho-a tocante com seu grande sor- riso de coruja e seu longo vestido vermelho -, mas, eterno aman- te das mulheres bonitas, DeeDee cochicha para mim: "Ela é feia mesmo, essa coitada da Wanda.') Já passa da meia-noite. Só res- tam ali o grupo do Woodlawn e a família de Curtis. Está na hora de levantar acampamento. "Você derruba mais dois caras, e eu paro de beber" Nós nos distribuímos em dois carros: Ashante vai para o North Side com Ernie Terrell e dois dos veteranos; Olivier, Fanelte, Liz, Eddie e a moça gorda da rua 63, com os quadris de plástica, aper- tam-se na minha Plimouth Valiant; eu sigo com DeeDee e Curtis. Mas quando subo no jipe, descubro que temos companhia: uma pequena jovem negra, com os cabelos em tranças e vestida com um collant vinho muito flashy, está sentada no banco de trás, es- condida no escuro. DeeDee subitamente toma consciência da pre- sença imprevista dessa jovenzinha e pede explicações a Curtis, (24) Por ocasião de uma noitada dançante cm um clube do South Side, eu ti- nha, sem saber, fcito esse passo de dança "patenteado') pelo rapper M. C. Hammer com tamanha perfeição que o D.]. pedira às pessoas que se afas- tassem para me liberar a pista. Isso valeu-me o codinome de" The French I-lammer" ("O Martelo Francês"), carregado de ironia no contexto da aca- demia de boxe, onde de poderia designar minha potência de soco ... Corpo e alma - 259 enquanto este se prepara para dar a partida. E eis que os dois co- meçam uma longa disputa para saber se foi Curtis quem disse à garota para voltar com ele ou se ela subiu no carro antes ou de- pois do velho treinador. A pobre adolescente permanece imóvel, assustada por ser a causa de uma rixa verbal virulenta que vai durar boa parte do trajeto. DeeDee cobre-a de perguntas ("Quem é você? Você é namorada de quem? Quantos anos você tem? O que você está aprontando aqui? Queln disse pra você entrar nesse carro?") com um tom agressivo que, na verdade, é dirigido a Curtis, que finge cantar aos berros, acompanhando o CD de soul music que toca no rádio. Essa é uma forma de dizer a Curtis que DeeDee não aprova esse gentil convite de última hora. Durante todo o trajeto, DeeDee e Curtis brigam também para decidir onde e quando o boxeador deve deixar a menina. DeeDee insiste para que Curtis vá deixá-la em casa primeiro; subentendido: nada de fazer bobagem com ela depois que você me deixar em casa. Os dois compadres brigam violentamente. O treinador chega mesmo a ameaçar descer do carro e voltar para casa por conta própria, quando cruzamos a South Chicago Avenue. Em voz bai- xa, eu consolo a pobre menina: "Não fique preocupada, eles dis- cutem assim o tempo todo, é como um casal de velhos." Ela está bem intimidada com a implicância manifesta de DeeDee. Ele e Curtis voltam a falar brevemente sobre o combate. O boxeador de Woodlawn defende-se das críticas de seu treinador. (Creio que ele tem uma tendência a ficar cheio de si depois de uma luta: não enxerga seus erros.) Os dois riem juntos, lembrando-se da senho- ra Garney: "É um verdadeiro bicho, hein, DeeDee, ela tem até bigode." "Ééé, ela é feia, com certeza, mas ela é bem servida tam- bém [Ioaded]." "O que você quer dizer com isso?" "Ela é cheia da gaita. Nasceu rica. Herdou muita grana." Apesar do ruído infer- nal da música. consigo gravar a conversa. Trechos escolhidos: Dr:r:DEE: Eu bem que gostaria de saber como é que ela entrou no carro, essa daí. CUln/,'; [fingindo surpresa]: Bom, você não sabe como ela en- trou aqui dentro? DEl'DEE [controlando o exaspero com dificuldade J: Não, eu não vi esta senhorita subir aí dentro! 260 - Lok Wacquant Cur<.'ns: Bom, ela já estava aí quando o senhor entrou? DEEDEE: Estava. CURTrs [subindo de tom, encolerizado e tentando inverter os pa- péis]: Mas então como é que ela entrou? DEr:DEE: Ela já estava aí dentro quando eu entrei, já falei pra você. Curtis: Man, mas o senhor estava sozinho no carro, ninguém entrou no carro assim: ela entrou com o Louie ... D"D" [calmamente]: Claro que nlio. CU1U'IS [virando-se para a moça]: Você entrou no carro com quem? GAROTA [timidamente]: Sozinha. D"D" [incrédulo]: Sozinha? CUlrl'lS [como se o caso estivesse encerrado]: Isso responde à tua pergunta, DeeDee, hein? Então, não me faz pagar o pato: eu es- tou nessa que nem você, é isso aí [subtexto: "Eu atraio as garo- tas, não posso fazer nada"]. DEFDEE: É, é, é, essa não, você não está na mesma que eu ... CUlrrls: Não, não estou na mesma, é verdade, o senhor é selva- gem [healhe"], o senhor ... [ele ri com gosto do xingamento, e eu rio com ele l. Eu deveria ter ficado de olho 110 senhor a noite toda. Tentando tomar o lugar de Derrick, e tudo o mais [quan- do DeeDee dançara com Wanda. Curtis ri mais aindaH D"D" [indignado]: Tomar o lugar de Derrick? CU1U'IS: Éééé! D"D,,: Ele e Wanda? CURTIS [jovial]: Éééé! DEEDEE: Estava me divertindo um pouco, só isso. Não estava [inaudível]. É por causa daquele copo [inaudível]. Currns [com um tom de zanga]: Por que o senhor está sempre bebendo? D"D" [aborrecido]: Não tenho mais nada pra fazer. Segue-se uma longa argumentação a respeito do direito de que DeeDee desfruta, de vez em quando, de permitir-se os prazeres da vida (os mesmos de que Curtis deve se privar) por causa da sua idade avançada, e depois uma discussão para saber se Curtis vai deixar a menina em casa antes ou depois de nos deixar, a DeeDee e a mim. CUlrns [interrompendo DeeDee aos gritos, para poder ser ouvi- do, por sobre a música, que urra nos alto-falantes do estéreo]: Me divertir? Me divertir? Mas isso não é divertido! Corpo e olma - 261 DEEDEF.: E depois você leva o Louie em casa. Você leva a senho- rita primeiro, depois você me leva e depois vai deixar o Louie em casa: eu não estou maluco. [Como Curtis finge que não está es- cutando, ele vocifera.] Bom, pára aqui, vira aqui à esquerda e estaciona, estou dizendo, ali, ao lado do [inaudível]. LoulI':: Aqui não pode parar, DeeDee, estamos na South Chicago Avenue, a gente pode seguir nesse sentido. CUIrI'!S: Saca só, DeeDee, eu já falei pro senhor parar com esses porres, mano Eu vou ter que pôr o senhor pra fora do carro! DEEDEI'; [ele está um bocado nervoso]: Merda, eu posso saltar! Merda! Eu sei como chegar em casa sozinho. CUlrl'lS: O senhor tem certeza? Daquela vez, o senhor voltou ... DEEDEE [interrompendo-o]: ... Pega a direita, está bem. CUlfJ'lS: Precisava de alguém que desse uns bons tapas nele [somebody better slap him upside ... ]. DEEDEE [interrompendo-o de novo]: ... Ninguém vai me dar tapa nenhum. LOUIl-; [para a garota, paralisada de medo no banco de trás]: Eles batem boca assim o tempo todo, não precisa se preocupar. [ ... ] A conversa acaba voltando para a luta desta noite. CURTIS: De repente, ele mandou uma saraivada de golpes pra todos os lados, ele estava totalmente desorientado, eu não con- seguia desviar a guarda dele e passar por ela. Mas o golpe me pegou na hora que eu ia pegar ele. E eu queria - eu estava ten- tando alinhar meus pés. [Chateado com a atitude indiferente de DeeDee, que evidentemente não queria ouvir nada das suas ex- plicações.] Ao mesmo tempo - não era um knock-down! Eu es- tou te falando, o árbitro computou como um knock-down, en- tão precisava que eu fizesse de conta que ,era um knock-down. [Ele eleva a voz para impedir que DeeDee mas em vão.] DEEDEE: Você foi à lona, e toda vez que alguém vai à lona, seja um flash knock-down [quando o boxeador reanima-se imediata- mente] ou um knock-down de verdade, não interessa, não é uma escorregadela ... [Breve pausa.] E é sempre a mesma coisa - toda vez, você se levanta da lona e põe o cara a nocaute no mesmo round. E isso não está com nada! CURl'IS: O que é que não está com nada? [Erguendo a voz como forma de se defender, mas com um tom neutro.] Os fãs adoram isso! 262 - Lok Wacquant DEEDEE: É, eu sei, é como com o cara vermelhão que estava aci- ma do peso ... [Referência a uma luta do ano anterior, durante a qual Curtis foi levado à lona por um breve instante por um ad- versário dez libras mais pesado do que ele.] CURTIS: f:, é, é. DEF.DEE: Ele mandou você à lona, bum, bum! Você levantou e mandou o cara pro chão, você está entendendo o que eu estou dizendo pra você? [Pausa.] É, porque você precisa de muito tem- po prrz meter uma coisa tia tua cabeça [get your mind jacked up]. CUlnIS: Mas o que é que é isso, quando eu caí, o árbitro começou a contar, como se fosse um knock-down, e foi aí que eu saquei que estava na hora de começar o serviço [get busy]. DEEDEE: E você também precisa de muito tempo pra entrar no corpo n corpo. E você é, de longe, o mais forte, mas pra isso você tem que flexionar os joelhos. Quantas vezes você mandou o cara à lona? Cülfns [virando para mim, com seu orgulho recuperado J: Louie, quantas vezes eu mandei ele à lona? L(lUIE: Ih, três vezes, e uma vez o árbitro achou que era um escorregão. [Pausa.] E uma outra vez, você sacudiu ele e final- mente mandou ele pras cordas. CURTIS [interrompendo-me]: Ele me enfiou uma cabeçada no olho. DEEDEE: É, é, eu sei disso. LOUIE: Só faltou ele passar pelas cordas pra se estabacar lá em- baixo. DEFDEF [rindo devagar e sacudindo a cabeça]: Ha, ha, ha, e ele dava cotoveladas também. Não tem nada demais nisso ... Ele é um cara calejndo, ele tem bem uns quarenta combates pra trás. [ ... 1 DeeDee anuncia que vai passar para tomar um último gole e terminar a noite em um bar perto de sua casa. Curtis imediata- mente aproveita para lhe passar uma nova lição de moral. CUlrrrs: Man, pára com isso, o senhor não tem necessidade de beber! [Elevando a voz em um tom de cólera fingida.] O senhor é demais, o senhor é tão demais, demais, demais que está pas- sando da conta. DEEDEE [rindo, como se ele tivesse sacado um grande lance]: Você ganha mais duas lutas, você derruba mais dois caras, e eu paro de beber. Corpo e alma - 263 CURTlS: É, é, é isso! Louie, você ouviu isso, você ouviu o que ele acabou de dizer, hein? LOUIE: É, eu ouvi. DEEDEF: Mais dois, você derruba mais dois sujeitos e eu paro de beber. LourF: Eu sou testemunha. DeeDee [triunfante]: E de fumar! CUlrrrs [orgulhoso de constatar que DeeDee atribui tanta im- portância assim ao sucesso de sua carreira 1: O senhor teve medo quando ele me derrubou? DEFDFE [com um tom indiferente 1: Claro que não. CUlrrrs: Por que não? DEfDEE [sacudindo a cabeça]: Uh, uh! Curnrs [incrédulo]: Por que não? Por que não? DErDEE: Por quê? Porque eu vi como você se levantou. [Desta- cando as palavras.] Você não se levantou bamboleando como [ames Rrown [[ames Brownin'] e tocado [wobbly]. CUlrrrs: Eu me levantei de uma vez só, assim, uulala! DnDEF [solta um grande arroto]: Se você se levantasse todo mole, como James Brown r resmungando entredentes], então eu teria logo sabido que a coisa estava acabada para nós. Mas eu sabia que você não estava tocado. --------_o __-----; Uma rua de comércio típica do gueto. 264 - Lok Wacquant ---- -------- ~ ~ ~ ~ ~ ~ - c_ "" ~ ~ - - ~ I Quando chegamos à Cottage Grave Avenue, Curtis avisa, todo satisfeito, que vai me levar primeiro, depois vai deixar a menina, deixando DeeDee por último. "E não vão ficar pensando que vocês vão me dizer onde é que eu tenho que ir: o único lugar onde vocês me dizem o que eu tenho que fazer é no ringue!" O jipe Comanche faz escala diante do meu prédio, salto para a calçada e dizemos até amanhã, no gym. No dia seguinte, o telefone toca um pouco depois do meio- dia, quando estou datilografando minhas anotações. É DeeDee, que quer contar as novidades. Ainda está de ressaca do uísque de qualidade duvidosa que tomou ontem à noite - terminou a noi- tada em companhia de Curtis e da menina, no bar da esquina da rua 69 com a Indiana Avenue. "Não fiquei muito tempo, não ti- nha ninguém, só eu e o garçom. Apresentei pra ele esse animal do Curtis." Depois, este deixara-o em casa, antes de ir levar a menina que estava conosco. Quem diria ... DEr:DEF: Eu vou cair de pau em cima dele e lhe dar uma boa por causa dessa menina. De toda forma [no-how], ela não tinha nada o que fazer lá dentro do carro. E ela é ainda mais nova do que estava dizendo, éé. f ~ a namorada de Milkman, e como ele ainda não tem nem 16 anos ... Disse que brigou com ele, e que foi por isso que se mandou. Lourr:: De todo modo, você fez ela passar um mau pedaço, DeeDee, com certeza. Dr:EDEE: Ah, é. Antes eu já espantei um monte delas do gym, com medo de mim. Tinha meninas que vinham à academia, e eu per- guntava [com uma voz fria e dura]: "No que é que vocês estão se metendo aí?" Tinha uma menina que vinha para ver Curtis. Ela se sentava perto do ringue, e eu mandava bem alto: "Curtis, tua mulher está te chamando no telefone!" [Gargalhadas.] Ele fica- va puto [pissed] ... Hoje, não vou à academia, talvez pegue um dia de folga ... É verdade que estamos todos precisando de descanso: foi uma longa jornada, desde a pesagem até a volta do Studio 104, e mes- mo que DeeDee afirme que não ficou preocupado com nada, a tensão nervosa que envolve um combate é sempre extenuante. "Oh! Não estou ansioso. Shit, não há nada que me faça ficar ansio- Corpo e alma - 265 so, Louie. Nada com o que se assustar [nuthin's the matter]. Não é nada demais. Essa luta não foi nada. Não esquento a cabeça com nada. [I don't let nuthin' bother me.] O que tiver que pintar pinta, de um jeito ou de outro [no-how]. Depois de cinqüenta anos des- sa coisa, isso não me afeta em nada. Mesmo quando Curtis foi à lona, eu observei bem ele, a maneira como se levantou, sabia que ele não sentira o golpe. Ele mandou Hannah à lona no mesmo round, e a coisa quase parou por aí. Foi o mesmo que aconteceu em Harvey, quando ele lutou com esse sujeito grandalhão [big boy]: deixou-se levar à lona, levantou e meteu o rabo do cara na lona, e teria mandado ele a nocaute se tivesse mantido a pressão. Sei muito bem o que ele faz no ringue. Faz as mesmas palhaçadas habituais da academia [pull that shit - quer dizer, permanecer passivo nas cordas de modo a deixar o adversário se cansar de bater em suas luvas.] Se você faz isso muito tempo, depois você fica relaxado. Isso vira um hábito, quando você calça as luvas. Ele fazia isso com Keith na academia, se deitar nas cordas e, depois, quem vai se deitar é você, na luta. Eu sei que ele sabe o que faz. As pessoas não sabem, mas ele sabe o que faz, e eu sei que ele sabe. Mas isso, isso vem do gym: ele não pode esquentar a coisa como quiser na academia, quando treina com Keith, não pode traba- lhar duro com ele. Não há muitos caras com quem ele possa calçar as luvas e trabalhar duro - Rodney e Tony não estão lá agora, e Ashante ainda não está pronto." DeeDee é da opinião de que Curtis não tem, no gym, alguém com quem possa treinar em seu próprio nível: ele bate muito seco, muito rápido, e não tem paciência com seus parceiros de sparring. O velho treinador queixa-se novamente do velho Page, que telefonou para ele esta manhã outra vez: "Queria me dizer que AI Evans está na cidade [com uma voz falsamente excitada]: 'AI Evans está na cidade, DeeDee!' Mas, porra, quem é AI Evans? Um nada de na-da, um nin-guém [no-thin', no-bo-dy], ele não consegue fa- zer nada. Eu disse pra ele: 'Man, por que você está me contando isso, não estou nem aí, nem quero saber. E você está aí todo exci- tado, por pouco eu não estava achando que era Jesus Cristo que estava na cidade'." AI é um boxeador local de segunda linha, cujo único título de glória foi ter posto Mike Tyson a nocaute há cerca de dez anos, por ocasião de um torneiozinho de amadores do qual 266 - Lo"ic Wacquant DeeDee, sentado em sua cama na cozinha, conversa sobre boxe ao telefone. ele não deveria nem ter participado, porque já estava muito velho (ele tinha 24 anos, enquanto Mike Tyson estava apenas com 14). Depois disso, ele tornou-se profissional e colecionou cinco der- rotas em seis combates; atualmente, "vende-se" como parceiro de sparring nos campos de treinamento dos grandes promotores nacionais - estes sempre têm necessidade de um peso pesado para servir como punching-ball para seus pupilos. Ele estava na reu- nião de ontem à noite, e o locutor do Studio 104 apresentou-o à platéia. "É um carinha simpático, ele é legal [awright]. Mas por que diabos eu iria ligar pra alguém de manhãzinha pra dizer que AI Evans está na cidade? Isso nunca me passaria pela cabeça." Talvez DeeDee vá ficar descansando em casa e deixar o gym fechado hoje - o que vai acontecer pela primeira vez nos três anos que eu freqüento a academia. Mas depois, com muita reti- cência: "Não sei se Eddie vai estar lá, e depois que terminou Corpo e alma - 267 com Lorenzo e Keith, ele nunca trabalha com os outros rapazes, esse Eddie. E sempre há os garotos que vão se encontrar lá. Não gosto nem um pouco que eles entrem na academia e mexam no material. Já, mais de uma vez, sumiu um par de luvas. Perguntei a Anthony se tinha sido ele, e ele me disse que não. Talvez tenha sido um desses, que entrou lá e pegou as luvas." DeeDee está em seu elemento, em seu gym. Notas 1. Pode-se encontrar uma análise desse ofício, assim como da organização econômica e financeira do boxe profissional nos Estados Unidos, em LOle Wacquant. "A tlesh peddler at work: power, pain and profit in the prizefighting economy". Theory 8Jld Society, v. 27, I1. I, fevereiro de 1998. p. 1·42. 2. Sobre eSSa ética do domínio corporal diante da qual o boxista deve curvar- se e sobre as privações que ela implica. em matéria de alimentação, de vida familiar e de comércio sexual, ler LOle Wacquant. "Sacrifice". In: Gerald Early (org.). Body Language. Saint Paul, Minnesota: GraywolfPress, 1988, p.47·59. 3. United States Senate. Hearing Oll corruptioI1 in professionaJ boxing before the permanent Committee ou GovernmclltaJ Affairs, One Hundred Second Congress, AUgHSt 11-12,1992. Washington: Govemment Printing Office, 1993. 4. In- Jin Yoon. On my OW1J: Korean business and race relations in America. Chicago: Thc University of Chicago Press, 1997; Jennifer Lee. "Cultural brokers: race-based hiring in inner City Neighborhoods". American Behavioral Scientist, v. 41, n. 7, abril de 1998, p. 927-937. 5. Ver Terry Williams. Crackhouse: notes fram the cnd of the linc. Reading (Massachusetts: Addison-Wesley, 1992); Philippe Bourgois, Scarching for rcspect: sel1ing erack in El Barrio. Cambridge: Cambridge U. P., 1995. 6. Para um breve relato dessa experimentação sociológico-pugilística, ler "Bienvenlle au ghetto". L'Equipe Magazine, n. 471, 27 de outubro de 1990, p. 68·71 e 75. 7. Patricia A. Turner. I heard it through the grapeville: rumor in African- Amcricall culture. Berkeley: University ofCalifornia Press, 1993. Encon- tra-se também uma versão no relato que um "traficante de ruas" faz de sua vida no South Si de (Lolc Wacquant. "'The zone': le métier de 'hustler' dans le ghetto noir américain". In: Pierre Bourdieu cC aI. La misere du monde. Paris: Sellil, 1993, p. 181-204 [trad. bras.: "A Zona". In Pierre Bourdieu eC ai. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997, pp 177-201]. 8. Sobre o papel-chave desses estabelecimentos na reprodução da sociabili- dade expressiva da comunidade negra norte-americana. ler o belo livro de 268 - Lo"ic Wacquant Michael J. Bell. The world fram Brown's lounge: au echnography ofblack middie·dass piar. Urbana: University of IIlinois Press, 1983. 9. Howard S. Becker. Outsiders: studies in the socioJogy of deviance. Nova York: The Free Press, 1963. 10. Cf. LOle Wacquant. "A flesh peddler at work", art. cit., p. 6-14. 11. Lo"ic Wacquant. "La boxe et le blues". Les Cahiers de l'IRSA, Montpellier, n. 2, fevereiro de 1998, p. 223-233. 12. Sobre o local das disputas verbais e a importância da arte de bem falar na cultura e na sociabilidade urbanas (da qual o rap é o recen- te avatar na esfera comercial), pode-se consultar Roger D. Abrahams. Down the jrlllgle. Negro narra tive folk1ore from me streets ofPhiIadelphia (Nova York: Aldine de Gruyter, 1963); e Thomas Kochman. Rappillg' aud stylin' out: commullication i11 urball bIack America (Urbana: University ofIllinois Press, 1972). 13. Lo"ic Wacquant. "The prizefighter's three bodies". Ethnos, v. 63, n. 3. vembro de 1998, p. 325-352. 14. Lo"ic Wacquant. "A flesh peddler at work", art. dt., p. 23-30. 15. Teddy Brenner e Brian Nagler. OnIr the ring was square. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1981, p. 22. 16. Steve Brunt. Mcall busilless: the risc and fall of Shawn O'Sullivan. Harmondsworth: Penguin, 1987, p. 201. Corpo e olma - 269 "Busy Louie" em seu córner, antes do combate. "Busy Louie" nas Golden Gloves S ete semanas de preparação: Cinqüenta dias de labuta e de suor, de caretas, de dúvida e de entusiasmo, tudo misturado, de "de- voção monástica", como bem diz Joyce Carol Oates.' Dez quilô- metros percorridos a cada manhã, no frio polar do inverno de Chicago, milhares de gestos, por vezes ínfimos, simples ou com- plicados, mas sempre caprichados, incansavelmente repetidos e apurados, e outro tanto de golpes dados, recebidos, encaixados e não encaixados. Esta noite, subo ao ringue. Hora da verdade. Che- garam as Chicago Golden Gloves, o mais prestigioso torneio ama- dor da cidade. Orgulhoso de seus quase setenta anos, carregando em seu rastro a legenda das horas de glória da Nobre Arte, quan- do o Chicago Stadium e o Madison Square Garden de Nova York disputavam as luzes do palco pugilístico, Tony Zale, Ernie Terrell, Sonny Liston, Cassius Clay aí poliram suas primeiras armas e aí provocaram as primeiras devastações. Ansiedade, impaciência. Rápido, está chegando! Tornar-se boxeador, preparar-se para um combate é como ingressar em uma religião. Sacrifício! A palavra retorna sem ces- sar à boca do velho treinador DeeDee, conhecido na matéria: meio século devorado nos bastidores dos ringues de Chicago, Los Angeles, Osaka e Manila, no curso de uma vida com o perfil de uma montanha-russa. Aprendeu seu ofício sob a batuta de Jack Blackburn, o treinador de Joe Louis, que fazia seu passeio diário no Parque Washington, exatamente onde vou correr toda ma- nhã. DeeDee vagueou por todos os gyms do South Side antes de exilar-se durante vários anos na Ásia, para curar-se de um des- gosto amoroso. De volta a Chicago, na miséria do gueto negro, Corpo e akna - 271 ou daquilo que resta dele, depois de ter conhecido sua hora de glória, breve e intensa: dois campeões do mundo, o filipino Roberto Cruz, o norte-americano Alphonzo Ratliff. Esquecidos antes mesmo de se terem tornado conhecidos do grande público. A academia do Woodlawn Boys Club será sua última escala. Atual- mente, DeeDee sobrevive como pode, se virando. Todo dia, abre o gym em uma hora determinada e fecha as agressivas grades exa- tamente às sete horas. "Essa droga de gym, tem dias que não con- sigo suportá-lo." Mas nada poderia arredá-lo do gym. É aí que ele simplesmente é. Até mesmo nos domingos de véspera de comba- te, quando seus pupilos se apresentam no Park West, no Interna- tional Amphitheater, no cruzamento de Halsted com a rua 43, ou num cinema de subúrbio. Sua vida não passa de um enorme sa- crifício a essa ciência da luta, à qual ele se dedicou totalmente e que lhe rendeu tanto e tão pouco, ao mesmo tempo. "Minha vida não passou de uma gigantesca embrulhada, mas uma belíssima embrulhada!", diz-me ele, sorrindo. Não se arrepende de nada. Ele que o diga! Sacrifício! A palavra destaca-se contra as paredes amareladas da academia, sobe ao longo do teto despencado, desliza sobre os sacos de bater, que oscilam na ponta de suas correntes, ressoa nos armários metálicos, onde os freqüentadores habituais arrumam seus instrumentos de trabalho ao fim do dia: luvas gastas, bandanas manchadas de suor, sapatos fechados, capacetes de sparring, rou- pões rasgados de cores outrora audaciosas. Preparar-se para um combate é submeter-se, dia após dia, a um verdadeiro ritual de mortificação. Hoje, compreendo melhor do que antes por que DeeDee sempre grunhe que "ser boxeador é uma profissão que toma vinte e quatro horas por dia. É preciso que você tenha isso na cabeça o tempo todo. Se você quer fazer a coisa direito, não pode fazer outra coisa." Na verdade, não é tanto a brutalidade das lutas que leva os profissionais no final de carreira a repor as luvas, mas sim os rigores intratáveis e incontornáveis do treinamento, a economia da vontade e do corpo que ele produz aos poucos. Nada escapa ao tempo, sobretudo os boxeadores, esses homens que so- nham acordados com a imortalidade. A vida do boxeador no ringue é essa existência "miserável, bru- tal e curta" de que falava Thomas Hobbes, quando evocava o es- 272 - Lo"ic Wacquant tado da natureza. Por comparação, a vida que ele leva no gym parece feita de langores e de doçura.l l ) Ela tem seu tempo pró- prio, estirado até o infinito, seus ritos impregnados de minúcia, seus ritmos que, paradoxalmente, visam tanto a fazê-los esquecer os combates como a prepará-los para eles. Ela alimenta-se não de uma violência sofrida, imprevisível e temida, mas de uma violên- cia desejada, planejada, auto-inflingida, consentida, porque con- trolada. Domesticada. Esqueçam o ringue: é na penumbra anôni- ma e banal do salão de treinamento, ao mesmo tempo refúgio e oficina, que se forja o combatente. O gym, é antes de mais nada, feito de sons, ou melhor, de uma sinfonia de ruídos específicos, imediatamente reconhecíveis entre milhares - assobios, sussur- ros, batidas de luvas no saco de areia, ranger de correntes, galope regular do pulo na corda, "ra-ta-ta-ta-ta" inimitável da pêra de velocidade - em um andamento sincopado e persistente. São tam- bém odores tenazes, ácidos. É um microclima, uma atmosfera espessa, quase sufocante, pesada pela sua própria monotonia. Que impregna o corpo por todos os poros, penetra-o e modela-o, ali- menta-o e excita-o por todos os nervos, esculpe-o no combate. "Você ganha seu combate no gym", repetem os veteranos até a saciedade. Porque o gym é usina. Cinzenta, fechada e rudimentar, onde se fabricam essas mecânicas de alta precisãO que são os bo- xeadores, segundo métodos em aparência arcaicos, mas quão sá- bios e já comprovados. Trabalhar no saco de areia é fabricar uma peça com esses instrumentos grosseiros que são os punhos den- tro de luvas. Instrumento e peça fundem -se nesse mesmo corpo que serve de anna, de escudo e de alvo para o pugilista. 3 Encon- trar a distância certa, respirar, esgrimir (os olhos, os ombros, as mãos, os pés), deslizar um passo para um lado, para deixar o saco de bater passar, retomá-lo no vôo com um gancho de esquerda a meia altura. Não muito aUo nem mais amplo, para não deixar que adivinhem o seu gesto. Redobrá-lo no rosto com um movi- mento curto e seco, depois segui-lo com um direto de direita, (1) Freqüentemente destaca-se2 - e com razão, segundo a minha experiência- que, fora do ringue, os pugilistas são pessoas cheias de doçura, como se estivessem ávidas de exteriorizar essa gentileza que lhes é proibida entre as cordas. Corpo e olmo - 273 virando bem o punho à maneira de uma chave de fenda, de modo a alinhar a aresta do pulso horizontalmente, justo na hora do impacto. "O gancho de esquerda e o direto de direita caminham juntos, como marido e mulher", explica-me Eddie, o treinador assistente da academia. O pé de trás gira levemente, transfere-se o peso do corpo para a outra perna. Giro de quadris de novo, exa- tamente o necessário para dar ao corpo o ângulo que minimiza a superfície atingível oferecida ao adversário. Um passo para a es- querda, e encadeia-se Uln jabe, esse direto de esquerda em torno do qual tudo revoluciona, porque ele serve, ao mesmo tempo, como instrumen to para afastar (defesa) e alvo (ataque). "Dispara esse jabe! Manda brasa! Faça o couro ressoar com tua esquerda! Redobre o jabe e manda uma direita depois." É preciso não se enganar: o trabalho no saco de bater é tanto mental como físico. A própria distinção dissolve-se no Suor acre que me escorre pelos olhos. "Mexa a cabeça, gente boa! Não é um saco de bater que está na tua frente, Louie, é um homem!", ressoa a voz de DeeDee. "Quantas vezes eu já disse a você que precisa pensar. Pensar! f' com a cabeça que agente boxeia." E, no entanto, todo mundo sabe, no íntimo, por ter sofrido na carne, que não se tem tempo algum para recuar no ringue, onde tudo é mandado por reflexos, em algumas frações de segundos. É que a cabeça está no corpo e o corpo está na cabeça. Boxear é um pouco como jogar xadrez com as tripas. O gym é também covil. Aí vem-se encontrar refúgio, descansar da luz e do olhar crus e cruéis que lhe lançam de fora - os bran- cos, os policiais, os negros" bourzois") COIno diz meu camarada Ashante, os patrões e os chefetes, todas as pessoas estabelecidas que se afastam com um arrepio quando você entra no ônibus. Na América, não é nada bom ser jovem, pobre e negro. Assim, no gym, é possível fechar-se sobre si mesmo, entre os seus. Fica-se protegido. Do exterior, de si mesmo. Coloca-se entre parênteses uma vida que nem mais se considera injusta, por força do hábito, do comodismo. Somente dura, como os punhos. Poucas pala- vras, poucos gestos inúteis na academia. "Isso aqui não é uma sala de visitas, você não está aqui para conversar, ao trabalho, work!" Todos esforçam-se para endurecer, para resumir-se ao máximo a um corpo fechado, encouraçado, tenso. Nunca se bai- 274 - Lo"ic Wacquant xa a guarda de verdade, mesmo atrás das portas do vestiário, esse santuário último. 4 No estreito reduto de paredes de gesso gordu- rosas, pintadas de azul berrante, sentados sobre a única mesa de madeira que serve como banco, trocam-se, com uma parcimônia pudica, palavras, tapinhas, risos e, sobretudo, olhares. Conversa- se furtivamente - boxe, mulheres, brigas, boxe, prisão, futebol americano, rap music, boxe. E, ainda e mais, boxe, sempre, o as- sunto é inesgotável. Comenta-se o sparring: "Você me tocou com a direita, Cliff, ainda estou sentindo meu maxilar. .. Tente manter a mão esquerda mais alta, Keith, quando você sai do corpo a cor- po. Você ainda leva muitos golpes." Depois que um ferimento na mão interrompeu sua carreira promissora, Butch assume o ofício de conselheiro técnico espontâneo: "Um batedor que cai em cima de você, como Torres, você deixa ele vir em cüna e contra-ataca com jabes secos. Secos! Mira bem o pescoço e bata como se qui- sesse passar através dele." Aposta-se em Holyfield a três contra um: o jamaicano "Razar" Ruddock tem soco, COln certeza, mas não sabe se defender. E depois, Holyfield subiu de categoria de peso com o limite mínimo, ele "tem muita fome". O gym é o antídoto contra a rua. Cada hora passada entre as paredes da academia é sempre uma hora subtraída do asfalto da avenida 63. Depois de dez anos de ringue, 16 vitôrias e um empa- te entre os profissionais, Lorenzo espera, em breve, estar se candidatando ao título mundial WBO entre os pesos meio-mé- dios. "Se não fosse pelo boxe", confia-me ele, hesitante, "não sei onde eu estaria ... Provavelmente em cana, ou certamente morto em algum lugar, nunca se sabe. Cresci num canto barra-pesada, então, para lnim, pelo menos, é bOln pensar no que vou fazer antes de fazer. Me proteger da rua, é isso aí. O gym é um lugar bacana para mim, um lugar em que vou todos os dias. Porque quando você está no gym, você sabe onde você está, não tem que se preocupar com as encrencas, nem de se defender dos tiros." E se o gym fechasse? Corre o boato, produzindo arrepios. A muni- cipalidade prometeu derrubar o cinema Maryland, que ocupa o prédio ao lado, uma carcaça de tijolos e de pranchas condenada desde meados dos anos 1970, quando o bairro branco e próspero de Woodlawn foi brutalmente transformado em gueto negro. Sim, e se o gym fechasse? Curtis nem quer pensar nesse assunto. "É Corpo e alma - 275 como tirar a casa das crianças. Você tem um bocado de jovens no bairro, sacou, que ficam zanzando na rua e vêm ao gym exata- mente para escapar da rua. E tem carinhas mais velhos que ten- tam parar com a bebida e com a droga, tudo o mais, e que vêm à academia tentar se desintoxicar. É como se estivessem tomando alguma coisa das pessoas daqui, do público. Isso não é possível. Tem um grande significado. Pra mim também ... Você está falan- do de me tirarem minha razão de viver, de tirarem o presente de Natal dos meus filhos, o alimento de suas bocas." O gym é também, e sobretudo, uma máquina de sonhos. De gló- ria, de sucesso, de dinheiro, é claro. Ganhar um milhão de dóla- res em uma noite ... Que importa se a bolsa dos pugilistas que são chamados de boxistas "de clube" não ultrapassa, a duras penas, as duzentas notas por uma luta de quatro rounds, mil dólares para um combate que encabeça um programa atraente, em dez rounds, e um pouco mais se o Telemundo, uma cadeia hispanófona da cidade, digna-se a deslocar suas câmeras. Quem sabe se, com for- ça de vontade, perseverança, sacrifícios e com conexões bem-fei- tas, talvez um dia ... Conta-se que Alphonso Ratliff ganhou esse famoso milhão, antes de se deixar demolir por Tyson em Las Vegas. A verdade é bem menos dourada: O maior cachê que recebeu não ultrapassou os trinta mil dólares, sem descontar a parte dos em- presários' do treinador, do cutman, do promotor, esse areópago que fervilha e multiplica-se desde que se começa a pôr a cabeça um pouco para fora. Estamos longe dessa conta. Curtis fala em reconstruir esse corredor do desespero que é a avenida 63: "Você vê esses edifícios queimados, todos esses terrenos baldios, as pes- soas sem trabalho e que se drogam. Quando eu for campeão do mundo, vou mudar tudo isso. Vou abrir lojas com grandes carta- zes de néon, um centro de desintoxicação, um serviço de emer- gência e depois um clube para os jovens." Quando eu for cam- peão do mundo ... Nada impede! Enquanto espera, o gym é uma máquina de re- tirar da in-diferença, da in-existência, e que anda a pleno vapor. Lembramo-nos do solilóquio de Marlon Brando, ex-boxeador que diza seu irmão, em uma famosa cena de On the Waterfront. "Você não entende? Eu poderia ter tido classe. Eu poderia ser um pre- tendente. Eu poderia ser alguém." Ser alguém, está tudo aí! Sair 276 - Lok Wacquant do anonimato, da má sorte, isso só dependeria do tempo de al- guns poucos rounds.(2) Um boxeador, no ringue, é um ser que grita, com todo o seu coração e com todo o seu corpo: "Quero ser alguém. Eu existo." Que morre de vontade de ser visto, conheci- do, reconhecido, nem que seja, em último caso, pelas pessoas da vizinhança, pelos amigos ou pelos garotos do bairro, como aque- les que brigam para carregar a mochila de Curtis e que seguem suas idas e vindas com olhares de admiração. Ser um role model, antítese e antídoto do dealerda droga que todo mundo conhece e inveja, ao mesmo tempo que o despreza, isso já é o bastante. Mas as Golden Gloves são muito mais que isso, elas são, por si mes- mas, uma galáxia. "Saca só, esse torneio é um título que todos os homens sonham ter, percebeu? É o sonho de uma vida! Golden Gloves! Você não sabe que você vai aparecer na televisão e tudo o mais? Man!" Curtis dá tapas frenéticos no peito de Chears. "Essa camiseta das Golden Gloves, você sabe o que ela tem de especial? Eu vou dizer pra você: você não pode comprar ela numa loja, você precisa ganhar ela no ringue." E das Golden Glove ao Caesar's Palace, com certeza, é só Wll passo. Mas o sacrifício não começa nem pára no limiar da academia. "O serviço no gym é a metade do trabalho. A outra metade é a disciplina: comer como é necessário, ir dormir cedo, levantar cedo para o footing, largar as mulheres de lado e tudo o mais - tomar cuidado com o teu corpo, é isso." Alimentação, sono, sexo: a santíssima trindade do culto pugilísticoJ DeeDee prescreveu-me um regime de peixe branco, peito de frango e filé de peru, acom- panhados por legumes cozidos e frutas, regados a chá e água na- tural. Evitar pão, açúcar, refrigerantes nem pensar. E se eu ainda tiver fome? Ele pragueja: "Ter fome, mas isso não quer dizer nada! Isso está na sua cabeça, não existe - é UIna cisma, é só." Mas pri- var-se na alimentação não é nada, comparado com a privação na (2) Segundo o paradigma dado por Tully. essa personagem pungente de Leonard Gardncr, F<lt City,5 levado à tela por John Houston no filme de mesmo nome. Como escreve Jean-François Laé, "somente o fato de subir ao ringue é uma promoção. A derrota não marca o homem com um ferro em brasa, bem longe disso. Ela não é temida, ela não é evitada a qualquer preço" .fi Corpo e alma - 277 cama. A mulher é o objeto de todos os desejos e de todos os terro- res. Afirma-se e acredita-se piamente que é preciso ficar sem sexo durante as longas semanas que precedem o combate, porque transar amolece, fragiliza, enfraquece. E com razão: "Quando você goza, você perde o sangue que vem da coluna vertebral." Ashante chama-me à ordem: "Agora você deixa a tua mulher em paz, Louie, só faltam três semanas para a luta." O pequeno Reese não é me- nos categórico: "Esse sexo é um monstro, mano Isso te mata, eu digo porque já experimentei." Fat joe, que, no ano passado, gaba- va-se de transar todas as noites f, como conseqüência prevista por todos, deixou-se esmurrar belíssimamente por ocasião de sua primeira luta, agora prepara-se com a seriedade de um papa: "Disse pra minha namorada: nem pensar! Espera até depois do torneio. Deixei de pegar esse serviço de 300 dólares por semana pra trei- nar pra valer e ganhar o título, então, não vou agora botar tudo a perder pra ficar com uma gata, não é?" Deplora-se a falta de con- tinência de Fred, um feixe de nervos e de ódio que se esfalfa irre- mediavelmente no segundo round. "É uma puta pena. O Fred, ele daria um bom boxeador. É espadaúdo, bate bem e sabe encaixar. Mas gosta demais de mulher..." Esse é, de longe, o sacrifício mais penoso. Anthony está senta- do atrás da lnesa de DeeDee, o tronco nu, a cara sombria. "Quer saber, Louie? Estou cansado. Que saco. Todos os dias boxear-suar, boxear-suar, boxear-suar, todos os dias! Estou realmente de saco cheio. Todos os dias, a mesma história. Isso não é vida." Seu olhar fugidio pára no teto. Não sei o que dizer, nunca o vira nesse esta- do, ele, que, de hábito, é transbordante de energia e treina com um afinco que beira a histeria. É que vai fazer cinco semanas que ele não toca na noiva, e vai lutar novamente daqui a duas sema- nas. "Não vou agüentar, Louie, não vou agüentar." Pior de tudo, ele tem medo que Bonnie, a doce Bonnie, vá buscar consolo na- tural nos braços de um outro. Resumindo: "Nem me fale dessas mulheres. Eu poderia te dar uma lista de boxeadores que foram enterrados pra sempre pelas mulheres, uma lista tão longa que ia cortar o teu coração."(3) (3) Declaração de Paddy Flood, treinador de Sugar Ray Leonard entre os ama- dores. R 278 - Lore Wacquant Vinte e nove de janeiro, começo meu primeiro mês de treina- mento intensivo com três frustrantes rounds com Ashante como sparring. Não consigo encontrar meu ritmo, nem conter seus ata- ques. Meus golpes são desajeitados, desordenados, precipitados, e Ashante não tem a menor dificuldade de atravessar minha guar- da para me encher o tronco de ganchos curtos. Ele contra-ataca com um tape-tape-tape e me atinge a garganta com uma combi- nação em pleno rosto: pum-pum! A cabeça voa para trás. Termi- no um tanto zonzo, semigrogue nos vestiários e deixo o gym exau- rido física e mentalmente. Digo a mim mesmo que nunca serei um boxeador, é melhor largar tudo agora mesmo. Cinco de fevereiro: uma hora de corrida com o cachorro, hoje de manhã, sob uma fina chuva fria. É uma verdadeira tortura esse roadwork, mas sinto-me mais resistente. Meu corpo habitua-se, pouco a pouco, com esse regime draconiano. Perdi quatro quilos desde o Natal, metade do caminho já está percorrida. Os conse- lhos e as broncas de DeeDee fazem -se mais vivos e mais consis- tentes à medida que se aproxima a data fatídica - o que é um bom sinal. Estou furioso com Aaron, que tentou arrancar minha cabe- ça durante três rounds. Suas direitas na parte de baixo do crânio fizeram-me ver estrelas. Consegui mandar-lhe uma esquerda na têmpora, mas sem conseqüências. É preciso que eu seja mais es- perto durante a luta com sparring, ou então não vou conseguir chegar lá. Debaixo do chuveiro, Ashante acalma-me e avisa-me de que vou entrar em pânico logo no começo: "No teu primeiro combate, você tem dois adversários: o cara que está na tua frente e o público. Às vezes, você fica tão impressionado que nem sabe o que fazer. Foi assim que perdi minhas duas primeiras lutas como amador. Eu estava tão deprimido depois que queria largar tudo." Dia D menos dez. A academia está cheia e fervilha como uma colméia. O ringue não esvazia durante duas horas. Faz-se ma para vestir as luvas. Os profissionais, "Machine Gun" Ashante, Loren- zo "The Stallion" Smith, o velho Smithie, Big Earl e mesmo "Rockin'" Rodney Wilson vieram expressamente para fazer tra- balhar os candidatos às Golden Gloves. A tensão aumenta a cada dia. "Boxhead" john ficou descontente; pode-se dizer que ele é um Marvin Hagler em miniatura, com sua cabeça raspada e seu famoso olhar. Faz dez anos que ele espera esse encontro, depois Corpo e alma - 279 que deixou o seu Alabama natal e calçou suas primeiras luvas no Exército. "Mighty" Mark Chears empapa sob o capuz, cheio de concentração, Rico luta como um velho soldado no saco de uppercut. Há uma semana não se vê Fred, mau sinal. Certamente está treinando com seus companheiros da gangue dos Discípu- los, em alguma parte na avenida 73. DeeDee pesa, com vagar, os emparelhamentos ótimos para o sparring. Primeiro, chama Rico, sonda Anthony, acalma Cliff, mede as diferentes combinações possíveis, antes de fannar os pares mais harmoniosos. Eu "luto» quatro rounds no ringue, dois com Reese e dois com Ashante, vigorosos, pugnazes. Meus golpes saem certos, consigo melhorar a defesa. Completo a sessão com três rounds no saco de bater, três na jab-bag, três pulando corda e uma série mortal de abdominais. Com o corpo dolorido, tomo uma ducha em companhia de Smithie: "Na véspera da tua luta, não fique de pé, permaneça o máximo possível na cama ou alongado num sofá, para não cansar as pernas. Fique preguiçoso e relaxe. Isso é superimportante: ago- ra você está cheio de energia, é preciso conservá-Ia até a luta. Não desperdice energia." Dia D menos um. Tempestade no céu do gym. "Você ainda não ouviu a novidade, Louie?", interpela-me O'Bannon, o cartei- ro bonachão que nos acompanha à pesagem em seu microônibus. Que novidade? Tyson deixou-se esmurrar por "Buster" DougIas! O quê? "Iron" Mike Tyson, o invencível, esse Tyson que parecia tão pouco humano de tanto que aterrorizava os adversários antes mesmo que eles subissem ao ringue, esse cara, na lona, acabado, liqüidado? Mesmo os que assistiram ao combate, ontem, bem tar- de) por mna cadeia paga, custavam a acreditar. No entanto, não houve nada de misterioso: "Tyson got his ass whipped. Isso vai dar uma boa lição nele: você não brinca com a ciência do boxe. Você viu a gordura que ele tem nas costas? Não estava preparado, não treinou com seriedade, freqüentava prostíbulos." Anthony aper- ta, com deleite, a minha mão com um desses soul shakesdos quais ele tem o segredo: "Alright, Louie vai lutar amanhã à noite!" Pode- se pensar que ele espera o meu combate com mais impaciência que os dele próprio. Alguns minutos mais tarde, Nelson Mandela emerge de 23 anos de cativeiro para todas as telas de televisão do mundo. Ereto, soberbo, explodindo de dignidade. O negativo de 280 - LoTe Wacquant I Don King, que gesticula e espuma de Tóquio, tentando conven- cer uma imprensa incrédula de que Tyson, humilhado até a raiz dos cabelos, foi vítima de um erro de arbitragem. A pesagem, em um ginásio do North Side, tem alguma coisa de irreal e cômico. A cena apresenta toda uma combinação de circo, de museu de anatomia e de matadouro: essa carne huma- na, imprensada em camadas moventes em um subsolo sem aber- tura para fora, tem algo que faz temer e rir ao mesmo tempo. Todos os tamanhos, todas as cores, todas as formas, todos os ga- baritos estão representados. Há baixinhos massudos que só usam os óculos escuros e o calção, lançando olhares coléricos a seus adversários potenciais. Um porto-riquenho engordurado, com uma cara de leitão rodeada por longas suíças e cabelos oleosos, balança de um lado para o outro completamente nu, com seu minúsculo sexo ao ar livre, para grande prazer de seus compa- nheiros, que explodem de rir, espremidos contra a parede. Um grande peso pesado da cor de ébano exercita seus músculos, im- pávido, enquanto espera para subir na balança de metal. Dois superligeiros da cor de café com leite conversam ao meu lado, com um jeito de contadores desgarrados, enquanto um branco com a barriga flácida exibe um enorme calção dentro do qual pa- rece estar escondido um gordo esquadro. Rico, James e Mark já se pesaram e vestiram. Agora, estou na balança. Cento e trinta e sete libras. Foto. De volta, no carro, contam-me que os pais de Rico e de Reese passam tanta necessidade que, por vezes, não têm o que comer em casa. DeeDee inquieta-se para saber se Rico vai poder lutar de barriga vazia. Tenho vergonha de estar entre eles, de querer boxear por curiosidade instruída e por espírito de jogo. É no domingo, depois do almoço, que fico cada vez mais ner- voso, pensando na luta. Subitamente, sinto-me fraco; uma dor de barriga vaga me enlouquece. Aborreço Liz perguntando-lhe a todo instante que horas são. Tenho a impressão de que peguei um res- friado: dor no pescoço, nariz escorrendo, boca pastosa, estou mole e sem forças. Tomo um longo banho quente e tento acalmar-me atacando os chocolates recheados com menta, biscoitos Peperrideg Farm e um sorvete. Isso só faz agravar meu mal-estar, porque sei muito bem que tudo isso é péssimo para meu organismo. Agiote parece dar um nó, uma angústia difusa invade-me. Corpo e alma - 281 Entre o circo, o museu de anatomia e o matadouro: Big James sobe na balança, seguido por Rico; "Busy Louie" faz fila para se pesar. Acordo, no dia seguinte, às onze horas. Dormi como um lei- tão e mal posso crer que vou subir ao ringue hoje à noite. Eu? Esforço-me para engolir um peito de peru e uma laranja, cerca das quatro horas. Sinto-me, ao mesmo tempo, calmo e tenso, e regurgito energia. Encontro na academia para ir em grupo ao Saint Andrew's Gym. Cada qual me acolhe com uma palavra de enco- rajamento. Sóbria e sem brincadeiras. Estranhamente, longe de 282 - ldic Wacquant ficar arrasado e intimidado, a idéia de ser um dos portadores das esperanças do Boys Club acalma-me. "Hey, Louie, o Bombardei- ro Francês,(4) você vai ganhar esta noite!" DeeDee não brinca com nada, como sempre. "Você está pronto, Louie, você tem tudo? Bandagens, coquilha, protetor bucal?" Ele remexe o fundo da sa- cola e retira uma pequena garrafinha amarronzada, antes de pe- gar dois cotonetes de uma bolsinha de couro. Com gestos de ci- rurgião, molha delicadamente um dos cotonetes no frasco e es- tende-o para mim: "Enfia isso nas narinas, bem fundo, e pincele toda a volta." O cheiro é forte, mas nada desagradável. A adrenalina refresca minhas cavidades nasais; essa pasta vai impedir que meu nariz sangre muito. Ao sair, recebo ainda os últimos encoraja- mentos, os de Alphonso, que termina de se vestir diante do armá- rio, com gestos de carniceiro: "Você vai dar uma desenferrujada em alguém esta noite, man." Ou, então, levar uma desenferrujada. Há muita gente circulando, por causa da tempestade de neve que caiu sobre a cidade, e levamos cerca de uma hora para chegar ao Saint Andrew's Gym. A onda de medo sobe à medida que che- gamos perto. Uns acalmam os outros como podem, rindo ou exa- gerando o medo. Mas, uma vez chegados ao cruzamento de Addison com Paulina, começa o refluxo, e pinta uma irreprimí- vel vontade de lutar. Entramos no grande hall. Quatro dólares a entrada, um dólar o cachorro-quente e o copo de cerveja. O ven- dedor de camisetas e flâmulas com a efígie de Tyson lamenta-se por trás da bancada: o valor de seu estoque afundou-se, depois da derrota de seu ídolo em Tóquio. O público familiar e bem-com- portado (oitocentas pessoas, talvez, contando os pugilistas e sua entourage sempre numerosa) relativamente poucos negros, uma pletora de hispanófonos, mexicanos e porto-riquenhos, brancos com o ar miserável) veio para se distrair ou para ver um bom boxe. Porque os combates são vistos de modo diferente, segundo a divisão: os boxeadores "noviços", pela comédia, seus confrades da categoria" open", pela técnica e pelo "coração". E quando sur- ge um "animal", ri-se às gargalhadas. Os profissionais são os mais (4) Referência ao apelido de Joe Louis, nos anos 1930-1940, "O Bombardeiro de :t.bano" [The BrOW11 Bomber]. Corpo e olmo - 283 difíceis de se satisfazer. Dois combatentes medíocres assumem poses afetadas, e logo Ashante chama-os à fala, com sua voz gros- sa: "Vamos nessa, babacas! Vamos mexer aí em cima do ringue!" Verificação da licença, simulacro de exame médico, chama- mento à mesa dos oficiantes para receber um par de luvas novas, tudo acontece muito rapidamente, e não tenho o menor tempo de ficar preocupado. Vou lutar em oitavo lugar, depois de Fred e Chears e antes de Big James. Na sala nua que serve de vestiário improvisado, os boxeadores trocam de roupa em silêncio, exi- bindo uma máscara de ansiedade no rosto que eles tentam, por vezes, dissimular sob um fino verniz de bravura e de falsa segu- rança. Meto minha coquilha dura debaixo da bermuda preta, as longas meias vermelhas e as botinhas brancas e o casaco azul do "Ringside", que Ashante me deu. Smithie se oferece para bandar minhas mãos com os handwraps azuis com velera que DeeDee entregou a ele. Ele executa os gestos com uma precisão de enfer- meira maternal, assegurando-se, a cada passada, que o tecido está bem esticado, nem muito apertado, nem muito frouxo. Passa vá- rias camadas sobre a aresta do pulso e envolve cada dedo separa- damente. "Agora fecha a mão, está bom?" o exame médico "de minuto". 284 - lok Wacquant A espera angustiada e angustiante nos vestiários. Já está na vez de Fred. Curtis "levanta o astral" dele de uma vez por todas, antes da subida ao ringue: "Don't forget you're from Woodlawn, nigger!" Fred está assustadoramente nervoso, mas sobe, atabalhoado, na cola do adversário, um jovem mexicano atarra- cado, que ele castiga durante dois rounds como um selvagem. No terceiro round, ele parte velozmente com direitas e uppercuts, com o máximo de aproveitamento. Curtis está abraçado ao poste do ringue, de onde berra loucamente: "Come on,jight, motherfucker, jight!" Uma última enfiada de ganchos e diretos desordenados e Fred consegue uma vitória gritante. DeeDee e Eddie rejubilam-se discretamente, e todo o Woodlawn com eles. Tive a péssima idéia de perguntar ao oficial que amarra mi- nhas luvas se meu adversário está ali. "Coa per? Está, é aquele lá." Magro, ele é um grande negro com a musculatura felina. Deve ter bem um metro e oitenta e cinco, com longos braços moles como um cipó e pernas finas que saem retas de seu calção impecavel- mente passado. Dois negros patibulares, cinqüentões atléticos, fazem massagelTI em seus Olnbros, murmurando em seus ouvi- dos sei lá que estratagema dissimulado. Logo digo a mim mesmo: "Merda, esse cara sabe boxear! As sapatilhas! As sapatilhas! Elas custam pelo menos 60 dólares, ele não teria essas sapatilhas se Corpo e alma - 285 r I não soubesse boxear pra valer. Shit, vou levar uma surra!" Mas recomponho-me em seguida, pensando nas horas de treino com sparring no gym: esse camarada não é mesmo melhor que o Ashante ou o Lorenzo, não? Aqueço-me fazendo shadowno fun- do do ginásio, sob uma imensa bandeira estrelada, sempre rodea- do de gente. Eddie fala para eu relaxar bem, Ashante e Smithie ficam perto de mim, soprando-me alguns conselhos. Estou com uma pressa danada de subir ao ringue para o momento tão espe- rado e tão temido durante todas essas semanas. Não decepcione! A partir daí, tudo acelera-se e funde-se em minha memória. Só recordo-me de fragmentos que são difíceis de reunir. Estou muito concentrado, muito tenso. Eddie molha meu mouthpiece COln o líquido de uma garrafinha e mete-o em minha boca, antes de esguichar água fria no fundo de minha garganta, que está ter- rivelmente ressecada. Terminou, agora é comigo, dessa vez é para valer! Babei tanto naquele maldito gym que só tenho uma vonta- de: lutar. Tropeço com DeeDee ao pé do ringue. Ele envolve-me com um olhar paternal, severo, mas cheio de afeição; nenhuma palavra escapa entre seus lábios apertados em um sorrizinho im- passível. Com meu punho enluvado, bato no punho fechado que ele estende para mim, para cima e para baixo. Meu coração está tremendamente quente. Subo rapidamente a escada, enquanto Eddie dobra seu tórax roliço para separar as cordas, à minha pas- sagem. Os projetores suspensos sobre o ringue são cegantes. A voz do locutor, John Bo11ino, um oficial do Exército norte-americano aposentado, recita a identidade dos combatentes, com trêmulos dramáticos: "Busy Louie" contra Larry Coa per. Fico alucinado ao ouvir meu nome seguido por uma explosão de aplausos que avançam em minha direção, partindo das grades contra as quais se apertam meus colegas do gym. Saltito nervosamente, soprando o ar, com o olhar fixo sobre o córner oposto, onde meu inimigo de uma noite agita seus membros filifonnes e gira os dois pulsos no ar. "Ao trabalho, Louie!" E eis-me sozinho no ringue. Passa, na minha cabeça, um filme dessas longas semanas de espera, de tra- balho árduo para chegar até aqui. Talvez seja por inconsciência, mas o fato é que não estou sentindo o menor medo. Estou decidi- do e raivoso. Cus D'Amato, o legendário treinador e "inventor" 286 - Lo"ic Wacquant "Busy Louie" saudado por DeeDee e encorajado por Ashante e Le Doe, no momento de subir ao ringue. de Mike Tyson, dizia que "o boxe é um esporte de self-control. Você tem de conhecer o medo para dominá-lo. O medo é feito o fogo. Você pode usá-lo a seu serviço."9 O referee, um mexicano barrigudo com uma cabeleira vigorosamente emplastrada, cha- ma-me para o centro do ringue, para as últimas instruções. O gongo que marca o início do assalto bate. Avanço resoluta- mente para Cooper, que estende para mim os dois punhos jun- tos, os quais toco com as luvas, antes de atirar-me sobre ele. Jabe, jabe, jabe, direita. Cooper tem a vantagem da altura e responde- me COIn vivacidade, batendo. Levo um direto no meio da cara, o que não me impede de contra-atacar, «bombeando" lneu jabe. Os gritos da platéia misturam-se com a tempestade de golpes lan- çados e recebidos, em uma rapsódia louca. Com as luvas de com- petição, mais leves e menos acolchoadas, os punhos fendem o ar e os golpes são mais fortes. São claramente mais fortes! E esse puto do Coa per bate duro. "Mãos no ar, mãos no ar, Louie, mãos para cima!", esgoela-se Smithie. Disparo uma bateria de diretos bem encadeados. Coa per prontamente recua e evita meu gancho de esquerda, antes de me atingir com uma marretada no meio do nariz que faz com que eu me sinta liqüefeito. Logo que nos apro- ximamos, ele fecha meus punhos com esses tentáculos que usa Corpo e alma - 287 como braços, frustrando minhas veleidades de trabalho no cor- po. Ataco novamente com um jabe no tórax e, de repente, BUM! Está tudo girando, o ringue aderna, as luzes do teto ofuscam-me e ... quando volto a mim, estou de bunda no chão. Tenho a im- pressão de que levei uma granada no meio da cara! Não vi nada acontecer. De pé, em um segundo. O árbitro pega meus punhos, que ele enxuga COln seu suéter cinzento. e faz-me recuar para o córner neutro. Ele irrita-me, atirando-se sobre mim com sua gran- de boca mole que conta, com um inglês cantante: "Três, quatro, cinco ... " Merda, ele continua contando, e eu já estou de pé) fui posto em knock-down. Estou terrivelmente envergonhado. "Está bem, está bem, estou okay, isso não foi nada!" Com o canto do olho, vigio Cooper, que está soprando no seu córner. logo-me de novo sobre ele, jabe contra jabe, e, por várias vezes, tento vencer sua guarda. Ele pendura-se em mim, maltrata minhas costas. Res- pondo com uma bela direita no plexo. "Break!" depois "Box!" Troca de jabes e de diretos. "Dingue!" O gongo interrompe nos- sos movimentos. Fartos aplausos. Volto para meu córner, onde Eddie já colocou o banquinho. O mais assustador de tudo isso é que ... não estou nem um pouco assustado! Estou com uma pinta de veterano dos ringues quando Eddie retira o protetor bucal avermelhado e lava-o em um ins- tante. "Como é que você está?" "Bem." Nem ao menos perdi o fôlego. Distingo a cabeça de DeeDee à minha esquerda, na extre- midade do ringue, C01TI seus óculos grossos e sua boina preta en- fiada na cabeça, falando- me com uma voz doce: "Você está muito longe, precisa dar dois passos pra frente. Bloqueia a direita e che- ga mais pra perto. Fecha bem o punho e não fica crispado, você está se virando bem." Gargarejo, antes de cuspir a água no balde de Budweiser que está entre as minhas pernas. Toca o gongo de advertência, os auxiliares de córner descem do ringue. Cooper está de novo na minha frente. "Dingue!" Segundo round. Reto- mamos nossas manobras, mais rápidas e mais fortes. Nada de tem- po para pensar. Meu rosto tumefacto lateja e está molhado de suor. Boxeio "instintivalnente" e acentuando a pressão, como em um filme acelerado, em que todas as sensações fossem exagera- das. Os punhos de Coa per parecem ser de aço temperado quando me tocam. Tento vários ganchos de esquerda em seguida ao jabe, 288 - LoTe Wacquant •• X" t ~ _______ • ---'.j ------ f "Busy Louie" vs. Larry Cooper. Corpo e alma - 289 ~ I ;1 1 sem muito sucesso: meus golpes fendem o ar, porque o alvo pron- tamente dera um passo atrás. Mas mantenho a ofensiva e man- do três esquerdas que acertam o alvo. "Manda o primeiro! Não espera! Combinação!" Lembro-me, com clareza, de uma ampla esquerda no tórax que me corta a respiração quando eu estava saindo de um clinche. Então, deslizo ao longo das cordas, dan- çando, para recuperar o fôlego e evitar os diretos de Coa per. "Dingue!" Fim do segundo assalto, volta ao córner. Mesma ma- nobra no banquinho, onde, desta vez, tento recompor minha respiração. Eddie puxa o elástico do meu calção, para desaper- tar meu ventre. "Respire fundo, mais uma vez, vamos, Louie, vá ganhar ele pra nós!" lÔ a reta de chegada: atiro-me sobre Cooper e ataco sem refres- co. Levo muitos golpes, lnas também mando meu bocado, e os gritos superexcitados da minha torcida aumentam essa excitação. Estamos os dois cansados, três minutos no ringue são uma eter- nidade! labe, jabe, direita, jabe duplo, estou bem "busj'- pelo menos tere; feito por merecer meu nome de guerra! Quando Eddie urra "Trinta segundos!", estou batendo tantas vezes quantas meus punhos permitem. Cooper, surpreso, tenta manter a distância, esticando o braço esquerdo com a mão aberta como uma forqui- lha. Bruscamente revigorado, consigo, afinal, vencer a guarda dele e mando-o de costas às cordas, bem perto do meu córner. labe, ganchos com as duas lnãos, no corpo e na cabeça, «over and under'. Gol! Está correndo tudo bem. Woodlawn ulula de felicidade. Cooper tenta empurrar-me e depois refugia-se atrás das luvas. Bato o mais depressa possível: fazer pontos, depressa, fazer pon- tos! Quero mandá-lo a nocaute. Ele debate-se, pendura-se em mim e, por sua vez, bate-me no corpo. Eddie e Ashante quase pulam sobre o ringue, em delírio: "Com as duas mãos, com as duas mãos! Por baixo, mais uma vez, por baixo." Estou com falta de ar e des- vio de um jabe raivoso, antes de cair de novo sobre o Cooper com uma direita que ele bloqueia com as luvas. "Dingue!" Fim do ter- ceiro round e da luta. Li-qüi-da-do. Abraçamo-nos rapidamente, tronco contra tronco, e batemos os punhos, antes de voltarmos para os respectivos córneres. Eddie aperta-me febrilmente os ombros e retira meu capacete com gestos excitados: "You fought a helluva fight, Louie, a helluva 290 - LoTe Wacquant fight!" DeeDee está todo sorrisos, Ashante e Smithie proclamam a minha vitória. OOOba! Estou vazio, incrédulo, orgulhoso, ar- rasado, assustado, aliviado, feliz, é isso aí. Mil emoções agitam-se elll mim. Terminei inteiro, o que não é tão mau assim - esse mal- dito Coa per batia como uma britadeira (mais tarde, eu iria saber que ele já contava com nove vitórias por uma única derrota). Tudo foi tão rápido, tão rápido. Estou, sobretudo, gratificado por ter honrado o gym, cuja reputação é tão invejada pelos outros clubes. O árbitro chama-me para o centro do ringue. Bollino lê o vere- dicto dos juízes, com sua voz cavernosa: "E nosso vencedor, por pontos, no córner vermelho, de Bessemer Park, Larry Coooopeeer! Larry Cooper..." As vaias do público abafam o anúncio, os asso- bios aumentam. "Uuuuu! Uuuu! Bullshit!" Smithie e Eddie voci- feram para os juízes. Cumprimento Cooper, que está radiante de satisfação: "Boa luta, cara, boa luta, boa sorte da próxima vez." O árbitro faz sinal para que eu desça do ringue. Um oficial rapida- mente desamarra minhas luvas e estende-me meu passbook, que traz a menção recém-escrita: "Derrota: Cooper, por decisão". Es- tou com uma enorme vontade de rir de tudo isso. Liz, Eddie, o Woodlawn 80y5 Club vitorioso: Big James e "Míghtj' Mark exibem orgulhosos suas copas, rodeados por Eddie e DeeDee. Corpo e olma - 291 Olivier. Ivan. Rico. Ashante. Aaron. Reese. Mark. o velho Scottie e seu hálito de vinho apertam-se à minha volta: "Man. você ga- nhou esse cOlnbate, esses babacas roubaram!" DeeDee está com uma calma olímpica: «Pra mim, você levou esse combate e com justiça. com essa saraivada do último round. Eles 'contaram você em pé'. o cara não se defendia." (Acho que ele está mesmo é alivia- do de que eu não tenha me machucado; Ashante iria me contar que ele hesitara até o último instante em deixar-me subir ao rin- gue: "Não quero que o Louie se mate.") Liz abraça-me. perdida de emoção: "Lo. Lo! Você lutou feito um leão. eu não estava acre- ditando no que eu estava vendo." Nem eu! Estou espantado como tudo aconteceu tão rápido. Olivier e Eddie insistem para que eu ponha gelo sobre o olho e o nariz. que incham de maneira inquie- tante. Liz vai colocar gelo em um saco. no bar. DeeDee finalmen- te desabafa.: "Boxing is never Jun. Subir ao ringue não é pra se divertir. É depois do combate que a gente se diverte." No dia seguinte ao do combate. despertar doloroso. Dormi como um justo e não me lembro de mais nada da luta. Será que sonhei? Sinto-lne doente, fisicalnente esvaziado, como um limão espremido do qual só resta a casca amarelada e murcha. O espe- lho devolve-me a imagem de uma face tremendamente inchada. Meu olho esquerdo. parcialmente fechado pelo direto que me le- vou à lona no primeiro round. está ficando acre e arroxeado. Nada bonito de se ver. A ponta rosada do meu nariz dobrou de volume: apalpo-a delicadamente para ter certeza de que não o quebrei de novo. Um corte rodeia o supercílio esquerdo. O lábio inferior também está inchado, roxo e com uma equimose na comissura, sempre do lado esquerdo. E sinto dificuldade de respirar fundo. por causa das costelas. que estão moídas. Não. não há dúvidas. eu não sonhei. Mas todos esses males evaporam. na minha volta triunfal ao gym. Pareço um soldado que retoma à caserna depois de ter esta- do no Jront. pelo modo como sou brindado com apertos de mãos. sorrisos, piscadelas, tapas nas costas, clllnprimentos e comentários indignados sobre a arbitragem. "Você foi muito gatunado. Louie!" Surpreendi todo mundo no ginásio - a começar por mim. De agora em diante. sou definitivamente um deles: "Yep. Louie's soul brother." Ashante pergunta-me. com vivacidade. sobre minha 292 - Lo'ic Wacquant próxima luta. quando DeeDee corta o barato: "Não vai ter próxi- ma vez. Você teve a sua luta. Agora. você já tem material demais pra escrever esse maldito livro. Você não tem a menor necessida- de de subir ao ringue, é isso aí." Notas 1. Joyce Carol Oates. On boxing. Garden City: Doubleday, 1987; trad. franco De la boxe. Paris: Stock, 1988. 2. Por exemplo, Pete Hammil. Boxers. Nova York: Bantam, 1977. 3. Esse trabalho de fabricação corporal do habjtus pugilístico é destrinchado em Loic Wacquant. "Pugs at work: bodily capital and bodily labor among professional boxers, Body and Society, v.!, n. 1, março de 1995, p. 65·95. 4. Loic Wacquant. "Protection, discipline et honneur: une saBe de boxe dans le ghetto américain". Sociologie eC Societé, v. 27, n. 1, primavera de 1995, p. 75·89. 5. Leonard Gardner. Fat cicy. Nova York: Vintage, 1969. 6. Jean·François Laé. "Chausser les gants pour s'en sortir". Les Temps Moderlles, n. 521, dezembro de 1989, p. 129. 7. LolcWacquant. "Sacrifice". In Gerald Early Corg.). Bodylanguage: Graywolf Fonlm Two. Saint Paul: Minnesota: Graywolf Press, 1998, p. 47·59. 8. Paddy Flood, citado por Sam Toperoff. Sugar Ray Leonard and other noble warriors. Nova York: McGraw-Hill, 1987, p. 32. 9. Citado por José Torres. Fire 811d fear: the jnsidestoryofMike TyS011. Nova York: Warner Communication Books, 1989, p. 60. Corpo e alma - 293 -=!J@ Loi'c Wacquant Corpo e alma Notas etnográficas de um aprendiz de boxe TI~AnU(,;Ao Angela Ramalho RELUME ~ DUMARÁ Rio de Janeiro 2002 Título original: Corps et âm~ - Carnets ethnographiques d'un apprenti boxeur © 2001 - Éditions Agone, Marseille, France © Copyright 2002 Copyright da tradução com os direitos cedidos para esta edição à DUMARÁ DISTRIBUI!lORA DE PUIII.ICA</JES LTIli\. www.relumedl1mara.com.br Travessa Juraci, 37 - Penha Circular 21020-220 - Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2564 6869 Fax: (21) 25900135 E-mail: relumc{[11 relumedumara.com.br A Elisabeth, pelos nossos anos juntos em Chicago Revisifo CLllldia Rubim BditOfi:1Ção Dilmo Milheiros \ As fotos deste livro foram tiradas pelo autor, exceto as fotos das páginas: 149, de Michel Deschamps; 257, de Olivier Hennine; 270 e 289, de Jimmy Kitchen; 282, de Mark Chears; 287, de Ivan Ennakoff; 294, de Jim Lerch. CIP-BrasiL Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Wacquant, Loi"c J. D. Corpo e alma nOli\S etnográficas de um aprendiz de boxe I Loi"c W'1Cquant I tnldução Angcla Ramalho - Rio de Taneiro : Relume Dumará, Wl19c 2002 Tradução de: Corps ct âme : c,lrnels ethnographiques d'um apprenti boxeur ISBN 85-7316-281-3 1. Boxe - Aspectos s(Kiais - Chicago (Estildos Unidos). 2. Wacquant, Lo"ic J. D. I. Título. Il. Título: Notas enogrMicas de um aprendiz de boxe. CDD 796.83 CDU 796.83 02-0868 Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei nO 5.988. ... ............... . .............. . . .. Um trabalho de percepção.......... ... ....... ..... ..... ............. ............ .. .. . . .. ... ... . . ... 147 Curtis: "Posso ganhar um milhão de dólares numa noite" . ......... A escolha do parceiro .... 19 A RUA E O RINGUE .. .... .... ..... 120 O chefe de orquestra ..... 97 I.. . ... ............ . . .. ... 100 2.. ............... 155 Algumas fíguras da gestão do corpo . . 83 A iniciação... ....... Uma violência controlada .... 59 Os jovens que "venceram a rua)) . ...... . .... ....................Sumário PREFÁCIO À ElJIÇÁü HRASILEIRA o SABOR E A DOR DA AÇÃO . . ... .......................... 107 Sessão de sparrillg com Ashante .... ... . ..... ...... ......... 90 Lógica social do sparrillg ...... .. .. .. ........ 35 Um templo do culto pugilístico ..... ................... .. .. ... .. .. 11 PROLOGO .. ... ....... . ...... 78 O trabalho nos pads .. .... 138 Administrar seu capital-corpo . .... . ..... 166 Corpo e alma - 7 .. de emoção e físico ....... ................ . 60 Aki~Dm ..... 152 Butch: "Agora não posso deixar cair a peteca" ... .... M Uma prática sabiamente selvagem .. .......... . ..... .. ... . .... 31 Uma ilha de ordem e de virtude .. .. ........ . lOS Uma pedagogia implícita e coletiva . . 50 As promessas do boxe... 102 3. . ... .. ....................... . . ..................... ............. ...................... . . 125 Uma aprendizagem visual e mimética .. ...prisioneiros... 189 "Você nunca pode subestimar um boxeador" ................ Não "acreditar".... nada mais do que se sabe....... Não acreditar que se sabe porque se viu............. 211 "São otários" ... Não se deixar levar.... que se torna significativa. 241 Abram alas para as dançarinàs exóticas ... Asylum................. e eu paro de beber" ...................... [......... .... 1961 Dificuldades objetivas........... 236 Strong vence Hannah com nocaute técnico no quarto assalto .... pilotos ou pacientes ............................................. ] A objetividade deve ser buscada tanto na exposição como na observação............ Escolher bem os informantes. primitivos....... 206 Bem-vindo ao Studio 104 .. MARCEL MAUSS........ 1950 8 - Lore Wacquont ..... 230 "Eles mesmos se classificam" ...~_............... Dizer o que se sabe... 200 Uma tarde de ansiedade .... malandros e mergulhadores" .. 181 A pesagem no Illinois State Building ..... minha mulher......... meu amor" ........................ 215 "Sempre quis ser um artista de palco" .... 179 "Você tem medo que eu me ferre.......... 218 "Eles estão tremendo de medo" ... Perigo da observação superficial... porque você já se ferrou" .... racional e normal assiIn que nos aproximamos dele. ...... ERVING GOFFMAN..... 252 "Você derruba mais dois caras... 224 Preliminares lastimáveis ... 226 "Sou como alguém que vende e compra ações na bolsa" ............ Procurar viver na sociedade indígena. 187 "O boxe é minha vida... não fazer qualquer julgamento moral... 224 "Aventureiros......... tudo o que se sabe...UMANOITADANOSTUDIO 104 .. Não se espantar... Manual d'ethnographie..........................desenvolve uma vida própria....... 271 Todo grupo de pessoas ....... 202 O destino macabro dos companheiros de infância ................... 259 "BUSY LOUIE" NAS GOLDEN GLOVES ....... em contrapartida. um ser de carne. nada como a imersão iniciática e mesmo a conver- são moral e sensual ao cosmo considerado como técnica de observação e de análise que. Para tanto.PREFÁCIO À EDiÇÃO BRASILEIRA o sabor e a dor da ação Nihil humanum alienum est. quando não os suprimem completamente. em graus diversos de visibilidade. ele contribui para fazer. o som e a fúria do mundo social que as abordagens estabelecidas das ciências do homem colocam tipiCaInente em surdina. o fato de que o agente social é. particu- lannente espantosa no caso do pugilismo. de decodificação e de escritura capaz de capturar e transmitir o sabor e a dor da ação. A sociologia deve se esforçar para capturar e restituir essa dimensão carnal da existência. é O homem vivo mais célebre e celebrado do planeta .. mais do que o próprio Pelé. tanto no plano teórico quanto metodológico e retórico. com todas as fibras de seu corpo e de seu coração.quanto desconhecido em sua realidade prosaica. por todos e por todas. com a condição expressa de que ela seja Corpo e alma 11 .Mohammad Ali sem dúvida alguma. este livro é também uma experimentação científica. Baruch Spinoza E spécie de Bildungsroman ~ociológico-pugilístico que retraça uma experiência pessoal de iniciação a um ofício do corpo tanto mais reconhecido por sua simbólica heróica . um "ser que sofre" Ueidenschaft1*h<. dizia o jovem Marx em seus Manuscritos de 1844) e que participa do universo que o faz e que. Ele desejaria fornecer uma demonstração em atos da fecundidade de uma abordagem que leva a sério. de nervos e de sen- tidos (no duplo sentido de sensual e de significante). através dejlln trabalho metódico e minucioso de detecção e de registro.Wesen. mas na verdade partilhada. antes de mais nada. e mas do qual eu não tinha a menor percepção prática. quando ele expunha sua miséria arrasadora sob minha varanda (literalmente. ouvir e tocar de perto a realidade cotidiana do gueto norte-alnericano. ata-os com mil laços de cumplicidade. diante de um triplo desafio. assim sendo.$tências e as ~petên­ cias que tornam o agente diligente no universo considerado.teoricmnente instrumentada. os define. no sentido de pertencer ao mundo. sua sensibilidade e sua inteligência encarnadas no cerne do feixe das forças materiais e simbólicas que ele busca dissecar. para melhor penetrar até o âmago dessa "relação de presença no muno do. aquele que ninguém quisera. neologismo bastardo que permite comodamente evacuar a dominação branca e a imperícia das au- Seria no entanto artificial e enganoso apresentar a pesquisa da qual este livro fornece um primeiro relato de predominância narrativa (como prelúdio e primeiro passo de uma segunda obra mais explicitamente teórica) como se ela estivesse animada pela vontade de provar o valor da sociologia carnal e de comprovar concretamente sua validade. somente a dois blocs [passos 1de minha casa. que nós "aprendemos pelo corpo". de ser possuído por ele. por assim dizer. Aterrissei na academia de boxe de Woodlawn por engano e por acaso. Se é verdade.=!üjr as ap. em toda a medida do possível. 1 e que. por razões ao mesmo tempo éticas e epistemológicas. seu próprio organismo. Isso quer dizer que os boxeadores têm.ªº·)n situ. focalizando a atenção sobre a ecologia dos bairros pobres e o comportamento "anti-social" de seus habitantes. E desde a primeira seção dei início a um diário etnográfico. éticos. mas também a partir do próprio corpo como instrumento de investigação e vetor de conhecimento (fram the body). de estar no mundo. por curiosidade e porque estava evidente que aquele era o único meio aceitável de treinar ali e de me encontrar com os jovens do bairro. tendo crescido em uma família de classe média de uma pequena cidade do sul da França. balizado. como tais. a começar pelo conceito de L/lldercJass. porque estava justamente situado na linha de demarcação do bairro negro de Woodlawn. mais fortes ainda porque são invisíveis. cujo estudo eu empreendera.2 1\. Estava na época procurando um ponto de observação para ver.' Após vários meses da busca infrutífera de um lugar onde me imiscuir para observar a cena local. os acontecimentos. aqui. pelos telefones brancos que permitem que se façam chamados de urgência para as viaturas da polícia privada da universidade. e que por muito tempo permaneceu confusa e obscura para mim. sem desconfiar nem um minuto que iria permanecer na acadelnia mais de três anos e que. no entanto. deve pennitir ao sociólogo apro- colaboração estreita com o eminente sociólogo William Julius WilS0l1. então impõe-se que o sociólogo submeta-se ao fQ~o ga aç. mas situado em um outro planeta. no sentido de objeto (o inglês fala ofthe body) . É que uma vez ingressado no Woodlawn Boys Club encontrei-me confrontado com meu corpo. a cada cinqüenta metros. é claro. Porque na realidade foi o inverso que aconteceu: é a necessidade de compreender e dominar plenamente uma experiência transformadora que eu não desejara nem previra. caso necessário). na qual nem o agente nem o objeto estão postos como tal". Pareceu-me de imediato impossível. O primeiro era bruto e até mesmo brutal: será que eu seria Corpo e alma 13 . porque recebera da Universidade de Chicago exatamente o último apartamento disponível em seu parque de alojamentos. estéti- ) cos e conativos que põem em op~ração cotidiana aqueles que o habitam. mas também e principalmente sobre nós mesmos. que ele coloque. e que "a ordem social inscreve-se no corpo por meio desse confronto permanente. mais ou menos dramático. que ele se arvore a adq. escrever sobre este South Side sem nele realizar meus passeios sociológicos. como afirma Pierre Bourdieu. castas e Estado na metrópole norte-americana parecia-me estar formigando de falsos conceitos que lançam uma tela sobre a realidade do gueto que projeta o senso comum racial (e racista) da sociedade nacional. durante horas. que me levou a tematizar a necessidade de uma sociologia não somente do corpo. priar-se na e pela prática dos esquemas cognitivos. por convite e em 12 Lo'ic Wacquant toridades do front social e urbano. um amigo francês e judoca levou-me ao gym da rua 63. muito y a 110S ensinar sobre o boxe. mas que sempre abre um grande espaço para a afetividaxde". E porque a sociologia normal das relações entre classes. iria acumular duas mil e trezentas páginas de notas brutas em que elÍ anotava religiosamente. a cada noite. as interações e as conversas do dia. Matriculei-me imediatamente. aos dois. que eu o substituísse como "segundo" eln um COInbate importante que deveria transformar Curtis no boxista estre- qual estão confinados os pá rias dos Estados Unidos. antropologicamente. de uma cultura totalmente cinética. aquele que eu estava a anos-luz de imaginar ter de enfrentar um dia. 5 Restava o terceiro desafio. e estando eu mesmo tomado. 1 know that.~ preensão dos sentidos em linguagem sociológica e encontrar as formas expressivas adequadas para comunicá-la. de uma prática tão intensamente corporal. Depois de um começo difícil e doloroso. aos meus olhos. no sentido de ocupação. portanto. profundamente ancorada na sociologia norte-alnericana das relações entre divisão racial e " tivo da luta. mais tarde. conse\( gui melhorar minha condição física. de entretecer com os membros da academia relações de respeito e de confiança mútuos e. será que eu conseguiria retraduzir essa com. antes de me engajar.reconstruir de cima a baixo . de um universo no qual o mais essencial transmite-se. ao abrir a porta do Woodlawn Boys Club e para o qual esta obra dá uma primeira resposta parcial e provisória (assim como todas as investigações científicas. ama- dores e profissionais. mas o leitor poderá julgar por si mesmo .i\ minha compreensão do que é um rueto em geral e do que é a estrutura e o funcionamento concreto do gueto negro de Chicago. caracterizado pela falta. adquirir os gestos e embeber-me da tática do pugilista_ -"fiz minhas aulas no solo. com O apoio entusiasmado de todo o clube. de estado social. "treinando" regularmente com os boxistas da academia. luas de um vivido sociologicamente construído). assim como repatriar para o âmago de seu estudo as relações de poder que o caracterizam. o do meu projeto inicial: será que eu poderia apreender e explicar as relações sociais no gueto negro a partir de minha inserção neste local particular? A imersão demorada nessa pequena academia de boxe e a participação intensiva nas trocas que aí se estabeleciam no dia-a-dia permitiram-me. de desânimo (aqueles que mais tarde se tornaram meus mais queridos companheiros de ringue apostavam. uma form~ de "prisão etnoracial" na das. de que o gueto é um universo "desorganizado"." Nem bem passara por essa barreira inicial e preenchido a condição mínima necessária para minha inserção permanente no ambiente e eu já estava confrontado com um segundo desafio. a Corpo e alma 15 lo"ic Wacquant . sem COIU J isso amenizar suas propriedades as mais distintivas? A organização do livro segundo o princípio dos vasos cornunicantes. mas também de mister e de mistério (se'gundo a etimologia da palavra ll1estier). ligando trabalho teórico e observação empírica contínua. me "tornar profissional"jAdquiri um conhecimento prático e afinei meus julga• mentos sobre a Nobre Arte a ponto do velho treinador DeeDee pedir. a carência e a ausência. na época. depois fiz minhas provas entre as core"" marginalidade urbana desde os primeiros trabalhos da Escola de Chicago. 4 Começando por recusar a falsa idéia. "no corpo".em todo caso. mesmo quando elas se disfarçam como relatos): como dar conta. de realizar meu trabalho de pesquisa sobre o gueto? A resposta levou vários meses para chegar. invertendo-se progressivamente à medida que as páginas avançavam (de modo que o leitor profano pode percorrêlo de trás para a frente para remontar à sociologia a partir do vivido. a proporção de análise e de relato. o mais formidável. a visão "orientalizante" do gueto e de seus habitantes. os mais exigentes e rudes. O gym permitiu-me questionar com eficácia. LOllie. um dia. na minha desistência iminente). de controlar seus rudimentos de modo a conquistar um pequeno lugar no universo ao lneslTIQ tempo fraternal e competi- gue dos bairros marginais de outras sociedades avançadas. em particular. em uns Estados Unidos pós-fordista e pós-keynesiano do final do século XX. como instrumento de exploração econômica e de ostracização social de um grupo desprovido de honra étnica. com meus punhos e minhas vísceras.enfim. finalmente. sobretudo naquilo que o distin14 - desdobra-se aquém da linguagem e da consciência . com propriedade. no grande torneio das Colden Claves de Chicago e de chegar mesmo a tentar. de conceitual e de descritivo. e ele gostava de predizer que um dia eu iria abrir minha própria academia de boxe:" YOll gonna be a hellllva coach one day. adquire-se e la de Woodlawn. enrijecer minha condição mental. capturado e cativado por ele. de uma instituição feita de homem(ns) e que se situa no limite prático e teórico da prática' Falando de outro modo: uma vez compreendendo o que é o ofício do boxeador.capaz de aprender esse esporte dentre todos. às vezes. durante o qual minha inaptidão técnica só era igual a meu sentimento de frustração e. 2001. "Três premissas perniciosas no estudo do gueto norteamericano". pp. pp. que iria durar quatro anos. mas tambéln o uso estratégico das fotos e das anotações pessoais. e "A Zona".Remúss<111CC Noire. 50. 168.: Meditações pi:lscalúuJ<ls. responde a esse cuidado de fazer o leitor entrar no cotidiano sensual e moral do pugilista comum. "A 'underclass' urbana no imaginário social e científico norte-americano". The Truly DisCldvantaged (Chicago: The University ofChicago Press. pp." 'A Black City within the Whitc': Revisiting America's Dark Ghetto". maio de 2002 Notas Bourdicu. Linguagens de exploração e de acomodação entre boxeadores profissionais".r lnestiçagem dos gêneros e dos lTIodos de escrita. pp. 1969. 6. bras. 31.. 73-96. Estudos A!ro-Asi<íticos. Loic Wacquant Paris. outubro de 1977. desfez-se no momento em que Wilson terminou sua obra que marcou os anos 80. Waequant. 2001. 213-221. Campinas: Papirus. 1997.' E que descobri. e "Putas. n. 5. A miséria do mundo (Petrópolis: Vozes. elucidando "a coordenação desses três elementos. outubro de 2000. Paris: Minuit. e "A nova 'instituição particular': a prisão como substituto do gueto". 10-11. outubro de 1999. 99-112). p. "é a própria vida. in Daniel Soares Lins et il1.20011· 2. Revista de Sociologia e PolíticCl. Punir os pobres (Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 281. 141-151. 2-1.. de fazê-lo palpitar ao longo das páginas junto com o autor. 3. outono-inverno de 1998. Uma primeira etapa desses trabalhos pode ser encontrada em meu livro Os condwildos da cidClde. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1. a consciência individual e a coletividade" que o talham e fazem-no vibrar a cada dia. in Pierre Bourdieu et aI. 1987). Coleção Pensamento Criminológico. A dominação llJClscuJina revisitada. p. ~ 16 - lo'ie Wacquant L Corpo e alma - 17 ." Ao entrar na fábrica do boxeador. Black RcmlÍs$<l1lcC . Mareel Mauss. 61. 1997. com apresentação de Luiz César Queiroz de Ribeiro. Wacquant. é todo o homem" que descobrimos. pp. primavera de 1998. o corpo. pp. Paris:Editions du Scuil. ver também "Elias no gueto". 145-161. [trad. 374. "Os três corpos do lutador profissional". 2-2. O leitor brasileiro irá encontrar um complemento disso em Lo'icWacquant. pp. 127-146. de modo a lhe fornecer todo o conjunto e a compreensão arrazoada dos mecanismos sociais e das forças existenciais que o determinam e a aisthesis particular que ilumina sua intimidade de combatente.. Lole. Rio de Janeiro: Revan. iIl _ _ .'os em nós. Lo"ic. reeditado em OCHvres. escravos e garanhões. "Alloeation à la société de psychologie" (1923). Nossa colaboração. tomo 3: Cohésion sociale et divisioIl de 1<1 sociologie. Ma1la: Estudos de Antropologia Social. Mana: Estudoide Antropologia Social. 7. Picrre. 1998. MéditMiolls pilSCillie1l11CS.I77-201). pp. por ler me levado ao clube Woodlawn. E (1) ~ (') Todas as palavras grafadas em inglês estão nesta língua no original. só poderia ser bem desenvolvida COI11 o apoio moral constante. pelo cinema e pela literatura. Enfim. T. Gostaria de agradecer a Picrre Bourdieu. na situação do perfeito noviço. que me apoiaram. demais para serem aqui nomeados. Eu nunca praticara esse esporte e nem sequer havia passado pela minha cabeça praticá-lo. Seus encorajamentos.I nunca havia tido qualquer contato COlTI o mundo do pugilismo. espero que eles vejam aqui a marca de minha estima e de meu afeto indestrutíveis. como resultado de um conjunto de circunstâncias. pela energia e paciência com que trabalhou na produção dos originais. em meus momentos de dúvida (e de cansaço). ao lado dos boxeadores locais. pela mídia. desde o começo. Exceto as noções superficiais e as imagens estereotipadas que qualquer pessoa pode formar a respeito dele. em uma empreitada que. Meu reconhecimento vai também para todos aqueles colegas.1 L_ Corpo e alma - 19 .eles sabem quem são e o que lhes devo -. a quem serei eternamente grato. estimularam e reconfortaram durante e depois dessa pesquisa . com cerca de três a seis sessões por semana. Durante três anos.O) inscrevi-me em um clube de boxe de um bairro do gueto negro de Chicago.l ao Boys Club ajudaram-me. não é preciso dizer que esse livro não existiria sem a generosidade e a confiança fraterna de meus gym huddics de Woodlawn c de nosso mentor DeeOee. portanto. c a Thierry Discepolo. submetendo-me com aplicação a todas as fases de sua rigorosa preparação. participei dos treinamentos. Encontrava-me. seus conselhos e sua visit. [N. parentes e amigos. por tcr me apoiado. ao exigir o empenho da pessoa física. a encontrar a força para persistir em minhas investigações. amadores e profissionais.Prólogo m agosto de 1988. o shadow boxing [sombra]!') Conjunto de circunstâncias provocado por meu amigo Olivicr l-Ienninc. Para minha própria surpresa. Levaram-me para rezar em sua igreja. em busca de um emprego. Neste livro. na cozinha do pequeno apartamento. bem como em seus passeios (") O termo SpilIriJlg. de seus sonhos e seus dissabores. o único descrente europeu entre dez mil devotos afro-americanos em transe. de tal forma morno (morto) em relação à alegria carnal pura e viva que me oferece o diabo desse gym (é preciso ver as cenas de disputa dignas de Pagnol entre DeeDee e Curtis!). à cata de negócios no cOlnércio do gueto. de bom grado. o que me valeu ter livre acesso a todas as encenações e a todos os bastidores do mundo da luta. à noite. no interior da academia. E fui progressivamente assimilando as categorias de julgamento dos pugilistas. "segundo" e fotógrafo. eu. Em inglês. e das pessoas que me eram próximas. ao fechamento do gym de Woodlawn. com uma tristeza insondável. o parceiro sparringe confidente. de apresentar um paper à ASA [congresso anual da American Sociological AssociationJ. que senti um repentino sopro de angústia abafante diante da idéia de ter de voltar logo a Harvard [onde eu acabara de ser admitido}. PB [Pierre Bourdieu J. mas. [N. As notas tomadas no dia-a-dia. pela impossibilidade de se adaptar todas as vezes o contexto em que a palavra é utilizada. durante as Golden Gloves de Chicago .} Como atesta essa nota. que eu queria largar tudo. "o spi:lrrillg" [referindo-se ao exer(2) cício} etc. na qualidade de colega de academia e assistente. minhas pesquisas e todo o resto para poder ficar aqui. a perspectiva de migrar para Harvard.I') no ringue. T. na acadelnia. cheguei a pensar em interromper minha carreira universitária para "passar para o lado" dos profissionais e. assim. falando e rindo com DeeDee e Curtis. em português. Sei que isso é completamente tolo e certamente irrealista. outro dia. sparrúlg será usado nas duas acepções. a ponto de passar todas as minhas tardes na academia do Woodlawn e de "calçar as luvas" do clube com regularidade. entre outras do mesmo tipo. Assim. por ocasião de um encontro político-religioso da Nação do Islã . no meio deles. deprimente. com o sparring. depois de cada sessão de treinamento. Por conseguinte.diante do espelho. em meu diário de campo (inicialmente para ajudar-me a superar um profundo sentimento de mal-estar e de embaraço Corpo e alma 21 20 - Lok Wocquant . no ringue. ler livros. das noites dançantes e de seus passeios familiares. drop out. antes de passar para o lado de dentro das cordas. assisti a uns trinta torneios e "reuniões" de boxe realizados em diversos bares. abandonaria meus estudos. verdadeiramente crazy. Também acompanhei os boxeadores do meu gym "na estrada". embebendo-me como uma esponja da atmosfera da sala. A amizade e a confiança que os freqüentadores de Woodlawn concederam-me fizeram com que eu pudesse me fundir com eles.Jrring". escrita em meu diário de campo. para escutar rap ad nauseam. permanecer junto a meus amigos do gym e ao técnico. cinemas e praças de esporte da cidade e do subúrbio. para cortar [fade] o cabelo no barbeiro deles. e até para aplaudir o Minister Louis Farrakhan. e assisti ao lado deles. francamente. que se tornou para mim um segundo pai. por ocasião dos encontros organizados em outros lugarejos do Midwest e nos famosos (mas lastimáveis) cassinos de Atlantic City. o termo é empregado igualmente para o próprio exercício. para ficar em Chicago. junto com os profissionais. de um lugar para morar. de escrever artigos. condenado em fevereiro de 1992 e demolido um ano mais tarde. na casa dele.2 quatro nascimentos e mTI batismo. do lado de fora. em agosto de 1990: "Hoje me diverti tanto no gym. pouco a pouco fui gostando do jogo. Vivi com eles três enterros. durante algum tempo. mas se ele soubesse: já estou bem para lá da sedução!" sem destino. estava dizendo a mim mesmo que. em suas alterações com as esposas.yssistir a conferências e o tutli fruti universitário. para jogar bilhar em seus bares favoritos. meus colegas de ringue me fizeram compartilhar de suas alegrias e dores. entre as galeras [homies] das terríveis cidades vizinhas. os dois sentados na sua cama. boxeando. permanecer 'olle of the boys'. sob o bastão de DeeDee. em uma operação de "renovação" urbana. t. no escritório do seguro social ou na polícia. sentado na sala dos fundos e simplesmente vivendo e respirilndo ali. acho tudo isso sem o menor sentido. mas também que pudesse acompanhálos em suas peregrinações cotidianas. dos piqueniques. DeeDee Armour. nesse momento preciso.na embriaguez do mergulho. con- versando sem parar com ele. (2 ) Depois disso. me dizia que ele tinha medo de que eu me 'deixasse seduzir por meu objeto'. serão encontradas expressões como "fazer Spi.no qual me vi. refere-se apenas ao pugilista que pratica o exercício de boxe que simula uma luta. dois casamentos. para disputar minha primeira luta oficial. e dissecando as lutas na televisão. Experimentei tal prazer simplesmente de participar que a observaÇilo tornou-se secundária e. Nova York c Oak. no contexto habitual do gym. assim como as observações. portanto.' critos são aqueles do boxeador em seu "hábitat natural"3 e não a (re)apresentação teatralizada e altamente codificada que ele gosta de fazer de si mesmo em público. clama com eloqüência um cartaz pendurado em uma das paredes do Woodlawn Boys Club). Também freqüentei três outros ginásios profissionais de Chicago e visitei uma dezena de outros clubes nos Estados Unidos e na Europa. redefine. o percepto e o concepto. a vida e a carreira fora do comum dos campeões. uma sociologia do boxe deve evitar o recurso fácil ao exotismo pré-fabricado da vertente pública e publicada da instituição . os ritos ínfimos e íntimos da vida do gym. que preludia as breves aparições sob as luzes da rampa. O primeiro texto desembaralha a meada das relações agitadas que ligam a rua e o ringue. por uma série de entrevistas de profundidade com alguns pugilistas protissionais então atuantes no estado de Illinois. Por isso. ao ' mesclarem-se. formam o mundo do pugilismo. e descreve como o inculcar da Nobre Arte se dá como trabalho de conversão ginástica. emocional e mental./ ca e eVQ"caç!o literária. Em resumo. ele gostaria de mostrar e de demonstrar. exclusivamente por negros). que me obrigou a uma inatividade propícia a um reto r- j* 22 . é mais uma "participação observante") em uma banal academia de treinamento é que os materiais assim produzidos não padecem do "paralogismo eco. este livro gostaria de sugerir provisoriamente como o pugilismo "faz sentido" quando se tOlna o cuidado de dele nos aproximarmos o suficiente para apanhá-lo com o seu corpo. em um mesmo movimento. a celebração e a difamação . na época do lneu ingresso. al)álise sociológi./ lógico" qu~ afeta a maior parte dos estudos e relatos disponíveis sobre a Nobre Arte. colocado na retaguarda ou acima do universo específico. que produzem e reproduzem a crença que alimenta essa economia corporal. um ano após minha entrada no clube de Woodlawn. as determinações ocultas e as experiências vividas. que a evocação das lutas não deixa de suscitar. Depois que deixei Chicago. parece que. um a um. nenhuma das declarações aqui relatadas foram expressamente solicitadas: os comportamentos des. grandes ou pequenas. (3) Essas observações ctnográticas foram completadas c cntrcmcadas. no tim do percurso. Ele apóia-se em um artigo redigido durante o verão de 1989.. e pelo exame da literatura "indígena" (revislas e carlas com informações especializadas. que se efetua de um modo prático e coletivo. inseparavelmente física e moral. com base em uma pedagogia implícita e mimética que.físico.ráfica. o excesso da sociologia espontânea. material e simbólica muito particular que é o mundo do pugilismo. perceptiva. Assim. para se ter alguma chance de escapar ao objeto pré-construído da mitologia coletiva. Ela deve apreender o boxe pelo seu lado menos conhecido e espetacular: a cinzenta e lancinante rotina dos treinamentos na academia. os fatores externos e as sensações interiores que. e que as reportagens jornalísticas e os romances retraduzem e louvam segundo seus cânones própnos. o heroísmo da ascensão social do miraculado (Marvellous Marvin Hagler: do gueto à glória. mas socar os aparelhos. o livro \ é composto de três textos com estatuto e estilo deliberadamente ' díspares. todos os parâmetros da existência do boxeador.. ao lado de boxistas anônimos.(31 Desde logo. ao mesmo tempo. assim como com seus treinadores c únpresários. sentimento. as fotos e gravações realizadas durante as lutas promovidas pelos membros de minha academia. que justapõem descr~o etm21:.produzido pelo "olhar distante" de um observador externo. em 80stOll. sem dúvida alguma. pacientemente. indiferentemente. redobrado pelo próprio fato de eu ser o único branco em mna academia freqüentada. biografias e autobiogratias) e seus derivados eruditos (escritos literários e historiográticos).4ou seja.as lutas. durante uma sessão com sparring. no caso presente.land. em situação quase experimental. Ao romper com o discurso moralizante .que alimenta. A outra virtude de uma abordagem com base na observação participante (que.Lo"ic Wacquant Corpo e alma - 23 . de modo a comunicar. pela coleta das histórias de vida dos principais membros do clube de Woodlawn. da longa e ingrata preparação. tornei-me membro de três academias de boxe. forneceram a matéria para os textos que aqui se irão ler. a lógica social e sensual que informa o boxe como ofício do corpo no gueto norte-americano. depois que sofri uma fratura do nariz.. Para evitar. é preciso não subir ao ringue pensando na figura extraordinária do campeão. por parte de uma grande casa editora de Paris. para concluir este prólogo. com toda a sociologia em suspenso"). desde os preparativos de pesagem oficial. a questão da escrita em ciências sociais e da diferença entre sociologia e ficção. A paixão do pUgíJjstil irá tratar de\maneira aprofundada. meu "rolnal1Ce" .. sua economia de conjunto. redigido pela primeira vez em 1993. Pareceu-nos. paralela" (5) Michel Le Bris para um número especial da revista literária Gulliver. c do confronto no ringue como ritual de mascUlinização.m~..no à reflexão sobre meu noviciado então em cursO.? De fato. tem como finalidade permitir que o leitor perceba melhor as coisas do pugilismo «no concreto.sociologia../ 25 t.t:. questão que atormentou bastante os antropólogos na década passada. sem dúvida.. em termos práticos. P'lli! obser_. ou como.f?3S . acentuar os principais fatores que tornaram possível essa pesquisa. do trabalho de treinador como uma terapia regressiva. o código de honra viril e o diktat brutal das opressões materiais.fi É instrutivo. O caráter "oportunista" de minha inserção. 24 - Lo"ic Wacquant ~ Corpo e alma BSC$f-.m. de um contrato para publicar . descreve minuciosamente uma jornada de reuniões de boxe em um bar de um bairro operário do South Side. com o aval dos interessados. de um modo narrativo que se esforça por apagar os traços do trabalho de construção sociológica (a ponto de Le Bris acreditarse autorizado a qualificá-lo injustamente.e como uma "j~~la" p~~ o gQ~. fazer do ofício de boxeador um objeto de estudo totalmente à parte. Escrito a pedido de " (4) Foi ao redigir esse artigo qlle compreendi até que ponto o ginásio constituía um "campo estratégico de pesquisa" (como diria Robert Merton) e decidi fazer da profissão de boxista um segundo tema de estudos. de manhã cedo. conservando. Limitamo-nos a enriquecer os dados e a tornar claras as análises originais.tl era servir-me da academia de b.' ele segue passo a passo a preparação e a apresentação do autor na temporada de 1990 das Chicago Golden Gloves. não entrei no gym com a finalidade expressa de dissecar o mundo do pugilismo.(6) A junção desses gêneros habitualmente segregados .to. até a volta das festividades. "COlTIO. vemos os polvos e as anêlTIOnaS". etnografia e reportagem -. é uma "notícia sociológica". dedicado a "Escrever o esporte".. da estrutura e do funcionamento da economia pugilística. entre os quais o mais decisivo foi. de "relato. que é o tema de um livro atualmente em fase de redação. o maior torneio amador do Midwest.meu objeto original-. retomado e completado sete anos mais tarde. preservando seus principais resultados. como elas são". esse texto coloca. de lugar e de ação permitem pôr em relevo a imbricação mútua dos ingredientes e das redes sociais que o priIneiro texto necessariamente separara: o interesse e o desejo. da dialética do desejo e da dominação na gênese social da vocação de boxista.. As unidades de tempo. que decidi. porque. O terceiro texto. a rotina e o imprevisto. entre outras coisas. frutos de mais dois anos de submersão intensiva. a afeição e a exploração. logo depois que o texto foi publicado. tarde da noite. Minha intenção inici. contudo. na mecânica. vêem-se as massas e os sistemas. de fato.!S) e investindo aí principalmente tudo o que foi adquirido dos trabalhos posteriores. e foi somente ao final de 16 meses de presença assídua. e a ver os boxeadores em movimento. que as lacunas empíricas e a semiingenuidade analítica desse texto de aprendiz de sociólogo tinha como contrapartida um frescor etnográfico e uma candura de tom que poderiam ajudar O leitor a deslizar melhor para dentro da pele do boxeador. forças móveis e que flutuam no seu meio e em seus sentimentos. depois das lutas. se nos é permitida uma expressão que acentua O oxímoro. no mar.(4) Foi preciso resistir à tentação de refazer totalmente esse "escrito de juventude". Percebemos inúmeros homens. qo bairro . porque essa própria intenção teria irrevogavelmente modificado ~c mente ao gueto. Não há dúvida de que jamais ganharia a confiança nem me beneficiaria da colaboração dos freqüentadores do Woodlawn se tivesse entrado na academia com o firme propósito de estudá-la. e depois de ter sido entronizado como membro do círculo dos Boys Club. o masculino e o feminino. (6) Além do mais. de valeu-me a oferta.ª-r as estratégias sociais dos joy. com a ajuda de fitas de áudio e vídeo gravadas na época. o sagrado e o profano. prelúdio de uma análise mais compreensiva da "fábrica" de pugilistas. a abstinência e o prazer. no prefácio. das crenças indígenas sobre o sexo e as mulheres. O segundo texto. desde que nos dobremos diante da disciplina comum e desde que paguemos "o que é devido" no ringue. e você pode ver que tem qualquer coisa que nâo está pegando bem. por ter vindo pro gym e ser um carinha como outro qualquer na academia . (7 ) É provável que eu não tivesse persistido na lninha empreitada ou. 26 - Lo"ic Wacquant . Mas você. você faz parte da equipe com a gente. de modo que pude aprender a boxear dentro das regras da arte. nem que seja pela defesa do corpo. Eddie. eles viram-se tratados como seres hlllnanos. um dos principais fornecedores de lutadores para os encontros regionais. eu respeito as pessoas queme respeitam. havia passado pelo Woodlawn Boys Club.. Eles fazem careta [ele gira os olhos com um ar selvagem l. que marca continuamente. de modo que.. o " ethos igualitarista e o daltonismo racial afirmado da cultura pugilística fazem com que se seja nela totalmente aceito.] A maioria dos caucasianos.. e porque você é francês. eles ficam com essa cara apavorada. nunca. É por isso que minha mulher e eu nunca falamos com um caucasiano no Hyde Park. faz cinco anos que a gente mora no Hyde Park [o bairro da Universidade de Chicago.. Ser o único branco do clube poderia constituir Uln sério obstáculo à minha integração. quando entrei no Boys Club. você se entende bem com os carinhas e eles gostam de você também . se em um gym "tradicionalista". Você relaxa [loose]. pela primeira vez na vida. o único jeito de saber que vocês não são negros é pelo modo de falar. o treinador assistente do Woodlawn.a cada vez. se não fosse a ação conjugada de três aspectos compensadores. 80% branco J.8 e pelo simples fato de que eu não tinha a hexis do americano branco médio. caso tivesse feito meu aprendizado em uma das academias anatômicas mantidas pelo serviço de parques e jardins da cidade. onde treinavam boxeadores "profissionais" pagos pelos serviços prestados entre as cordas. Louie./: meu status e meu papel no contexto do sistema social e simbólico considerado.. linha o hábito de ir treinar ali . [Sua companheira] Liz e você. você fica tão à vontade na academia e quando vai às lutas com a gente . que eu fracassasse seriamente. basquete. e não como integrantes de uma subcasta). você fala com os outros caras. assim. você é feito eles. Louie. amputando. Você não fica tenso Oll nervoso porque está entre a gente. Primeiro. vê só. de desprezo e desconfiança mútua que opõem brancos e negros na América do Norte. quando você chega perto deles. Beneficiei-me do capital histórico de simpatia de que a França desfruta entre a população afro-americana. Não tem muitos caucasianos [brancos] fazendo isso junto com a gente. Mas você está lá no gym com a gente. eles chegam pra trás e olham pra você como se você tivesse uma argola no nariz. além dos amadores que povoam todos os clubes). ou quando você tenta falar com eles. no Languedoc (futebol. punha de um pequeno capital inicial esportivo.. Outro Corpo e alma 27 (7) O gym de Woodlawn era então um dos 52 clubes de boxe oficialmente listados no estado de Illinois e uma das quatro principais academias profissionais de Chicago (isto é. minha capacidade de penetrar no mundo social dos pugilistas. na rua.. em Chicago. os negros . a fronteira infranqueável entre as comunidades. tênis). Minha mulher e eu.. em 1977. No final de sua carreira. e nós nunca falamos com caucasianos. O acaso da geografia também quis que eu me inscreves)\. Cara! Você fica tão à vontade que até parece que você não é caucasiano. pior. em um momento ou outro. eu tivera a sorte de ter praticado vários esportes competitivos na minha infância. minha nacionalidade francesa concedeu-Ine uma espécie de exterioridade estatutária com relação à estrutura das relações de exploração.. em virtude da acolhida recebida pelos soldados no Hexágono. dirigido com punhos de aço por : um técnico de estatura internacional e que desfrutava de uma fama invejável na cidade. eu respeito você. Além disso. em contato com treinadores e lutadores competentes. A maioria dos pugilistas de destaque nos anos 80. sua aparição provocava explosões de alegria na rua. Quando eles chegam perto de você. explica: Tenho respeito por você. que tem uma casa perto de 1. no bairro rico do Hyde Park-Kenwood. rugby. é claro. que se revelou indispensável para que eu enfrentasse com sucesso as provas pugilísticas. até o seu fechanynto. que era.1. dis. como se você fosse pular em cima deles. Então. nas duas guerras mundiais (quando. [Sobe de tom e sua fala acelera-se sob o efeito da emoção. você nâo faz isso. Saca só. Mohammad Ali. ilha de opulência branca perdida em meio ao oceano da miséria negra do South Side. Em segundo lugar. desde que a academia fora aberta. Nova York: Wiley. In: William Habenstein (org. nos bastidores. a romancista Joyce Carol Oates. Urbal1 Life. mas também" Bad Dude". 276 [trad. Pode-se encontrar uma etnografia dos ágapes matrimoniais de Anthony e de Mark em meu artigo "Un mariage dans le ghetto". 68-85. Para mencionar apenas os grandes nomes da literatura norte-americana contemporânea. Paris: PUF.\! Corpo e alma l " \ (9) . n. fevereiro de 1982. 5. sobretudo.ingway. Ernest Hemlr. Acres de la Recherche Cl1 Scie11ces Soci. In: Mareei Mauss. Sobre o paralogismo ecológico.. entre outros. você faz parte da equipe como os outr05. ler Aaron Cicourel. "Studying practitioners ofvice and crime". 8. Finalmente. p. fora da academia. p. diante de todos os freqüentadores habituais: "E aí. 6. Jack London. 11-20)'. 17. que a gente trata você como se fosse um negro?" Kurt Wolf definiu o conceito de "abandono" em etnografia como implicando "um engajamento total. n. Berkeley. James Farell. and. a identificação e o risco de se deixar ferir". abriljunho de 1991. n. 1974J. que. and the problem of ecological validity" (The Americ<111 Sociologist. 7. Loi'c Wacquant.dia eu estava falando pra alguém no meu serviço: "Temos o 'Fighting Frenchman' com a gente na equipe!" [Ele corou de prazer] Uau. 1998. Riemer. Dashie1 Hammett. junho de 1996. o fato de eu ter levado minha iniciação até "fazer" as Golden Gloves contribuiu amplamente para que eu estabelecesse meu status no clube e para selar minha legitimidade de aprendiz de boxe junto aos atletas e aos treinadores de outros ginásios. 12-33. 1987. janeiro de 1977. "Corps et âme: notes ethnographiques d'un apprenti boxeur". "Ifs. "Busy Louie". 2 V. depois de minha apresentação oficial entre as cordas. a pertinência de qualquer coisa. "The Prench Bamber". "Surrender and community study: the study of Loma". 54.(8) 2. 4. 467-477. novembro de 1989. p. dezembro de 2000 9. a quem devemos o belíssimo 011 boxi11g (Garden City: Doubleday.). (1\) Depois que voltei de uma estada na França. Chicago: Aldine. surveys. Notas 1. a que veio juntar-se tardiamente uma das muito raras mulheres. durante as festas de Natal. 1970. Nonnan Mailer e Ralph Ellison. 33-67. meu nome no ringue. "Interviews. uma suspensão das noções recebidas. p. Mareei Mauss. 6.1 Recherche en Sciences Sociales. butts: the literary sensibility at ringside". Boston: Houghton Mifflin. bras. como é atestado pelo chamamento" bratller Lauie" e pela gama de apelidos afetuosos que eles me deram ao longo dos meses. GulJiver. "Essai sur le dono Forme cf raisons de l'échange dans les societés archai'ques". In: Arthur J. 80. você contou pra sua família que está treinando no gym com lutadores profisJionais? Disse pra sua família que você é 01lC ofthe guys. n. 28 - Lo"ic Wacquant 29 . p. Acres de 1. 233-263.). H<1fper's Milgilzille (junho de 1987. Sobre "a afeição histórica" dos negros norte-americanos pela França e suas origens na experiência vivida de uma miscigenação tabu e violentamente reprimida nos Estados Unidos. 1964. p. ler Tyler Stovall. Ring Lardner. n. Jeffrey M. dos serviços e das diversas intervenções junto às burocracias públicas e privadas que regiam suas vidas..lles. Vidich e ]oseph Bensman (org. "The Prench Hammer" e "The Black Prenchman". 30-49. 63-67) cita. Kurt Wolf. o mesmo Eddie perguntou-me. PilriS noir: Africi:11J Americ<llls in the Cityo[Light. Arthur Krystal. "Varietes of opportunistic research". Reflectial1s ar cammullity studies. Louie. 274. p.: SocioJogúl c illltropologia. Pathways to datil. Sociologie et il1Jthropologie. Lorc Wacquant. (1925) 1950. "'Busy Louie' aux Golden Gloves". o fato de eu calçar as luvas com eles regularmente valeram-me a estima de meus camaradas de clube. p. e as observações metodológicas correlatas de Howard Becker. 1l. meu "abandono" total às exigências do campo(9) e. me reconheciam como" one ofDeeDee's Bays" [um dos rapazes de Dee Dee l· 3.. São Paulo: EPU/EDUSP. Nelson AIgren. p. Além das provas de solidariedade que dei cotidianamente. 113. sobrecarregada de funções e de representações que não são apreensíveis de imediato pelo observador. nos anos 50. no caso. no entanto. as fungadas dos boxeadores soprando pelo nariz e.sem se examinar a trama das relações sociais e simbólicas que se tecem no interior e ao redor do salão de treinamento. a cada Corpo e alma 31 . em que ele escapa de uma extinção periodicamente anunciada como iminente e inevitável. de tal modo são poderosas as invariantes que comandam o seu aspecto: "Subia-se por uma escada escura até uma sala lúgubre.A rua e o ringue D Os instrumentos na oficina. Aparentemente. o som pesado do couro contra os sacos de areia que ressoavam e balançavam na ponta das correntes. Podiam-se discernir os ruídos. a Igreja romana.ou pelo menos nas regiões inferiores do espaço social. o que há de mais banal e de mais evidente que uma academia de boxe? Poderíamos. o rangido das botas sobre a lona do ringue (havia dois ringues). Um gym (segundo o termo consagrado nos países de língua inglesa) é uma instituição complexa e polissêmica. para descrever qualquer salão da América do Norte urbana atual. tal como o catolicismo. I o mesmo modo como não se poderia compreender o que é uma religião instituída. mesmo que ele esteja avisado sobre a natureza do lugar. SelTI se estudar em detalhes a estrutura e o funcionamento da organização que a sustenta. meio e motor oculto do universo do pugilismo. na verdade. antes mesmo que nossos olhos se acostumassem à penumbra: o 'slap-slap' das cordas de pular batendo no chão. o estalo das bolas de couro. também não se pode elucidar o significado e o enraizamento do boxe na sociedade norte-americana contemporânea . retomar palavra por palavra essa vinheta que George Plimpton compôs sobre o famoso Stillman's Gym de Nova York. que não deixava de lembrar a sala de cargas de um antigo galeão. esboçaremos uma reflexão sobre a iniciação a uma prática da qual o corpo é ao mes. de é um arcaísmo. o soar estridente do relógio.~ Corpo e olma 33 (2) Essa descrição é válida para o conjunto dos Estados Unidos urbanos e para a maior parte dos países industrializados: as academias de boxe do mundo todo compõem-se mais Ollmenos dos mesmos ingredientes e se parecem a ponto de se confundirem. do "programa de vida" do pugilismo faz do indivíduo sua própria arena de desafio e convida-o a descobrir a si mesmo. carar as funções extrapugilísticas que ela preenche para aqueles que aí vêm comunicar. que liga a rua ao ringue. sem oS quais ninguém iria se arriscar de modo duradouro entre as cordas. ao rigoroso regime. o instrumento e o alvo. em uma academia do gueto negro de Chicago. o gym isola da rua e desempenha -. na qual me iniciei nos rudimentos do ofício e onde. no sentido durkheimiano. sobre um universo social que é tanto mal conhecido quanto mais amplamente difundidas são as representações comuns de que ele é objeto.' bre Arte no cumprimento de suas tarefas diárias e submeter-se.não deve mas. que se opera na sala de treinos. Nobre Arte. que define seu estado e sela sua identidade. 1(1) Como iremos ver. 3 Finalmente. À maneira de um santuário. nesse culto plebeu da virilidade que é a . o salão de boxe é o vetor de uma desbanalização da vida cotidiana. indissociavelmente corporal e moral. Vamos destacar. ele oferece um espaço protegido. uma das últimas barbáries consentidas. fechado. isto é. portanto. primeira parte da presente obra tem um triplo objetivo. todos indispensáveis à eclosão da vocação de pugiiista.. O pertencimento (I) ao gym é a marca tangível da aceitação em UITI-a confraria viril que permite que a pessoa se destaque do anoúimato da massa e. tantas vezes celebrado e condenado. ligando-me por relações de amizade . feita de uma mistura de afinidade e antagonismo. sel)ão penitenciaI. O gym é. reservado. ou melhor. e sua missão técnica apregoada . honra masculina e prestígio. entre todos os esportes. Enfim. Para perceber essas diversas facetas do gym e detectar as proteções e os ganhos que ele assegura para aqueles que se colocam sob a sua égide. uma máquina de fabricar o espírito de disciplina. o respeito ao outro. difamado e reverenciado./' rais o meio de acesso a um universo distintivo. Isso quer dizer que não' buscaremos incriminar nem desculpar esse esporte reputado como "bárbaro" entre todos os outros. o cadinho em que são polidas as habilidades técnicas e os saberes estratégicos. Foi o que fiz durante três anos. Retorno sobre uma experiência de aprendizagelTI em curso. cuja delicada reunião faz o lutador acabado. pude observar in vivo a gênese social e o desenvolvimento das carreiras pugilísticas. a') .n três minutos. a ligação com o grupo. porque ele faz da rotina e da remodelagem corpo. é preciso e basta seguir os obscuros soldados da No. em seguida.transmitir uma com petência esportiva . tal como ele é praticado atualmente dentro do gueto negro norte-americano.. por meio da relação bífida. o gym é essa forja em que se modela o pugilista. a produzir a si mesmo. dessa base documental. enfim. Antes de mais nada. produzidos pela observação direta e pela participação intensiva. ao lado deles. 2 LoTe Wacquant 32 - . entre seus membros. tenha sido o que inspirou o maior número de cineastas e romancistas de talento. o forno em que se alimenta a chama do desejo pugilístico e a crença coletiva no bom fundamento dos valores indígenas.(2J mas sim sugerir o que sua lógiUma citação entre mil outras: "Não é por acaso que o boxe. onde é possível. alguns dos princípios que organizam esse complexo de atividades específicas que é o boxe. subtrair-se das misérias costUlneiras de Ulna existência muito vulgar e dos azares que a cultura e a economia da rua reservatn para os jovens nascidos e encerrados nesse espaço ultrajado e abandonado de todos que é o gueto negro. a oficina em que se fabrica esse corpo-anna e armadura que ele se apressa por lançar em confronto no ringue. assiIn como a si mesmo. O ca~monástico. em que se misturam aventura. também. uma " escola de moralidade. Em nossa civilização. trazendo luz principalmente sobre a regulação da violência. o último espelho autorizado a ainda refletir o nosso lado sOn1brio". A atmosfera parecia com a de mTI crepúsculo em uma selva fétida". Mas a academia de boxe não é mais do que isso. O primeiro é apresentar dados etnográficos precisos e detalhados.v mo tempo a sede. e a autonomia da vontade. atraia a admiração e a aprovação da sociedade local.:tos treinadores e aos boxeadores do lugar. o papel de escudo contra a insegurança do gueto e as pressões da vida cotidiana. e que. é acentuadamente coletiva. de fato extraordinariamente complexa. mais uma vez. Woodlawn coloca-se no décimo terceiro lugar na escala de pobreza. ao fazer isso. o espetáculo surpreendente de um tecido urbano e social agonizante de degradação contínua e de profunda segregação racial e econômica.7 Uma ilha de ordem e de virtude O universo relativamente fechado do boxe não pode ser compreendido fora do contexto humano e ecológico no qual ele se ancora e das possibilidades sociais do qual ele é portador. quando fala de "montagens fisio-psico-sociológicas de séries de atos [. e que. em sua grande maioria. com base em uma pedagogia completamente implícita e pouco codificada. cuja aprendizagem adequada. junto com a dança. no entanto.. em ato.5 (4) Em 25 das 77 zonas. ofe- (3) Segundo Pierre Bourdieu." Enfim. cuja transmissão efetua-se de modo prático. mais ou menos habituais ou mais ou menos antigas na vida do indivíduo e na história da sociedade".pelo sistema local de instrumentos de reprodução e de mobilidade sociais. Assim como nos atos de tornar-se integrante de uma gangue ou entregar-se à criminalidade da rua (duas carreiras conexas para as quais o boxe oferece uma escapatória possível). o mercado de trabalho desqualificado e as atividades e redes constitutivas da economia predatória da rua. por impregnação progressiva. de um conjunto de mecanismos corporais e de esquemas mentais tão estreitamente imbricados que eles apagam a distinção entre o físico e o espiritual. sobretudo porque supõe a crença no jogo que. os meios que fazem um pugilista acabado são. :.. Dito de outro modo. _____ segundo Mauss. ]. no caso. pelo luenos aparentemente: o boxe é um es- rece Ulna superação. O ensino de uma prática corporal [encerra] um conjunto de questões teóricas de primeira importância. como todo jogo de linguagem. O boxeador é uma engrenagem viva de corpo e de espírito que despreza a fronteira entre razão e paixão. quase todas afro-americanas e hispanófonas. indispensável esboçar em traços rápidos um retrato do bairro de Woodlawn e sua evolução histórica recente. a escola pública. "a obra da razão prática coletiva e individual".. sem passar pela mediação de uma teoria. é. mais de um quinto da população (sobre)vive abaixo do limite oficial de pobreza. que explode a oposição entre a ação e a representação.e em perigo . Antes de nos aventurarmos dentro do gym. E aí temos. satélite do bairro de H yde Park (um feudo da U ni- porte individual. Mareel Mauss. já há cerca de meio século. exige uma gestão quase racional do corpo e do tempo.ca específica. e sobretudo aquela lógica da sua forma de ser inculcado. Woodlawn era um bairro branco estável e próspero. É.(4) Logo depois da guerra..ou recusadas . pode-se avançar que o ato de incutir aquilo que se pode chamar de habitus pugilísticofunda-se sobre uma dupla antinomia. pode nos ensinar sobre a lógica de toda prática. e também entre a linguagem c o corpo [ . portanto.apenas o • corpo do lutador. como toda "técnica do corpo". tornar-se boxeador é apropriar-se. senão elaborada. da antinomia entre o individual e o coletivo. em sua dupla relação de simbiose e de oposição com referência ao bairro e às duras realidades do gueto que o gym definese." 34 - LoTe Wacquant Corpo e alma - 35 ." a afiliação a um salão de boxe só adquire sentido em relação à estrutura de . das 77 zonas que cortam a cidade. de vez que põe fisicamente em jogo . contudo. aquém da consciência". segundo um processo circular. segundo Ludwig Wittgenstein. uma vez que. ]. Daí decorre a se'" gunda contradição. Essa comunidade afro-americana está bem longe de ser a mais deserdada do gueto sul de Chicago. só nasce e perdura no e pelo grupo que ela define. com efeito. (3 ) Para antecipar os primeiros ensinamentos dessa iniciação. certamente um dos mais individuais de todos. Mas nem por isso o bairro deixa de oferecer. A primeira delas vem do fato de que o boxe é uma atividade que parece estar situada na fronteira entre natureza e cultura. um dos terrenos em que se coloca com acuidade máxima o problema das relações entre a teoria e a prática. por sua vez. "o esporte é. entre o que emerge das capacidades atléticas e o que diz respeito às faculdades morais e à vontade. à medida que as ciências sociais esforçam-se por fazer a teoria das condutas que se produzem. que são operadas "para e pela autoridade social". no próprio limite da prática.( oportunidades de vida oferecidas . - : . definida em 10. 36 Lore Wacquant tuições locais que. <:. nos restaurantes.!$W. tinha a propriedade do domicílio.l~ Desolação urbana a dois passos do bairro branco e próspero de Hyde Park. logo seguidos pela classe média de cor. A proporção de famílias nas quais apenas um dos pais estava presente elevava-se a 60% (contra os 30% de dez anos antes). nesse intervalo. 12 No recenseamento de 1980. acabou por fazer de Woodlawn um deserto econômico agravado pelo purgatório social. e 61 % dos domicílios eram financeiramente dependentes de algum dos programas Corpo e alma . .e pela "guerra de gangues" da década de 1960. Entre 1950 e 1980. nos passava de 38% para 96% (o número de brancos desabou." ·~".t M. ::~~. o número de habitantes do bairro caiu de 81 mil para 36 lnil) enquanto a percentagem de residentes afro-americaA entrada do Woodlawn Boys Club. entre oito. em frente ao gym.37 .. O cruzamento da rua 63 com a avenida Cottage Grove era um dos mais movimentados da cidade.. de 50 mil a menos de mil). no qual se concentram frações entre as mais marginalizadas da população da cidade. dotado de um setor comercial denso e de um mercado imobiliário ativo. emblemático do declínio da "Metrópole Negra"lI) de Chicago. amplificada pela política municipal de "renovação urbana" dos anos 1950 -localmente conhecida sob o nome de "Negro removaf' ("varredura de negros") . para ir fundar seus próprios bairros descentralizados (que se tornariam também segregados). que abandonou o coração do gueto. seguida pela relativa abertura das restrições de casta no local. Apenas 34% das mulheres e 44% dos homens de mais de 18 anos tinham emprego. combinando-se com taxas recordes de desemprego e de evasão escolar. não era atingida pela metade da renda média municipal. e multidões comprimiam-se nas diversas lojas. O afluxo de migrantes negros vindos dos estados rurais do Sul foi acompanhado por um êxodo maciço de brancos.500 dólares anuais. provocou uma crise das insti- outros. um terço das famílias do bairro vivia abaixo do limite mínimo federal de pobreza." Essa virada demográfica. que faz limite com ele ao norte. Alguns indicadores fornecem a medida do grau de precariedade socioeconômica dos habitantes de Woodlawn. depois de triplicada em uma década) e menos de um chefe de família. cinemas e clubes de jazz que ali ficavan1..versidade de Chicago). Trinta anos mais tarde) o bairro transformou-se em um vasto bolsão de miséria e desesperança. na rua 63. .ltJ:.. e a renda média por domicílio. a taxa oficial de desemprego atingia os 20% (duas vezes a taxa da cidade. uma loja de roupas para crianças. os prédios superpovoados e insalubres e o corpo docente subqualificado e desmoralizado são fatores que convergem para reduzi-Ias a instituições de "guarda". perto da State Street [no centro da cidade]. o segun- 15. Apesar da proximidade imediata de um dos centros de inovação médica mais famosos do mundo. mesmo quando as tabuletas das lojas que prosperavam antigamente no bairro só estão dos estabelecimentos do gueto nem mesmo oferece o Curso preparatório para o ingresso na universidade. a taxa de mortalidade infantil em Woodlawn estava aumentando a ponto de ultrapassar os 3%. a categoria socioprofissionallnais numerOSa era. Não há nada de sur- preendente que a isso tudo venha se somar a economia ilegal da rua. O bairro não dispõe mais de um colégio de ensino médio. no centro de uma paisagem de desolação urbana que os repórteres do Chicago Tribune. nem sequer de um cinema. a dos empregados do comércio e da administração. em que os homens desocupados da região vêm para dividir uma garrafa de aguardente nos dias em que faz bom tempo. A exemplo das outras instituições públicas.!4 embora uma grande parcela das cerca de 30 instituições religiosas presentes no início dos anos 60 tenha há algum tempo fechado suas portas. em Woodlawn. durante o período de turbulência das revoltas de negros. Menos de 8% de adultos tinham um diploma de ensino superior. com 22% dos casos. em um bairro situado às margens do lago Michigan.700 unidades. de terrenos baldios cheios de lixo e vidros quebrados. entre 1950 e 1980 (sobretudo em decorrência de uma epidelnia de incêndios "COlTI seguro". uma drogaria es- na melhor das hipóteses. uma loja de móveis usados e de equipamentos domésticos de ginástica. as escolas do bairro são "garantia de miséria e de criminalidade". de origem crimi- do lugar.embora para isso não fosse necessário passar por algum exame. uma mercearia e um restaurante de comida caseira) mal se sustentam atrás das grades. o hotel Pershing. e mais da metade neln mesmo tinha concluído O ensino médio .um mercado A&P. uma das mais devastadas do bairro. a uns dez quil6metros do centro da terceira megalópole norteamericana. ficava com as pessoas ocupadas em serviços e em tarefas relacionadas à segurança e com os(as) empregados(as) domésticos(as). à espera de clientes hipotéticos. de um lado. a parte da rua em que o clube de boxe está encravado reduz-se a uma fileira de antigas casas de comércio apodrecidas ou queimadas. que só acaba em desemprego. mais atraente que a escola. em empregos sem cobertura social. o hospital da Universidade de Chicago. o depósito do Empire [comércio de tapetes]. O Boys Club tem. Entre a população economicamente ativa. COln 31 % dos casos. O salão do Boys and Girls Club de Woodlawn situa-se na rua 63. a quatro dólares por hora. no meio do qual se ergue um parque para crianças e um pátio de chapa de aço ondulada. em 1990. está um terreno baldio esburacado. não existe qualquer empregador de porte em um raio de cinco quil6metros.a maior parte nal. falam mais do que todas as estatísticas sobre a posição marginal que essa comunidade ocupa na vida de Chicago. Á parte a Universidade de Chicago. A ausência de novas construções ao longo de décadas (70% das moradias datam de antes da guerra) e a destruição do parque habitacional. ou seja. fechado em 1973. de 1966 a 1970). por onde foi outrora a rua de comércio mais animada de Chicago. o Banco de Southeast Chicago". uma mercearia Hi-Lo. o cinema Kimbark. de construções abandonadas ao longo da linha de metr6 que passa sobre elas.i de assistência social. o antigo cinema Kimbark. Como em outros guetos negros norte-alnericanos. De outro lado. ou.600 para 38 LoTe Wacquant pecializada em produtos de beleza.!5 Na verdade. descrevem como se segue: "Passeiem pelo 'EI' [o metr6 suspenso] ao longo da rua 63.!3 A penúria cr6nica de meios de que elas padecem. do qual só restam a fachada folheada de material carcomido e o frontão. o triplo da taxa média nacional e superior aos índices de vários países do Terceiro Mundo. que diminuiu de 29. rodeado por uma tela. Bem atrás do clube. há Corpo e alma 39 . uma biblioteca ou serviço de formação de mão-de-obra e de agenciamento de empregos. um Walgreei1s [cadeia de drogarias]. semicobertas pela fuligem e pela putrefação . o principal jornal da localidade. As raras lojas que aí sobrevivem (vários botecos. que se contentam em estocar os jovens do bairro . "as instituições dominantes [de Woodlawn] são as igrejas e os botequins". roído pelas intempéries. A paisagem parece tanto com a de uma cidade fantasma quanto com mTI cenário de faroeste: tábuas obstruem portas e janelas. . [M urdertown J".. Quer dizer. .laie Waequanl . I' . mas esse é o mais sinistro: é o 'Mortecentro' Uma oficina religiosa e um clube para jovens em ruínas sob o metrô suspenso. .'. os furtos rápidos. l Corpo e alma - 41 .y "V'.-. o contrabando e a prostituição nessa parte do South Side.'" Ii .''1. anda com um sprayde gás lacrimogênio no bolso. estão proibidos de sair depois do crepúsculo e evitam. \ .' .-::: ./\.!.. 1\."". JiiIl!!i!-. " '. existe um acordo oficioso de não-interferência recíproca entre o Boys Club e o comando dos El Rukns.>.'... . os Discípulos).. . \ ' 'V " " UlTIa velha construção condenada. ~ " . " .'vI' ./V \/\7/\ \ \1 \1\\/\'/"/''''" i\ / i \/" \ " \1 '\1\\'1'.. não são a menor das fontes de insegurança. .... / I " " \ 1''/'.' ' ' I' I' - " . freqüentar os lugares e os transportes públicos. O clube protege-se desse ambiente hostil como se fosse uma fortaleza: todas as aberturas estão fechadas com grades de metal reforçadas e devidamente cerradas com cadeados. os habitantes do bairro escondem-se em suas casas atrás de :~.'" I·".'f\. o treinador do clube. . I . .) Um jovem que mora não muito longe do gym reSUlne dessa maneira a atmosfera do bairro: "O território em que eu nasci. que mina as relações interpessoais e distorce todas as atividades da vida cotidiana. ' ' . com portas blindadas e grades nas janelas.. esse nem mete tanto medo.. " . ". / '. ..''.' (/.~"''\." • . em razão dos laços pessoais que DeeDee mantém com aqueles chefes que outrora foram seus aprendizes no salão. Mas o que fica na frente. que controla o tráfico de drogas. os vidros da creche contígua têm grades. a porta metálica que abre para o corredor dos fundos tem fechaduras duplas e um sistema de alarme eletrônico é acionado assim que O último ocupante deixa o lugar. as agressões [muggings]. O lixo acumula-se nesse corredor dos fundos para O qual dá a entrada de serviço do salão de treino.. \ \ j. - I corrente e onde "todo mundo".. e os ônibus da cidade são seguidos por viaturas especiais da polícia durante todo o trajeto.. . os homicídios e delitos de toda qualidade fazem parte da rotina e geram uma atmosfera de medo impregnante. las de vidros quebrados estão lacradas por barras redondas e cujas portas de metal estão condenadas por fortes cadeados... cujas jane- \' . " ' 'i. Nesse bairro perigoso) em que as armas brancas são moeda .. de tijolo vermelho. As exigências dos membros da gangue dos El Rukns (antigamente.. . na medida do possível. '..'.". _.. \. no entanto.' \ \.~' o desemprego pandêmico condena à inatividade.li ' . eles são todos sinistros.. segundo DeeDee. Assim.'l. .I ' \/\\ ".. (E.. . Aliás.'~ . .'< " ' . por medo da violência criminal. Dois grandes tacos de beisebol estão encostados perto das duas l 40 . " . por vezes mesmo de terror..o ~ ~ 4 ." 1 .'" lIiiiiI '~7'~ . ..-.:'--~"" barricadas.1IV "'. é outra coisa. várias estações de metrõ do gueto tiveram suas entradas fechadas...V. [Nota de 13 de agosto de 1988. você vai em cana. Dois integrantes de uma gangue rival atiraram nele na rua. Por sorte.. o buraco em que eu morava era barra-pesada. Precisa nadar no meio dessa droga [dopei toda e entre as armas que circulam. Tony ligou para o ginásio do hospital." Risos.I entradas. forçando-os a fugir. não: agora estou a zero." Pergunto que efeito aquilo produz. às vezes cotidianamente. "Em geral. sempre carrego comigo. ôô: ele ia ser morto na mesma hora. não queremos que aconteça alguma coisa com ela ." Cada um conta as ocasiões em que teve de usar o gás paralisante. era um comendo o outro [dog- L Corpo e alma - 43 . Você não passa dela muitas vezes nesse bairro. é a idade média. como observava DeeDee. Eu agradeço a O'Bannon e perguntolhe se ele também sempre carrega um daqueles consigo. Os vagabundos [young punks] que ficam criando caso com você. há muita gentinha. Louie! Eles não atiram em você pelas costas pra ferir a sua perna. eles atiram pra te matar. Enquanto eu enfaixo minhas mãos. Aqui você está nUln buraco. sem levar sua pistola consigo. 1fi A maioria teve de crescer brigando na escola e na rua. Buth lembra-se de uma cena típica de sua adolescência: "Na época. em um dia de maio de 1989: "Antes era preciso ser de ferro pra sobreviver nessas ruas. e condena seu bairro sem apelação: "Está cheio de drogas por toda parte. Na academia. Eugene O'Bannon (um antigo pugilista. outro atrás do escritório de DeeDee. Se você está procurando encrenca." O prédio em que ele mora é um reduto conhecido Hoje. Mas agora é loucura completa viver aqui. atravessando todo o gueto do South Side no sentido longitudinal] e que nunca vai ao vizinho Parque Washington. carrego. sob pena de ter roubado o dinheiro do almoço ou o casaco.] 42 Leic Wacquan\ Isso quer dizer que os jovens do bairro acostumam-se bem cedo com as formas mais variadas e mais imprevisíveis da violência da rua. O velho treinador observa que de jeito nenhum ele pegaria o ônibus na avenida Cottage Grove [que liga Woodlawn ao centro da cidade. não são gente da minha classe. está no bairro certo. perto daqui. do outro lado de Cottage Grove. perto da qual a violência estritamente policiada do boxe parece ficar bem pálida. acrescentando: "Eu sempre trago ele comigo. [Nota de 13 de dezembro de 1988. correndo. mano. Os caras não chegam nem aos 30 anos. que ele me entrega: "Toma. E aí talvez você tenha uma chance de passar dos trinta. Você Se interessa por saber se defender. depois que a noite cai. caso seja necessário rechaçar manu militari a intromissão de visitantes indesejáveis.] I de passadores de crack. Vou precisar voltar correndo pra casa. que chega regularmente vestido em seu uniforme de serviço para discutir os golpes com DeeDee) tira do bolso do casaco um spray de gás paralisante de autodefesa Mace. ele vira-os chegar e Se mandara. não posso ficar passeando pelado desse jeito. tem que ver os números: se a droga não te mata) é um bandido que vai te 'queünar'. um ao lado do balcão de recepção da creche. na rua. mas uma bala pegara na barriga da perna dele. "Isso queima horrivelmente os olhos e o rosto. carteiro de profissão. pessoas barraspesadas [low lives J. você pode comprar fumo na rua com a primeira pessoa que passa. onde tirou seu próprio revólver da mochila de esporte e abriu fogo contra os assaltantes. mas não considero aquilo o meu bairro. eles teriam seguido o Tony e apagado ele. Você mira no rosto do cara e aperta aqui. Não estou nem aí. quando vou dar minhas caminhadas." De fato. a criminalidade violenta é de tal modo habitual que quase todos os membros do gym de Woodlawn já assistiram pessoalmente a um assassinato e foram eles mesmos vítimas de tiros ou facadas. I É verdade. é pra sua mulher. no limite de South Shore..] A conversa cai sobre os bairros negros da cidade. Não faz o meu gênero. DeeDee também tira o seu sprayde dentro do bolso. Ele se arrastara até uma construção abandonada. porque com certeza eles devem estar procurando por ele. as pessoas que ficam doidas na rua. Pergunto a DeeDee se os caras atiraram na perna como forma de advertência: "Ê. de se deixar humilhar com regularidade ou simplesmente para poder circular pelo bairro. DeeDee e O)Bannon exageram na devastação e na insegurança permanente que aí reina. Entrega a ela de minha parte. ou) se você tem sorte." [Nota de 27 de setembro de 1990. você não vê nada durante dez minutos. [Balançando a cabeça. Diz que é melhor sair logo do hospital. mas agora. de cocaína e de tudo o mais." Na mesma hora. porque dei o meu a você. Ele próprio mora ao sul de Woodlawn. Se o Tony não tivesse o berro com ele e não tivesse puxado ele. em Manhattan. até mesmo ganhar um pouco de dinheiro. você passa as frustrações pro saco de pancadas. 18 anos. Quer dizer.. você se sente bem . depois das aulas do colégio: "Você pode vir pra cá e se sentir bem aqui. E inúmeras estrelas. nego que queria pegar tua grana e dar porrada em você. de todas as formas . onde você pode aprender. uns elTI cima dos outros. Eu precisava ser osso duro [mean dog]. ter base. Se você está deprimido. talvez seja melhor você ir pro gym. na Califórnia. sente protegido. é melhor que ficar brigando por qualquer coisa. onde luta há um ano. como Sonny Liston. começaram a aprender a Nobre Arte na prisão. bom. 16 anos. precisei entrar na porrada". Fat City.. Uln mundo po passado no gym é menos tempo passado na rua!"..é como uma segunda família. ". A Inaiar parte subir no ringue'. Pinklon Thomas. queimando a energia de um modo que não vai dar em encrenca. e faz bem ver tudo isso". "Isso me protege da rua". e não por gosto.lx Do lnesmo modo. hein. Não queria passar drogas./(5) Esse clima abafante do gym está bem retratado no romance de Leonard Gardner." Em contraste com esse ambiente hostil e inseguro. antigo campeão do mundo dos meio-pesados. representa o Valentine Boys Club. "Prefiro ficar aqui do que na rua.. observa Lorenzo. teria me tornado assal- vel a vida da academia e dá o seu caráter atraente.74 metro.IS) Mike tem 19 anos e vai ao gym todas as tardes. é que torna possí- Mustafa Muhammad. ou eu estaria vendendo heroína. ou de Rosario. 'bom. De fato. relativamente fechado. mas logo depois você se sente melhor". Esse fechamento coletivo sobre si mesmo. 80 quilos. é comum ouvir-se um boxeador exclamar: "Todo tem- estabilidade e de ordem. Vários de meus colegas de Woodlawn eram "brigadores de rua" [streetfighters] convertidos ao boxe. Aluno do Corpo e alma 45 44 - Lo"ic Wacquant ./ eat-dog]. diversos dos participantes do torneio final das Golden Gloves de 1989 não hesitam em mencionar essa motivação na biografia sucinta que acompanha as fotos . Sem ele. "Eu brigava o tempo todo quando era novo.. Você sabe que pode ir lá e que alguém vai te apoiar. em segurança. 1. tirar qualquer coisa disso'. faz eco: "O boxe me tirou do meu buraco e fez de mim uma pessoa de valor.. então. como as de Gleason's. tem alguém pra te botar pra cima [pump you up]. Como eu digo. Como eu não podia me mandar. depois de uma dúzia de combates. e elnbora com uma cruel escassez de recursos. em conseqüência de um ferimento na mão. ir longe. deixando as gangues. explica o que o levou a voltar aos treinos tantas vezes quanto lhe permite seu trabalho como técnico em radiologia: "Gosto exatamente de ver os caras que treinam e que fazem qualquer coisa de positivo com eles mesmos. I 7 e no filme de John Houston. seu irmão mais velho trouxe-o para o boxe para evitar que ele enveredasse pelo mau caminho". na versão da WBC. você se tante de banco. porque eles estão na academia fazendo alguma coisa com eles mesmos. O salão oferece um lugar de sociabilidade protegida. O ganhador do título mundial de peso-pesado. Alguns profissionais admitem espontaneamente que muito provavelmente terialn caído na criminalidade se não fosse a descoberta do boxe. Bernard. o clube constitui uma ilha de freqüentador do gym. Você fica lá. talvez você nem tivesse moral antes de subir. era preciso brigar ou ir elnbora do bairro. de 1985. se você vai brigar desse jeito. Esse sentimento de fechamento é reforçado pela ausência de abertura física para o exterior: o gym de Woodlawn não tem janelas (e nem as salas das quais temos descrições detalhadas. de mesmo nome. Luta boxe há três anos e tem um cartel de oito vitórias e três derrotas. que acentua a "cIaustrofilia". me metendo em roubada [get into trouble]".79 metro. Depois você 'põe as luvas pra queria ser assaltante de banco". "meu pai me disse. as drogas e a cadeia pra trás. no qual os acontecimentos exteriores dificilmente penetram e sobre o qual eles têm pouca influência. "Gabriel Villafranca. passadas e presentes. no programa dos espetáculos: "Vaughn Bean. em que as relações sociais proibidas do lado de fora tornam-se possíveis. que teve de interromper a carreira profissional. Muita gente. em que cada um encontra UlTIa trégua para as pressões da rua e do gueto. 64 quilos. ou estaria morto ou na cadeia". 1. representa o Harrison Park Club. um antigo dos freqüentadores do salão foi iniciada na arte da autodefesa por necessidade. Floyd Patterson e Mike Tyson. que se passa nas pequenas salas de boxe da cidade de Stockton. no East Harlcm). Queria ser o melhor. Havia um momento em que era isso que eu queria fazer. Aluno do ensino médio no colégio de Calumet. confessa: "Se eu não tivesse o boxe. Preferem saber que o moleque está no ringue do que sem fazer nada na rua. "Como é que vocês vão hoje? Tudo bem?" DeeDee está vestido com uma calça cinza e com seu agasalho rua [stick-upJ. ao longo de toda a campanha. LOUIE: Ajudou como? LORENZO: Mais ou menos assim. morto ou na rua. a paixão que existe no meio operário (branco) norte-americano pelos escândalos públicos ç privados e pelos abusos policiais. antro de Flukie Stokes.. DeeDee confirmou-me que as mães dos jovens pugilistas. a gente pode dizer que isso te esfria a cabeça [blanks out lhe mind]. foi lutar boxe para evitar o mau caminho". hoje de manhã".. murmura ele com uma voz morna. com mão de ferro.Lok Wacquant Corpo e olmo . Os membros do Boys Club de Woodlawn partilham amplamente dessa opinião: Onde você estaria agora se não tivesse encontrado o boxe? CUlfrrs: Olha só. sacou? Você quer ser aceito pelo grupo de pessoas que te rodeiam quando você cresce no seu bairro.l ..47 . com certeza. muito jovem biológica e emocionalmente para "ficar" na rua. o gym me libera a cabeça de um monte de coi- sas. Porque tinha essa pressão que a galera fazia em cima de mim quando eu tinha 16 anos. trabalhando no saco de areia. entre outras coisas. com exceção dessa observação desabusada de Gene O'Bannon.. Elas sabem que vale mais para elas que eles estejam no gym". enchendo a cara. não fico com nenhUlna das duas". é bom. no International Amphitheater. pra não ser o que eles chamam de otário.(n) quer dizer. troco fortes apertos de mão com todo mundo. eu poderia estar fazendo alguma coisa que não queria fazer. 21J Ã\ 46 . LOUIl·':: LORENZ(l: Eu sei que se não fosse pelo gym. o gym me ajudou pra caramba. O lábio inferior pendurado. sacou. pra não deixar eles te passarem para trás na rua e tudo o mais. Diz que vai tudo indo. provavelmente me ajudou a não matar alguém. no próprio dia da votação: "Entre uma carroça de bosta de cavalo e uma carroça de bosta de cachorro. pensa bem. a derrota do prefeito negro Eugene Sawyer para o filho do antigo prefeito branco Richard Daley (que. em geral. no clube. sacou. não faz diferença. Por ocasião de um torneio júnior (menos de 16 anos). quê mais? A não assaltar alguém na L1UIE: E a academia tirou você disso tudo? LOI~ENZ(): É claro.. seguem com uma angústia mesclada de admiração a estréia de seus filhos. o olhar apagado. as longas mãos enroladas em volta de um cigarro. vender droga . (7) No dia 11 de novembro de 1988. O fechamento é marcado. Teria ele ido votar? "É claro. Assim.último ano do colégio Juarez. para seus freqüentadores. principalmente de fora . sacou. É a pressão do grupo. LOU1E: Você acha? CunTIs: Claro.essas coisas -. e ele orienta toda a política do técnico. um poot-butt [pirralho ]. sacou. andando com tipos nada recomendáveis e tentando me enturmar com eles [to blend in]. Deixou ele sair pra rua ainda verde". você vem pra academia treinar. O assunto não pa- Um poot-buttOiteralmente um "peidorreiro") é uma subcategoria do Jame (otário). concordam em reconhecer no boxe uma virtude protetora: "Não. ] Mamãe não ensinou nada a ele. Você nunca pode dizer! Você nunca pode saber o que a vida reserva pra você . que. nenhuma menção foi feita a respeito das eleições presidenciais que opunham George Bush a Michael Dukakis. líder da gangue que domina o South Side I bordado com escudos de boxe. então é isso.. das pessoas à sua volta. manteve Chicago sob um regime patrimonial racista durante meio século) só suscitou alguns breves comentários sobre o fato de que a política é "podre". se metendo em encrenca. elas não desencorajam eles.quando você também tem problemas. e sobre a qual se dirá: "Ele tenta se passar pelo esperto que ele já está careca de ver! E ainda está nas fraldas [. provavelmente na cadeia. Do lnesmo modo. expressão que designa uma pessoa "socialmente inexperiente". tudo o que você sabe é que você está na academia. tal como é descrita por David Halle. isso é como . bom. o fechamento da academia sobre ela mesma representa uma de suas maiores virtudes.19 (7) Não se encontra. pelo fato de que todos os tempos fortes da vida pública nacional e municipal não têm a lnenor repercussão no interior do ginásio. (6) azul do "Moonglow Lounge" [um bar do gueto. cada qual na medida de seus modestos meios. os dois juntos. É a juventude de hoje que representa a liderança [leadersltipJ. no início do inverno. econômicas e escolares. diz ele. uma organizaçao caritativa nacional que possui tentáculos em todas as grandes cidades americanas. tutoria de estudantes." E pôs fim à discussão. segundo ele. e muito cedo. Bush ou Dukakis. formados de negros e hispânicos. O resto dá no mesmo pra mim. são 90% financiadas por meio de doações feitas por empresas privadas. De fato. Louie. exercícios de estimulação. uma saída para a reposição consiste em pedir aos freqüentadores que contribuam. a mesma coisa para as bolas teto-solo que servem para treinar jabe). Graças a uma aprendizagem construtiva. drogas.rece animá-lo nem um pouco. passeios culturais e esportes. a quase totalidade advém da comunidade afro-alnericana. A sigla completa da organização . juntos vamos 'vencer a rua'! [Let's beat streets together!]" (folheto de apresentação do clube). mais de 1. com seu homólogo mais importante de Yancee. Se um saco de areia fura ou esvazia. porque. feitas. Corpo e alma 49 . para reunir os fundos necessários à compra de equipamentos novos e ao conserto dos usados. asseguramos o desenvolvimento dos talentos e das qualificações que são a base da auto-estima e que abrem as portas do sucesso. a maior parte dos recursos do clube de Woodlawn está destinada ao funcionamento da creche. Pergunto-lhe o que ele acha da campanha presidencial e. é excepcional ver dinheiro circulando no clube. a maioria deles situada nos bairros é o local de uma luta pela sobrevivência e que a única opção que se oferece para eles é uma vida sem futuro. em 1978. e o treinador DeeDee não recebe remuneração alguma. sob encomenda. fazendo um gesto desiludido com as mãos em direção ao exterior. Mas te cortejo de criminalidade. Seu objetivo declarado é oferecer uma estrutura de inserção capaz de arrancar os jovens do gueto da exclusão urbana e de seu tris- pêras de velocidade que excede de longe a oferta. Isso não tem a menor importância pIa mim. dos quais 70% são meninos de 6 a 18 anos. que compreende a academia de boxe e a creche infantil. pelo fotógrafo amador jimmy Kitchen. flcamos no mesmo pé que no começo". no final. faz parte de uma rede de treze clubes mantidos em Chicago pela The United Way. violência e miséria:21 "Investir na juventude de hoje é investir na Chicago de amanhã. essa é a nossa responsabilidade. a força e a visão de nossa cidade. res em potencial de alnanhã aprendem.Woodlawn-Yancee Unit. é tudo a mesma coisa. esses clubes compreendem. Estou bem me lixando pro que acontece fora dessas paredes. Os equipamentos gastos e estragados devem ser repostos pelo próprio ginásio. e muitas vezes há falta delas. o clube de Woodlawn fundiu-se. parentes e amigos. Os programas do centro de Woodlawn-Yancee foram criados para superar essas barreiras sociais. O que importa é o que acontece aqui. Oferecer aos jovens de hoje um melhor amanhã. e. cujos presidentes têm assento no comitê diretor do clube. o que explica o estado avançado de deterioração dos sacos de areia e das luvas e a penúria crônica de alguns materiais (o clube tem um consumo de As atividades propostas. para uma "vaquinha". gangues. a Woodlawn-Yancee Unit recebeu cerca de 50 mil dólares dessas empresas. A academia trabalha COln um orçamento dos lnais restritos. que a rua O Boys and Girls Club de Woodlawn. e desassistidos da cidade. quem vai ganhar. "ninguém nunca dá nada. a academia de Woodlawn organiza uma noitada "de gala" paga (25 dólares por pessoa. Mas muitos líde48 Lo'ic Wacquant DeeDee não gosta desse método. ocasião em que os boxistas amadores do lugar apresentam-se diante de uma platéia de notáveis e de estrelas locais. que fica a alguns quilômetros a oeste. "Eu não estou nem aí. O recrutamento de pugilistas é totalmente benevolente. entre essas quatro paredes daqui. O Boys and Girls Club limita-se a pagar os impostos e a manutenção do prédio. inclusive para os membros do clube).500 usuários por ano. que ela se define. com o objetivo de comprar um novo equipamento. no bairro negro adjacente de Washington Park. Fundado em 1938. A cada ano. com exceção do pagamento de fotos. Em 1987. Segundo o folheto de apresentação (intitulado "Um ano de vitórias pessoais"). Boys and Girls Club of Chicago: The Club that Beats the Street _ revela bem sua missão: é em oposição "à rua" e à marginalidade econômica e social do qual é o vetor. Perto Corpo e olmo . bola tetosolo]. permite que se façam abdominais. não raramente. pregado com fitas adesivas e remendado em vários lugares. o gym não transmite de forma alguma a idéia de destruição. com todas as bocas acesas.51 50 - "1-/'1 ~~. posto como um tabique. somente a ponto de evitar que o calor fique insuportável. no canto estão uma barra de ferro para os movimentos de flexão. um longo cabide de roupas. em cima dos espelhos. reforçada com fita adesiva prateada e forrada com material semelhante a lã. e o hard bag [saco de bater duro l.50 metro de largura e colocado. a pintura amarela está descascando em lascas das paredes. e.. uma estante de madeira oferece uma panóplia de folhetos para uso dos jovens do clube e suas famílias: "Primeiro as crianças: CURE. cujos azulejos estão quebrados ou faltando em vários lugares. e o carregamento cotidiano de comida na pequena cozinha pegada às duchas lembram a presença das crianças. Um speedbag [pêra de velocidade] pendurado a uma torrezinha de madeira. obliquamente. mas de maneira separada. com a ajuda dos serviços sociais da municipalidade. por um lado. dois armá'rÍos de acessórios. serve para trabalhar o tempo e a coordenação entre olho e mão.. pelo corpo maciço do ringue azul. No corredor de entrada.UM TEMPLO DO CULTO PUGILÍSTICO A sala de treinamento do Woodlawn Boys Club ocupa a parte dos fundos de um velho prédio de tijolos que data do entreguerras e que deve ter sido modificado para acolher atividades esportivas: acrescentaram-se as duchas e um vestiário. . Dois grandes sacos de areia. capacetes de sparring. uma fila de halteres raramente usados e um extintor. que se situa na parte de trás do prédio._~--- . onde ele passa o dia sentado diante do forno aberto. Contra a parede do lado leste. Durante os períodos de grande frio do inverno (o termômetro. para não atrapalhar as crianças. . longo rolo de couro preto acolchoado. está equipado com uma simples mesa forrada com uma lona de ginástica. duro como concreto. um de 1. direto no chão. para treinar os uppercuts. DeeDee refugia-se então na cozinha. . pedaços de reboco caem do teto. suspensos na ponta de pesadas correntes.. abrem-se as duas duchas quentes que ficam no fundo. sobre a qual se aplicam jabes. da ciência e da literatura mundiais. que corta o corredor que leva à creche. em que os boxistas trocam de roupa. "Torne-se mecânico graças ao curso Truman de tecnologia de automóveis". o resto dos equipamentos consiste de cordas de pular. No verão. cujo chão é coberto por um piso de madeira colocado sobre o linóleo. quando comparado ao estado avançado de decomposição do que está em volta. há dois espelhos. as portas são desconjuntadas e. de onde DeeDee observa a evolução dos pugilistas através de um grande vidro retangular. cuja altura é regulada acionando-se uma manivela. Mas a academia é limpa e bem conservada. e outro mais estreito.(l{l O mesmo prédio abriga uma creche infantil financiada pela The United Way. é atulhada de material de construção coberto por uma lona azul. enorme cilindro vermelho cheio de areia. e. o estreito compartimento recentemente pintado de azul vivo. A própria academia é bastante vetusta: os encanamentos e a fiação elétrica aparentes correm ao longo das paredes.. prontamente enxotada por DeeDee. luvas. e por uma pequena peça cúbica que serve de vestiário. "SOS-Aids na comunidade negra". privando o gym de qualquer aquecimento. Ela é delimitada. ocupam o centro da área de exercício: o soft bag [saco de bater mole]. Lo'ic Wacquant 9 metros. e um saco fixado horizontalmente à parede. para encher o salão de um vapor tépido que aumenta a temperatura até um nível suportável. os encanamentos que levam ar quente de uma caldeira situada a qtlatro prédios dali podem congelar e furar. presa ao chão e ao teto por elásticos. Uma mesa coberta com uma lona de ginástica pegajosa. para onde as crianças (todas negras) vêm depois do meio-dia. pela sala dos fundos (que abriga o escritório do técnico. A creche e a academia de boxe coabitam. o ar-condicionado é bem fraco. para realizar atividades de estimulação em duas salas forradas de pôsteres educativos multicoloridos que as exortam ao orgulho racial . Chicago Unit para a Reforma da Escola". mede cerca de 11 por (H) A sala também não tem seu aquecimento próprio. protetores genitais (cups). quando a temperatura freqüentemente ultrapassa os 300 C. muitas vezes desce até menos dez). por outro lado. A entrada dos boxistas. uma grande lata de lixo e uma balança). "Como encontrar um emprego: dez conselhos". arrumados em seus respectivos armários ou atirados sobre a mesa do escritório.. e uma punching-ball vermelha [double end bag. em janeiro e fevereiro.como essas séries de caltazes dedicados às grandes personalidades negras da história. Se a academia esfria demais. A parte do salão onde se boxeia. somente a intrusão periódica no ginásio de uma revoada de meninos. é só dele. instantâneos das moças que seguram o cartaz [cards girls]. Jesse Jackson exausto). o olhar ameaçador. incitando todos à modéstia e à excelência: "Don 't let your head get big in lhe rinlf'.do espelho menor. sentado em sua banqueta de córner durante o combate de despedida ("Ali: um último urra"). sobre os quais estão pregados recados telefônicos. tudo sobre o fundo de uma tinta verde que reproduz uma gigantesca nota de um dólar (no total. p. entre fotocópias de capas de Ring Magazine. a licença do clube pregada com durex nas costas da cadeira do técnico.22 A parede da sala dos fundos. ferocidade) e encarnam as diversas formas de excelência pugilística. vistas de Chicago à noite e propagandas de carros de luxo. homenageados sorridentes) e da cidade. Essa montagem condensa e exprime o enovelamento mútuo de todos esses aspectos da cultura afro-americana em Chicago. outro balde recebe os escarros dos lutadores. exibe orgulhosamente um berrante adesivo azul e vermelho que proclama: "Diga não à droga!" No canto oposto. exibindo seu cinturão de campeão do mundo de meio-pesado versão WBC (que. As outras paredes são forradas de armários metálicos fechados por pesados cadeados e com as portas enfeitadas com fotos e cartazes de boxe. KO e Ringworlá) pregadas por toda a parte. que exibem suas curvas nos intervalos das lutas. casais enlaçados. um outro retrato de Tyson em roupa de combate. Bem à vista. adesivos de boxe. de reuniões'políticas (o falecido prefeito Harold Washington rindo. sem esquecer os retratos de DeeDee e de boxeadores do clube. uma foto de Tyson em ação. pela presença. Knoekout. 52 LoTe Wacquant Também as paredes do gym estão pontilhadas de pôsteres de boxeadores. nas paredes. sorrindo ao telefone. atrás da poltrona de DeeDee. cenas de treinamento. por intermédio de um funil pendurado em um dos postes do ringue. morto recentemente). O autodenominado fotógrafo do clube. está um balde para recolher a água que corre de uma goteira. de cerimônias religiosas (casamentos. concedido por uma escola privada. (9) Sobre o espelho grande. Os campeões demonstram. Thomas Hauser observa que "não existe gym que não tenha sua ou suas fotos de Ali na parede" (op. inteligência. Um deles. cartazes desbotados de grandes combates (Gerry Cooney contra Larry Holmes). à direita da entrada do "escritório". Alphonso Ratliff. a academia constitui uma espécie de templo do culto pugilístico. estão pendurados dois grandes retratos em uma só cor de Martin Luther King e Harold Washington (o primeiro prefeito negro de Chicago. O espelho é ladeado por dois cartazes de reuniões locais. uma forma de obra de arte popular feita de velhos calendários de publicidade. surpreso. amarelos e beges. de fato. 35). que pode ser lida tanto como "Não deixe sua cabeça virar um quadrado no ringue" quanto como "Não seja pretensioso no ringue") e um outro pôster de Mike Tyson fazendo uma careta horripilante enfeitam a parede da cozinha. durante e depois dos combates. reina uma fotografia em preto-e-branco de um jovem colosso de torso nu. como atesta (9) É a decoração típica das academias norte-americanas de boxe. in vivo. uma capa da Newsweek mostra Mohammad Ali com dor. não menos de 65 fotos e imagens). pequenas flâmulas de boxe multicores. vencedores de uma noite brandindo sua copa). três grandes quadros de madeira exibem colagens compostas de dezenas de fotos não usadas. cit. de capas de revistas especializadas (tais como Ring. eles também podem intervir diretamente sobre a vida de cada um deles. duas bandeiras americanas.53 . mas tenaz. Marvin Hagler e Tony Lalonde. enviadas pela Boxing Commission. à direita. de noites dançantes (músicos em ação. os técnicos rodeados por seus alunos. Na disposição e na decoração. à esquerda. perto da cozinha. Um desenho de um boxista com um corpo minúsculo e uma cabeça enorme (acompanhado de uma legenda de duplo sentido. um diploma de primeiros socorros em flebologia. velhas circulares oficiais amarelecidas. as virtudes mais elevadas da profissão (coragem. destreza.. dos grandes lutadores do passado e contemporâneos aos quais os jogadores ainda não-maduros do ginásio votam um culto seletivo. tiradas por Jimmy Kitchen. com as capas da revista Knockout mostrando a cara ameaçadora de Leon Spinks. Corpo e alma . . mais tarde. acompanhada dessa exortação: "Escolha bem em que pensar!" ["Seleet lhe things Ihat go into your mind!"1 Ela está ao lado de um grande pôs ter vermelho. tenacidade. pin-ups negras dos anos 60. azul e amarelo. que anuncia o duelo Tyson-Spinks. batismos). e de um retrato colorido da grande estrela do clube. ele perdeu). força. a musculatura enfaixada. Além disso. de cartazes de combates locais. "Life in the Big City 1986" é uma montagem de imagens de boxe (antes. por cima de anúncios de combates regionais. que aparece em cinco pôsteres.. usa um boné azul bordado com um enorme "wAR" vermelho). Charles (treinador assistente) responde-me prontamente: "Claro.. A primeira vez que ele pintou. Enquanto enxugo meu corpo com uma toalha. se quiser. que as redes que geram o business da luta parecem-se menos com "escalas" do que com segmentos fortemente clivados. deu uma geral no gym todo. Ficou tão furioso que. duas na parede oposta e três na parede no norte.. que compartilham dos cachês miríficos das reuniões midiáticas de Las Vegas e de Atlantic City.. bem em frente a Mohammad Ali. essa proximidade física. trocas) buscas. [.se "sintagma". dos meninos daqui. que justapõe um Michael Spinks sendo demolido por Mike Tyson ("A glória a qualquer preço?". Porque esses eu quero conservar e colocar na parede. emolduramento por parte dos interessados). que há descontinuidade.23 Os caltazes e a decoração mural da sala desempenham um papel notável no estabelecimento das hierarquias no interior do clube. O segundo campeão mais homenageado é Sugar Ray Leonard. no mais das vezes. É a primeira coisa que eles mostram pro pessoal deles [buddies] quando ele vem aqui pela primeira vez. pergunta o artigo que acompanha a foto) a uma publicidade local de um encontro de segunda classe com lutadores de segunda linha (Manning "Motor City Madman" Gallaway contra Craig "Gator" Bodzianowski). cara. então acreditava que a foto dele já estava em todo canto.a foto de Mike Tyson ladeado por DeeDee e Curtis (que. chamam o pessoal e dizem: 'Olha só. exigindo e fazendo circular os signos de sua participação nesta ou naquela reunião. menos que o número de imagens. perto do armário das cordas de pular." Escudo protetor contra as tentações e os riscos da rua. que estão em desordem dentro de uma grande pasta de papelão. a academia de boxe não apenas é o local de um exercício rigoroso do Essa iconografia mural de aparência anódina. É notável que cada "grupo" de pôsteres compreenda uma ou várias fotos de campeões no momento da ação. O cara nem acreditava. cujo acesso é firmemente5 controlado pelos detentores do capital social específico. colocados. treinada sob vigilância informática e médica de ponta e da qual somente o nome basta para fazer circular correntes de dólares e fazer tremer os mais temíveis adversários (como no mito Tyson). No entanto. É corno. Isso é muito importante pra eles. no dia seguinte. sustenta a crença em um ideal por definição inacessível para a quase totalidade dos pugilistas e contribui para alimentar a ilusão de uma "escala de mobilidade" contínua e graduada. desde o recruta anônimo do mais modesto dos clubes até a estrela internacional. que faz lançar sobre os dois uma parcela do capital simbólico da estrela saída do gueto do Brooklyn. DeeDee corta e replica vigorosamente: "Mas o que é isso que você está falando aí? Eu não vou jogar eles fora! Isso não. e os supercampeões. mas você não pode pegar qualquer um. um laço quase genealógico entre os pugilistas locais. porque de qualquer modo eles vão ser trocados". antes. Não há menos de cinco fotos individuais de Tyson na única parede na qual estão fixados os espelhos e a speedbag. sugere uma associação. Deixe eu olhar essa pasta e vou lhe dar quatro ou cinco dos antigos. que combatem em troca de um dinheiro irrisório nas noitadas da região. transparece da organização social e econômica do boxe profissional indica. e não havia nenhuma foto dele na parede. por meio de cuja interpretação cada um busca afirmar ou ter aumentado seu valor no mercado pugilístico. Vão direto para o pôster com a foto deles em cima. são para jogar fora ou se posso pegar alguns deles. contanto que ele tenha a coragem e o talento necessários. Os pôsteres são objeto de um "tráfico" (dons. na parede do escritório. zanzou por toda parte. é mais a forma como elas estão arrumadas que dá toda força e significado a essa espécie de iconografia profana espontânea. você pode pegar todos eles. Todos participariam de uma mesma essência: a providência e a determinação individual decidirão qual dos pequenos irá se tornar grande. Não os que têm fotos dos meninos do clube.. levando progressivamente da base ao topo da hierarquia pugilística . E. para a ocasião. Os meninos gostam muito de ver as fotos deles na parede. você se lembra do Duane? Ele achava que era um lutador conhecido. Loiue. dá-se concretamente a idéia de uma grande "cadeia do Ser" pugilístico: haveria continuidade. pergunto a DeeDee se os velhos cartazes de combates locais. sou eu nessa foto'. me trouxe uma foto dele. Assim. pregada em um lugar de honra.quando o que 54 LoTe Wacquant I L Corpo e alma - 55 . ] Eles adoram ver os pôs teres COm as fotos deles em cima. tal como é indicado nesta nota de 15 de novembro de 1988. tráfico. que fornecem a matéria essencial das discussões. como é demonstrado por Ned Polsby. que renascem sem parar de suas próprias cinzas. mas não têm chance de gerar desacordos. da família e do coração. São. O resto dos "papos de cozinha" versa sobre (lO) o treinamento do corpo. são freqüentemente evocados. nOS registros do trabalho. Las Vegas e Reno pelos canais de TV a cabo. DeeDee e os mais antigos dão mostras de um conhecimento enciclopédico sobre nomes. com as paredes fartamente cobertas de cartazes de lutas e de fotos de boxeadores. Do boxe. Você acha que vai dar tudo cerro?" "Mas é claro. dissecam -se as sessões de sparring. como ESPN. sobre os quais todos têm um repertório pessoal extenso. é a minha primeira luta. essas formas de interação social no limite desprovidas de conteúdo ou dotadas de conteúdos socialmente anódinos. Os combates que marcam a história. ou Holyfield contra Foreman) são menos admirados que os confrontos locais. Tudo se passa. a posição que eles ocupam no espaço confinado da sala dos fundos esboçam uma estrutura complexa e altamente hierarquizada. assim como os sucessos e os fracassos dos pugilistas em ascensão ou em declínio. no caso. lugares e acontecimentos que se destacam no folclore pugilístico. como a discriminação na hora de procurar emprego e as brutalidades policiais. Sob esse ângulo. sob o ângulo do vigor e da coragem física exibidos por esse ou aquele jogador. o jogador estrela dos Chicago Bulls.2" o perpétuo problema da administração do peso e outras considerações técnicas. junto com os bares. SportChannel e Sportvision.III) Um pecking orderestrito rege a ocupação das poltronas. um dos últimos refúgios da subcultura masculina solteira. sob esse aspecto.Lo"ic Wocquanl . e as séries de nomes desfiados durante a conversa contêm mais pugilistas obscuros do que as estrelas conhecidas da mídia. Os problemas conhecidos como raciais. sobretudo a regional. crimes e agressões. que estão lutando em spilrring.ri i . de fato. é típica a esse respeito. enquanto o treino está em cursO. capaz de atentar contra essa "forma lúdica de socialização" e de entravar o bom desenvolvimento das trocas cotidianas. em razão da homogeneidade étnica do recrutamento da academia. de 27 de junho de 1989. e cujos resultados e conseqüências são mais abundantemente comentados. o das histórias de brigas. esses processos puros de associação que têm seu fim neles mesmos. você >' (11) A academia de boxe aproxima-se. raramente conversa-se no salão propriamente dito. portanto. trocam -se conselhos e dicas. 24 Isso em razão do código tácito segundo o qual os membros do clube devem deixar na porta todos os status. para que o desempenho do time no campeonato nacional de basquete seja mencionado. ou especialmente difundidos pelas cadeias pagas. como TVKO e Showtime).2 5 Corpo e alma . Essa nota. IIO ) Quase nunca se fala de política. sobretudo no dia seguinte ao das partidas. "Vou lutar amanhã.57 56 . que constituem. ela é também o suporte do que Georg Simmel chamou de "sociabilidade" (Geselligkeit). ao pé do poste do ringue. os problemas e obrigações que eles têm lá fora. são freqüentemente comentados. Assim. de pôr em perigo a subcultura masculina específica que o gym perpetua. Ele está com uma cara um tanto pálida e inquieta. pesquisam -se torneios passados e reuniões futuras. dos salões de bilhar. A ordem dos interlocutores. observando Lorenzo e Big Earl. evidentemente. Por ocasião desses debates. o "escritório" de DeeDee . o teor de suas proposições. quando Billy vem apertar minha mão. a conversa desliza insensivelmente para um outro registro. no entanto./ corpo. de onde se pode controlar a área de exercícios por intermédio de um grande vidro retangular . Começo a me aquecer. e tem razão. a informação pugilística e sobre o conhecimento da rua e de seu mundo suspeito. os grandes combates televisionados (por exemplo. Os jogos dos Bears. Mas um esporte tem mais chance de ocupar as conversas quanto mais ele se aproxime de um esporte de combate e faça apelo para as qualidades viris. como se um pacto de não-agressão governasse as relações interpessoais e excluísse da conversa todo tema "sério". e. são abordados de forma incidental.a sala dos fundos. Fruto de uma inversão deliberada do quadro de valores oficiais. As conversas no clube são bastante ritualizadas. Leonard contra Hagler. é preciso alguma proeza de Michael Jordan. os encontros de boxe locais e nacionais (regularmente transmitidos de Atlantic City.funciona como um palco no qual cada um pode dar provas de sua excelência no manejo do capital cultural próprio ao grupo. Somente os eventos esportivos têm automaticamente direito de circulação. a equipe de futebol americano de Chicago. Ed Woods. vêm os lutadores. Você vai lutar [no torneio das Golden] nas Gloves e ganhar. e vai levar pra casa uma taça tão grande que tua mãe e tua avó nem vão acreditar. Ashante. no lnais das vezes quando o velho treinador não está presente. a equipe olímpica e os patrocinadores vão querer que você vá para O gym deles. podem ter orgulho de vocês mesmos e fazer suas mães ficarem orgulhosas de vocês.pergunte ao Anthony se não é verdade. e assim por diante). um ingrediente essencial do "currículo oculto" do gym: elas comunicam aos aprendizes de boxe. te dar comida. Charles Martin. e vão te dar roupa pra usar. Graças ao boxe. aos tropeços. não come. treina pra valer no gym e faz bem o seu serviço. que está sentado sobre a mesa. sem esquecer de pedir diversas vezes com o olhar o testemunho de Anthony. de fofocas da academia. Em seguida. que começaram a treinar tarde e tagarelam enquanto boxeiam devagar diante do espelho. A desculpa higienista dissimula mal a razão social dessa interdição: a poltrona simboliza o lugar de DeeDee e sua função na academia. de não ser nada e de ficar dando bobeira na rua. pra altas lutas .um com o torso nu e vestido com uma calça vermelha. está em forma. Mas a proibição recai também sobre aqueles que chegam vestidos à paisana e que não treinalTI . e interpela Reggie e Luke . envergonhado. vai trabalhar. papeando? O que você acha que é isso aqui? Um clube de encontros? Você não está numa boate. Smithie. que bronqueia com ele: "O que é que você está fazendo aí. Lorenzo. gerente responsável por um ginásio semelhante em Saint Louis. A poltrona de onde DeeDee segue a evolução dos atletas é estritamente reservada para o senhor do lugar. fazer abdominais. de onde ele pode descortinar com um único olhar. Com uma voz de estertor que eu nunca tinha ouvido nele. [No pain. Se você treina de verdade. de tudo o que eles poderão fazer quando forem campeões. Precisa traCorpo e alma . Se você treina pra valer e se trabalha pra valer. [Anthony aprova o chefe. quando eu começava meu terceiro round no saco de bater. mano. você pode viajar por vários lugares. adverte-os vigorosamente pelo comportamento. Butch. ou à Inglaterra e à Europa. cara. sob pretexto de que poderá ficar suja de suor.59 está bem preparado. perto do ringue. o saber indígena da profissão. sacou?" Confidência interrompida pelo treinador Eddie. de anedotas de combate e de lendas da rua. outro técnico e amigo próxüno de DeeDee. mas não fica aí sem fazer nada. mano. um sentido inquebrantável da honra masculina e uma acentuação expressiva do desem- penho e do estilo pessoa!. \ 58 - Loic Wacquant . você é um cara sério.27 As PROMESSAS DO BOXE Em 10 de junho de 1989. vocês podem se tornar alguém. Elas são. Oficialmente. Quem não trabalha. Posto de observação. outro de calção e camiseta azuis -.] Mas precisa trabalhar pra valer. vez ou outra. antes de dirigir-lhes esse retrato das recompensas do pugilista. por ordem de força e de antigüidade (Curtis." "Você acha? Eu realmente estou me cagando de medo. Curtis sai bruscamente do vestiário. a dureza e a coragem física ("o coração"). vigiar e. Bi11y! Vai pular corda.assim como o momento de tomar a palavra: são os treinadores e os mais antigos que têm a prioridade (na ordem: DeeDee. você vai à França. o carteiro O'Bannon). ela é o lugar de sua autoridade. você vai ver que você vai parecer um touro caindo em cima dos outros. vá!" Billy guarda seus estados de alma e começa a fazer exercícios. pode virar um boxeador de alto nível [big-time fighter] e ganhar altas lutas. elas inundam esses aprendizes de valores e de categorias de entendimento elTI vigor no universo pugilístico. Sob a forma de relatos mais ou menos apócrifos. o velho Page. "Em vez de ficar sem fazer nada. de uma forma oral e osmótica. vocês podem ser nlguém. seguidos pelos visitantes de ocasião. a jovem estrela do clube. permite-se. portanto. e eles vão dar pra você de graça aquelas calças e aquele agasalho. Você vai ter oportunidade de ir a lugares em que você nunca sonhou ir. Essa é uma academia legal. essas categorias mesmas que ancoram igualmente a cultura da rua no gueto: um misto de solidariedade com o grupo de pares e de desconfiança individualista. uma taça tão grande que elas vão chorar só de pensar que foi você que ganhou ela. Rico. te dar três boas refeições por dia. de fato. transgredir a proibição. Não é prudente subestimar a importância dessas conversas de aparência anódina. Estou começando a esquentar a cabeça. no gain] Isso não vai te acontecer por obra do Espírito Santo. de graça. monitor em um ginásio municipal.somente Curtis. controlar todas as fases do treinamento e os gestos de todos. ele não quer que ninguém sente nela. você nem vai acreditar nos gyms que eles têm. das frações recentes da classe operária. É assim que.por esse palavrório lança- do por um Curtis enfurecido e seminu. a mais elevada começa somente com 12. bater no saco de areia.tal como O campeão de todas as categorias Mike Tyson -. nível de escolaridade. têm uma vida mais dura que os negros [they have it rougher than black]". a predominância sucessiva de irlandeses. sublinhar que. por ocasião das lutas do final da edição de 1989. dos pugilistas chicanas. por uma soma global inferior a 50 (12) t difícil exagerar a importância da influência do fenômeno Tyson sobre o boxe no gueto negro no final da década de 1980. precisa ser sério no seu trabalho. contrariamente a uma imagem bastante difundida. sua convivência COm o meio artístico (por intermédio de Spike Lee). em Chicago. suscitar vocações em massa . em fevereiro de 1990. onde. "para saber quem está por baixo na sociedade. Desse modo. discussões e histórias. ele iniciou-se no boxe). apenas por seu valor de símbolo. além do mais. de judeus da Europa Central. em termos de potência. também perguntas sobre se ele foi criado em uma família sem pai ou sem mãe e sobre o nível econômico da família: das cinco categorias de renda pré-codificadas no questionário. além do estado civil. mais recentemente. no momento da inscrição. vinda do mito indígena do "boxeador que tem fome" [hungry fighter]. Os jovens que "venceram a rua" Sabe-se que a esmagadora maioria dos boxistas vem dos meios populares e. seus laços financeiros com o miliardário novaiorquino branco Donald Trump. e. na época). de negros e. mas que. não existe.e pelo menos atraídos . aumentadas pela imigração. de hispanófonos corresponde estritamente à sucessão desses grupos na base da escala de classes. que é a tradução direta do afluxo maciço de migrantes mexicanos nas regiões inferiores do campo social do Midwest norte-americano. agora. é capaz de. O fenômeno passou por uma reviravolta espetacular depois da derrota de Tyson para Buster Douglas. sobretudo. da condenação à prisão por estupro e a série de incidentes bizarros que se seguiram. você tem que ver o boxe. depois. Os mexicanos. é imediatamente perceptível quando se computam os programas do grande torneio amador anual das Golden Gloves.balhar pra valer. a profissão do candidato e a de seus pais. DeeDee observou-me que. ou seja. cara. em seu tempo. nas bordas da integração socioeconômica estável. cada membro do Woodlawn Boys Club deve preencher uma ficha de informações que compreende. 60 . que foram. e periodicamente reavivada pela atenção seletiva da mídia para os representantes mais exóticos da profissão . mas pela mediação das dis-'\ posições morais e corporais acessíveis a essas duas frações da popu-J lação afro-americana. Na verdade. a metade da renda média da cidade. A título de confirmação local. de italianos. Essa (auto )seleção. inspiradores de milhares de aprendizes de boxe. Processo similar de sucessão "étnica" observa-se nos outros principais mercados pugilísticos do país. no entanto. Michigan. seus conflitos pessoais e jurídicos com a antiga entourage fizeram dele uma personagem legendária que não somente alimenta um fluxo contínuo de boatos. claramente dominadas pelos boxeadores de origem mexicana e porto-riquenha. não se opera sob o efeito de uma penúria de recursos monetários. mas sim no interior das franjas da classe operária local.2\I Corpo e alma 61 .lo"ic Wac'1uant É preciso. propriamente falando. o custo da licença da Amateur Boxing Federation (cuja aquisição é obrigatória por razões jurídicas) é de 12 dólares (72 francos) e a totalidade do material necessário ao treinamento é graciosamente fornecida pelo clube . suas desavenças conjugais e financeiras com a atriz afro-americana Robin Givens (que foram objeto de várias transmissões televisivas especiais nos horários de pico de audiência). treinar pra valer. 2x A ascensão.como Joe Louis e Mohammad Ali. shadowboxing. que tende de fato a excluir os mais excluídos. A verdadeira onda midiática que acompanhou sua ascensão (fora do gueto do Brooklyn e da prisão. Reggie e Luke baixaram a cabeça e voltaram ao trabalho com uma seriedade e um ardor renovados." Estupefatos . que são a área de Nova York-Nova )ersey. adolescente. barreira material direta para a participação: a inscrição no clube monta a 10 dólares por ano (60 francos. (12) os boxeadores não são geralmente recrutados entre as frações mais deserdadas do subproletariado do gueto. Então tudo isso pode ser seu. todos os dias: jogging.somente as bandagens [hand-wraps] e os protetores bucais [mouth-pieee] devem ser comprados pelo pugilista em uma loja especializada.500 dólares por ano. nesses últimos anos. a Flórida e a Califórnia do Sul. francos.(I3) É pelo viés das inclinações e dos hábitos exigidos pela prática pugilística que os jovens saídos de famílias mais despossuídas são eliminados: tornar-se pugilista exige, de fato, uma regularidade de vida, um sentido de disciplina, um ascetismo físico e mental que não pode se desenvolver em condições sociais e econômicas marcadas pela instabilidade crônica e pela desorganização temporal. Abaixo de um determinado limiar de estabilidade pessoal e familiar objetiva, torna-se altamente improvável adquirir os meios corporais e morais indispensáveis para amadurecer com sucesso no aprendizado desse esporte,(14) A análise preliminar do perfil dos 27 profissionais (todos, com a exceção de dois, de origem afro-americana, de idade entre os 20 e os 37 anos) em atividade, durante o verão de 1991, nos três principais gyms de Chicago, confirma que os pugilistas são de condição social superior ao segmento mais baixo da população masculina do gueto. Um terço deles cresceu em uma família que recebia uma ajuda social, 22% estavam desempregados e o resto era empregado ou recebia um "salário semanal" de seu empresário. Treze deles (ou seja, 48%) fizeram sua educação escolar em um pequeno cammunity cal/ege (realizada em curso intensivo, sem se Os gyms dos serviços de parques e jardins da cidade são ainda mais baratos, porque a inscrição é gratuita. Uma outra academia profissional de Chicago exige lima cotização mensal de 5 dólares para os amadores e de 20 dólares para os profissionais, lUas os trambiques são enormes, nesses locais. Em outras cidades, alguns gyms cobram taxas de inscrição ainda mais elevadas: por exemplo, 55 dólares por trimestre no Somerville Boxing Gym, em um subúrbio operário de Boston, onde eu treinei boxe em 1991-1993, e 50 dólares por mês em uma academia de Tenderloin, bairro mal afamado de São Francisco. (14) tirar o diploma nem obter qualquer benefício econômico tangível); UIn recebeu llln associatedegree, e mn outro, umalicença.(15) Apenas três (11 %) não tinham terminado seus estudos do ensino (U) Caso contrário, a falta de governo interno deve ser compensada por uma dureza diante do mal, capacidades atléticas e por uma agressividade entre as cordas excepcionais. Esses pugilistas tendem, contudo, a "pular fora" [to bum our] prematuramente, e raras vezes atingem seu potencial pleno, tanto pugilístico quanto econômico. O caso do prodígio dos ringues, que foi triplo campeão do mundo, Wilfredo Benitez, filho de um cortador de cana-de-açúcar de Porto Rico, é exemplar a esse respeito: embora tenha se tornado profissional aos 14 anos e tenha arrebatado a coroa mundial aos 17, sua irregularidade nos treinos e sua notória indisciplina alimentar fizeram com que sua carreira logo fosse abreviada. médio e cerca da metade tinha conta bancária. Em comparação, 36% dos homens de 18 a 45 anos que moravam no South Side de Chicago, em 1989, tinham crescido com ajuda social, 44% estavam sem emprego, a metade havia abandonado o colégio sem terminar o curso e apenas 18% dispunham de conta bancária." O perfil educacional e socioeconômico dos boxistas profissionais é, portanto, sensivelmente mais elevado que o do morador médio do gueto. Cabe observar que nenhum dos pais desses boxistas havia obtido diploma do ensino médio e que quase todos tinham um emprego como operário ou assemelhado - com a exceção notável do filho de um rico empresário branco do subúrbio. E os dados dispersos de que dispomos, pelo levantamento das biografias e dos relatos indígenas, sugerem que o recrutamento social dos boxistas, em lugar de düninuir, eleva-se ligeiramente quanto mais se sobe na hierarquia pugilística. Emanuel Steward, o treinadorempresário e fundador do célebre gym de Kronk, em Detroit, fabricante de inúmeros campeões do Inundo, observa: "Ao contrário do que as pessoas pensam, a maioria de n1eus lneninos não é tão pobre assim. Eles vêm de diversos bairros bons de todo o país".32 Longe, portanto, de se originarem nessas novas "classes perigosas" desorganizadas e não-socializadas, diante de quem o temor exprime-se por meio do discurso pseudo-elevado sobre o oi aparecimento de uma" underc/ass" negra pretensamente isolada para sempre do resto da sociedade,33 tudo indica que os pugilistas distinguem-se dos outros jovens do gueto por um acréscimo de integração social com relação a seu baixo nível cultural e econômico, e que eles provêm de famílias originárias da classe ope- (15) Um comlml1lity college (ou junior college) é uma instituição de ensino pós-secundário curto, que prctensamente tem a finalidade de dar acesso às longas fileiras do ensino superior, mas que, na verdade, oferece cursos de reciclagem de nível médio e concede, em dois anos, um diploma de caráter profissionalizante (associatc degree) , amplamente desprovido de valor no mercado de trabalho. 30 62 - Lok Wacquant Corpo e alma - 63 rária, ou, ainda, que eles esforçam-se muito para recuperar esse status engajando-se em uma profissão que percebem como um ofício manual qualificado, tido em alta estima pelo seu ambiente imediato e que oferece, além do mais, a possibilidade de ganhos financeiros consideráveis. A grande maioria dos adultos do gym de Woodlawn trabalha (é verdade que, sobretudo, em tempo parcial) como guarda, frentista, pedreiro, gari, vendedor, mensageiro, instrutor de esporte para os serviços de parques municipais, empregado de fotocopiadora, manobrista, sapador, caixa, animador em um centro de detenção para jovens e operário eln 111na aciaria. É claro que, na maioria dos casos, esse enraizamento no proletariado é frágil, porque esses são empregos tipicamente precários e mal remunerados, e eles não excluem o recurso crônico aos "expedientes" [hustling] da economia informal da rua para somar as duas fontes no fim do mês. 34 E um contingente de boxeadores profissionais vem de frações inferiores da classe operária, ou seja, de famílias grandes que vivem "de ajuda social", em complexos alojamentos públicos estigmatizados, sofrendo com o desemprego endêmico e quase permanente. Mas eles não são a maioria, assim COlno não são, em média, os competidores que conhecem o maior sucesso no campo do pugilismo. Além disso, embora seus medíocres rendimentos e seus fracassos escolares não os distingam da média dos moradores do gueto de sua faixa etária, os pugilistas profissionais são mais freqüentemente originários de famílias intactas e, na grande maioria das vezes, são casados e pais de família. E eles têm o privilégio de pertencer a uma organização formal - o clube de boxe -, enquanto a esmagadora maioria dos habitantes negros dos bairros mais pobres da cidade não é membro de qualquer associação com exceção dos raros remanescentes da classe média. 35 No entanto, a influência da integração conjugal e familiar se exerce de maneira sutilmente contraditória: condição que permite a prática, é preciso que ela seja suficientemente forte para permitir a aquisição dos meios e das motivações necessários ao combate, mas não muito forte, contudo, para que o emprego e a vida de família não venham a fazer concorrência muito dura com o investimento no boxe. 64 - lo'ic Wocquon1 DEEDEE: Não, o Ashante não vem todos os dias, você sabe bem disso, Louie. Há os jovens que estão no colégio e que vêm regularmente todas as tardes. Esse é o problema dos adultos: eles são casados, eles têm família, filhos, não podem vir à academia todos os dias. Os aluguéis são caros, a mesma coisa pra comida, e é preciso ir catar grana pra tudo isso. É preciso arrumar um trabalho de meio-expediente, encontrar um serviço que te dê a grana que a mulher e os filhos precisam. E quando você pode levar dinheiro pra casa, precisa ir ao serviço, e não vir treinar. Esse é o problema do Ashante. O Ashante tem dois filhos. Tem uns servicinhos aqui e ali. Faltou na última reunião, quando ele estava no programa, porque teve oportunidade de trabalhar trés ou quatro dias de enfiada e arrumar um pouco de grana. É um armazém, quando eles procuram pessoal pra fazer hora extra, eles pegam ele [como vendedor, durante o dia]. Não é uma coisa fixa, mas eles chamam muitas vezes, quando precisam. Ele pode ganhar mais fazendo esse serviço de tempo parcial do que subindo no ringue. [Um combate que fique no meio do programa dá um caché de cerca de 150 a 300 dólares para cada um dos protagonistas. J E sem ter que apanhar [get beat up J. Então, precisa que ele pegue. [Nota de 13 de janeiro de 1989. J A conversa recai sobre Mark- um jovem novo que trabalha como empregado em uma empresa de fotocópias desde que abandonou o colegio, sem completar seus estudos. Ele chegou bem atrasado, mas, mesmo assim, DeeDee deixa que continue treinando. Ele boxeia com ardor, inclinado sobre o saco de areia, que "Sem educação, nada de futuro". Corpo e alma - 65 ele metralha com ganchos curtos, o que lhe vale as apreciações elogiosas de DeeDee. "Esse menino é bom. Ele se mexe bem. É um pugilista de nascença [a natural]. Olhe esses movimentos. Ele é forte. Tem boas mãos. Isso é porque ele costumava brigar na rua. Ele faz progressos rápidos. Mas tem as pernas rígidas, não sabe dobrar as pernas. E depois tem um emprego que faz com que ele chegue tarde assim. Precisa treinar mais que isso, mas não tem tempo. É uma pena mesmo, é realmente uma pena no inverno, exatamente antes do torneio das Golden Gloves (cujas preliminares são disputadas, todo ano, no início de fevereiro) e no final da primavera. Os mais assíduos (chamados "regulars") são cerca de trinta, entre os quais existe um núcleo de oito boxea- [a real pityl, porque ele podia dar um bom pugilista. Se pelo menos ele tivesse chegado mais cedo, quando era mais novo ... - Que idade ele tem? - Tem 22 anos. Ele mesmo já me disse como teria ficado feliz se tivesse vindo pra academia com 15, 16 anos. Mas não tinha gym lá onde ele morava antes, então, ele não fazia nada. Ele treinava e passava o tempo brigando no bairro dele. Tem 55 quilos, não é muito gordo, mas é atarracado [stocklyJ, é por isso. Jogava futebol [americano] no time da escola. Ainda pode perder peso, mas é um pecado [it's a shame] que não tenha tempo de treinar mais ... Infelizmente, com os meninos como ele, isso acontece muitas vezes." [Nota de 22 de março de 1989.1 DeeDee enuncia aqui, de passagem, um dos fatores que diferenciam os "brigadores de rua" que eventualmente caem na delinqüência, grande ou pequena, daqueles que exercem seu talento no ringue e participam, mesmo que irregularmente, da economia assalariada: as mesmas disposições podem levar a uma ou a outra carreira, segundo o espaço de oferta de atividades - aqui, as gangues já organizadas que fazem sua lei reinar sobre a cidade, ali, um ginásio que "funciona" em um bairro relativamente tranqüilo. O efetivo da sala de Woodlawn flutua consideravelmente e de maneira irregular ao longo dos meses. Pode-se estimar que em torno de 100 a 150 pessoas vêm treinar durante um ano, mas a vasta maioria dos recrutas não permanece além de algumas semanas, porque eles descobrem depressa que o treinamento é muito exigente para o gosto deles - uma taxa de evasão que ultrapassa os 90% é habitual para um gym de boxe. I16) A alta estação situa-se (16) dores que recentemente passaram para a categoria profissional, depois de terem compartilhado seus treinos com os amadores. As motivações dos participantes variam COm o status deles. Os mais regulares boxeiam oficialmente com amadores ou com profissionais, e a academia é, para eles, o local de uma preparação intensiva para a competição. Os outros vêm ao clube seja para se manter em forma física (incluindo-se aí aqueles que têm como objetivo declarado seduzir representantes do sexo oposto, como Steve, um enorme porto-riquenho negro de 29 anos, que está ali "para perder peso, para as gatas. Quero perder essa pança, por causa das meninas: é que elas preferem assim, e são elas que mandam"), seja para permanecer em contato com os amigos (é o caso de vários profissionais que já penduraram as luvas de competições e que passam mais tempo conversando na sala dos fundos do que se exercitando nos aparelhos), seja, ainda, para adquirir na academia técnicas de autodefesa. I17) Além dos boxeadores e dos treinadores, vários freqüentadores antigos vêm à academia e ficam sentados horas inteiras no quartinho sem janela de DeeDee, a lembrar com ele o tempo de outrora, quando "os boxeadores eram boxeadores". Para o velho técnico de Woodlawn, só conta de verdade o boxe de competição. E embora ele siga com atenção o progresso dos simples amantes de exercícios, não esconde sua prefe- (17) A taxa do Woodlawn Boys Club é comparável à da academia do East Harlem, descrita por William Plummer (op. cit., p. 57), onde a rotatividade anual aproxima-se dos 80%. Em 8 de outubro de 1988, explico para a responsável pela creche que fica anexa ao gyJn, e que quer saber por que comecei a praticar esse "esporte de brutamontes", que venho sobretudo para adquirir forma física. Ela imediatamente acrescenta, como se fosse uma decorrência natural: "Ah, está bem, não deve fazer muito mal conhecer um pouco de autodefesa nesse bairro. Precisa levar isso também eID conta." Em 17 de junho de 1989, enquanto eu pulo corda, depois de uma sessão de spilrril1g, Oscar, o empresário de Little Keith, pergunta-me se quero me tornar profissional - eu garanto a ele que estou certo de que não passo de um boxista diletante, mas que gostaria de ter algumas lutas como amador: "Porque você até que não luta mal, você se vira bem, sabia ... E depois isso te dá confiança na rua, porque pode se defender melhor". 66 - LoTe Wacquant Corpo e olmo - 67 mas eles gostam disso: eles não estão nem aí.. quer dizer. não aos 41 anos . a idade média situa-se em torno de 22 anos. _ Não. Corpo e alma - (IH) No interior do gym de Woodlawn. Vocês oferecem esse curso? _ Oferecemos. _ Eu queria informações sobre o curso de boxe para adultos. crescente liberdade concedida ao árbitro para cessar um encontro. e o salão de treinamento é um espaço eminentemente masculino. a percepção indígena realiza desde logo uma separação. a barba bem-feita e penteada. :t. O mais jovem tem 13 anos. cerca de 30 mil crianças de menos de 15 anos estão licenciadas e disputam mais de vinte combates por ano na América do Norte)" Os comentadores especializados queixam-se. já meio grisalho. sobretudo.. e certos torneios autorizam a participação de meninos de 10 anos. Em 6 de dezembro de 1988. e o mais velho. depois de três ou quatro meses. mas submetidos àquelas. que eles denunciam como uma "feminização" do boxe capaz de desnaturá-Io: redução do número de assaltos de quinze para doze nos campeonatos. de 49. para escutar discretamente a conversa.rência pelos verdadeiros pugilistas. no interior do qual a intromissão do gênero feminino é tolerada somente à proporção que ela permanece incidental: O boxe é para os homens. Nllnca mais foi visto na academia. um grande negro de cerca de 40 anos. entre os jovens que ainda estão na escola e os adultos. tá sabendo. eles vão encarar esses jovens caras fortes que vão picar eles em pedacinhos e amassá-los. _ Aos 49 anos? Não estão muito velhos para lutar? _ Estão. são homens. Não. Mas depois você pode ficar interessado pelas lutas. uma vez que um dos protagonistas pareça não ter condições de se defender ou que haja rú. da regulamentação cada vez mais impositiva da violência pugilística. período de espera obrigatória depois de um combate que termina por KO e.. Homens que lutam com homens para determinar seu valor. isto é. [. A conversa seguinte caracteriza bem essa atitude. um tanto gorducho. Segundo Henri Allouch. Na ocasião. da vida profissional e familiar. vestido muito elegantemente em um terno marrom claro e com uma gravata marrom escuro combinando. ele não se furta a tentar converter os primeiros aos prazeres do ringue. (1'1) Rodneye duas admiradoras de mais impositivas. Finjo que estava lendo o Chicago Sun Times do dia.alguns treinadores chegam mesmo a negar verbalmente Pode-se obter licença de amador desde a idade de 13 anos.. pede para ver "Mister Armour".co de contusão grave. IIX) Todos. não é para lutar. às vezes. 50 anoS. 68 LoYc Wacquant 69 . obrigado. se eu for atacado. mesmo de 53. sobre os homens. dentro da categoria de boxeadores "sérios". com as entradas acentuadas. excluindo as mulheres. pra lutar na rua. temos aqui tanto jovens como adultos. papel ampliado dos médicos. depende do que você quer fazer: quer somente se manter em forma [keep in shapel ou quer lutar? Que idade você tem? _ Tenho 41 anos. ele éos homens. querem participar das Golden Gloves. que vêm pra se manter em forma e. _ Certo. DeeDee responde que é ele mesmo e convida-o a sentar-se no pequeno tamborete em frente à mesa.I IY )3? Embora não exista barreira formal para sua participação . liberados de suas obrigações escolares. tudo o que eles querem é lutar. ] fõ mais para ficar em forma e também para me defender na rua. que são chamados subnoviços. O que me interessa é me defender. quando voltou ao escritório. é isso aí. 57. é claro. com a aparência de um empresário de transportes públicos. Não são poucos os carinhas bem mais velhos. mas isso depende. sua masculinidade. claro [com um tom de evidência]. no entanto. quietas. A sala dos fundos . na tenha condições de continuar. no sentido de que todos os participantes são tratados da mesma forma: sejam quais forem (20) Os boxeadores profissionais nunca revelam o montante de seus cachês. elas devem ficar sentadas. os pugilistas não estão autorizados a sair dos vestiários de tronco nu para vir pesar-se na balança. mas não na hora de "repouso". é para te mandar pro espaço [they'lI knock you out a your mind]. É evidente que elas não devem interferir. uma área especial delimitada por uma mureta que chega na altura dos quadris está oficiahnente reservada para os "visitantes".como se o corpo dos homens semi despidos pudesse ser visto "em serviço". Entre os praticantes. se eles desobedecerem. treinadores. 31l Corpo e olma - 71 . a cultura do gym é ostensivamente igualitarista. senão o bom funcionamento material. ele os faz subir ao ringue para uma sessão com um parceiro sparring claramente mais forte. que todos colaboram para manter na penumbra). os cuidados com as crianças. caladas. assumindo para si as tarefas cotidianas domésticas. e o confronto prolonga-se até que um dos participantes não não ser para ajudar a prolongar os efeitos dos treinos em casa. "counterpuncher" (contraboxeador). a finalidade é acumular pontos tocando o adversário o maior número de vezes possível com séries de golpes rápidos. porque sua presença atrapalha. Quando isso acontece. de modo algUln. proíbe oficialmente a entrada de mulheres. entre os amadores. você virar profissional é jogo duro . cozinhando os pratos permitidos. Entre os amadores. "banger" (batedor). "animal" etc. Aí. sacou? É jogo duro [rough game]. em Las Vegas. são muito distantes no plano da experiência. nos bastidores da oficina. pelo menos a ordenação simbólica do universo pugilístico.qualquer restrição COln relação ao boxe feminino -. nas cadeiras que ficam alinhadas atrás do ringue. mesmo que ela esteja desocupada. os pugilistas para não levareln as suas "gatas" ao gym. como a aproximação de uma luta importante ou o dia seguinte ao de uma vitória decisiva. Como diz o treinador da academia de Sheridan Park. de novo. na prática. no treinamento. a divisão principal é a que separa os amadores dos profissionais. "o boxe profissional não é de brincadeira. e o árbitro dispõe de uma grande liberdade para cessar o confronto quando um dos combatentes pareça estar grogue. as mulheres não são bem-vindas à academia. e até lnesmo financeiro. a transição de uma categoria para outra tem mais chances de ser bem-sucedida se o combatente puder ser apoiado por um ambiente familiar e social dotado de um mínimo de estabilidade. que não usam capacete protetor e cujas luvas são claramente menores. todas as negociações e transações monetárias entre lutadores. o objetivo máximo é "derrubar" o adversário. na cena pública que é o ringue. o treinador chefe recorre ao seguinte método truculento para manter as mulheres à distância: adverte. As outras distinções que ocorrem no gym. com firmeza.(20) Além disso. eles tentam te matar". de modo que estes últimos constituem um grupo fortemente (auto) selecionado. No Windy City Gym. de lTIodo a não penetrar na área de exercício propriamente dita. Um pugi70 Lo"ic Wacquant ringue: "boxer" (que tem estilo) contra" brawler" ou "slugger" (brigador). Para simplificar. mesmo para seus parceiros habituais de sparrillg. Apenas circunstâncias excepcionais. Se há uma mulher no gym de Woodlawn. você se diverte. entre os profissionais. a lista pode passar anos combatendo entre os amadores e não saber quase nada sobre os costumes e os fatores que modelam a carreira de seus colegas profissionais (particularmente os aspectos financeiros. os regulamentos que regem a competição nessas duas divisões são tão diferentes que não é demais considerá-los como esportes distintos. A famosa sala de Top Rank. empresários e organizadores efetuam-se sub rosa. Os profissionais. costeando as paredes. pennanente. ela só serve para abri- gar os amigos dos boxeadores. atingindo-o com golpes. Esses dois tipos de boxe formam dois universos gêmeos e estreitamente interdependentes. mas que. no limite do gueto do West Side. no interior de cada uma dessas categorias. e elas deslocaln -se em geral pelos lados. referem-se ao estilo e à tática adotados no ante da namorada e ficam de cara no chão. fazem com que as namoradas ou esposas tenham licença para assistir ao treinamento de seus namorados ou maridos.[de repente ele se emenda] não é um jogo. Em uma outra sala profIssional situada perto de Little Italy. de modo que se deixam esmagar no ringue di- grande maioria dos boxistas amadores não "vira" pro6ssional. imóveis. Para além dessas diferenciações. fornecendo apoio elnocional. Somente os pugilistas de competição treinam com suas próprias luvas (eles. embora não conheça estritamente nada da Nobre Arte. por esse motivo. possuem vários pares. tanto para o interessado como para os que o rodeiam. outros decidem aventurar-se mais longe na cOlnpetição e lançam-se no circuito amador. Ao grupo de atletas junta-se o dos treinadores. significa "condenado à prisão perpétua". no vocabulário das cadeias. que treina e "veste as luvas" mais ou menos com freqüência para engajar-se. Tambéln balhar" para valer em seu ofício e demonstrar um mínimo de bravura entre as cordas. nos- so carteiro. o matchmaker (branco) (21) Esses antigos boxistas que acabam suas vidas como espectadores passivos dos gym são designados pelo termo revelador de "Ji{er". Romi. Mas DeeDee põe tanto entusiasmo em ensinar como se executa um jabe (direto com O braço estendido) para um iniciante·pe 16 anos que nunca mais porá os pés no salão depois de uma semana de treino. contramestre de pro- reiras de amadores quando "viram profissionais". terminam suas car- renova continuamente o ambiente do salão: Kitchen. As roupas também são um bom indício do grau de empenho no esporte. todos os que "pagam o que devem" no salão são aceitos como membros do clube. Aqueles que dispõem de um treinador pessoal certamente recebem maior atenção. outros.(21) Periodicamente. que eles conservam preciosamente em um compartimento individual trancado com cadeado. parentes. menos confiáveis: a firma Ringside. de um capacete de sparring (60 dólares. camisetas. e todo mundo pode comprar uma roupa por correspondência. no entanto. roupões). Elijah. conselheiros. antigo campeão europeu amador de meio-médio (ele ganhou esse título quando servia na Alemanha. que se vangloria de um cartel de glórias (35 vitórias como amador. nela mesma. um lninúsculo filipino.3. os boxeadores profissionais jamais vesteln suas roupas de combate quando treinam. de vez em quando. proprietário de uma pequena cadeia de tinturarias do gueto e empresário de dois jovens recrutas do clube que acabam de se tornar profissionais. quando chegar a hora. que vem acompanhar de perto os treinos do filho. ainda mais. visitantes. quanto em apurar a técnica defensiva de um veterano dos ringues. uma corrente e alguns medalhães dourados em volta do pescoço. usando um alto chapéu de caubói. observando e aconselhando os atletas. que vende aos interessados a preços proibitivos. a começar pelo de "tra- de um grande campeão. em geral. amigos e desocupados que vêm à academia para conversar ou observar os treinos. e cuja presença sucessiva estruturado. T -lay.) Corpo e alma - 73 . um antigo treinador que.seu status e suas ambições. que desempenha o papel de assistente de treinador do excampeão mundial de meio-pesado Alphonso Ratliff. seus próprios capacetes e sua corda de pular. serve COlno "segundo" para os jovens do clube. numa base do Exército americano). embora sejam mais facilmente manipuláveis. ele nunca conseguiu exibir a lnenor das provas. enfim. por ocasião das reuniões. acumulados ao longo de anos). os aprendizes de pugilismo encontram sua própria zona de conforto: alguns estabelecem-se no papel de "combatente do salão". um qüinqüagenário bonachão que dirige com energia uma empresa de limpeza de prédios (ele põe regularmente mãos à obra ao lado de seus operários) e que passeia pelo salão tardes inteiras. eles desfrutam dos lnesmos direitos e devem se sublneter aos lnesmos deveres. O'Bannon. A compra de sapatilhas de boxe (que custam entre 35 e 60 dólares) ou. para quem o treinamento no clube constitui a principal fonte de distração cotidiana. Além disso. em geral. especializada em equipamentos pugilísticos. fabrica sob medida uma gama variada de roupas personalizadas (calções. A diferenciação entre simples esportistas e boxeadores de competição tornase visível pelos gastos com equipamentos que uns e outros fazem e pela ocupação de um armário no vestiário. Seja qual for o seu nível de competência pugilística. que. e. À medida que progridem. desenhada segundo um padrão único ou bordada com O emblema 72 Lo"ic Wacquant fissão. Carla. dá uma medida fiel do investimento material e moral no campo pugilístico. que inicia uma carreira de amador. na maioria aposentados dos arredores. malhas. Oscar. tirando retratos de boxeadores. Charles Martin. no mínimo) assinala. um engajamento durável no combate. um em- pregado da municipalidade. um antigo pugilista e metalúrgico desempregado que sobrevive fazendo servicinhos. e os profissionais iInpõem-se um treinamento mais exigente e mais é verdade que o gasto com acessórios. das quais 33 antes do término da luta) do qual. por ocasião de um torneio. e uma enfiada de velhos. Mas. muitas vezes. ou. muitas vezes. Faltar com o respeito ao treinador.Jack Cowen e seu terno cor-de-rosa fazem uma aparição notável. pela manhã 1. a treinar. poder-se-ia acrescentar uma porção de regras menores e. Até mesmo a linguagem é objeto de cuidado estrito: DeeDee não permite que se fale em "lutar" [to fight] em lugar de "boxear" [to box ou to spar. a gestão de seu corpo. e elas são objeto de apelos à ordem. e roupas secas quando se deixa o ginásio. que deve acordar cedo. ou. seu estado de espírito e seus desejos. Fumar. o assistente de técnico de Woodlawn. que pouco a pouco interiorizam-nos. Vimos como a ecologia do gueto e sua cultura das ruas predispõem os jovens de Woodlawn a conceber o boxe como uma atividade dotada de sentido. e não no shadowboxing). tanto no plano do comportamento quanto no dos exercícios de treinaInento: é proibido trazer alimentos e bebidas para o clube. comer a comida que tem que comer. ainda. A lnaioria das cláusulas desse "regulamento interno" iInplíci- contigüidade e de continuidade. Em resumo. uma vez dentro do salão de boxe. nessas ocasiões. como se irá constatar ao examinar o regime e a moral do treinamento. mais distantes e mais rigorosamente estruturadas. os técnicos insistem. que convergem para pacificar o comportamento dos membros do clube. essa relação rompe-se e é invertida pela disciplina espartana à qual os boxistas devem obedecer. A essa lista. que pretende regulamen- antes de mais nada. A sala dos fundos abriga. Você aprende que esperam que você esteja de pé cedo. é preciso que ela esteja em ordem. o gym funciona como uma instituição quase total. Isso a pacta das proibições da academia: "Xingar. Faltar com o respeito às mulheres. Sob esse ângulo. ele tem cOIn DeeDee misteriosos conciliá- bulas para decidir que pugilista do clube irá participar dos encontros que ele organiza mensalmente em Park West.seu uso do tempo e do espaço. Eddie. ao contrário das violências rotineiras da rua). a toda hora. que envolve as qualidades da rua a serviço da busca de outras finalidades. quando são infringidas. Aí. teu corpo é uma máquina. mais explícito é o regulamenlo. sobre o que não deve ser feito no gym. Deve-se obrigatoriamente vestir o jockstrap (sunga) debaixo da toalha quando se sai das duchas. No gym.1 eSCSH I UFRGIJ . nem ele nem os freqüentadores do clube usam termos grosseiros ou palavrões eln suas conversas no clube.(22l Os que não conseguem assiInilá-las são prontamente advertidos por DeeDee ou firmemente convidados a freqüentar outra academia. de três a seis pessoas mergulhadas em discussões pugilísticas apaixonadas ou absorvidas pelo comentário sobre o exercício com sparring que está acontecendo no momento. dar socos nos objetos ou treinando com sparring no ringue sem o equipalnento necessário. simular Uln confronto 74 . pior ainda. faz essa enumeração com- tar toda a existência do boxeador . compararem o trabalho na sala com O engajamento no Exército. para os assaltos de treinamento I. cuidar de si mesmo. DeeDee faz reinar no gym de Woodlawn uma disciplina férrea. se aproximar dos aparelhos. Corpo e alma - 75 . assim. sob pretexto algum. sob forma de lista escrita padronizada e emoldurada. o controle de si mesmo. a não ficar dando bobeira. Você aprende a se controlar quanto às saídas. Parece que quanto mais inslável e ljuanto mais socialmente disparatado for O recrutamento de uma academia. Desse modo. beber ou falar alto durante as sessües. fazendo bobagem na rua [rippin' an' BUTCl-I: (por exemplo. uma boate "yuppie" de um bairro de ricos do norte da cidade. que lhes oferece um palco no qual eles podem pôr em ato os valores centrais de seu ethosmasculino. suspensa ao leto.Lo"ic Wacquant I ml A maioria dos outros gyms que observei em Chicago ou visitei em outras cidades penduram seus regulamentos. Nada de animosidade. na porta de entrada ou na parede. interferir na ordem dos exercícios a serem executados ponto de os pugilistas. implícitas. Falar alto. É totalmente proibido usar o material de forma não-convencional. to exibe-se no porte e no comportamento dos regulars. aquecer-se pulando corda. para que da fique visível para todos. as crianças da creche e da rua que vêm admirar os exercícios dos mais velhos não devem. Sem que para isso seja preciso dar evidentes amostras de severidade. você aprende a disciplina. nada de fanfarronice". o gueto e o gym encontram-se eln uma relação de fora do ringue (os "incidentes no solo" são tão raros que permaneceln inscritos na memória coletiva da acadelnia. Finalmente. sentar-se nas bordas das mesas. fazer seu roadwork [corrida de resistência. ou não modificar os movimentos padronizados. Faltar com o respeito uns aos outros. Não estou aqui pra fazer você perder o seu tempo. É probido xingar aqui. então. você também tem interesse de se sacrificar por você mesmo.40 . nem sei o quê . é você tentar se tornar adulto. Assim.. ele se opõe à rua como a ordem à desordem. [. ] O que você está fazendo agora durante o dia? Você vai ao colégio? Trabalha? . . eu poderia ficar aqui falando.. não são quatro rounds. Porque isso. disse Mickey.. Entendido? .Se você acha que tem razão e não está de acordo comigo.Entendido. [Ele se confunde. ... Entendido? . eu sou um vagabundo.Certo. Tá entendendo? 76 Lo'ic Wocquant . . trabalho como mecânico. pra jantar fora na cidade. . . para ver se mais alguém tinha ouvido aquela provocação. como a regulação individual e coletiva das paixões à anarquia privada e pública. .Bom.de Ulna troca estritamente policiada e claramente circunscrita se opõe à violência sem razão dos confrontos ünprevistos. tipo assim. ele disse: . Quando eu quero. Mas estou justamente a fim de deixar de ser. o primeiro truque que você precisa saber é o regulamento. ele se torna maduro. Tenho licença números dois e três. quero que você pule.] É mais assim.Só existe um chefe aqui.Então você é um vagabundo [bum l. em Nova York. . que a criminalidade das gangues e dos traficantes de drogas que infestam o bairro simboliza.pelo menos do ponto de vista da vida social e da identidade do boxeador .Certo. Trabalho num hospital. na minha casa. é só.Entendido. vamos dizer. [. na rua.Ok. Isso é só no começo. Regulamento é regulamento. estou entre uma coisa e outra . Tenho uma mobília boa lá em cima. . a disciplina. Depois você vai me adorar. . ter um sentido de estratégia no ringue [ring generalship]. sem limites e sem sentido.O que eu estou dizendo é que sacrifico minha mulher e meus filhos por você.Sacou? . . .Certo. disse o menino.E ele está na tua frente. como no Exército. Ele agia como se estivesse sendo puxado pela ponta de um fio até chegar na frente do escritório do treinador. eu não bebo e não fico correndo atrás de mulher. é porque você está errado. Corpo e alma 77 A LEI DO GYM Acolhida de uma nova revista pelo treinador Mickey Rosario. 85% mais do que se ele estiver fora. tentar ter espírito esportivo. E mais 25 dólares de taxa de inscrição para o ano todo. Fixou o treinador com dois olhos incrédulos. Eu preciso de quatro retratos. E preciso de 15 dólares para a licença ABF [American Boxing Federation]. Depois lançou um olhar vivo à sua volta.Quando eu digo "seis roundsna corda". o menino evidentemente não estava entendendo.Você ainda quer treinar? . ... adoçando finalmente o tom. . e isso te ensina a ter respeito. um jovem ou um homem. de honra individual e de desempenho corporal. Posso trabalhar nas mercearias. tá sabendo. Quando eu digo "pular". o meu regulamento ninguém discute. eu preciso que você me dê sua papelada.E você não pode parar enquanto eu não mandar. Posso dirigir qualquer tipo de caminhão. mostra a você como ser um cavalheiro. O menino pulou para trás como se tivesse levado um soco. e você não está aqui pra me fazer perder tempo. CURT1S: O cara médio que treina nessa sala.Pode crer. É claro que eu gosto de mulher. e se não puder mais trabalhar no hospital. no gym do East Harlem [bairro porto-riquenho). Eu trabalho.. tudo o mais.Certo. ao se apoiar em sua própria cultura masculina de coragem física. saca só. Eu não fumo. Isso dá pra você exatamente a mentalidade de um soldado. como a violência controlada e construtiva . .Ok. o salão de boxe define-se em uma relação de oposição simbiótica com o gueto que o rodeia e encerra: ao recrutar pessoal entre a juventude do gueto.Saquei.runnin' the streel]. ] Depois do que. posso levar minha mulher pra sair.Quero. :f: proibido lutar sem ser no ringue. .Você vai me detestar. e isso é bom pra você. Mas me contento em ficar só olhando pra elas. mas você pode resumir isso assim: funciona como se você estivesse no Exército. aqui. e que o abandonam ao fi- nal de algumas semanas. ] por um corpo 'acostumando'. excluído da atividade. essencialmente.. exceto aos domingos. isto é. ascético: suas diferentes fases repetelnse ao infinito. O pugilismo é um conjunto de técnicas. dia após dia. O imperativo de regularidade é tal que bas- (23) Sem dúvida. de lueio- dia às sete horas da noite (com algumas variações sazonais). [. a uma socialização particular da fisiologia. o boxe consiste de UlTIa série de trocas estratégicas. cit. as regras da arte pugilística remetem a movimentos do corpo que só podem ser apreendidos completamente €ITI ato e que se inscrevem na fron- teira do que é dizível e inteligível intelectualmente. que façamos sua aprendizagem e que vivamos suas principais etapas. árido.(24) um saber prático composto de esquemas imanentes à prática. "A primeira qualidade de que um treinador necessita é a pontualidade e a regularidade. então há poucas atividades que sejam mais "práticas" que o boxe. obedecer a "uma lógica que se efetua diretamente na ginástica corporal". Isso quer dizer que não se pode fazer a ciência dessa "arte social" cmn a economia de uma corporado e. emocionais. antes de destacar que o corpo é "o primeiro e mais natural objeto de técnica e. a condição indispensável de conhecimento adequado do objeto. Compreender o universo do boxe exige que mergulhemos nele pessoalmente. sem passar pela consciência discursiva e pela explicitação que envolve a reflexão. temporalmente estruturado"42 e fisicamente remodelado segundos as exigências próprias ao cam po. cerca de trinta anos após a elaboração. semana após semana. ] a subordinação total de si mesmo"43 que esse treinaInento pede. (23) . A "cultura" do boxeador não é feita de uma soma finita de informações discretas. e o retorno reflexivo está. de sua parte e da parte de seus boxistas. de noções transmissíveis pela palavra e por modelos normativos que existiriam independentemente de sua operacionalização. em atos e no traço que esses atos deixam nos (e sobre os) corpos . O que de imediato choca é seu caráter repetitivo. p. por assim dizer. ou seja.o que explica a tragédia da impossível reconversão do boxeador no final de carreira: o capital específico que ele detém está inteiramente in- variações. visando a transmitir de modo prático."44 A academia abre todos os dias. por definição. embora aparentemente pareça nada pedir -. continuamente (re)produzidos pelo e no próprio funcionamento do gym. excluindo a apreensão contemplativa e destemporalizante da postura teórica. escreve Marcel Mauss.Uma prática sabiamente selvagem Se o próprio da prática é. em que "o trabalho pedagógico tem por função substituir o corpo selvagem [. Além disso. a um processo de educação do corpo.. A apreensão indígena é. quer dizer.. uma vez usado. um controle prático dos esquemas fundamentais (corporais. a partir do interior. 371). no sentido que lhes atribui Mauss.. fica desprovido de valor em um outro campo. durante as horas eln que DeeDee está presente. é por essa razão que os estudos sociologicamente mais perspicazes permanecem sendo. mas de um complexo difuso de posições e de gestos que.quanto mais alto nível tiver o clube e quanto mais exigente for o técnico. ao mesmo tempo. 78 . De fato. a maioria treina entre as quatro e as seis horas da tarde e ocupa invariavelmente o mesmo intervalo de horas. por incorporação direta. ou que vegetam no gym até que DeeDee convide-os a ir buscar suas carreiras sozinhos. em que a força e a freqüência dos golpes encaixados estabelecem o balanço instantâneo da performance: a ação e sua avaliação confundem-se. de atos tradicionalmente praticados pela sua eficácia. Disso resulta que o ato de inculcar as disposições que formam o boxista relaciona-se.4I ou seja. só existem. Inúmeros são os candidatos que se revelam incapazes de tolerar a "devoção monástica. meio técnico do homem" (op. os dois breves artigos já citados de Nathan Hare (um jovem boxista profissional que se tornou doutor em sociologia na Universidade de Chicago) e do par formado por Weinberg (um sociólogo boxista amador) e Arond (um treinador). Os atletas vêm quando querem ou podem. visuais e mentais) do boxe. durante o qual eles repetem os mesmos exercícios até a saturação.Lo"ic Wacquant Corpo e alma - 79 . como propõe Pierre Bourdieu. O trejnamento do pugilista é uma disciplina intensiva e fatigante . com ínfimas iniciação prática em tempo e situação reais. em que os erros são pagos no próprio ato.. (24) "Chamo de técnica um ato tradicionalmente eficaz". A descrição que se segue vale para a maior parte dos pugilistas que está se preparando para um combate. botinhas de cano alto brancas. ele passa longos minutos fazendo tração no pescoço. os pés sobre uma cadeira. pesos (curtos cilindros de metal) amarrados em cada punho. deixando escapar gritinhos guturais que enchem o salão. enquanto conversa com DeeDee e seus colegas. que fica presa por elásticos ao chão e ao teto). Ao longo de uma sessão. onde.. que dura entre 45 e 90 minutos. Desce para calçar um par de luvas de treino no escritório antes de encetar três rounds contra o saco mole de bater: séries de jabes seguidos de diretos com as duas mãos.The War 11". salto de corda e abdominais. encontram-se sempre os mesmos ingredientes que cada qual vai dosando segundo seu gosto: na ordem. de quatro a cinco dias por semana. No último round. flexões e movimentos circulares com UlTIa pesada barra de metal.e. A esse esquema de base. lapida suas fintas e multiplica os deslocamentos ao longo das cordas.toda a paleta do pugilista está aí. depois que Curtis parou momentaneamente de vir ao gym.e o floorwork . A freqüência e a duração das sessões flutuam sensivelmente ao longo do tempo e de um para outro pugilista. em média. sentado em cadeira. ao fundo. que pouco varia. com um capacete cheio de pesos na cabeça. às vezes mais.ta que um boxeador de renome pare de treinar por um período prolongado para que logo se espalhem os rumores mais absurdos a seu respeito. para aumentar a tração muscular. ganchos e esquivas de corpo a corpo simuladas . Pete termina sua sessão com três rounds pulando corda em altura e séries de abdominais variadas (designadas pelo termo genérico de tablework. direita. encadeando os golpes (jabe. na sala dos fundos. O traCorpo e olma 81 .. bola teto-solo. Depois) ele sobe no ringue para três rounds de boxe simulado. Essa é.corrida a pé . uma sessão sim.conjunto de exercícios de chão) e "flexões" (clássicas. gancho de esquerda). shadow-boxing diante do espelho e no ringue. assim como exercícios expressamente concebidos para reforçar a estrutura muscular defensiva: uma vez por semana. Pete pacientemente deixa que Eddie lhe bata no abdômen COm golpes de punching-ball. Pete solta seus golpes. Os membros do Boys Club treinam na academia. Anthony treina shadowna frente do espelho. está na hora de pôr-se ao trabalho. Chegando um pouco antes das cinco horas. e ele passa a um último round de exercícios no saco de bater uppercuts. Assim. trabalho no saco de bater e no speed bag [pêra de velocidade]. É (] tempo de encharcar o rosto de água no esguicho coletivo que fica perto do ringue. bermuda colante preta. por exemplo. em lances com um adversário imaginário. em fevereiro de 1989. apoiado sobre os punhos fechados. ou batendo palmas a cada flexão). ele repete suas esquivas. avançando e recuando diante de seu reflexo . uppercuts. Seguem-se duas novas etapas de speed bag para apurar a velocidade do braço e a coordenação entre olhos-mãos. literalmente "trabalho de mesa". usando " Floorwork": Tooy no saco de bater. Começa com três rounds de shadow-boxing diante do espelho pequeno. que fica preso à 80 Lok Wacquant parede. uma não. uma sessão típica de Pete. acrescentam-se outros exercícios. ele tira suas roupas da mochila e troca-se rapidamente: camiseta de boxe "Leonard-Hearns . às vezes. como o trabalho no jab bag ou no double-end bag (uma punching-ball simples ou dupla. Depois de ter bandado as mãos. jabe. por analogia com a roadwork . corria o boato de que sua carreira tinha terminado: ele estava "na esbórnia" com as mulheres do bairro e tinha pego Aids . ° o TRABALHO NOS PADS Dia 2 de março de 1989. esperando Eddie.. ele ajusta seus dedos no fundo. não me afastar dele. Tento permanecer todo o tempo em movimento. Estou pronto: roupão azul. de um lado. saltito sem sair do lugar. no ar]. de outro." Como não consigo muito bem fazer com que os dois punhos funcionem. Eddie. sempre rodando à minha frente (dir-se-ia que 82 Lo"ic Wacquant " TabJework": abdominais. porque o pad estala. estou com sorte.. Tch-tch." Paf. à minha volta. calção preto e camiseta vermelha. que enfia com aplicação os pnds (espécie de largas almofadas chatas). faz o golpe. em lugar de fazer um barulho surdo. No momento em que toco sua mão. para fazer força contra meu jabe. jabe e direita encadeada. Já estou encharcado de suor. e meus golpes saem certos _ sabemos logo. retomamos então os jabes simples. em que ele se exercita encadeando golpes nas manoplas acolchoadas que o treinador lhe oferece. fazem a ligação entre box"de efeito" do shadowe o trabalho com o saco de areia. paf! O barulho certo recomeça. paf-paf! Eddie muda o exercício: "Agora mande um jabe no rosto [o pad alto. ei. um-dois. paf. "Um-dois. jabe no corpo [pad a meia altura]! Dobre o jabe no corpo. vamos. tanto no inverno como no verão. Eddie dá um pequeno golpe seco de punho para baixo. Meu punho jorra da esquerda a cada um de seus apelos. está bom. Paf. e o treino com sparring no ringue. minha respiração toma o ritmo dos golpes. work. ajudado pelo l Corpo e alma - 83 . Eddie deslocase com pequenos passos em arco." Avanço batendo regularmente."Ringwork" : trabalha nos balho no pad. pedindo a ajuda de O'Bannon para enfiar a segunda mão e fechar o punho. "Aumente a força do jabe. que agora ele me estende alternadamente à direita e à esquerda. é isso . paf.r" Eddie planta-se diante de mim e ergue a mão direita no ar: "Jabe!" Avanço e bato com meu punho esquerdo na manopla de couro que ele estende para mim." Lanço golpes furiosos sobre o pad. O barulho enche-me de alegria e redobra minha energia. continue. DeeDee gincha: "Time. logo se erramos. É extenuante. "Agora mande uma direita sobre o corpo. Aos exercícios no salão) juntam-se intermináveis sessões de footing os boxistas de Woodlawn percorrem uma média cotidiana de cinco a oito quilômetros) cerca de seis dias por semana.. é assim. force teu jabe. Force. ao mesmo tempo. mantenha a perna direita atrás e vire o pé para dentro". cara. e acabe com um cruzado de direita. e novo gancho de direita. Paf. continue. depois um duplo uppercut de direita e de esquerda. É preciso girar o punho para dentro. mais um. mas sempre tenho a sensação de que o alvo escapa-me. meus braços estão imensos. Quando eles soam bem contra a manopla. keep it up. Perco minha energia com uma velocidade com "V" maiúsculo. você está chegando lá! [You're cookin'. suor e excitação." Uppercut direito.é mortaH Já não sinto mais meu punho direito nem meus ombros. bata. "Continue [keep goin']. paf-paf-paf-paf. um uppercut de esquerda. que vem menos "naturalmente" (se é que alguma coisa me vem naturalmente quando estou no ringue). Arrasto-me para prosseguir. Louie! Você está queimando no forno! [Mind over matter!] Vamos. mantenha o ombro esquerdo alinhado quando joga a direita. bater. arco. girando o braço flexionado em forma de 84 Lo'ic Wacquant Tenho a impressão de ter subido em um maquinismo do qual sou. mas continuo boxeando como uma máquina de soltar golpes. assim mesmo. eu evito e contra-ataco com direitaesquerda. ruge Eddie. Procuro aspirar. Esse golpe é dado de baixo para cima. Tenho a impressão de que vou cuspir os pulmões e que vou desmaiar. encontro o ritmo: jabe de esquerda no pad direito. Mas não agüento mais mesmo. a não ser as placas negras que ele me estende. Só tenho trinta segundos. Ele interrompe alguns segundos para ajustar os pads. e seu largo tronco gordo e azul que desliza à minha volta. mantenha o punho direito no ar depois do jabe. É genial. bam-bam. antes de responder com dois ganchos curtos. Meus pulmões vão explodir. em seis minutos. flexionando bem os joelhos com uma girada de quadris . força nesse jabe!" Ele grita para mim essas fórmulas de encorajamento cada vez mais alto. uppercut esquerdo. faço dois rounds. você consegue chegar lá. dando jabes. pulando sobre o pé que está atrás e esticando-me ao máximo para tocar bem o alvo no último direito. Durante esse tempo. Paf-paf. Encadeio um uppercut de direita. mexe os pés. e vice-versa. meus braços pesam cem toneladas. mas ainda mais cansativo que as outras seqüências. Eddie me anima com sua voz: "Vamos. mesmo quando o atinjo. é tudo na cabeça. esquiva. Sigo-o lançando jabes numa névoa de fadiga. A voz de DeeDee ressoa: "Fica sobre seu apoio. "Está bom. totalmente esvaziado. Eddie solta para mim seus gritos de encorajamento. ok?" Avanço a pequenos passos. Louie. para treinar uppercuts rápidos. você consegue. mas depois de duas ou três vezes. meus pulmões queimam. você está quente!" Ainda um esforço. um jabe para alongar o braço. Concentro-me para reunir todas as minhas energias. "Vamos. Não entendo a manobra de imediato. Estou exausto. abaixa pra evitar minha direita e responde com um outro um-dois do outro lado". continuo a bater e a soprar em cadência. Persigo Eddie por entre os aparelhos. que eu evito inclinando meu tronco até o ponto necessário. continua se mexendo. pafpaf. gancho de direita no mesmo pad. recuando para forçar-me a combinar golpes e deslocamentos. esquerda. bam. Inclino-me um pouco para passar sob a guarda invisível de Eddie. "Vai. Corpo e alma 85 . direita. isso me motiva a bater mais forte o golpe seguinte. Reúno minhas últimas reservas para acabar essa série. está bom. bam. paf-paf-paf-paf. lançando um golpe a cada baforada de ar que expulso. você está esquentando. e meus golpes não fazem mais o ruído certo. bater. manda brasa! Ei.é um pequeno lutador de sumô. "Time in!" Eddie estende-me OS pads virados para o chão. Começamos um novo exercício: "Agora. you're cookin' in the kitchen!] Vamos." "Time out!" Ufa. Eddie responde disparando-me um amplo gancho. estende-me as duas manoplas de couro ao mesmo tempo: "Agora dispare um jabe. tenho de baixar a guarda para retomar a respiração. colocar meus punhos no lugar certo. nunca três. mais um. gancho de esquerda imediato no outro pad. e que eu preciso atingir a todo custo. pum-pum. Meus punhos estão se tornando muito pesados. atinar com o objetivo. Se ele me ataca da direita. continua!". motor e personagem. paralisado de exaustão. Nesse ritmo. É um movimento mais difícil. paf-paf! Tenho tendência a perder meu eixo de equilíbrio. "Time out!" Finalmente acabou! Estou à beira da asfixia. não tenho nem pernas nem forças. Louie!" Em um estado de semicoma. "Vamos. com a mão perpendicular ao cotovelo. enquanto continuo distribuindo uppercuts como um autômato. Não vejo mais nada. esquerda-direita-esquerda. giro em volta dele. de tanto que ele roda por toda parte). você faz um-dois. Respiro fundo durante o intervalo para tentar recuperar o ritmo. Lancinante. fingindo aparar golpes imaginários. eu já não agüentava mais. Retomamos o exercício. papinhos.12ó) Como eu mesmo aprendi ao boxear fre- (15) Como Gerald Early observou. e nada de hambúrgueres. de sorvete. todo boxeador deve seguir uma dieta estrita (evitar diante dessa simples idéia. mais que qualquer outra. sacou. vários boxeadores acham que o treinamento é o aspecto mais penoso de seu ofício. e tem mais.é preciso dizer: 'Bom. para dar a seu corpo o tempo de se recuperar. diz um adágio bem conhecido dos freqüentadores. repetitivo. mas "não poder tocar no junk food. essas regras de abstinência tornam a existência comum do boxeador profissional difícil. é mais fácil para mim. quando chega a mais doloroso exigido para sua preparação para uma luta não é malhar todo dia na academia. aliás. que se manifesta por olhares e sorrisos. além disso. um serviço que eu tenho de fazer". O devotamento monacal exigido pela preparação do combate imiscui-se até mesmo na vida social fora dali e impregna todos os domínios da esfera privada. Para chegar a seu peso ótimo de luta. E proletariado é uma palavra totalmente apropriada para esses boxeadores que são chamados de duros e vagabundos [stiffs alld bums]" . Me amarro em cerveja. perto dela. quando é preciso pesquisar no fundo das suas tripas para saber o que você quer . eles exercitam-se com ardor. "li como ter um segundo emprego"). ele mesmo se castiga sem tréguas em busca da dureza [toughness] que o tornará insensível aos assaltos de seu adversário [.45 LoTe Wacquant (16) Sublinhemos que as formas de respeito correntes no gym são as formas exclusivamente masculinas. manter horários regulares e impor-se um toque de recolher precoce. mas também. cortar a mes cozidos. carnes brancas e legu- do da usina ou da oficina do artesão. sacou. A descrição que George Plimpton faz da preparação do legendário campeão Joe Frazier vale para a infinidade de anônimos "boxistas de clube":4ó "li um feliz masoquista no gym. como um instrumento. comer peixe. não é?" A extrema monotonia do treinamento não exclui que o pugilista procure um monte de pequenos prazeres. é a abnegação. "li preciso que eu faça meus deveres". talvez até mesmo terrivelmente penosa. Como observa Jake. estou pronto. em todos os pontos. aceso. 86 - Corpo e alma - 87 . sem os quais seria difícil para ele perseverar.] Saca o que é deixar de se engazopar de junk food durante um mês inteiro. sacou. vem imediatamente à cabeça quando se observam os boxeadores em atuação no gym é 'proletariado'. Como têm consciência de que seu desempenho no ringue depende diretamente de sua preparação na academia. l". piadas e encorajamentos assoprados durante os intervalos ou tapinhas afetuosos nas costas ou na mão (os boxeadores saúdam-se ritualmente batendo os punhos enluvados alternadamente para cima e para baixo). os hambúrgueres-com-fritas. e. assim. 4X Há. nada de cerveja." Os sacrifícios exigidos do boxeador não param na porta da academia. [Muito rapidalnente seu tom sobe uma oitava de indignação somente verdadeira prova. excitado ]. e seu corpo. beber água e chá). "li no gym que você ganha seu combate". assim como no conjunto do universo pugilístico. 47 E mais ainda que o treinamento. "Trabalho tão duramente durante meu 'campo de treinamento' que castigo a mim mesmo. assim.. estou turned on [ligado. um peso ligeiro de Gary que veio "calçar as luvas" uma tarde em Woodlawn. por um lado. e o que é mais espantoso é que esse trabalho é ainda mais grotesco que o pesadelo da linha de montagem. Esses homens estão engajados num labor [toilillg] honesto e ao mesmo tempo assustador.. dos "verdadeiros" homens) sobre as mulheres. que deve renunciar a qualquer contato sexual durante semanas antes da luta. nada de cerveja nem light. A preparação pode se revelar tão intensa e desafiadora que. Quando toca o gongo. o "sacrifício" ansiedade. a camaradagem viril do gym. Ensinam-lhe. com um ofício manual [craft] qualificado. sob pena de perder seus fluidos vitais e de minar sua força física e sua energia mental. a luta irá parecer fácil.Muitas vezes. a superioridade dos homens (isto é. quanto mais for dissimulada a consciência. os boxeadores foram cOlnparados aos artistas.(25) Os próprios boxeadores profissionais encaram o treinamento como um trabalho ("F. féculas e frituras. com justeza. desde que ele entra na academia. mas simbolicamente onipresente em negativo na academia. mas Ulna analogia mais exata conduziria nosso olhar para o mun- açúcares. nada de mulheres esse mês'. gênero fisicamente ausente. nada de sexo. de cookies de chocolate? É o inferno. que afirmam não somente a solidariedade e a hierarquia dos pugilistas entre si. "a palavra que. Porque a Nobre Arte se parece. e de um modo ainda mais eficaz. nada de Coca-Cola. de modo a ficar no auge da forma física e de controle técnico no momento de passar entre as cordas e. à compreensão . que os pugilistas comparam espontaneamente à "sua casa" ou a «uma segunda lnãe". ou quando obtém uma vitória sobre si mesmo (como sobrepujar a angústia do treino com um parceiro sparring férreo). seria preciso poder citar in extenso as notas tomadas depois de cada sessão de treinamento ao longo dos meses. camisetas. mas cujo acúmulo. os pugilistas saboreiam o fato" de pertencer a uma pequena confraria" à parte. com os joelhos levemente flexionados. embora seja discreta. Mountain Experience. os quadris. de modo a bloquear ou desviar o contra-ataque do adversário. e os freqüentadores do clube marcam-na ostentando escudos. vem o prazer de sentir o corpo desabrochar. por sua vez. de uma semana para outra. sua própria recompensa.511 Essa satisfação. à curiosidade e depois ao interesse pugilístico.nunca antes -. reputada por sua bravura física e por sua rudeza. e a modificação que ocorre na relação com o corpo e na percepção do salão e das atividades de que ele é suporte. uppercut) são difíceis de serem executados corretamente e supõem uma "reeducação física" completa. virar O pulso no sentido dos ponteiros de um relógio em 45 graus no momento do impacto . outra bem diferente é realizálos e.a plena compreensão visual e mental. fraternidade baseada no risco que cada qual corre com o outro e que faz o outro correr. Há. os Olnbros e os braços. o que fala bem neamente os pés. uma vez que o gesto não está inscrito no esquema corporal. que. Mitchel\. direto. em direção ao controle dos movimentos. e é somente quando o golpe é assimilado no e pelo exercício físico repetido ad nauseam que ele se torna. talvez ao prazer carnal de boxear e à vontade de lutar no ringue. procede por uma série descontínua de deslocamentos ínfimos. Além do sentimento de cansaço e de plenitude corporal amiúde vivaz que ele proporciona. . o qual exatamente dispensa que essas regras se constituam como tal na consciência. que leva do horror ou da indiferença iniciais. A simplicidade da aparência dos gestos do boxeador não pode ser mais enganosa: longe de serem "naturais" e evidentes.qüentemente com Ashante. O domínio da teoria tem muito pouca utilidade. e transferir o peso do corpo para a perna da frente e depois sobre a perna de apoio. Ulna coisa é visualizá-los e compreendê-los em pensamento. uma verdadeira remodelagem de sua coordenação ginástica e até mesmo uma conversão física. Enfim. de fato. lançar o jabe para manter o oponente a distância. produzido pela repetição ao infinito dos mesmos gestos. mais ainda. deve-se "jogar" o braço esquerdo em direção ao adversário (visando o rosto ou o corpo) no momento oportuno. aos olhos deles. completamente claro para o intelecto. Eles são lutadores". fechando o punho. nele mesmo. nem por isso é menos real. G. A própria redundância dessas notas permitiria que se apreendesse concretamente a lenta evolução que se efetua. o queixo encostado nas omoplatas. avançando um passo. uma fraternidade carnal muito particular liga entre si os parceiros de sparring regulares.(27) o treino é.na lnaior parte das vezes. uma compreensão do corpo que ultrapassa . ao lonCorpo e alma 89 ~. A assimilação do pugilismo é o fruto de um trabalho de aperfeiçoamento do corpo e do espírito. ver o estudo de R. alinhar a mão e o ombro para adiante. ou ajustá-lo. é in imaginável o número de condições que devem ser reunidas.e precede . da função protetora e nutriz que lhe é própria."sl Por exemplo. Em seguida. adelgaçar-se. "Para que um golpe seja realmente eficaz. mais até do que se desejaria).da técnica pugilística. apreciam saber que eles "são diferentes das outras pessoas. colocar em posição simulta(27) Para descrever adequadamente o processo quase insensível que era uma pessoa a jogar e a investir no jogo (às vezes. misturados com a vergonha do próprio corpo e o embaraço. gancho. entre outras coisas. Para um paralelo instru- \ tivo sobre o sentimento de" tlow' entre os alpinistas. retros- Os pugilistas comparam a experiência sensorial do treinamento intensivo (e do combate) com uma c6pulaou um orgasmo. casacos ou bonés bordados com as insígnias do ofício.49 88 loic WacC\uan\ pectiva e puramente gestual. que oferece a sensação nova de ter redobrado sua potência. a de trás. mantendo a mão direita próxima da bochecha. os golpes de base (jabe. quando o lutador consegue dominar um gesto difícil. tudo exige. Somente a experimentação carnal permanente que constitui o treinamento como complexo coerente de "práticas de incorporação"52 permite que se adquira esse domínio prático das regras do pugilismo. tendo em vista um ataque. encadeá-los no fogo da ação. "fazer-se" pouco a pouco pela disciplina que lhe é imposta. dificilmente demarcados individualmente. A isso acrescenta-se o apego emocional ao seu gym. sem esquecer da temperatura.. giro (ZI!) J: com razão que ela escapa ao leitor. Sua combinação produz uma espécie de embriaguez sensorial. você está com o seu protetor de dentes [mouthpiece] aí? . DeeDee pergunta-me desde logo: "Louie. Faço exercícios na pêra de velocidade para destravar o punho direito. ] É razoável subir ao ringue para enfrentar esse atleta? Ele pede-me que eu amarre suas luvas de sparring. afinal. Não tinha previsto isso e fico inquieto. eê. cada aparelho com o seu ruído próprio.. batismo de fogo: vou fazer a minha primeira rodada no ringue! Sinto uma ponta de apreensão. Diante da idéia de tê-lo à minha frente entre as cordas. chiados.Sim. a simples passagem para a escrita transforma irremediavelmente a experiência que se trata de comunicar. cada exercício com a sua tonalidade. DeeDee diz-lhe que ele também vai lutar com sparring e que. vestido com sua malha azul sem mangas. e todos se aquecem em seus cantos para se preparar para o treino com sparring.. que a luta é a sério. hoje. o bater ou o galope dos pés que ressoam no chão ou que escorregam e rangem na lona do ringue.91 . entre os quais Reese. ainda sinto uma dor teimosa no pulso direito. O que tem lnais chance de escapar ao observador externo é a extrema sensualidade da iniciação pugilística. Ele não tem qualquer dificuldade para perder peso: basta prestar atenção à alimentação e correr como um desesperado. de satisfação. o cheiro do couro das luvas). Ora. seria preciso poder restituir todo O conjunto de odores (a secreção assoprada com toda a força pelas narinas. o fedor da prancha de abdominais. os barulhos cadenciados dos golpes. os assobios. É exatamente Butch que vai nos iniciar. o suor que flutua no ar.é mesmo esquisito estar excitado com a perspectiva de ter a cabeça coberta de pancadas . Como você é médico. cada pugilista com a sua própria maneira de fazer "estalar" o speed bag. tenho pressa de começar. é melhor não haver mal-entendidos (meu camarada Butch. E depois. somente por serem vistas. assopros e gemidos. pode cuidar de você mesmo. pensando se estou realmente em forma. e sobretudo a disposição coletiva e a sincronização dos corpos. com um olhar travesso. Dou um giro ali em volta para saber quem vai me aplicar o primeiro corretivo no ringue. aqui está.que seja ele que o faça. cuja variação e intensidade não são as menores das propriedades do salão. avançando. Eu ataco um round em shadow diante do espelho. ele tem cerca de 20 libras a mais que eu (seria menos intimidante se ele fosse um A INICIAÇÃO [15 DE OUTUBRO DE 1988] Entro na sala pela porta de trás. Peço a DeeDee que ponha as bandagens nas minhas mãos . os gritos e suspiros característicos de cada atleta. além disso. sem que se possa jamais separá-los. e. já bastam para produzir efeitos pedagógicos duráveis. ao boxe: "Um dos obstáculos de qualquer sociologia da música permanece sendo que não se sabe como falar dela. há semanas espero por esse momento . com o imenso Butch e três jovens. para dar toda a força a essa proposição. que só pode entrar no universo pugilístico pela intermediação da escrita.go do tempo. O doutor e eu tentamos nos reconfortar mutuamente. É preciso retraduzir um sentido musical em linguagem não-musical..."53 90 - Lo"ic Wacquant ~ Corpo e alma . [." Humor negro. seu tronco e seus braços são semelhantes a toras de ébano que reluzem sob a luz pálida dos plafonniers do salão. portanto. os bufados de cansaço. Mas. que. Só quero ver o seu nariz sangrar um pouco. Mas é impossível recuar. nem datá-los. Ele se aquece fendendo o ar com golpes raivosos. colossal mesmo: ele é quase uma cabeça mais alto do que eu. mas quando inicio uma nova série diante do espelho (jabe-direita. porque seu adversário não tinha o peso regulamentar. Seria Butch? Aí chega Olivier. esse é um Butch gentil) . Boyd e Tony. rindo alto enquanto nos botamos a postos . mesmo assim. Hoje somos seis.I2X1 É com todos os nossos sentidos que nos convertemos pouco a pouco ao mundo do boxe e a seus jogos. O que Alfred Willener diz sobre a música aplica-se muito bem aqui. DeeDee está sentado no escritório.. por chegar finalmente a esse rito de passagem. Ele murmura que seu último combate no Park West foi anulado. Compreendo que é hoje o meu pigmeu de 40 quilos). Aproveito para lembrar-lhe que realmente é a primeira vez que vou boxear.. por quê?" O velho coach sacode lentamente o queixo. nelTI lTIedi-los com precisão. deve se preparar: "Quero ver seu nariz sangrar. produz progressos sensíveis. acho-o ainda mais encorpado. Cumprimento todo mundo e aperto as mãos (sempre: é o rito cotidiano e uma marca de respeito muito considerada). ao mesmo tempo. que é parte integrante da educação do aprendiz de boxeador.. e gancho de esquerda, jabe, recuo), DeeDee grita para mim: "Louie, será que você pirou? Não desperdice tanta energia assim, senão você vai ficar sem nada para o sparring. Você vai cair de bunda logo, logo". "De qualquer jeito ele vai bater em mim". O velho treinador chama-me ao escritório para pôr minha coquilha: essa sunga de couro que protege a região das virilhas e o ventre, que se parece com um arreio rígido, na qual enfiamos as pernas antes de ela ser fechada com cadarços, na parte de trás. Tenho dificuldade para enfiar meu traseiro naquela coisa. Depois ele estende-me um capacete [head-guard] que se parece mais com uma rede grossa com malhas de couro do que o verdadeiro elmo que Butch usa (um semicírculo cilíndrico maciço que lhe cobre todo o rosto, com duas fendas em forma de cruz que só deixam aparecer os olhos, o nariz, a boca e o queixo). Encaixo minha cabeça no capacete e amarro-o; muito apertado e ... do lado avesso! Viro-o pelo direito e volto a amarrá-lo de novo. DeeDee ajusta-o. "Está muito apertado? Onde está o seu mouthpiece?" Coloco meu protetor bucal de plástico branco na arcada superior, o que me faz parecer, de verdade, um animal que está sendo preparado para o matadouro. DeeDee manda que eu besunte meu rosto de grease. Meto dois dedos no pote e começo a passar com nervosismo a vaselina na testa, nas bochechas, nos supercílios ... Mas exagero na quantidade e provoco risos: "Não tanto assim, somente na ponta do nariz e sobre os olhos, faça isso na frente do espelho." Tiro o excesso de vaselina e espalho-a cuidadosamente pelos supercílios e pelo nariz - não se trata de me moer de pancadas no treinamento. Pergunto a DeeDee se isso pode acontecer: é claro ... O velho técnico extrai do armário do canto um par de velhas luvas vermelhas, nas quais me faz enfiar meus punhos bandados, duas enormes almofadas acolchoadas, duas vezes maiores que minhas mãos - as luvas de competição são bem menores e mais leves. Ele faz com que eu feche o punho lá dentro e depois amarra a luva, passando cuidadosamente o cadarço sobre o punho antes de fechá-la com a ajuda de uma fita adesiva de cor cinzaprata, que ele cola com perícia sobre o cadarço. Enquanto calço as minhas luvas, DeeDee segue, pelo canto dos olhos, a evolução dos dois jovens que estão no ringue. O maior chama-se Rico, é um atleta magnífico, robusto e longilíneo, magnificamente musculoso e dotado de uma técnica que lhe dá o porte de um profis92 Lo'ic Wacquant siona1. Fico surpreso quando me dizem que ele só tem 14 anos. "Ééé, ele é jovem, mas tem muito caminho pela frente. É preciso que ele trabalhe mais do que isso. Mas é um bom menino." Entre duas séries, um rapazinho baixo como uma tampinha dá voltas no ringue jogando uma simulação de boxe, antes de vir para DeeDee lhe calçar um par de luvas de miniatura: ele tem nove anos e já luta em competições. [... ] Acho que pirei, quando me descubro no espelho, metido em roupas de um perfeito boxeador. Será que sou eu, assim ridiculamente vestido com essa coquilha preta que me prende os quadris até a metade do ventre e da qual saem minhas pernas de caniço de dentro de umas calças cor de violeta? As gigantescas luvas vermelhas dão a impressão de que tenho membros artificiais; o capacete de couro aperta minha cabeça e diminui meu campo visual; com ü rnoulhpiece na boca, fico com uma cara de mongol. Uma verdadeira metamorfose! Fico, ao mesmo tempo, espantado, impressionado e incrédulo. Não há mais tempo de ficar angustiado. Olivier desce do ringue, dobrado em dois de fadiga. É a minha vez. Escalo rapidamente os degraus da escadinha e passo entre as cordas - como em um filme. E logo em seguida, vendo-me sozinho no ringue, que me parece, ao mesmo tempo, imenso e minúsculo, mentalizo brutalmente que sou eu quem vai enfrentar Butch, e que ele vai me arrebentar a cara. Estou arriado e, ao mesmo tempo, tenho uma furiosa vontade de ver no que isso vai dar. Submerjo no sentimento superagudo do meu próprio corpo, de sua fragilidade, e na sensação carnal de minha integridade corporal e do risco que o estou fazendo correr. Ao mesmo tempo, a carapaça de couro na qual estou amarrado me dá a sensação irreal de que esse mesmo corpo escapa-me - como se ele estivesse transformado em uma espécie de tanque humano. A coquilha prende meus movimentos abdominais e trava meus deslocamentos. O capacete prende e toma a minha cabeça toda. Em lugar de mãos, tenho dois grandes apêndices, como se fossem martelos moles no final de braços teleguiados que só me respondem de modo imperfeito. Lanço uma olhada furtiva para o lado de Butch, que saltita sem sair do lugar, bufando, com o ar impenetrável. Olivier já desceu e não há motivo para que seja diferente comigo. E se eu levasse um golpe de mau jeito e me deixasse burramente ferir? E se ele me pusesse a nocaute? VaCorpo e olmo - 93 mos, é só um mau momento que temos de atravessar, como no dentista, o que é isso? A voz rouca de DeeDee ressoa.: "Time!" É a partida para os três minutos de desconhecido. Abaixo-me e ando em direção a Butch, que faz a mesma coisa. Tocamos nossos punhos no centro do ringue. Troca de jabes simpáticos. Golpe, aproximação, recuo, golpe, nós nos observamos. Tento uma enfiada de jabes de direita para levar imediatamente com a luva amarela de Butch em pleno rosto. Primeiro golpe encaixado, não muito desgaste. Puffiu, a coisa é,rápida! Avanço hesitando, jabe, ele se esquiva; novo jabe e nova esquiva; ando resolutamente em direção a Butchj ele desliza pa.ra longe, evita-me com uma simples torção de tronco, gira e desaparece do meu campo visua.l. Começa um jogo de esconde-esconde que irá durar cerca da metade do round. Sigo-o passo a passo, jabe-jabe-jabe; ele tem sucesso em desviar meus punhos, dispara-me um direto que eu aparo com minha luva esquerda, um outro que eu bloqueio ... com o nariz. Tento aproximar-me e, como aluno aplicado, busco repetir os movimentos mil vezes executados na frente do espelho. Tento um direto de esquerda seguido por uma direita, como se estivesse treinando no saco de areia, para levar três Jabes em cheio. Isso põe fogo em minhas ventas. Bato em retirada, perseguido por Butch, que parece decididamente ser um gigante. Tem uma empunhadura enorme e mexe-se muito rapidamente: nem bem partiu meu jabe e a cabeça dele já não está lá, enquanto ele me manda um piccolo de esquerda. Ahh, sempre é tarde demais quando vejo o enorme punho dele chegando: paf, mais uma vez no meio da cara! Reajo com a.lguns jabes. Finalmente disparo uma esquerda no tórax dele, uau! Mas nove entre dez de meus golpes só atingem o vazio ou vêm morrer na.s luvas dele. Butch enfia um direito tão pesado que faz com que minha. cabeça estale para trás; ele fica com medo de ter me machuca.do e se interrompe: "Você tá legal?" Faço sinal para que ele continue, ajustando mais ou menos o capacete. Esgrimo a.o avançar sobre ele, tentando executar bem os meus gestos, olhar, bater, girar, mas tudo em vão: sou incapaz de encadear minhas séries levando em conta os movimentos dele e antecipando o que vai fazer. "Time oul!" Ufa, retomar o fôlego depressa. Volto para o meu córner, respirando em grandes golfadas. Inexplicavelmente já estou extenuado. De fora, parece fácil, mas uma vez dentro do ringue, já não é a mesma coisa. O perímetro de visão estreita-se e satura-se ao extremo: seria incapaz de dizer o que se passa além de um círculo de dois metros à minha volta. É preciso que eu me mexa o tempo todo, e a tensão sensorial é máxima, embora eu já esteja encharcado de suor. A percepção do adversário: parece-me que as luvas dele tornaram-se enormes a ponto de cobrir o ringue todo; entre a cintura dele e suas grossas patas amarelas, não vejo nada em que bater quando chego perto. Meu próprio corpo também me parece estar diferente e não me obedecer tão prontamente quanto eu desejaria. Os golpes não provocam tanto mal (porque não estamos lutando de verdade), mas irritam: quando "engolimos" diversos jabes de enfiada, isso é vexaminoso e temos a desagradável sensação de ficar com a cara inchada. Os punhos chegam com a velocidade de um raio, enquanto do exterior tudo parece ser lento e previsível. Sobretudo, o Gua na sua frente se mexe e se esquiva, o que modifica sem cessar a equação que deve ser resolvida. Perguntome o que Butch está pensando. Impossível adivinhar, porque o rosto de um boxeador envolvido no capacete e deformado pelo protetor bucal não revela grande coisa - mesmo o ar de malvado produzido pelo moulhpiece é criado artificialmente, dando ao mais belo dos atletas a feição de um prognata. N em bem recuperara o fôlego e, da sala dos fundos, DeeDee berra de novo "Time!" Já é o segundo round? Droga, nem vi passar o minuto de repouso! Retomamos nossa dança no meio do ringue. Minha apreensão abandonou-me e decido fazer pressão sobre Butch. Mas ele percebe que eu me animei e também passa para uma velocidade superior - o suficiente para me desmontar permanentemente. Tento um longo gancho de esquerda que provoca uma viva reprimenda. por parte de DeeDee: "Que é que você está fazendo? Pare com isso agora mesmo, Louie, não estou sacando o que você está fazendo." No mesmo insta.nte, recebo um direito de ferro em pleno rosto, que me faz pensar sobre meu erro. A luta acelera-se e, no entanto, esses três minutos parecem intermináveis. Tenho a impressão de que minhas luvas são muito pesadas, muito volumosas, ebs me atrapalham. Não consigo enxergar direito atrás do capacete e não atino com os movimentos do meu adversário. Estou sempre um segundo ou dois atrasado: nem bem consigo perceber que meu adversário manda um jabe e o golpe já me atingiu na cuca.. Como descrever Corpo e alma - 94 - Lo"ic Wacquant 95 o que sinto, quando o punho de Butch vem direto sobre mim? Vejo um disco amarelo que rapidamente aumenta de tamanho, de maneira vertiginosa, borrando inteiramente minha visão e hum! Piados, algumas estrelas e a tela clareia de novo. O disco amarelo retira-se, volta a claridade. Mas antes mesmo que eu possa esboçar a menor reação, o disco voador volta subitamente para se espatifar de novo no meu rosto. Levo uma bela desenferrujada. Butch toca-me a cada golpe felizmente sem bater forte, senão há muito tempo eu já estaria a nocaute. Tenho a impressão de que estou sangrando e enxugo as narinas com os punhos: há traços de sangue na minha luva, mas ele está seco, portanto, não é meu (ufa!). Esforço-me para me aproximar de Butch e dar-lhe um gancho. Mas é impossível encontrar um lugar para bater: em toda parte, só há luvas amarelas e os braços de músculos rígidos. Ele, em contrapartida, bate em mim do jeito que quer. Separo-me e avanço com temeridade, e tanto pior para os jabes na cara: é preciso que eu também lhe meta pelo menos um jabe. Consigo encadear alguns jabes e, de repente, divina surpresa, acerto uns mil de direita em pleno rosto dele. Instintivamente, tento dizer a Butch, em voz alta: "Sorry!" - mas isso é impossível com o protetor bucal. Decididamente, não tenho a mentalidade do boxeador! Sinto-me vagamente culpado de tê-lo acertado em pleno rosto, pois não tinha a menor intenção de machucá-lo. Mas, sobretudo, temo as represálias. De fato, elas vêm depressa e caem por toda parte. Butch roda à minha volta como uma ave de rapina e logo me acerta. Sinto meus punhos partirem um pouco para todo lado, enquanto ele me semeia de jabes curtinhos. Bruscamente, sinto uma irreprimível vontade de fugir e chego a fazer meia-volta completa, dando as costas para o meu parceiro, para proteger-me dos golpes que chovem. "Time out!" A voz da liberdade! Nem bem DeeDee ululara o fim do round e eu já escorregava entre as cordas sem me dar conta de nada: estou va-zi-o! Pulo do ringue para me lançar aos braços de Eddie, que ri sem parar. "Você ainda está vivo? Sobreviveu? Quantos rounds?" "Dois. É a primeira vez que luto com sparring'. "Tá brincando. A primeira vez? Agora você é um big boxer." Ele gargareja de prazer, enquanto retira minhas luvas eajuda-me a desenrolar as bandagens das mãos, que estão quentes e úmidas. É superestafante. Não consigo entender de fato como os profissionais fazem para agüen96 Lok Wocquant tar dez ou doze rounds, e ainda mais mandando ver suas porradas. Butch desce do ringue, e eu bato em suas luvas, em sinal de agradecimento. Olivier diz-me que estou com o rosto completamente vermelho. Sinto minhas arcadas e meu nariz queimarem, mas fico agradavelmente surpreso de constatar no espelho que não estou com o rosto tão inchado como imaginara. Resfolego, pingando de suor, até o escritório de DeeDee, que está jubiloso por trás de sua barbicha. "Está bom, Louie, agora vá pular um pouco de corda." [... ] Fecho a sessão com três séries de corda e duzentas abdominais. Olivier e eu vamos falar de nossa satisfação a DeeDee. "Vocês se viraram bem. Vocês vão se recuperar." "Eu espero!":t: bem mais cansativo do que trabalhar sem parar no saco de areia ou na frente do espelho. Cumprimentamos todo mundo com um grande cerimonial antes de agradecer mais uma vez a Butch, que está trocando de roupa no pequeno vestiário. Apertos de mão calorosos. "Sou eu quem agradece, cara, foi uma boa estréia. Vocês vão aprender, aprender a bater, aprender a se tornar espertos: é tudo uma questão de aprendizagem." Lógica social do sparring Se o boxeador típico passa a maior parte do seu tempo fora do ringue, a se exercitar incansavelmente diante de um espelho e nos sacos de areia para aprimorar sua técnica, ampliar a potência e agudizar a coordenação e a velocidade de execução, e mesmo fora da academia, percorrendo quilômetros de roadwork que mantêm sua resistência, a marca e a medida de todo treinamento é o exercício com sparring. O exercício de ((assalto" - fala-se também em "calçar as luvas" ou de "atuar" - esforça-se por reproduzir as condições do combate, embora, nessas condições, usem-se um capacete e luvas acolchoadas, e, como iremos ver, a brutalidade do confronto seja fortemente atenuada. Sem prática regular no ringue, em situação, o resto da preparação não teria de fato muito sentido, porque a mistura de qualidades que o combate exige só pode ser avaliada entre as cordas. Muitos boxeadores que "parecem valer um milhão de dólares no chão", nos exercícios de solo, revelam-se bem menos brilhantes, quando confrontados com um adversário. Como explica DeeDee, "treinar nos aparelhos é Corpo e alma - 97 seja porque eles gostam particularmente do combate.. hoje ele não vai calçar as luvas. e ou- tra com Anthony "Ice" Ivory. mesmo que seja para se "desenferrujar" [to shake out] com um iniciante.. urra Eddie. é uma sujeira deixar ele subir [no ringuel. mais uma vez. Está tudo aí. seja para estarem prontos quando se apresentar uma ocasião de última hora. os lábios inchados. provoca um embaraço imediato." O sparringé.uma coisa ." "Será que podemos dizer a um pugilista como ele deve ficar relaxado e como respirar nos exercícios de solo?" "Hell no! Não. Os treinadores da academia são vigilantes quanto à condição de seus pupilos e não hesitam em banir dos assaltos aqueles que desdenham a preparação: "Little Anthony. que tem seu próprio tempo (exceto quando está chegando a hora de uma luta. Dois boxeadores tiveram os narizes quebrados enquanto "jogavam" sparring durante o ano que se seguiu à minha entrada no clube. valeram-me experimentar a (29) Aí. como um knock-down ali um desempenho medíocre. mas os olhos roxos. que se ausentou por um momento para ir buscar uma sopa no Daley's). a menos que você seja um diabo de boxeador. Eêê. tudo isso é uma coisa. porque usa-se um capacete protetor previsto para esse efeito (e não para amortecer a força dos choques). e o sparringé outra coisa cem por cento diferente. mantidos por treinadores menos meticulosos (ou menos competentes). apesar de todas as precauções tomadas. para ele Corpo e alma 99 98 . eram moeda corrente. concedem mais liberdade a seus membros. em segundo lugar. é preciso observar as variações marcantes segundo a academia e os indivíduos: alguns pugilistas preferem "jogar" regularmente. as sessões de sp<lrring em que parceiros de nível muito desigual lutam com violência. mas não funciona. a recompensa por uma semana de duro e obscuro labor . é preciso fazer o treino com sparring para se colocar em forma para o sparring. você não pode dizer a ele. O gym municipal de Fuller Park. cada vez que sobe no ringue. [. por exemplo. desenvolvem a síndrome do "boxista abobado"). só se "joga" com sparringem intervalos amplos. Pode até dizer o que você quiser. mesma sorte. DeeDee". é notório por sua liberalidade no assunto: segundo vários boxeadores que treinaram lá antes de vir para o Woodlawn Boys Club e de acordo com as observações que lá fiz. Sem falar no fato de que. de coragem e de malícia perpetuamente renovado e sem pre temível. tudo é diferente. as bochechas tumefactas." O sparring. então. o shadow-boxing.. seja porque não pode ser descartada a eventualidade de uma contusão séria. Alguns pugilistas tornam-se "punchy" (quer dizer.I2"1 é simultaneamente uma recompensa e uma prova. todo boxeador põe em jogo lima parte de seu capital simbólico: a menor das falhas. sem qualquer freio. Outros clubes de Chicago. "Ele não faz a corrida. É. 1É preciso que você fique relaxado. as mãos e as costas contundidas são o prêmio comum daqueles que calçam com freqüência as luvas. coo/. Uhuh. mesmo quando eles não têm lutas em vista. nem que Curtis dispara um jabe raivoso em Ashante. para minimizar a usura do corpo). mas sob o efeito cumulativo dos golpes absorvidos na academia durante os treinos com sparring. a respiração fica diferente. Seria uma vergonha. antes de mais nada. bater no saco de areia. que seja relax. Os cortes no rosto são raros.. Isso vem com a experiênóa. não por causa das punições sofridas durante os combates oficiais.correr. um peso meio-pesado que me tirou sangue do rosto (com o horror culpado de DeeDee. numa tarde de agosto. duas sessões particularmente rudes com três dias de intervalo .lok Wacquant .uma com Smithie. Em julho de 1989. um teste de força. Porque você utiliza seus músculos de maneira diferente. um peso médio de jabe seco e nervoso que eu não conseguia evitar -. os sangramentos de nariz. talvez sem supervisão. ele não tem combustível lhe got no gas]. não tem energia.é no sábado que a maioria dos boxistas amadores do Woodlawn Boys Club confronta-se nas cordas. que. na semana anterior). como se situa a meio caminho entre o exercício "individual" e o combate. por conseguinte. cai-se na pior das possibilidades. 55 Embora ele ocupe. que se apressarão a colaborar COln ele no corrective face-work necessário para resta- certo equilíbrio na luta (um pugilista que se deixa surrar muitas vezes diante de seus pares irá se recusar a continuar boxeando belecer a hierarquia abalada do gym. esforçar-se para manter as boas relações. sendo crucial. os pugilistas dispõem de uma ampla gama de desculpas socialmente válidas. deve-se sempre manter um equilíbrio relativo. 1. não se faz sparringcom um adversário muito mais forte do que você. porque ele demonstra o caráter altamente codificado da violência pugilística. lutar COln boxistas de lnenor valor ou com iniciantes. É necessário. porque não sabem se adaptar a seu parceiro. sob a pena de haver desvantagem deliberada para um dos protagonistas. Se DeeDee esperou cerca de oito semanas antes de me deixar subir para combater no ringue. de abandono individual e de controle coletivo. que vão desde problemas de doença ("Estou com uma gripe. além disso. o pugilista mais aguerrido põe-se tacitamente a aparar os golpes e a trabalhar seu jogo de pernas e suas esquivas.. como através de uma lente de aumento. a sutil mistura. no entanto. é melhor não fazer isso. O peso meio-pesado Smithie foi assim vigorosamente admoestado por ter continuado a lutar comigo depois de ter aberto o meu nariz e me coberto de sangue durante uma sessão especialmente dura (ainda mais porque ele já havia posto meu amigo Olivier em nocaute. em termos quantitativos. fazem com que nem sempre se tenha a sorte de encontrar um parceiro regular que convenha ao triplo plano da técnica. nem com um muito fraco.. o sparring merece ser examinado. para poder treinar a defesa. O emparelhamento de opostos deve. de instinto e de racionalidade. e estar pronto para "devolver" uma sessão de sparring àquele que o ajudou em alguma ocasião. DeeDee pensou que eu queria treinar sparring com ele. Na falta de parceiros adequados. uma violação da sacrossanta regra da abstinência sexual durante a fase de preparação próxima a um combate. sob a pena de ter de se administrar uma "bela cagada" [a good ass-whuppin']. man. As flutuações do efetivo. aS divergências de horários e de calendário de competição. Não quero que qualquer um faça de sparring pra você e te arrebente em nocaute. quando se acha que a resposta será negativa.(311) Quando um dos dois é um noviço.. deve receber necessariamente o aval de DeeDee. A ESCOLHA DO PARCEIRO Tudo. ser ajustado para que os dois boxeadores aproveitem igualmente o exercício e para que haja poucos riscos de contusão. com o seu ou os seus parceiros. até o mais anódino deles. ele permite que se veja melhor. mas sobretudo para encontrar um parceiro ideal para mim: "Precisa que seja alguém que se controle. Alguns boxeadores têm um estilo ou uma mentalidade que tornam difícil o "jogo" com eles. somente Ulna com quem lhe impõe tal humilhação). de fato. ~\~ • nr:~ 101 . que é a pedra de toque do trabalho de fabricação do pugilista e que marca o conjunto dos exercícios de treinamento. Por isso. é certo que ele será repreendido com veemência por DeeDee. 54 Para fazer isso. Ele chamou-me do chão Se um dos boxeadores. Em resumo. muito superior em peso ou em técnica. uma omoplata luxada). Louie. Considerações de honra reforçam essas razões técnicas: idealmente. isto é. passando pelo álibi mais comumente alegado. Mas. Precisa que ele saiba se controlar". é essencial escolher um "iniciador" que controle perfeitamente seus golpes e suas emoções. no gym. foi não apenas porque era preciso que eu adquirisse os rudimentos técnicos. ela está me derrubando") até contusões imaginárias (uma falange quebrada. se esquece de se controlar e impõe um castigo ao parceiro de spclrring. Como eu conversasse sobre tática com Curtis. particularmente pelos treinadores. respeitando um 100 LoTe Wacquant No entanto. o parceiro de sparring faz parte do capital social específico do pugilista. de emoção e de cálculo. pedir que um boxista "calce as luvas" com você é sempre delicado: é interferir na rede de obrigações recíprocas que ligam você a seus parceiros presentes e passados. no sparring. da força e do estilo. (30) Corpo e olmo [ '. administrar as suscetibilidades dele. No caso de um emparelhamento muito assimétrico.-: . enquanto o mais fraco concentra-se no ataque e nos SOCOS. começa com a escolha do parceiro.. parte mínima do tempo do pugilista. em aparência contraditória.mesmo e para seus companheiros de acadelnia. Volto para a arena e pergunto a DeeDee. o nível de violência flutua de maneira cíclica. Ele é mais potente que todos os outros caras des- se gym. segue-se um brusco sobressalto de violência que pode subir até o ponto em que os parceiros bateln mn no outro sem parar." [Nota de 6 de março de 1989·1 Sentados na sala dos fundos. trabalhem seus diretos. que trabalha no saco de bater. Larry Holmes ofereceu um prêmio de dez mil dólares para aquele dos seus parceiros de sparring que conseguisse fazer com que ele tocasse o joelho na lona. é por isso. da relação de forças entre os parceiros (e ela é tão mais limitada quanto mais desigual for) e. dos objetivos perseguidos durante a sessão de sparring considerada. quando então ele dará ordens ao oponente para diminuir a pressão ("Você gira e dá um jabe. A violência das trocas entre as cordas depende. ]" "Por quê?" "[Aborrecido com a minha ignorância fingida: já era a centésima vez que ele me lembrava dessa proibição. e os noviços são lnomentaneamente mantidos afastados do ringue. isto é." [Nola de 17 de abril de 1989·1 2. que está terminando de tomar uma sopa pré-cozida de massa num pote plástico. de modo a dar uma clara vantagem a Holmes em suas trocas. Louie.] "Porque ele não tem um milímetro de juízo no ringue. o campeão do mundo de peso pesado. Talvez eu possa jogar com Ashante?" "Não sei. de um lado. UMA VIOLÊNCIA CONTROLADA Assim como não é com qualquer um que faz sparring.. observamos Mark. antes de se separarem e retomareln. se eu pudesse. principalmente pela sua posiçãO na bolsa de treinamento e de competições. Louie? Nem que seja para se divertir no ringue! [ . e você sabe disso muito bem. como forma de estimulá-los a bater sem escrúpulos. mas sim o que Goffman chama de um "warking consensus". Ashante. ele tem o jeito de um verdadeiro profissional. entendeu bem. que servem para reafirmar periodicamente o caráter comedido e lúdico da violência que de põe em cena. e seus gestos são tecnicamente muito bons. de outro. sábado. Corpo e alma - 103 . seu diálogo pugilístico em um grau lnais baixo.57 Se um dos dois acelera a cadência e "afrouxa" seus golpes. Ele te poria a nocaute logo. para não "gastar a luta na academia"). caramba!"). de comum acordo (muitas vezes. também não se faz sparringde qualquer modo. logo. confortavelmente sentado em sua poltrona: "DeeDee. ou que os dois parceiros não deixem a intensidade da troca de golpes diminuir muito em relação à da luta. as sessões tornam-se mais freqüentes e mais longas (até oito ou dez raunds cotidianos durante a última semana. em uma perspectiva inspirada em Goffman. esses parceiros foram devidamente selecionados. como em todo campo de treinamento 102 Lo'ic Wacquant bem dirigido. Olha pro corpo dele. gostaria muito de calçar as luvas. para preservar suas forças e reforçar sua confiança em si mesmo. segundo uma dialética do desafio e da resposta. porque os meninos (31) Aqui seria necessário analisar. Quando estava se preparando para seu combate contra Gerry Cooney. já disse pra você não 'carregar' nos golpes! E você. o engajamento nelas é mais intenso. Potente de verdade. Quando se aproximam os encontros. mas não tem pernas. Pergunto se posso "jogar" com ele. Ele não tem bom senso. estão transando ou o quê? Vamos. Ele é muito potente. pras pernas. quero ver belas direitas na saída dos golpes"). suas seqüências funcionam. Ele fez progressos incríveis. olha só como elas são finas. não.com insistência e advertiu-me: "Nada de sparring com Curtis. de modo a garantir que o combatente menos aguerrido não seja brutalmente reduzido ao silêncio." No entanto. lnarcado por um sinal de cabeça ou um tapa nos punhos).(3!) A tarefa do técnico consiste em ouvir essa "conversa a golpes de punho".. Na véspera de uma luta importante. o outro responde "instintivamente" endurecendo de imediato sua réplica. o sparring pode se tornar mais brutal que o próprio encontro. para solenizar o respeito mútuo dos combatentes e para traçar os limites flutuantes de seus embates. entre limites variáveis balizados pelo sentido de eqüidade que funda o acordo original entre os dois boxeadores . Louie. É por isso que ele é leve. não sei. mesmo com esse tamanho de tórax que tem. sem o que o exercício perderia seu objetivo próprio ("Que é que vocês estão fazendo aí em cima. mantenha essa mão esquerda pra cima. Durante Ulna mesma sessão com sparring. os "ritos de interação" específicos do spi:lrring. Ele só tem 57 quilos.que não é nem uma norma nem um contrato. os dois. antes do descanso dos três últimos dias. DeeDee responde com uma negativa: "Ele bate muito seco. Louie. estão se preparando pra reunião da semana que vem, então eles não precisam se divertir agora: eles precisam lutar, e duro". E bate com a mão esquerda espalmada sobre o pulso direito. [Nota você tivesse disparado logo outra direita, ele teria ido à lona. Vê só, quando você cOlneçou, ele podia jogar com você sem risco, de 1" de dezembro de 1988. J De pé, no escritório, DeeDee, Eddie e eu olhamos Hutchinsona-torre-de-controle (mais de 2,10 metros e 150 quilos. categoria superpeso pesado), que está fazendo sparringcom Butch. Este é um belo espécime, mas parece uma libélula superexcitada quando comparado com o corpo plácido e inatingível do gigante. Hutchinson desloca-se lentamente e mantém a guarda alta, com os punhos colocados diante dele, longe do corpo. Butch faz um esforço tremendo para atingi-lo, de tanto que o outro se distancia. Pensamos que ele pode vir a se chocar com o adversário. DeeDee preveniu Hutchinson para controlar seus golpes, por causa da diferença de tamanho e de peso em relação ao parceiro do momento. "Disse pra ele não bater forte. Se ele bater, sou eu que vou sair daqui e moer ele de pancada com o taco de beisebol. Ele é grande demais. Cuidado com ele!" Isso tudo é dito com um tom vivo e vigilante. Ao final dos três rounds, Butch sai bastante castigado (e, no entanto, parece que o outro mal tocou nele): seus lábios estão tumefactos, o rosto, vermelho. e ele está mas agora você ficou brigão [tough], ele precisa tomar cuidado." Fiquei de tal modo surpreso que fiz ele confirmar que era meSmo a meu respeito que Ashante estava falando. "Ééé, ele quer que eu diga pra você segurar os golpes, porque você pode machucar ele [hurt him] agora. [... ] Agora você sabe bater. É por isso que ele é obrigado a te dar uma pancada de vez em quando. Não que ele queira te machucar, mas ele precisa mostrar que não está brincando lhe mean businessJ, e ele precisa devolver os golpes pra que você se controle um pouco mais.» O treinador evidentemente desempenha um papel importante na regulamentação dessa violência mútua consentida. Se os pugilistas de Woodlawn controlam com tanta atenção os seus golpes, é porque DeeDee incisivamente não tolera ((pancadaria» em sem fôlego. Mas sequer uma palavra de queixa. [Nota de 11 de novembro de 1988.J o princípio de reciprocidade, que rege de maneira tácita o ajuste da violência no ringue, reza que o mais forte não deve tirar vantagem de sua superioridade, mas também que o mais fraco não deve se aproveitar indevidamente da contenção voluntária de seu parceiro, como descobri durante uma vigorosa sessão de sparringcom Ashante. No dia 29 de junho de 1989, fiquei surpreso ao saber que este último tinha se queixado a DeeDee de que eu batia muito e que ele era obrigado a replicar, metendo-me bons socos na cara: "Ele me disse que não pode mais jogar com você, que você bate muito forte. Agora você já fez muitos progressos, é preciso que ele tenha cuidado pra não deixar que você toque nele, senão você pode derrubar ele. Se você bater no lugar certo, pode botar ele na lona. Ele estava fazendo queixa que você não recua e não pára de bater quando ele está nas cordas, você continua a bater pesado. Você pegou ele [nailed him] com uma direita, se 104 LoIc Wocquont sua arte. Mas também cada fase do sparring exige um nível apropriado de intensidade além do qual é inútil (e perigoso) ir e abaixo do qual é melhor não ficar, sob pena de o exercício perder todos os seus benefícios. Esse nível ótimo não pode ser determinado antes de se subir ao ringue; ele varia de acordo com os parceiros e as circunstâncias (cansaço, motivação, proximidade de uma luta etc.). Cabe aos pugilistas fixá-lo ao término de uma espécie de pesquisa de tentativas de acertos e erros - tanto no sentido próprio como no figurado -, que é realizada em comum, com a ajuda de DeeDee. Sempre atento ao que se passa no ringue, o treinador logo adverte asperamente o pugilista que se permite o uso imoderado do soco ou exorta o outro boxeador a ser mais agressivo. Ele não hesita diante da necessidade de mandar que o parceiro de um boxista indolente passe para uma velocidade superior, como quando ele grita, de sua poltrona, para Little John, que luta com Curtis: "John, pelo amor de Deus, faz com que ele mantenha a esquerda no ar quando ele 'jabei", meta uma bela direita nele [stick him with a good right] , porque ele não quer boxear e está mantendo os punhos nos joelhos. Ah! Se eu pudesse subir no ringue ... " Assim, aquilo que, aos olhos do neófito, tem todas as chances de passar por uma orgia selvagem de brutalidade gratuita e sem limite, é, de fato, um plano regular e minuciosamente codificado ..... \ Corpo e almo - 105 de trocas que, por serem violentas, nem por isso deixam de ser constantemente controladas, e cuja realização supõe uma colaboração prática e constante entre os dois oponentes, na constru- preciso ensinar-lhe in actu COlTIO "ler" as indicações discretas pelas quais seu parceiro lhe é prescrito, fosse para ele recuar e pisar no freio, fosse, ao contrário, para aumentar a pressão e fazê-lo ção e na manutenção de um equilíbrio conflituoso dinâmico. Os boxeadores devidamente formados deleitam-se com o duelo incessantemente renovado que é o sparring, mas eles sabem que esse confronto é, a cada momento, limitado por "cláusulas nãocontratuais" e que ele se distingue claramente do combate, mesmo que dele se aproxime pelo fato de envolver sempre um elemento de "cooperação antagônica"" explicitamente banido de uma luta. Curtis exprime do seguinte modo essa distinção: Não tem nada que eu não goste [no sparring]. Gosto de todos os aspectos, porque ao mesmo tempo você está aprendendo. No gym, você não está lá treinando pra ganhar uma luta, você está lá pra aprender. Tudo é aprendizado. Você repete o que você quer fazer depois, durante o combate seguinte, sacou? [... ] não posso "derrubar" meu adversário ... [corrigindo-se} quer dizer, meus parceiros de sparring. Eles estão ali pra me ajudar, a mim, como eu estou lá pra ajudar a eles. Eles não vão subir no ringue pra tentar me machucar.l ... ] Bom, mas mesmo assim, devez em quando, você tem o seu golpinho pra esquentar [your little f1ashy stuJfl, em que ele vai bater duro, você vai aparar com um belo golpe, e você vai tentar responder e pagar com a mesma moeda ... Vários pugilistas exigem uma longa fase de ajustamento, antes trabalhar mais. 3. UM TRABALHO DE PERCEPÇÃO, DE EMOÇÃO E FislCO Figura híbrida entre o treinamento - que ele prolonga e acelera - e a luta - da qual ele é o prelúdio e o esboço -, o sparring termina por operar uma reeducação completa do corpo e do espírito, durante a qual se coloca progressivamente em operação o que Michel Foucault chama de uma "estrutura plurissensorial"()() totalmente específica, que só pode se articular e se determinar em ação. A experiência no ringue multiplica a capacidade de percepção e de concentração, a força de estrangular as emoções, e que molda e endurece o corpo, em vista dos choques da competição. Em primeiro lugar, o sparring é uma educação dos sentidos e, de se dobrar ante essas normas tácitas de cooperação que parecem violar o princípio e o ethos públicos da competição desenfreada. Como no caso do ciclismo,5" essa "ordem cooperativa informal" é particularmente problemática para os noviços, que, confundindo a fachada com o edifício, são incapazes de "dosar" sua agressividade e permanecem persuadidos de que devem bater com toda força para demonstrar seu valor, como fica indicado por DeeDee, nesta nota do dia 23 de novembro de 1989: "Esse novato, ele acha que pode desancar todo mundo: 'Vou dar uma surra nesse cara aí, vou dar um chute na bunda dele, espera só eu subir no ringue!', e ele quer o tempo todo brigar com qualquer um. sobretudo, das faculdades visuais; o estado de urgência permanente que o define suscita uma reorganização progressiva dos hábitos e das capacidades perceptivas. Para perceber isso, basta acompanhar a transformação que se opera na estrutura e na extensão do campo visual à medida que se progride no gradus do sparring. Durante todas as primeiras sessões, minha visão ficou parcialmente obstruída por minhas próprias luvas, saturada pelos sinais que afluíam de todas as partes, sem ordem nem significação. Os conselhos que DeeDee gritavame e a sensação de estar aprisionado dentro da co quilha protetora e do capacete, sem falar da angústia surda, mas onipresente, diante da perspectiva de levar socos, contribuíam para exacerbar essa impressão de confusão. Experimentei, então, a maior difi- culdade para fixar meu olhar sobre o meu adversário e para ver seus punhos vindo em minha direção, assim como ignorava os indícios que supostamente poderiam me ajudar a antecipar os seus golpes. Ao longo das sessões, meu campo visual clareou, ampliou-se e reorganizou-se: consegui bloquear as solicitações Vamos.ter problemas com ele. Não sei o que faço, porque não podemos deixar ele jogar sparringcom esse tipo de atitude." Seria 106 Lo"ic Wacquant I externas e discernir melhor as evoluções de quem estava diante de mim, como se minhas faculdades visuais aumentassem à proporção que meu corpo se moldava no sparring. E, sobretudo, adquiri pouco a pouco o "golpe de vista" específico que me permite Corpo e olma 107 ...L adivinhar os ataques de meu adversário, lendo os primeiros sinais em seus olhos, na direção de seus Olnbros ou nos movimentos de suas mãos e de seus cotovelos. SESSÃO DE SPARRING COM ASHANTE No dia 3 de junho de 1989, aqueci-me fazendo alguns movimentos na frente do espelho. Meu corpo estava fantasiado de boxeador, e já não tinha, como antes, a sensação de estar aprisionado em um equipamento que me atrapalhava. Escalei os degraus e passei entre as cordas ... Agora, o sparringtornara-se uma rotina. Salto no mesmo lugar, na frente de Ashante. Ele está vestido com uma bermuda colante preta e verde, uma malha negra de lutador e com seu capacete pessoal amarelo-cheguei. Está brilhante de suor depois dos quatro rounds que acaba de lutar com Rodney. [... ] Tínhamos alguns segundos para TIOS observarmos mutuamente e fiquei surpreso comigo mesmo, quando me peguei perguntando o que estava fazendo nesse ringue diante desse carinha rechonchudo e tinhoso, que talvez se torne campeão de peso meio-médio de Illinois no fim do mês! centração. Recuo e disparo jabes para tentar me proteger. Ele simula um direto de esquerda e manda-me uma direita seca em pleno flanco: sinto o golpe e bato em retirada. (Sorrimos por um instante pensando no que ele tinha feito às minhas costelas na semana anterior). Cerco-o até um canto, jabe, direita, jabe, e surpreendo-o com um belo uppercut de direita, quando ele se abaixa para evitar o jabe. No entanto, ele bloqueia com muita eficiência a maior parte dos meus golpes: eu vejo a abertura muito bem, mas até que meu punho chegue, ele já fechou a passagem ou já se deslocou com uma rotação do tronco. (Pode-se dizer que é quase um balé, de tanto que Ashante antecipa bem onde meus punhos vão chegar.) Ele passa bruscamente para uma velocidade maior e trabalha a minha cabeça com curtos diretos que eu nem consigo ver chegar. O lado esquerdo de meu queixo pica-me corno abelhas. Sinto um pouco o golpe e decido (na verdade, não decido nada, é urna fórmula! Tudo acontece muito rapidamente, reage-se instintivamente, eu realizo, é só) avançar sobre ele, mas ele logo me pára com vários jabes no corpo. "Time ou!!", ressoa a voz de DeeDee. Separamo-nos, vou para o meu canto e recupero o fôlego. Não estou muito cansado, mas esse é só o primeiro round. Big Earl aconselha-me: "Mantenha ele a distância com jabes: jabe, jabe, não deixa ele cair sobre a sua guarda. Como [Sugar Ray] Leonard. Você quer água?" Ele sobe na mesa, dirige o caninho da água para minha boca e solta uma esguichada de água morna que eu engulo (o que um verdadeiro boxeador nunca faz). Vamos, recomeçar. in~" Segundo round, os dois atacamos logo de cara, sem nem ao menos tocar as luvas: em um sinal amistoso. Ashante boxeia mais rapidamente. Batalho para seguir sua cadência, mas reajo melhor e protejo-me com mais eficácia do que da outra vez. Ele começa a bater de verdade: três ganchos nos flancos que passam pela minha guarda corno se ela fosse manteiga e cortam minha respiração. Tchouff! Esse pegou mal. Eu contra-ataco com alguns jabes, mas ele evita-os, deslocando a cabeça exatamente o necessário para que meu punho não a atinja. Ele paralisa-me diversas vezes e me enche de ganchos precisos e pesados. Chego a perder o prumo em alguns de seus ataques e fico totalmente desguarnecido. Felizmente, ele poupa-me e interrompe a chuva de golpes, contentando-se em mostrar-me que eu estou com a "Time!" Ao trabalho! Nossas luvas tocam-se. Avanço sobre ele de imediato e mando-lhe jabes rápidos, que ele desvia. Ele me pára, dizendo: "Se você vai me caçar, mantenha as mãos altas ou eu vou mandar você pra lona [deck you]". Obrigado pelo conselho, o qual eu sigo, levantando minha guarda. Retomo minha marcha avante. Estou bem determinado a bater mais forte do que de hábito, correndo o risco de que Ashante também bata mais forte. É exatamente isso que acontece. Observamos um ao outro. Tento encontrar a distância. Alguns jabes e algumas direitas bloqueados de parte a parte. Toco o corpo dele com um jabe, antes que ele caia em cima de mim com uma combinação de esquerda-direita-gancho de esquerda. Rum! Na cara! Ele recua e contra-ataca em seguida. Em vez de me inclinar, espero-o com o pé firme, tentando aparar seus golpes. Ele dispara um direto de esquerda em plena boca. Penduro-me nele e surpreendo-o graças ao meu bote favorito: finta de jabe e largo cruzado de direita no rosto, quando ele de desloca para a sua esquerda, para se esquivar. Pum! Meu punho bate nele bem no rosto! Ele me faz "ok" com a cabeça. Está surpreso, porque boxeio tão ardorosamente, e acelera a cadência. Avança sobre mim, com a boca deformada pelo mouthpiece, os olhos exorbitando de con108 Lo"ic Wacquant "Time Corpo e alma - 109 Uau! Como é bom trocar socos entre colegas! Ele ri e está com uma cara feliz. DeeDee grita: "Mexe a cabeça. ele finge que está boxeando. como está se sentindo?" Vou tirar meus apetrechos no escritório. nem que seja minimamente. o único problema é saber se vou conseguir agüentar mais um outro round com esse ritmo". Louie!" Ela começa a esquentar de um modo ruim. A duras penas. DeeDee cumprimenta-me: "Você melhorou. você está se virando legal. sinto meu lábio inferior inchar. dando tapinhas na minha nuca com suas luvas. lançando um olhar de entendimento para Kitchen: "Mas não vimos teu nariz sangrar. isso deveria ter acabado! Como demora! Não paro de dizer para mim mesmo "Time out! Time out!" Vamos. DeeDee! Mas. Louie. [. [. ] Quando volto do vestiário.guarda completamente aberta.ó2 é vital dominar a Corpo e alma 111 . Ele não deixa que eu me sente sobre a mesa. andando em minha direção bem de frente para mostrar que vai bater e que está achando graça da minha defesa. mas não consigo me mexer rapidamente o bastante. Estou vendo melhor quando os golpes vêm. os golpes no corpo que me exaustaram. Pela primeira vez. o velho treinador me fala baixinho. ao passo que se ele continuasse a boxear tão forte como no começo do round. que é muito rápida para mim. aos golpes. Ele tenta sempre suas esquivas para baixo.. mas de modo recíproco e gradual isto é. a testa e a ponta do nariz quentes (como se todo o meu rosto vibrasse como um ventrículo) e algumas contusões no corpo me apunhalam a cada movimento. ele me atinge no rosto com uma direita que desloca meu capacete. nas costelas e até nas costas. para reafirmar o caráter controlado da troca. porque já não estou controlando bem minha coordenação. Ele enche-me de golpes dados de perto. Estou cansado demais pelos golpes e pela cadência. tudo bem". mas já não tenho forças para responder.. 110. o lábio inferior inchado e uma tremenda mancha roxa sob o olho esquerdo. Esta noite. um de cada vez. teria me mandado à lona. antes de cortar meu fôlego com um malvado uppercul de direita no peito (em algum momento. eu irei me lembrar disso). e não 'são poucos os golpes que recebo. :t o ofício que pesa. "Time in! Work!" No terceiro round. Então lanço-me em um ataque malsucedido. Tenho o queixo dolorido e todo o meu rosto está sensível (como se ele estivesse tumefacto por dentro). Louie. Estamos os dois face a face. Louie. mas o máximo que consigo é roçar em seu corpo com uma direita seguida por um gancho em pleno rosto. até amanhã. até que eu fique desguarnecido e bum! Um amplo gancho de esquerda faz minha cabeça sacudir para trás. ele é também o suporte de uma forma particularmente intensiva de "trabalho emocional". Eu ainda o agarro. como se estivéssemos em um combate de verdade (acho que é a primeira vez que ele faz isso). Será que ele sangrou?" [. tenho as mãos inchadas. Você ainda está apanhando muito". "Está bem. Mais uma vez. quando simplesmente não tenho mais forças ao menos para manter minha guarda e para responder. Mas o sparring não é somente exercício físico. Ashante metralha meu tronco. continue assim. apoiando-me às cordas. Vau! Isso faz com que ele reaja imediatamente. sobretudo. Meu santo.. Jabes meus bloqueados pelos seus punhos contra jabes dele bloqueados por meu nariz. está batendo duro hoje.ó[ Como há "poucas falhas no controle de si mesmo [que sejam] tão pronta e severamente punidas quanto uma quebra de humor durante um combate de boxe". ] O nível de violência aumenta pouco a pouco. Respondo de imediato. e eu pego-o com dois ganchos no capacete. E faz uma finta com os dois punhos. tudo acontece tão rápido.. recobro o fôlego. ele nos esqueceu ou o quê? Já devem ter se passado uns bons cinco minutos! "Time out!" Ufa! Ashante cai em cima de mim e me aperta em seus braços. "Time out!" Mais uma vez. Ele persegue-me no ringue. apertamos os punhos. um tanto surpresos com tamanha raiva. Minha respiração acalma-se progressivamente.Lo'ic Wacquant mas só me toca superficialmente. Mas foram. "Como é que você está. perto do final. Mas precisa que você se esquive quando ele lança a direita. moído. Ashante recebe-me com uma combinação de direita-esquerda-direita em pleno rosto que me deixa o nariz roxo. Sinto o golpe e faço para ele um sinal de "ok. ainda não. Ou você bloqueia ela ou mexe mais com a cabeça. enquanto. puta merda. Ainda agarro-me a ele." "Éééé.. estou batendo essas linhas. ] Fiquei de tal modo extenuado com essa sessão de sparring que estou incapacitado para copiar minhas notas. Os uppercuts nas costelas me deixaram uma grande marca que insensivelmente passará do vermelho ao preto e ao amarelo em uma dezena de dias.. hoje você estava com tudo. árbitros. como não ficar furioso ou não ficar frustrado quando o camarada é difícil de se bater e quando você não consegue nem tocar ele com seus golpes limpos? BUTCH: Foi difícil pra mim. inventor de Mike Tyson. sem por isso perder o controle delas. bom. Explicações de Butch. de frustração). ela pinta. então aí as coisas começaram realmente a rolar para mim. patrocinadores etc." Mas eu achava isso difícil. pra ficar relaxado. de irritação. e exaaatamente quando eu estava chegando no ponto em que eu estava me controlando de verdade. saber.(32) Quando calçam as luvas no salão. e ele está a ponto de tentar te derrubar! Mas com O tempo a coisa acaba por baixar [sink in]. ela engloba o conjunto de agentes especializados do campo (treinadores. faz ele ficar mais rápido e mais alerta. BUlCH: Você tem que se controlar o tempo todo. amordaçar certos sentimentos (de cólera. LoulI·:: Foi muito duro aprender a controlar as emoções. coletivamente produzida pela submissão prolongada do corpo à disciplina do sparring. precisa ficar calmo [ele sopra 1 e relaxado. Você tem que ficar calmo e relaxado. ou. quando chega a hora. às provocações e aos insultos de seu adversário. O medo é um trunfo para um combatente. "Fat" Joe e Smithie trabalhando no ringue. ficar calmo e relaxado quando [em um tom meio divertido J você tem esse carinha no outro canto. mas também um "controle expressivo" constante sobre sua "sinalização" exterior. e "fazer livre apelo" a outras (agressividade e raiva. Simplesmente os heróis reagem a ele de um modo diferente. por exemplo). e eu compreendi o que ele queria dizer. contê-las e repriIni-Ias. Uma vez entre as cordas. de acordo com o momento. empresários. (32) Pode-se demonstrar que essa "educação emocional» não pára no pugilista. experiência consciente e processo fisiológico . então. eu acho que. LoTe Wacquant De fato. LOUIE: BUTCH: Foi alguma coisa que DeeDee ensinou pra você? Um boxeador deve exercer. de forma a "fazer seu serviço" da maneira lnais eficiente e menos dolorosa possível. de modo a resistir aos golpes. ao contrá- rio."". Ele. Eu passei anos e anos e anos para pegar a coisa. a canalizar suas energias mentais e afetivas.as três componentes da emoção. maneira: "O boxeador domina suas emoções à medida que é capaz de escondê-las e controlá-las. Essa diferença não tem nada de inata: trata-se de uma capacidade adquirida. todo instante os impulsos de sua afetividade. mesmo que você saiba que o camarada na tua frente está a ponto de tentar te arrancar a cabeça. a imbricação mútua entre gesto. O legendário gerente-empresário Cus D' Amato. os boxistas aprendeln a se tornar" business-like" no ringue. "Contente-se em respirar devagar. em todos os momentos. resume o problema da seguinte . segundo Gerth e Mills _ó5 é tal que a mudança de uma desencadeia Corpo e alma -113 112 - . Assim você tem que enfrentar a situação. não apenas uma vigilância interior de seus sentimentos.63 Ele me falava o tempo todo pra ficar calmo. é preciso ser capaz de gerenciar suas emoções. alimentá-las e ampliá-las. Os heróis e os medrosos sentem exatamente o mesmo medo. bom.) e chega mesmo a atingir o público. porque tuas emoções vão gastar todo teu oxigênio. A coisa funciona.de modo a não deixar seu adversário ver quando seus golpes partem e quais são esses golpes. o faz se mexer mais velozmente. juízes. que serviu de base para este livroJill Aprender a boxear é modificar insensivelmente seu esquema corporal. você não me quebrou as costelas. Louie. mas você precisa ver que também me bateu bastante. cabe proibir o corpo de desobedecer. com muitas deformações relativas ao boxe. porque você também não está acostumado a levar golpes no corpo. que é exatamente encaixá-los com regularidade. cujo inverso é a capacidade de domesticar o primeiro reflexo de autoproteção que produz uma falha na coordenação dos movimentos e que dá vantagem ao adversário. que ele havia esmurrado durante a nossa última sessão de sparring e que me haviam impedido de treinar durante vários dias. além do mais." Encontra-se esse estereótipo em inúmeros trabalhos universitários. os boxeadores não têm qualquer especial afeição pela dor e não apreciam as brigas. como um "maxilar de aço)) ou essa qualidade reverenciada que eles chamam de "o coração" (que tem um lugar central também na cultura masculina da rua). contrariamente a uma idéia amplamente difundida. o aspecto físico do sparringnão deve ser negligenciado sob O pretexto de que ele é dado: não se pode esquecer de que "o boxe consiste mais em receber golpes do que em dá-los. como a tese histórica sobre a evolução esportiva. Enfim. que estava enfiando as luvas diante da mesa de abdominais. fugindo de seus punhos em um "salve-se quem puder" generalizado. as expressões que designam e glorificam a capacidade de absorver os golpes e de suportar a dor. de Allen Gutman. somos humanos. é essa aquisição progressiva da "resistência à emoção". além de sua reserva somática de partida.7 ou com afinidade universitária. de habituar o organismo a encaixar os golpes. Porque.. um plágio grosseiro de meu artigo de 1989. que toma conta dos noviços durante suas primeiras sessões de sparring. "Eu sabia que eu não tinha quebrado elas. voltando-se de frente para o oponente." Contudo. compiladas em artigos de jornais ç revistas esportivas por André Rauch. Um jovem peso meio-médio ítalo-americano do Windy City Gym. como é que você está se sentindo? Suas costelas estão boas? [Referindo-se às minhas costelas.6" da qual é muito difícil saber se vem do registro da vontade ou se é de ordem fisiológica. submetendo-se a ela de maneira medida e rotineira. o estado corporal. que acaba de se tornar profissional. de maneira a interiorizar uma série de disposições inseparavelmente mentais e físicas que. Mais do que a força dos golpes do adversário. Brincalhão. do mesmo sangue. somos feitos da mesma carne. Você precisa fazer abdominais para proteger o corpo. além da atenção superaguda que o duelo no ringue exige. Porque. De modo recíproco. sua relação com seu corpo e o uso que dele fazemos habitualmente. mas Corpo e alma 115 114 - Lo'ic Wacquant . (33) Essa aprendizagem da indiferença à dor é inseparável da aquisição da forma de sangue-frio própria ao pugilismo. aliás. Ele sorri e aperta minhas mãos afetuosamente entre seus pulsos enluvados. como a enciclopédia de lugares-comuns acadêmicos e jornalísticos. só machucou-as [bruisedJ". Estamos no mesmo mundo. Você pode nos afastar. sei lá. você que é . Boxear é sofrer". merda! Somos humanos. Sei muito bem que bati em você muito secamente. fica indignado quando menciono o estereótipo profano do boxeador "sadomasoquista":llll "Nãão. A socialização adequada do pugilista supõe uma habituação aos golpes. sei lá [com veemência].. como diz Mauss. O que acontece é que teu corpo está cansado. eu trabalhei teu corpo porque eu não queria te tocar muito no rosto.66 No idioleto pugilístico abundam. fazeln do organislno uma máquina de dar e receber socos.f. é preciso combater a todo instante seu primeiro reflexo de dobrar-se. estar no auge da forma física permite estar mentalmente pronto e. Em 23 de março de 1989. mas não somos diferentes de você. só há uma forma de se endurecer diante do mal. ele me atirou: "Hei. vioJellce du XXeme siecle obra que compreende.]" "Estou indo. com um melhor domínio <las emoções desencadeadas pelo fluxo de golpes. Foi por isso que eu bati mais no teu corpo. tá entendendo. do mesmo tudo.a modificação instantânea das outras duas. portanto. From ritual to recorel: lhe llilture of modem sports. Boxe. separando-se. caí sobre Ashante. Saca só. os boxeadores elevaram bastante seu limite de tolerância à dor. Ora. Não conseguir dominar a experiência sensorial dos golpes que caem sobre você amputa a capacidade de agir e altera. em contrapartida. Mas você precisa começar a fazer abdominais seriamente e se pôr em condições de lutar. porque você (linda não está acostumado a levar muita pancada na cabeça. SOlllOS como qualquer pessoa. a mesma coisa que os teus sentimentos. nossos sentimentos são a mesma coisa. ao longo do tempo. ser definida pelo fato de que o corpo do boxeador pensa e calcula por ele. eles insistem que." É essa estreita imbricação do físico e do mental que permite aos boxeadores experimentados continuar a se defender e eventualmente se recuperar. é o sermão de DeeDee. joe Frazer e Mohammad Ali. quando ele afirma que "no boxe. é o cérebro que prima sobre o músculo. Eu estava mesmo dizendo a Butch: 'Preparado mentalmente' não é porra nenhuma [that's bullshit]! Você é um lutador. O resto é merda.com o atraso que isso envolve. a determinação. criativa e capaz de auto-regular-se. E. «Smokin' Joe" 116 Lo"lc Wacquant ali. eu não conseguia nem mesmo pensar. e que poderia ser caro . depois de ter sofrido o nocaute: nesses Inomentos de semi-inconsciência. A coisa não é mental. pegou firme e me deixou pregado no lugar. Num primeiro momento. No boxeador já formado. O calor [perto de 40 graus]. é só isso. tinha um serviço a fazer. o negócio são os reflexos! Quando chega a hora de pensar. Eu não me lembro de nada do que aconteceu. Se você é um pugilista." Opinião confirmada pelo treinador Mickey Rosario: uma vez Corpo e alma 11 7 . a concentração e o controle das emoções transmutam-se em reflexos que dão sete vidas ao corpo. Ele me atingiu por baixo. Não tem nada de mental nisso. O deão dos treinadores do país.73 A excelência pugilística pode. temendo que ele se deixasse matar no ringue. ainda firme nos seus 96 anos. jogou a toalha no décimo quinto e último assalto. um dos combates mais brutais da história da Nobre Arte. você não passa de um babaca a mais [just another bum in the park]"J2 A contradição desembaraça-se logo que realizamos que a capacidade que o boxeador tem de cogitar e de raciocinar no ringue tornou-se uma faculdade indivisa de seu organismo . você sobe no ringue e você bate. vários anos depois da "clássica" luta entre os grandes rivais da década. o velho treinador de Woodlawn concorda totalmente com Ray Arcel.71 Ele continuaria a avançar sobre Ali. "O ringue não é lugar para ficar pensando: lá. Eu só queria fazer o meu serviço". não se trata de raciocinar. Então. desde o sexto round "eu não conseguia pensar. depois de ter produzido dezoito campeões do mundo.. ele recuou e me lnandou uma direita na cara COln toda força que ele tinha. Boxeamos três rounds. na minha frente. 'Preparado mentalmente'. todos os dois."711 Durante o famoso" Thilla in Manilla". o antigo campeão Sugar Ray Robinson: "Você não pensa. não tem nada de preparado ou de não preparado. minutos mais tarde. "Agarrei meu parceiro e ele levantou a cabeça e me disparouum golpe por baixo no olho esquerdo que me cortou e derrubou. Depois da derrota de Curtis. Por outro lado. mas continuei a boxear instintivamente até pô-lo a nocaute. sem passar pela intermediação .do pensamento abstrato. durante sua primeira luta televisionada e transmitida nacionalmente de Atlantic City. Tudo é instinto. da representação prévia e do cálculo estratégico. eu estava gulhoso que DeeDee lança para os pugilistas que perguntam se eles não estão "preparados mentalmente" para um combate. portanto.. De um lado. a umidade [de verão filipino] . ino- vando-se no interior de um registro fixo e relativamente limitado de movimentos em função do adversário e do momento. DeeDee fulminou: "Ele não perdeu porque ele não estava 'preparado mentalmente'. Um outro parceiro de sparring subiu no ringue. eles sustentam que o boxe é um jogo de estratégia. como. chegou também a hora de pendurar as luvas".uma máquina inteligente. SelTI cair e sem ao menos balançar. Se você for parar para pensar. às vezes. você está preparado e bate. no entanto. o mental torna-se uma parte do físico.o que john Dewey chamaria de "body-mind complex [complexo corpo-espírito]" . e vice-versa. embriagado de golpes e cegado pelos hematomas em volta dos olhos. Como exprime. Tudo o que eu sei é que o combate estava ali. o moral. boxeadores e treinadores parecem ter um julgamento contraditório sobre o aspecto "mental" de suas atividades. seu corpo continua a boxear sozinho até que você retome seuS sentidos. Se você é um lutador. isso não quer dizer nada. você está ferrado. disputaram a maior parte da luta em um estado que beirava a inconsciência. um "thinking man'sgame" que eles comumente comparam ao xadrez. até que seu treinador. você está preparado. É o que exprilne esse comentário or- contaria. imediatamente. perdi completamente a consciência. com concisão. Nesse combate. o corpo e a mente funcionam eln siInbiose total. entre as cordas. Se você não sabe pensar. Não estou nem aí para saber quais são as suas qualidades como lutador. A imbricação mútua das disposições corporais e mentais atinge um tal grau que mesmo a vontade. tão caro a George Herbert Mead. Há um monte de camaradas que podem treinar toda a vida. nem vale a pena. escapa à lógica da escolha individual. É essa contradição inerente ao habitus pugilístico explicativa de que a crença no caráter inato das qualidades do boxeador possa se acomodar sem fricção com uma moral inflexível do trabalho e do esforço. se você não telTI isso dentro de Pode-se entrever de passagem tudo o que a sociologia inspirada na teoria dos jogos poderia ganhar se tomasse como paradigma um jogo muito "corporal" como o boxe. é aceitar a interconexão de todos os fatores possíveis e evitar o erro que consiste em tentar focalizar racionalmente essa ou aquela consideração tida como primordial. casadas com a capacidade de canalizálas a cada instante. o verdadeiro "sujeito" (se é que há um sujeito) da prática pugilística. tratá-Ia como uma decisão)". como o jogo de xadrez e a estratégia militar. cuja rigidez e o academicismo traem a interferência da reflexão consciente na coordenação dos gestos e movimentos.sobre o ringue. quando escreveu: "'Livre escolha'. que é a rua no gueto. O corpo é que é a estratégia espontânea: ele sabe. de transformá-Ias e explorá-las segundo um plano objetivamente racional. e não um combate eminentemente intelectual. compreende. Vai acabar surgindo. a combinação de disposições quase antinômicas: pulsões e impulsões inscritas no mais profundo do "indivíduo biológico". seja no interior do próprio gym . um de propósito e talvez sejalTI até mesmo nefastos. Eu digo isso a eles. não há separação entre teoria e prática. incrustada no fundo do corpo. 'racionalidade'. Páginas inteiras de anotações de campo poderiam ser citadas como apoio à idéia segundo a qual "se nasce boxeador". a decisão é tomada no ato propriamente de agir. seria impossível sobreviver entre as cordas. sensata. mas nunca na vida eles vão chegar lá. Há um monte de camaradas em Chicago para quem eu disse que estava na hora de eles irem embora: Carpa e alma 119 118 - Lo'ic Wacquant .77 que podem ser qualificadas de "selvagens". apaga a distinção escolástica entre o intencional e o habitual. seja. com todo o rigor. no limite do cultural. que encontra a resposta certa no repertório de ações e de reações possíveis. da qual ela é inseparável. A aprendizagem bem-sucedida do boxe supõe. Ela emerge da ordem de uma razão prática que. no universo do boxe". eles treinam e boxeiam aqui. (34 ) De fato. pode-se dizer da estratégia do boxeador no ringue o que o antropólogo Hugh Brody disse dos caçadores esquimós Athabascan. informados por uma sensibilidade pugilística incorporada. ainda. de uma forma ou de outra. em que DeeDee insiste longamente sobre as qualidades inatas do lutador que o treinador só faz virem à tona: "Se você tem isso em você." Uma vez no ringue. É preciso que você seja um aniInal. que se torna. com suas combinações "teleguiadas" e lentas. efetuados na hora e para aquela hora.onde vemos crianças que são regularmente trazidas pelos membros do clube e que treinam boxeando -. 'bom senso'.pode sempre ser modificada (de modo que não poderíamos. tudo ao lTIesmO tempo. reconhecemos imediatamente os noviços. enfim. O mito indígena do dom do boxeador é uma ilusão fundada na realidade: o que os boxeadores tomam como uma qualidade de natureza ("É preciso que você tenha isso em você. de regulá-las. julga e reage. e que são a antítese das decisões maduramente refletidas e pensadas da "razão raciocinante". do Noroeste do Canadá: "Fazer uma boa escolha de caça. a decisão .75 O confronto no ringue apela para julgamentos sinópticos marcados por respostas prontas e flexibilidade. o corporal e o mental. o racional e o emocional."74 E pode-se acrescentar: UlTI instinto cultivado. Assim. processo que muitas vezes começa desde a mais tenra infância. a estratégia do boxeador produz o encontro entre o habitus pugilístico e o próprio campo que o produz. que faz a triagem da informação e armazena-a. bem pesada. na verdade. embora inacessível ao cálculo explícito da consciência individual. com seus gestos mecânicos e apressados. assim.") é. Por ocasião dos encontros de amadores. você. "você não pode pensar. eles fazem o sparring. Ou melhor ainda. Iremos nos contentar com esse trecho de lo de outubro de 1988. Agora. Se fosse de outro modo. essa natureza particular que resulta do longo processo de inculcar o habitus pugilístico. Eu não mantenho eles aqui. nessa antecâmara do salão de boxe.COlTIO a ação. Foi isso que Joyce Carol Oates viu. é o corpo que compreende e apren- animal socializado. não há nada que possa impedir de surgir. nossos modos típicos de consciência estão fora (34) de. Por conseguinte. desenhos. antes de vir pra academia. sob o custo de uma manipulação regulada do corpo que somatiza o saber coletivamente detido e exibido pelos membros do clube a cada patamar da hierarquia tácita que o atravessa. possa ser realizada em uma garagem. (35) (3S) vros. 121 . A transmissão do pugilismo efetua-se de uma forma gestual." Penso. não se pode trapacear nisso.. que o treinador do Woodlawn Boys Club dedique uma hostilidade aberta a manuais. na garagem: "Este livro é dedicado às crescentes legiões de colarinhos brancos. pois." Eu persisto: "Então não dá para aprender nada sobre boxe nesses livros?" "Não.." ":t claro que não faz mal.'Não vale a pena vir ao gym. somente batendo em um saco de areia. Se você aprende num livro. talvez não faça mal compreender mentalmente. cuja lógica só pode ser apreendida em ação. que mostra todos os movimentos e exercícios de base do boxe. que as formas privadas da prática pugilística que os novos empreendedores da gestão do corpo. é o movimento que conta. cuja gênese social tornou-se invisível para aqueles que a percebem por meio das categorias mentais que são o produto dela.. como se a coisa fosse tão evidente para qualquer um que de pouco adiantasse ele ficar repetindo: "Não dá. Louie." "Mas para um iniciante como eu. tudo é estatística. 78 120 ." A expressão "boxeador natural" [a natural]. É preciso que isso venha dele mesmo. nunca será um boxeador. para quem o treinamento de boxe é um ingrediente importante para O sucesso profissional.] Não dá." Nenhum dos pugilistas de Woodlawn tem um saco de areia em casa. Esses livros vão te ferrar completamente [mess you up campletly]. por exemplo. você nem sabe o que eu encontrei na biblioteca do campus no outro dia. passando por corretores da bolsa. de contadores a atores. O que significa dizer. Porque você tem que ter essa coisa dentro de você. porque você nunca vai chegar lá'''. Eu conheço bem esses livros. Para DeeDee. Aprende-se a boxear na academia. E pode-se chegar a ponto de afirmar. Não dá pé. Compreende-se facihnente. Um livro chamado O treinamento completo do boxeador. Essa coisa não é boxe. que muitas vezes retoma ao vernáculo das academias. principalmente quando a pessoa é iniciante. que o gym está para o boxe assim como a Igreja está para a religião: a "comunidade moral". E Eddie ainda aumentou a coisa: "Meu filho vai lutar boxe se ele quiser. receitas e métodos livrescos de ensino. não é?" "Não. Não há surpresa alguma. mas é tudo de araque! Você não tem o menor sentido de movimento. não sou eu que vou obrigar ele. Acabou. Ponto final. de passagem. treinar em casa é um nonsense. é só." "Mas isso pode ajudar a ver os diferentes golpes e compreender eles melhor. Num livro. corresponde um modo de inculcar implícito. médicos e empresários. nesse sentido. Enquanto seco o corpo com minha toalha. A Nobre Arte apresenta. embora a maior parte dos exercícios específicos. Eles não mostram o que acontece no ringue. Mas eu não vou obrigar ele a boxear. cuja aprendizagem é totalmente coletiva. o paradoxo de um esporte ultra-individual. o "sistema solidário de crenças e práticas" que a torna possível e que a constitui enquanto tal. prático e coletivo. The Boxer's workout: fitness for the civilized man. sempre em busca de exercícios exóticos com os quais renovar um mercado de fitness razoavelmente atravancado. tal como com prova a nota a seguir. que não é possível aprender a boxear "no papel". visual e mimética.lciic 'NacCluanl ~ Corpo e olmo . o ângulo que o teu braço direito faz e tudo isso. de fato. que convida as pessoas dinâmicas a descobrir as alegrias do boxe . no livro de Peter Pasquale. DeeDee." "E por que não?" Com um tom irritado pela minha insistência. O boxe é movimento. por todas as razões anteriormente levantadas. em domicílio. procuraram durante um tempo popularizar só tem boxe no nome. Então. não ajuda em nada lit ain't helpful]. Será que vale a pena ler o livro para aprender os rudimentos do boxe?" DeeDee faz uma cara de nojo: "Não se aprende a boxear nos li- Uma pedagogia implícita e coletiva A uma prática essencialmente corporal e pouco codificada. não dá. I Yau can't! Period. designa essa natureza cultivada. Não é lendo livros que você aprende a boxear. deixo escapulir: "Veja. parafraseando Émile Durkheim. lá dentro tem fotos e desenhos que mostram como colocar os pés e os braços. Hl . contente-se em boxear". tais como o judô e o aikidô. e é coisa alguma quando ele não está integrado no andamento de troca e ao estilo do boxeador. ou então ele se zanga e pede a um de seus acólitos que tome seu lugar. Da próxima vez [que você lutar em sparring com ele].79 Se os conselhos dos manuais e os desenhos dos métodos escolares têm qualquer coisa de irreal. DeeDee resolveu. Você vai deixar que arrebentem tua cabeça [you gonna get your head busted]. que resulta ser "uma fonte de socialização bem mais poderosa do que a pedagogia da instrução". o que o treinador denuncia nos escritos é seu efeito de totalização e de destemporalização. de observações parciais e negativas: "Não deixe cair a mão esquerda quando você solta o jabe". Não é algo que você possa aprender nos livros". DeeDee não desiste da idéia de que eles não exigem qualquer exegese. para ele. ele limita-se a reiterá-las. mesmo no caso da aritmética. nem descrever. "Mantenha a perna direita sob o corpo o tempo todo". Ao contrário de outros esportes de combate mais codificados. a disposição deles. o eu. para se proteger do gancho de esquerda. e não lá embaixo. como este. por emulação e por encorajamento difusos e recíprocos. da contemplação) e o tempo da ação. o "pupilo" de DeeDee. bem contrariado. essa bendita mão direita. a atividade-suporte da aprendizagem e o quadro social e físico de sua utilização. é fazer com que ele sofra uma mudança que o destrói enquanto tal. o que é que você quer que eu te explique?". É a maneira mais j 122 - Lok Wacquant 1 Corpo e alma - 123 . Se um pugilista não consegue executar corretamente um movimento depois de alguns exercícios "sozinho". onde? É isso"aí no alto. por imitação. o boxe é uma prática "in- teiramente imanente ao tempo-duração. contra a face direita. Como os gestos do pugilista são.. hein. Porque. "Vamos ver isso mais tarde. como a lTIúsica. que se efetua coletivamente.Não. descrições sumárias do movimento a ser executado e que constituem verdadeiros pleonasmos com relação à realidade. mas que o essencial é "treinar nos bons gyms. mas também porque ele joga estrategicamente com o tempo. apelar para o reflexo de autodefesa para domar um gesto rebelde. Quando pergunto-lhe Como nos tornamos treinadores de boxe. A virulência de sua reação revela. ele explica-me que há um pequeno exame técnico que se faz na Federação. Quando não se compreendem de imediato as suas indicações. a iniciação ao boxe é UlTIa iniciação sem normas explícitas. é porque o mais belo dos uppercuts é destituído de valor quando é lançado em mau momento. ] não somente porque ele é jogado no tempo. aos olhos de DeeDee. com o andamento do tempo". "Não há nada a explicar. na prática. Você não protege ela como é necessário. [. se é que é um saber. de uma simplicidade e de uma transparência evidentes. consistindo.(36) (36) sparring oferece um procedimento pedagógico de ültimo recurso. não é? Jean Lave mostra que.O que foi que eu já disse pra você. o gancho tecnicamente mais De fato. nem decompor os diferentes estágios da progressão esperada. em particular. extirpá-lo de seu tempo próprio. não é possível separar o corpo. . "É mais fácil do que contar até três". Nunca ouvi ele declinar o porquê dos gestos de base. "Não balance o pulso para trás". se você não quiser me ouvir. de maneira resumida. . Louie. Sem conseguir obter o que desejava com conselhos e com paciência. a antinomia que existe entre o tempo abstrato da teoria (isto é. selTI dissimular seu aborrecimento. e. saber eminentemente intelectual.É a melhor maneira de aprender. sem etapas claramente definidas. por enquanto. Louie? Onde é que você tem que pôr a mão direita.xlI em que o mestre desmonta e demonstra à vontade as tomadas com um cuidado de detalhes e de análise que pode chegar até ao estudo teórico.Opinião confirmada por Eddie. e no qual o papel do treinador é coordenar e estimular a atividade rotineira. vou dizer a ele pra te ensinar com o gancho de esquerda dele. antes. Considerar o boxe do ponto de vista soberano de um observador de fora.. que é constitutivo dessa própria ação. e em que a progressão é marcada por sinais e títulos oficiais (como as faixas). se for necessário juntando o gesto às palavras. Vou pedir a Ashante para te mostrar onde você tem de manter a mão. o "método" de ensino de DeeDee não é uma pedagogia pensada e organizada segundo um plano de conjunto. isolado. Não é a melhor maneira [best wayJ. Os conselhos que ele destila com parcimônia e intermitentemente são. o perfeito não é nada. na maioria das vezes. e pouco a pouco você pega a coisa. J repisadas. do que a indiferença. Ele ganhava com isso um pouco de dinheiro. trata-se de um apelido que ele deve ao irmão. rumo a Chicago. todo mundo tende a levar em conta a reprimenda e a redobrar sua atenção e aplicação. quando eu falo isso pra você. no centro do gueto de South Side. o CHEFE DE ORQUESTRA DeeDee (DD ou DeDe. ele puxava mais sua calT9ça de moonshine [álcool de contrabando] do que a vassoura". talvez semanas. a despeito do caráter repetitivo e descosido dos conselhos que ele recebe. a reprimenda é gritada com uma voz forte. nem os negros. de fato. como milhares de negros do Sul. e instilando no boxeador a crença de que existe um laço causal entre os esforços exigidos dele e os resultados prematuros. "Ninguém tinha trabalho. 124 - Lo"ic Wacquant . DeeDee esforça-se para colocar em operação. Precisava viver se virando. não tem nada de pior para um boxista. de onde ele descortina com o olhar toda a área de exercício. De repente. O que poderia passar por uma falta de interesse do treinador. que asseguravam à família seu sustento cotidiano. nunca se pode saber com uma certeza total a quem ele está se dirigindo. de maneira empírica.(37) Desse modo. Eu sei que. Essa incerteza dá a sensação de que estamos avançando às cegas e força o aprendiz de boxe a ser sério e a caprichar em cada sessão. com a mãe e os cinco irmãos e irmãs. se o que estamos fazendo é bom ou ruim. é difícil dizer quem ele está observando exatamente. Só a guerra nos tirou dessa sinuca. por meio de ajustes sucessivos. DeeDee faz isso da maneira mais pública possível: na maior parte das vezes. o tações. cada uma de suas intervenções e a própria maneira pela qual ele as manifesta agem como um mecanismo de correção coletiva permanente. eles fizeram a guerra exatamente para que a gente saísse da crise. para não haver risco de atrair seus raios. em busca de um clima racial menos opressivo e de condições de vida menos duras. e não deixando que te quebrem a cara [get your face beat upJ. naqueles anoS. ou por uma carência de acompanhamento. Durante a Grande Crise e até a guerra. também nesse caso. que debochava dele pelo seu falar tatibitate quanto era pequeno) nasceu em 1920. no gym. as indiferenças ostensivas e as exor- Quando corrige um boxeador. tornando-a mais vigorosa. Desde 1922. todas as fábricas procuravam mão-de-obra. Havia emprego em tudo que era canto! As pessoas ganhavam muita grana. é melhor supor que ele está olhando para você e boxear da melhor fonna possível.1U Seu pai conseguiu um serviço como gari na Prefeitura Municipal. mais duráveis e frutí- AIlanta. fruto da experiência acumulada de décadas de prática. na Geórgia. Como a acústica do lugar é deplorável.pesada [hard wayJ. em cada um dos exercícios. atrás do vidro do escritório. [Nota de 17 de maio de 1989. emprego remunerado com regularidade e bem-conceituado entre a comunidade negra da época. a atenção silenciosa."Ele não puxava muito a vassoura. a própria essência de seu método de ensino. Mesmo quando DeeDee está aboletado em sua poltrona. E é com alívio que acolho as repreensões com as quais DeeDee põe fim a essa ansiedade. Pode-se mesmo especular que quanto mais raras são as intervenções visíveis de DeeDee. Enfim. Nem os brancos. naqueles tempos. com a finalidade de fazer entrar o esquema prático no esquema corporal do aprendiz de pugilismo. é. a combinação de reprimendas sempre (37) É durante essas fases que descubro que. Vendia-se ferro-velho a preços absurdos: os caras que tinham um monte de ferro-velho nos seus quintais tornaCorpo e alma 125 feros são os seus efeitos. eles foram para "Dixieland". estava à cata de dinheiro. antes de ser apagado pelos 'membros de uma quadrilha rival de traficantes . vinda da sala dos fundos. onde seus pais eram meeiros nas terras de uma família da alta sociedade branca de fato de que possamos ficar dias. mas eram a fabricação e a venda ilegal de álcool para os brancos. gera uma ansiedade por saber se estamos progredindo ou não. durante a Lei Seca. Tudo acontece como se suas instruções só tivessem por função facilitar e reforçar o efeito próprio da manipulação do corpo. mais aplicada e mais intensa. Prefiro que você aprenda por si mesmo. com certeza. morou. ninguém. Todo mundo procurava trabalho desesperadamente. DeeDee morava em uma casinha pegada a uma horta e a um galinheiro. DeeDee tinha sete anos. positiva ou negativa. Guiado por seu senso pugilístico. a exemplo do pesquisador no campo acadêmico. sem receber qualquer apreciação de sua parte. Na dúvida. e ouvida por todo mundo. em uma época na qual "todo mundo só sonhava com uma coisa. Mas ele não teve recursos para pagar a viagem e faltou à cerimônia de entronização que deveria marcar a apoteose de sua carreira. era uma lenda viva para a comunidade afro-americana.lho.. e foi assim que eu aprendi. por ter simbolicamente arrasado." Na cola de Jack Blackburn. era então o herói nacional.H 4 {3H} 126 - LoTe Wocquont . e que. no total. o jovem Herman indubitavelmente tem o olho e a mão necessários para ensinar a Nobre Arte. nem que fosse por pouco tempo. na pessoa do campeão alemão Max Schmelling. faz-tudo diarista. entre os pesos meio-médios e Alphonso Ratliff.(3X} Depois de uma carreira breve e sem glórias no ringue (ele disputou quarenta combates amadores e uma luta profissional contra um dos pugilistas que ele treinava."" . Louie. um programa de auxílio destinado às pessoas de terceira idade que não têm recursos e que sofrem de invalidez. ao destruir no ringue o mito da inferioridade congênita dos negros. Ele sempre exerceu seus talentos em Chicago.. O chumbo tornouse uma mina de ouro. Considerado por seus pares como um dos melhores treinadores da história do boxe norteamericano. sob a instigação de um grande agente da Costa Oeste. em 1987. DeeDee segue atentamente. com exceção dos seis anos passados no Japão e nas Filipinas. e dois de seus pupilos ganham um título mundial: Roberto Cruz. para a qual de deu o orgulho étnico e a autoconfiança. ao lado de sua atividade principal de treinador: manobrista. quando se amassava todo metal disponível para fazer aviões e bombas. ele fizesse alguma coisa). está sacando o que eu estou dizendo?" Entre os ofícios que ele exerceu. ele leva uma dezena de boxeadores ao top ten das classificações internacionais. por cortesia. Entre 1978 e 1985. o Museu de Boxe de Louisville. e você podia olhar no visor uma pequena quantidade de filmes de boxe. leão-de-chácara de boate. operário metalúrgico. "exterminador" de baratas e outros insetos e roedores que infestam os cortiços do gueto. Hoje em dia. motorista de táxi. da sala dos fundos. para o Boxing Hall of Fame. mas também. DeeDee foi eleito. treinando alguns dos melhores pugilistas asiáticos. lavador de vidros. em junho de 1938. DeeDee sobrevive com 364 dólares por mês. Você faz qualquer coisa para sobreviver na rua. DeeDee iniciouse no boxe na escola. copeiro. em Kentucky. e sobretudo. tendo trabalhado como assalariado somente dois anos e meio. nem aposentadoria. da qual ele descobre as figuras infinitamente variadas nas academias do South Side e nos filmes que ele devora. a evolução de seus pupilos. "Tinha essas máquinas de filmes nos bares. hotéis. que ele recebe a título de Supplemental Security Income. ram-se milionários da noite para o dia. Ele não tem bem algum. Eu passei horas vendo esses filmes. onde você colocava um nickel [5 cents l. DeeDee logo construiu para si uma reputação primeiro regional e mais tarde nacional. na categoria dos meio-pesados. ser Joe Louis" . cuja ascensão coincide com a segunda "idade do ouro" do boxe profissional na América do Norte. desde a adolescência.o primeiro grande campeão negro da era moderna.. ele passou definitivamente para o outro lado das cordas."X3 Desordeiro notório desde os seis anos de idade. ainda deixou que "O bombardeiro de ébano". mesmo quando não tem fome. com o cronômetro na mão. e de uma breve estada em Los Angeles. em restaurantes. "Fiz todo tipo de traba. Porque. o nazismo. pintor de paredes Corpo e alma 127 Imóvel em sua cadeira. embora sofra de artrose nas mãos e nos joelhos. com seus punhos. o treinador de Joe Louis que o tomou por um breve período sob proteção antes de morrer. vendedor ilegal. e morei na rua. como cozinheiro. e guarda-costas de um bordel. quando não Corpo e olma 129 128 - . que. Nessa época. e que recebem o quê? Nem mesmo 500 dólares de aposentadoria! Recebo o mesmo e nem cheguei a trabalhar". ele fecha de novo a pesada grade que protege a fachada do Boys Club e pede que um dos boxistas O acompanhe até em casa. Quando há combates na cidade. a responsável pela creche que fica anexa à academia de boxe dava-lhe os restos de merendas depois das festas infantis. no John CuUon. DeeDee divide um exíguo apartamento alugado na rua 67 com uma sobrinha adotiva." Em segundo lugar. Louie. terminado o treinamento. eles me mandam uma bela placa para me agradecer por eu fazer tudo funcionar. para passar o tempo . mas ele recusa-se a considerar isso como "trabalho". dormir cedo. Seja por princípio.(3':1) Ele não se queixa. peixe fresco e carne magra (frango e peru). Lo"ic Wacquant do treinamento e intermináveis conversas telefônicas e discussões com os visitantes habituais da academia. feito. menina-mãe que faz seu curso em uma pequena escola privada de estética para obter um diploma de cabeleireira e manicura. raramente tomar um copo de bebida alcoólica (com exceção do Armagnac. que trago para ele da França toda vez que viajo) e fazer uma visita ao médico a cada seis meses (no sistema médico gratuito. um ou dois dólares para comprar alguns bilhetes de loto em um liquor store (bar da esquina). por acaso. esse diploma é o supra-sumo. que você vai se lembrar até na hora do seu enterro". Isso não é um emprego. eu vou te dar a maior surra da tua vida [whuppin']. em contrapartida do direito de morar. seja por falta de recursos financeiros. que ele recebe em casa graças a um gatilho no cabo. Pouco depois das sete horas. e que ajuda o treinador cuidando da casa. pode acontecer que o empresário de Curtis traga-lhe alguns sacos de frutas e de legumes de seu sítio. todos os treinadores de Chicago exercem uma atividade profissional fora de seus gyms. DeeDee não tem outras atividades além do boxe. é construída à imagem de sua vida pessoal espartana: levantar cedíssimo. depois ele abre o ginásio.quando ela pensava em abandonar a escola. É preciso encontrar uma academia onde ficar. Nunca vai ao cinema. enquanto assiste aos combates de boxe transmitidos pelos canais esportivos pagos de televisão. DeeDee reserva. antigamente. Preciso estar na academia. ou seja. em troca de uma pequena remuneração que os lutadores insistem em lhe dar (cerca de dez por cento de seus modestos cachês. (3Y) DeeDee é encarregado do clube de boxe de Woodlawn desde a sua abertura. em troca de vinte dólares. cinco ou dez dólares". porque ele não é remunerado para isso"Eles não pagam coisa nenhuma. toda semana. porque ele não imagina nem a possibilidade de ir para outro lugar ou de fazer outra coisa: "Saca só. "Conheço caras que trabalharam vinte anos. cujo mestre-de-obras no ginásio é DeeDee. passa para tomar uma sopa no Daley's (o restaurante familiar da esquina de Cottage Grove com a rua 63). você não terminar seus estudos. A ascese coletiva. Eu não poderia passar sem isso. DeeDee nUnGl assiste a uma reunião local. De vez em quando. e só. e ela fala dele como de um sucesso excepcional. Mas placa não se come. eu não trabalho aqui. alimentar-se à base de legumes cozidos. ele melhora seus ganhos recebendo uma "contribuição privada" sobre os raros pugilistas do clube que têm meios de lhe dar "alguma coisinha. não freqüenta mais boates à noite (onde. ela atribui ao apoio moral inquebrantável de DeeDee . ele toma conta do sobrinho-neto Will. Todo ano. ele adorava exibir seus reconhecidos dotes de dançarino) e execra passeios. ver os meninos boxearem. trinta anos. no Fuller Park. do West Side. jamais tomar pop [refrigerantes 1nem comer doces. ele ameaçava-a: "Se. As reuniões que seus boxeadores promovem são as únicas saídas que ele dá. mesmo quando não aparece quase ninguém por lá.. é tudo. À noite. em grande parte. que o impede de dirigir). é tudo de graça. Para ela. ele pega o ônibus perto de casa.. e ele passa a maior parte dos seus dias no clube. por um de seus sobrinhos. por causa de problemas de circulação e da artrose nos punhos. alguns bilhetes de vinte dólares por sessão). em 1977. Eu passo o tempo [hang around] no ginásio. Já espaireci por outras academias. Primeiro. provavelmente estaria no Fuller Park. O emprego que ele faz do seu tempo é regulado como uma partitura musical: um pouco antes do meio-dia. porque tem o boxe no sangue. não está acostumado a jantar fora. Se eu não estivesse aqui." O resto do tempo é ocupado seguindo os combates dos boxeadores que ele treina e para os quais oferece o serviço de "segundo". a pessoa precisa estar mergulhada no boxe. Seu tempo divide-se entre a supervisão Essa "dupla atividade" é típica: com exceção dos monitores de boxe empregados pelo Departamento de Parques e Jardins da cidade. ele tem sorte de Cm·tis se preocupar tanto com ele. levando em alta conta sua sabedoria: "DeeDee e eu. Mas precisa que a gente tenha uma briga de vez em quando. sobretudo os da "velha escola".entre sério e irônico. fazer-se demolir pelos oponentes superiores e expor-se a quebrar a cara. respeitando o ritmo aparentemente estacionário que ele imprime à aprendizagem. a gente fala. fica furioso. de Curtis. mesmo porque [ele abaixa a voz para marcar seu respeito 1 não é à toa que ele chegou aos 70 anos. Na frente dele. eu não sei quando . a mulher de Curtis. Por meio de suas observações. e que devotam a ele um respeito filial que ultrapassa de longe a admiração profissional. e." Rimos e provocamos ele. sem dúvida alguma. que. orgulhoso . mas ele não é meu filho. quando eu saio da academia. na verdade. antigamente. ao longo dos anos. não deixando ele fumar e beber. É por isso que as instruções do treinador. está certo. mas também temos papos sérios . guardião. onde Curtis trabalha como faxineiro auxiliar. conhecer e levar em conta. muitas vezes. do prédio do Woodlawn Boys Club. e que isso só vai fazer ele viver mais.] Ei? Eu tenho 69 primaveras. treinador. sua notoriedade no lugar é tamanha que só muito excepcionalmente não dispõe de ingressos para convidados. conselheiro sentimental e confidente. sem procurar ultrapassar suas capacidades. DeeDee queixa-se . é preciso. as práticas sexuais. O que é isso? Eu não sou pai dele. Se ele me vê com um copo de vinho ou qualquer outra birita. ap~sar de tudo. para os quais ele é. " Mas a pedagogia pugilística não visa somente a transmitir uma técnica: ela tem também por função constituir de maneira prática as expectativas objetivamente racionais que irão facilitar a ascensão do aprendiz de boxe na hierarquia do gym.. ao mesmo tempo. Em resumo. se a gente não pode se dar ao direito de um pouco de prazer com 69 primaveras. não. A mesma coisa com o cigarro. considera-o como seu segundo pai. DeeDee educa aqueles que. na manhã do dia da luta em que Curtis iria arrebanhar o título de campeão do estado de Illinois. pra ficar me dizendo o que eu devo e o que eu não devo fazer. Louie: se eu deixo Corpo e olmo -131 130 . DeeDee faz a intermediação entre Curtis e seu empresário.. então ele sabe muito mais coisa do que eu.. na sua idade: "Se ele me vê fumando. uma relação quase paternal. seus limites físicos e morais. DeeDee afeta uma atitude de indiferença com relação ao seu comportamento fora do ginásio. ajuda a administrar suas relações tumultuadas com a responsável pela creche que ocupa uma parte Assim. Talvez eu nem possa chegar lá. para quem DeeDee chegava a cozinhar. todas as tardes. a gente se relaciona. tomam a forma da incitação à modéstia. e começa a gritar alto como se eu fosse uma criança. no gym. Como a maioria dos treinadores. seus problemas de moradia e seus conflitos com o seguro social. o velho treinador está estreitamente ligado à vida privada de Curtis. ele pode sorrir e balançar a cabeça. em todos os momentos. É o caso. consideram-se abaixo de seu valor ("Agora você sabe boxear tão bem como todos os outros. com efeito. de convites a repetir até a exaustão os mesmo gestos. a gente fala bobagem um pro outro O tempo todo. segue atentamente o curso de seus aborrecimentos financeiros. Assim. beira o autoritarismo. sublinhando que. de Alphonso. [Rosnando. pega no meu pé e me xinga. as relações familiares. mentor. mas também de seus silêncios prolongados. ou por sua presença. DeeDee mantém relações complexas e ambíguas com seus pupilos. esse comportamento inquieta-o constantemente: como prova disso. ele mantém contato telefônico cotidiano com Sherry. para saber se ele segue suas instruções nos compartimentos da existência que julga afetar o desempenho dele entre as cordas: sua alimentação. que ele trata com um misto de fingido desinteresse e afeição áspera que. quando. ele vem e berra comigo: 'Larga esse cigarro. quando ele deveria ter o direito de se entregar a esses pequenos prazeres. só pra dar a ele um pouco de prazer. de suas críticas.loic Wacquanl . por sua vez.eu acredito em tudo o que ele me diz. muitas vezes. por falta de confiança em si mesmos ou por timidez.de que Curtis trata-o como uma criança. não buscar educar-se mais rapidamente e além da medida do razoável. seus encorajamentos. Para encontrar e conservar seu lugar no universo pugilístico.!!5 Esse era o caso. De resto. apaga isso imediatamente'. hoje. sob o risco de ter suas energias dilapidadas. DeeDee. diz pra eu ir descansar. então.. para ter certeza de que ele iria comer os alimentos apropriados. essas coisas . hein? Você sabe que ele não nasceu ontem. não deixar suas aspirações "descolarem" de maneira ir realista.pode entrar nela gratuitamente: acha totalmente absurda a idéia de pagar para ver uma luta. e com o qual ele desenvolveu. os jabes. jabe. da próxima vez. hein? Pára com essas babaquices [cut out this buIlshit] e contente-se por boxear. sem manter as mãos no alto. para enrolar as bandagens nas mãos de Rico. pois. ele sai comigo do escritório e toma posição diante da bola." Fiquei totalmente envergonhado: percebi bem que eu não sabia boxear no jab bag. um pugilista profissional que tem seis anos de experiência. Ele não se aborreceu nem um pouco: "Você estava dando o maior vexame. John. Curtis foi para a Carolina do Sul." Escutei mal e tive a infelicidade de pedir-lhe que repetisse sua observação. para se recuperar na fazenda de seu empresário. ficar tanto tempo num ônibus. que tem por finalidade incutir em cada qual o sentido dos limites (que é também um sentido do grupo e de seu lugar dentro do grupo). O que você acha que está fazendo nessa bola? Ela é pra trabalhar No dia 22 de outubro de 1988. inseparavelmente. [. tentando boxear a double-end-bag. a queimar etapas. Eu já falei pra você. não é nada.você lutar com Jeff. em 10 de janeiro de 1989. bate muito forte e um pouco de qualquer jeito. embevecidos por seus progressos na academia ou por seus sucessos no ringue. Quem o Curtis acha que e'? Ele não é ninguém. e vocifera em direção ao ringue: "O que é que você acha que está fazendo. Eis a reação de DeeDee quando. como fazia Tony. você deixa rolar. como ele. eu vou chegar mais cedo e você pode me mostrar como a gente usa esse aparelho. uma técnica que eles ainda não têm. Ele está nervoso e atrapalhado. Ninguém está pedindo pra você fazer mais do que isso. você bloqueia ela com a mão direita." "Não tem mistério nenhum [Ain't nothing to it].. por vontade de aparecer 132 Lok Wocquant "Tá bem." Ele soca a punching-balI com curtos de esquerda. ] Vejo DeeDee. horrível de verdade." Depois disso. sucumbi a essa tentação. isso vai dar tempo pra ele pensar e pôr alguma coisa naquela cabeça." bola. perto do rosto]. Quando já estou trocando de roupa. é só isso que você tem que fazer. A pe- misturada à ignorância. mas não está com cara de nada!" Dá meia-volta com um ar de desgosto e vai para a sala dos fundos. teu timing. é só isso. enquanto explica: "Basta ficar perto da No dia 22 de março de 1989. dezoito horas de ônibus?" "São dezenove horas para ir até a Carolina do Sul pela Greyhound [uma companhia barata de ônibus]. um horror! O que é isso? Eu nem conseguia olhar. vangloriam-se. Você está tentando fazer uma cara de boxeador. as pernas ligeiramente flexionadas. que ele soca. Se ela volta na tua cara. é evidentemente mais fácil do que o que eu estava tentando fazer antes. Esmero-me em lançar alguns pequenos jabes ritmados. em cadência com o balanço. Louie. "Porra. Louie. uma pedagogia da humildade e da honra.ele é bem gracioso. Todo esse tempo no ônibus. que está furioso em seu escritório. De repente. DeeDee. o tronco inclinado para a frente . enfrentando exercícios que exigem dagogia pugilística é.. Little John (24 anos. como no speed-bag. ele foi de ônibus! Quem é ele pra andar de avião. não tenho nada pra mostrar pra você. você bloqueia ela assim [com a palma da mão direita aberta. com o olhar fulminante." Ele já desapareceu na cozinha. jabe. é isso. ou por admiração por seus colegas mais adiantados. mas. não é nada. "Taí. ele rompe pelo salão. estudante e agente de seguros em uma cidade HLM) combate pela primeira vez. mesmo assim! "Da próxima vez. jabe. Louie. Pergunto a DeeDee se ele foi de avião ou de ônibus. jabe. e rebaixa aqueles que. um-dois. DeeDee sai e me dá a bronca: "Você é uma verdadeira desgraça [disgrace] nessa bola. pulando em volta da bola e sacudindo os braços [swinging]. por ocasião da noitada "de gala" organizada todo ano para recuperar as finanças do clube. um terror de se ver. um-dois. porque isso dá o quê? Quinze. Se a bola vem até você balançando. acreditam que "chegaram lá» e tentam boxear acima de seus lneios. devagar. Corpo e alma 133 . como atestam esses dois fragmentos de meu diário. que ainda estão tentados. Essa propedêutica da modéstia aplica-se muito particularmente aos noviços. para ele. de tão horrível. pra mim. hein?" Killer Keith espantou-se com isso: "Não é cansativo. o que você quer que eu te mostre? Basta você trabalhar teu jabe. vou tentar fazer melhor. e o que você fez foi balançar o corpo pra todo o lado. Isso. de modo a preparar seu primeiro combate em Atlantic City. no mês seguinteuma boa chance para ele traçar os planos para seu ingresso na classificação internacional. você vai meter ele numa boa encrenca))). lentamente. DeeDee. cit. entre os amadores. e "Time out!)). de todos os outros.é impensável que ele se exerça como um contratempo.Hfi que não é um diálogo só entre o mestre e seu aluno. os pugilistas trabalham sempre em concerto. mas uma conversa a muitas vozes aberta ao conjunto dos participantes regulares do treinamento. e quatro. depois de uma vida inteira passada em academias de boxe. Ciente de que a temporalização da prática pugilística forma a própria base de seu aprendizado. O ensino do boxe no Woodlawn Boys Club é um ensino coletivo sob três pontos de vista: ele efetua-se de maneira coordenada. como uma extensão de seu corpo. uma sessão de sparring). e eu treinei sozinho com o cronômetro). nada de tempo livre. cara"). no interior do grupo. somente DeeDee. é logo chamado à ordem por DeeDee ou por algum de seus parceiros ("DeeDee disse 'Time-in!'. e um boxeador que. durante o qual se instala uma calma precária. 134 Lok Wacquant o tempo do gym é um tempo pleno. complementam a (in)ação aparente do treinador. porque o respeito por esse andamento é um imperativo que não conhece qualquer exceção e que se impõe a todos por ele mesmo . Chicago Boys and Girls Club". entre os profissionais. que ele não tira). compreende-se que o controle do andamento coletivo do treinamento adquire uma importância particular: exceto em circunstâncias específicas. por distração. No interior do dispositivo de aprendizagem pugilística. segundo Émile Benveniste. para DeeDee. Esse cronômetro é. para a formação de todos os outros. assim fragmentado. é porque o essencial do saber pugilístico transmite-se fora de sua intervenção explícita. ela regula o "relógio biológico" do boxeador até o ponto que seu próprio corpo pode. para marcar seu fim. ao mesmo tempo. As academias descritas por Hauser (op. que marca o corpo e modela-o segundo seu ritmo. o cronômetro tornou -se. é por isso que o ginásio de Woodlawn. dividir a sucessão dos rounds (dei-me conta de que meu corpo se tornara capaz de contar por intervalos de três minutos. se está havendo.(41) Sem contar que. segundo a necessidade.) e Plummer (op. Seja qual for a hora em que eles comecem o treino.) estão equipadas com relógios automáticos que sinalizam o início e o fim dos roll1lds. Mesmo suas conversas (40) Uma luta de boxe compreende três assaltos. oito ou dez rOllnds. até habituá-lo a essa necessidade. e ninguém está autorizado a usar o cronômetro de DeeDee sem sua permissão expressa. privar DeeDee do único emblema de sua função no gym (além da camisa pólo azul-marinho "Staff. que cria a sincronização dos exercícios. cit. O exercício cadenciado do grupo habitua progressivamente o organismo a alternar esforço intenso e recuperação rápida segundo o andamento específico do jogo. não tem uma minuteria elétrica que marca automaticamente os rounds. sej31ll quais forelll os exercícios que façam. segundo o nível (doze para um título mundial). Sem dúvida. de corpo a corpo". Todos os outros gyms de Chicago funcionam C0111 um sistema elétrico de marcação do tempo. por meio de duas campainhas distintas. impositivo. como auxiliares que se revezam. por ele mesmo. por intermédio de uma "comunicação silenciosa. simultaneamente. prática. reforçam e. com um minuto de repouso entre dois rotlllds consecutivos. enfim. os pugilistas mais aguerridos servem. como um único homem. sabendo disso ou não. Ao som do "Time in!". Charles Martin e o aluno-treinador Eddie estão habilitados a gritar o" Time!". impregnando-as com sua temporalidade específica. Como um cronômetro vivo. positivo ou negativo. Cada intervalo de três minutos assim modulado é seguido por um tempo de repouso de trinta segundos (um minuto. ao trabalho. o que o skeptron era para os reis das cortes medievais. DeeDee pontua o tempo de duração do dia gritando alternadamente "Time in!".H7 o símbolo e o instrumento da autoridade que ele exerce sobre o coletivo.Se DeeDee pode-se permitir uma tal economia de palavras e de gestos. antes que mll novo "Time in!" coloque o engenho novamente em marcha. tirá-lo dele seria pôr essa autoridade em questão. num dia de inverno em que DeeDee havia saído cedo da sala. se esqueça do início do round ou que o confunda com o sinal de repouso. todos os boxeadores põem-se à obra. (41) Corpo e alma - ll5 . Nada de tempo morto. para indicar o início de um round de exercícios. ele faz de cada participante o modelo visual potencial. uma espécie de órgão suplementar. ao contrário de muitos outros. Cada rolllld dura três minutos. encontra-se o ritmo comum que envolve todas as atividades da academia.(40) Quanto à duração. seis. para o velho treinador de Woodlawn. de modo que cada boxeador colabora. imperceptível para o não-iniciado. um verdadeiro zoológico! É impressionante ver todo mundo se exercitar com tamanho afinco. A simples sincronização dos movimentos no tempo e a proximidade física dos pugilistas no espaço fazem com que se vejam. isto é. para "relaxar" o corpo e para fustigar as energias. para vigorosos rounds de sparring. que ele continue a engrenar mecanicamente os rounds. acentuando particularmente o "work!". para prosseguir no seu treinamento. mesmo depois que o último boxeador presente já tenha terminado seu treinamento.. ao con~ trária. nunca vira tantos boxeadores no gym: começamos com quinze e acabamos com trinta e cinco.. ao fim de mn longo dia. aprende-se. sua voz cai e morre quando grita "Time out!" Digo bomdia a uns e outros. o tempo todo. O saber pugilístico é transmitido. "Time out!" Todo mundo imobiliza-se ao mesmo tempo. Hoje foi uma loucura. Corpo e olmo 137 . Os meninos sucedem-se ininterruptamente no ringue." que tem por efeito facilitar a assimilação dos gestos e que contribui para derrubar as inibições. é. corpos em ação . por medo do ridículo. [. antes de cuspir a água no balde. saltos. de assopras. por mimetismo e contramünetismo. DeeDee grita seu "Timei Work!" com 136 Lo·ic Wocquont A coordenação temporal dos exercícios faz com que todo boxeador tenha permanentemente sob os olhos um repertório completo de modelos em que se inspirar. work-workwork!" E recomeçamos com mais vontade! telefônicas são interrompidas pelo refrão ritmado dos" Time in!" e" Time out!". em situação. quando se boxeia diante do espelho. sem a intervenção explícita do treinador. situando-se em seu nível na hierarquia sutil. a um só tempo fluida e precisa. Se a prática efetiva. besuntam o rosto com vaselina. assim. enfiam as luvas. copiando sua rotina. assim. com Bernard e Reggie. uma reminiscência completa da excitação frenética das grandes celebraçôes totêmicas aborígenes. e os trinta segundos de repouso não deixam tempo para uma conversa. imitando-os mais ou menos conscientemente. em ondas. do modo tácito documentado por Michael Polanyi. saltitam nervosamente no mesmo lugar ou retiram o capacete e a coquilha antes de ir para a frente do espelho. muitas vezes. que estrutura o espaço do gym. Entusiasmados de se agitarem ao mesmo tempo que os outros. sentado em sua mesa.inclusive o próprio corpo. 1 Estou cansado. a sala dos fundos. Os meninos aproveitam para trocar algumas palavras. "Time. no esguicho coletivo que fica perto da mesa. Uma verdadeira engenhoca de boxeadores invade. estado de semiconsciência. espiando suas respostas às instruções de DeeDee. fecham-nas com fita adesiva. olhando como os outros fazem."' a determinar os modelos potenciais. todos entregam-se ao treinamento.uma voz forte. Ao longo das sessões. de esquivas. às vezes. O fato de que sejamos vistos o tempo todo e por todos os outros também força a que caprichemos. e pode acontecer. observando seus gestos. mas faz um bem imenso trabalhar assim. como se pode perceber nessa anotação datada de 26 de setembro de 1988. eles bebem em silêncio. como que levado pela cadência coletiva dos exercícios e pelo barulho ensurdecedor (sobretudo. Esse reforço visual e auditivo permanente gera um estado de "efervescência coletiva". paramentam-se. Ou então. fica-se como em um DeeDee dá o "Time!" do sparring. "Time in. esforços de todos os tipos. porque antes de mais nada é preciso retomar o fôlego. breves observações. próximo ao ringue. em uma tal tempestade de golpes. nesse alegre ambiente de algazarra física. quando Smithie está no saco de areia e Ratliff na pêra de velocidade: parecem tiros de bazucas misturados com saraivadas de metralhadoras). Depois de um momento. work!" Três minutos de pauleira. em uníssono. esgrimimos sem Corpo e olmo 139 138 - . eu tento). sobe ao ringue. Ele põe em ação uma dialética do corporal e do visual: para compreender o que se deve fazer. decido continuar. É só a partir do momento em que o habitus do aprendiz de boxe sabe "reconhecer" os estímulos e os apelos do gym que a aprendizagem torna-se plena.')(J o pugilista iniciante não consegue retirar todas as vantagens dos "conselhos visuais" que ele recebe de seus pares enquanto não sabe decifrar todas as mensagens emitidas à sua volta. uma infinidade de propriedades específicas. precisos. passando debaixo da guarda de seu oponente imaginário. com efeito. eu redobro também. Cliff e Rodney. a torna significante e compreensiva. de um outro gesto. que me observam. DeeDee lança um "Time work!" enérgico. mantendo meus apoios e girando o tronco corretamente. ínfimas e invisíveis para aquele que não tem as categorias de percepção e de apreciação apropriadas. enquanto espera o sparring). Sigo-o como se ele fosse um modelo vivo: quando ele redobra o jabe. mas só se vê verdadeiramente o que eles fazem quando isso já foi um pouco compreendido com os olhos. rangendo. portanto. bandana branca na testa) sobe no ringue. o suporte. a ponto de parecer contraída. e "Boxhead" John na speedbag. Com uma voz rouca. nossos quatro corpos desenham um ruidoso balé espontâneo: chiando. do pé do ringue. Cada gesto. Divirto-me no ringue. por sua vez. e é um pouco intimidante boxear diante de todos os veteranos e do matchmaker Jack Cowen. por sua vez. E eis que Cliffpassa também por entre as cordas e vem juntar-se a nós no ringue. e depois a assimilação. de modo a fazer ressaltar toda informação sociológica que ela contém.1421 Há um "olho de boxeador" que não se pode adquirir sem um mínimo de prática efetiva do esporte. e eu posso observá-lo de perto e imitar seus movimentos. é porque somente ela permite encaixar a solicitação mútua que se dirige um corpo e um campo que se interrogam e provocam um ao outro. O treino ensina os movimentos . seus gestos são curtos. e que os conselhos de DeeDee só fazem veicular. encadear meus ganchos de esquerda lá de trás. bufando. Ele parece uma máquina de boxear: o tronco ligeiramente inclinado para a frente. para redobrá-lo. (42) As observações de Howard Becker sobre a fotografia aplicam-se muito bem aqui: assim como cumpre saber decifrar uma chapa segundo um código específico. o material. Adoro seu jabe curto e baixo e tento imitá-lo. avaliá-los. mas ele inculca também. suando. Esmero-me por lançar bem meu jabe. com o corpo. e. socando o ar com os punhos. mãos bandadas de vermelho. e que. Ele está brilhando de suor e exibe uma fisionomia séria. diante do espelho.o que é mais evidente -. "Timeout!" Bufamos. Lo'ic Wacquant No último round. o instrumento que torna possível a descoberta. Durante três minutos. isto é. f: bárbaro. quando ele flexiona as pernas para lançar uma série de uppercuts breves. cada gesto retira dele uma careta homérica. cada posição do corpo do pugilista possui. Primeiro. quase mecânicos de tão bem coordenados. fico sozinho. contidos. ao final. De repente. faço a mesma coisa. reproduzi-los. as mãos dispostas em leque diante do rosto. a passagem obrigatória (methodos) para a compreensão dessa "arte social" que é o pugilismo. Sigo-o de perto e boxeio como ele (em todo caso. Rodney. Smithie (jaqueta e calções azuis. de maneira prática. Cada novo gesto assim compreendido torna-se) por sua vez. UMA APRENDIZAGEM VISUAL E MIMÉTICA Ajusto minhas luvas vermelhas de treinamento e subo no ringue. gritando. Eddie (de costas) supervisiona Lorenzo e Little Keith (que se aquece em shadow no solo. estimulado por estar entre Smithie. olha-se os outros boxearem. os esquemas que permitem melhor diferenciá-los.aqui. isso faz com que eu capriche. Jimmy e Steve (que "atuam" no ringue). um deles retificando a posição de minha perna 140 lok Wacquant pediria que. secos. Acompanho-o com o canto do olho e tento imitar todos os seus gestos: ganchos e jabes curtos. [Notas de 24 de junho de 1989. enquanto um terceiro indica-me como bloquear os golpes de meu adversário movendo os cotovelos e iniciando-me nos segredos da esquiva. por sua assiduidade. rápidos.1 Reggie demonstra o gesto de uppercut a um novo recruta atento.como sempre. pelos boxeadores profissionais mais experimentados. Imito-o da melhor forma possível e tenho a franca sensação de ser um verdadeiro boxeador. a supervisionar o treino. (A intervenção deles é aceita. então. De início. Rodney finge lutar a distância com Smithie. como eu. tomam a iniciativa de me corrigir. seus progressos provêm. movimentos nervosos. Smithie. Big Earl. Durante minha iniciação. Os boxeadores de forças equivalentes também compartilham sua experiência e ensinamse mutuamente técnicas e truques. o ensino do boxe é uma empreitada coletiva. sempre lançando séries de ganchos e diretos e bloqueando os golpes de meu "adversário mental". desde que se dirijam aos boxistas amadores. assim como pelos outros treinadores ou pelos veteranos que vêm de vez em quando passar uma tarde na academia. MeSlTIO os maus boxeadores têm a virtude de servir aos outros como modelos negativos: à maneira de crimes contra a "consciência pugilística coletiva". de apoio. ternos alguma coisa a aprender.1 Enfaixo as mãos e venho postar-me entre Mark e em·tis. que. de uma responsabilidade coletiva difusa. Tal organização não é Corpo e alma 141 . [Notas de 30 de maio de 1989. Sinto que meus golpes saem melhores e aplicome para atingir meu alvo fictício com cada um deles. da Universidade de Chicago. por minha vez. no sentido de que o treinador é assistido. no entusiasmo do momento. Eu superome. em suas funções. funcionam igualmente como lembretes vivos da norma prática que se deve esperar e que cumpre respeitar. no caso dos profissionais. Isso duplica minha energia e fico dois rounds mais do que o previsto. um de cada vez. eu mostrasse os rudimentos de jogo de pernas no ringue e a utilização da pêra de velocidade a um novo recruta. vindo. para três séries. Smithie mostra a Ashante uma esquiva que este aparentemente não tem em seu jogo . de me encorajar. Ashante. seguidos por direitas e uppercuts antes de recuar. junto com DeeDee. Anthony e Eddie. substituindo-o ou complementando suas indicações. mas fui como que transportado pela presença de meus companheiros.) Desde que tenha demonstrado seriedade. diante do espelho pequeno. Ufa! Não agüento mais. apenas o trainer ao qual o boxeador está ligado por contrato está habilitado. Cada membro do clube passa para aqueles que estão abaixo dele na hierarquia objetiva e subjetiva do gym o saber que recebeu daqueles que estão situados mais acima. por todos os membros do clube. mas ativa.repouso. À minha esquerda. movimentos laterais ágeis e precisos. abnegação e coragem entre as cordas. É empolgante jogar shadow ao lado do campeão de IIlinois. DeeDee na formação dos noviços. o ângulo do meu uppercut. cada um deles ensina-me uma faceta do ofício. Enfim. com um "giro" de ombros. saio do ringue aos pedaços. seja em combinação com DeeDee. o outro. eles movimentam-se para simular ataques. que colaboram de maneira informal. Depois de um ano de treinamento regular. recebo conselhos dos principais freqüentadores do clube. encadeando jabes aperfeiçoados. esquivas e contra-ataques vívidos. todo "novato" é cuidado pelo grupo. seja por conta própria. não tem nada de simples: o pulso gira. Mantenha a mão direita no ar e faz uma volta com ela. mesmo assim. para segurar o punho de meu oponente. Mantenha seu cotovelo contra a parte lateral do corpo. que é tudo mais complicado. Não gira essa bomba desse pé direito." Não compreendo bem o que ele está gritando para mim e vou até a sala dos fundos. e esse saber. o cotovelo imóvel. DeeDee mostra-me como fazer meu punho girar. Não é tanto a cabeça que se desloca. É fácil." [Ele dá essa demonstração 142 Lo"ic Wacquont sentado em sua poltrona. e. "Não mexe o teu cotovelo. fiz cinco rounds diante do espelho. DeeDee passeia pela sala." "Mas claro que é fácil. uma. faz uma volta com a mão para agarrar a luva. condições de número: de acordo com minha experiência. e torna-se difícil atrair a atenção de DeeDee ou os conselhos de seus pares. deve ser transmitido ao mais novo" . durante a tentativa seguinte. de fato. percebe-se que não foi nada disso o que aconteceu. mas nada disso. DeeDee e Anthony aliaram-se para ensinar-me como se bloqueia o jabe do adversário: Primeiro. já te falei isso. droga. contra a minha vontade. Você somente gira o punho para fora. mas que. Tanta atenção honra-me e intimida-me ao mesmo tempo. passando de um em um os outros rapazes. B. Ele mostra-me tudo de novo. Recomeço meu round assim que Anthony se afasta. duas vezes. meu camarada? Ok. para me mostrar como agarrar seu punho. tudo ao mesmo tempo.J Essa forma particular de learning by doing coletiva pressupõe certas condições. porque o salão que pertence a Mickey Rosario.• ' Eis. Louie. Em contrapartida. manda brasa!' E aí você bloqueia ele com a mão direita. é fácil para quem sabe fazer. é superlegal. Quando passa perto de mim." Éééé. olha só. abrindo a palma para o lado de dentro e encurvando os dedos de modo a formar um ninho no qual recolher o jabe do adversário. DeeDee. na verdade. "Teus joelhos devem sempre ficar 10% flexionados. por exemplo. para deixar passar o nervosismo. é como recitar o ABC. fico feliz. Em vez de tentar. Mas. é só a mão que se mexe . vindo interromper sua trajetória.] "Não é fácil. depois. que o confiou a ele. Anthony imita um jabe que ele me faz aparar com a mão direita. em um belo dia de maio de 1989. ela só faz é girar no eixo por trás do ninho protetor formado pelo punho.. "É fácil. Anthony interrompe-me. De início. el. assim. Acho que começo a perceber melhor a mecânica. mas sem conseguir. a mão forma um ninho. há uma tendência a desaparecer na massa. a cabeça." Decididamente.. "Faz um movimento que nem uma tigela [make a cup]. vuuum! Gancho no corpo. basta levantar ele". curva os dedos e agarra a luva. toda vez que se acredita ter dominado um gesto. realizá-lo. Além de cerca de vinte pugilistas. é como o abecedário [it's like A. Louie. se há menos de Corpo e alma 143 . logo em seguida. para contra-atacar com um jabe ou com um gancho de esquerda. mas a mão. mas teu cotovelo não se mexe. Meu cotovelo continua levantando. mas é difícil passar da compreensão mental à realização física. O saber técnico transmite-se como as roupas vão passando.. Cada menino é o guardião do savoir-faire do mais velho. opera segundo um mesmo esquema coletivo e graduado. Eu achava que sabia como esquivar a cabeça e bloquear os jabes. entre um golpe e outro. depois ele teleguia meu outro braço para executar o contragolpe de esquerda. Louie . DeeDee diz para eu virar meu punho direito para dentro.própria à academia de Woodlawn. você diz a ele: 'Você quer mandar seu jabe. em East Harlem. Meu punho esquerdo passa muito baixo e encontra minha outra mão. ele corrige meu jogo de pernas. refazer os movimentos que ele me mostrou. como. seu cotovelo não deve se mexer. tua cabeça vai pro lado direito. que Plummer caracteriza com essa analogia: "O gym funciona como uma família na qual os filhos maiores ou mais experientes cuidam de seus irmãos e irmãs menores. É vergonhoso ter de ouvir novamente a explicação desse movimento aparentemente tão simples. Capricho para repetir o gesto que DeeDee me mostra. quando não está falando ao telefone. é preciso que não haja nem muita nem pouca gente. Lá da sala dos fundos. [Notas de 17 de maio de 1989. é nada [ain't nuthin' to it]. que segura o punho do adversário. Tento mexer bem a cabeça da direita para a esquerda. o que é que eu falei pra você? Você vê o carinha na tua frente. descendo na escala das idades.. menos aguerridos ou menos capazes. em contrapartida. inicio encadeando diretos e jabes. em uma família numerosa. depois o peso do corpo é transferido para a esquerda. DeeDee também continua a me dar conselhos lá de sua poltrona. a ponto de se esquecer de gritar O "Time!" A segunda condição é que o volume de capital pugilístico coletivamente detido pelos membros do clube (aí incluída a forma objetivada. uma vez que não se pode omitir de computar. é somente por desejo de se divertir. cuja interiorização é a face oculta da aprendizagem da técnica gestual: uma moral do trabalho individual. de meios materiais do clube. sonoras e visuais) . A recusa da racionalização do treinamento e da explicitação da aprendizagem ancora-se em disposições éticas. à semelhança do rei da sociedade de corte dissecada por Norbert Elias. no final do dia. seja por observações pontuais ("Mantenha a guarda mais alta". que é suficiente. o efeito de "efervescência coletiva" anula-se.quando isso acontece. na maioria das vezes. que propaga e multiplica os efeitos da menor das ações do treinador. Outro sintoma dessa recusa da racionalização. ele funciona à maneira de um chefe de orquestra implícito. mesmo quando elas dirigem-se aos outros. portanto. com a finalidade de analisá-los. nem de decupar as fases da ação em segmentos visuais distintos. A todo momento. os halteres ou a prancha inclinável para abdominais que jazem em um canto em poeirada da sala dos fundos. títulos. seja. ou os modelos ficam muito longe para serem fisgados . assegurar que cada um respeite o andamento comum e permaneça no lugar que lhe cabe no dispositivo coletivo. por sua presença atenta. em primeiro lugar. É claro que se pode ver o mesmo combate várias vezes e que ninguém se priva de comentar os momentos mais marcantes. bastante real. "Mande uma direita no rosto em vez de ficar com o braço balançando") que cada boxeador tem o cuidado de interpretar por conta própria. fotos etc. nutrida pela "crença no caráter sagrado das regras que sempre existiram". e dispõe-se de muitos poucos modelos atuando. por vezes. passeando entre seus alunos e corrigindo seus gestos por lneio de pequenos toques. O uso que o gym faz da técnica do vídeo é sintomático dessa recusa deliberada dos meios tecnológicos avançados e da relação "culta" com o boxe que elas veiculam: quando DeeDee pega emprestado o aparelho de vídeo da creche vizinha para assistir aoS combates dos membros do clube que estão gravados em fita. que DeeDee se desinteresse momentaneamente do treinamento. opera-se uma correção mútua pelo grupo. para 144 Lo'ic Wacquant provocar Ulna autocorreção espontânea dos lnovimentos do pugilista que se sabe observado por ele. por reflexões de ordem geral. do respeito mútuo. da coragem física e da humildade. como diz Max Weber. seja em voz alta. contrabalançando fluxo e refluxo de noviços.quatro ou cinco.) ultrapasse um limite mínimo. como não visam a ninguém em particular. É preciso. 93 Essa recusa não se deve simplesmente à penúria.que é a academia do Woodlawn Boys Club . mas não passaria pela cabeça de ninguém a idéia de voltar a fita e assistir à mesma passagem várias vezes seguidas ou em câmera lenta. pode ocorrer. A adesão dóxica a esse modo tradicional de transmissão exprime e perpetua um "sentido de honra" pugilística fundado sobre o respeito à herança recebida e sobre a idéia. Essa pedagogia negativa e silenciosa. de que cada qual deve pagar com sua pessoa. aceita por todos como condição tácita da admissão no universo específico. A terceira condição é um núcleo estável de boxistas profissionais (que inúmeros gyms têm um grande trabalho para fixar) que dê ao ensino mútuo sua continuidade no tempo. não deve trapacear com o corpo e com o esporte. "Gire bem o pulso para dentro. ao impacto". mas também que a distribuição das competências seja suficientemente contínua para que ninguéln se ache a uma distância muito grande de seus vizinhos imediatos na hierarquia específica (o que vale igualmente para o sparring. recebeln a atenção imediata de todos -. sob cujo título Corpo e alma - 145 . copas. mas nunca com uma intenção pedagógica.que DeeDee exerce sua eficácia própria. em que um boxeador que não disponha de parceiros adequados na academia pode se ver obrigado a trazer um de fora. tais como o aparelho de remar. que pouco se utiliza das palavras e das ações visíveis.que.92 é somente por meio e graças à rede completa das relações que constituem o espaço das trocas (físicas. todos os equipamentos. por vezes mediante remuneração). porque. que não deve tentar abreviar. e com a ajuda do cansaço. Prova disso são os equipamentos inusitados. para animar a rotina do treinamento. nesse aspecto. móveis. pôs teres e cartazes. pretende. roupas. enfim. no número de instrumentos pedagógicos do ginásio. evitar o erro que consistiria em focalizar a atenção sobre O treinador. No interior desse dispositivo espaço-temporal. buscando inovar com métodos heterodoxos. no saber adquirido pelo aprendiz de boxe. depois da crítica radical que dela fez Daniel Chambliss. Essa indiferença. às vezes. Administrar seu capital-corpo Existem poucas práticas nas quais a expressão "pagar com sua própria pessoa" assuma sentido mais forte do que no boxe. o treinador) situado no ponto nevrálgico do edifício. mas também o rostO). tanto do lado dos boxeadores profissionais ("Isso não tem importância.(44) parece. em que os técnicos são secundados por uma miríade de assistentes especializados que assistem a fitas de jogos das equipes adversárias. contradizer o ethos da preparação ótima e minuciosa que. (46) (43) Nenhum treinador ou boxeador de Woodlawn tem qualquer registro escrito no qual ele anote a seqüência das sessões de treinamento. ou mesmo o peso. a duração e a quilometragem das corridas de treino. supõe uma gestão rigorosa do corpo. nem na soma de exercícios incansavelmente repetidos por todos. polegar.':I4 (44) Assim se faz 110S esportes mais racionalizados e burocratizados. seus trunfos e suas fraquezas). impregna a atmosfera da academia. luas. De modo mais profundo. e menos ainda no "saber-poder" de algum agente (no caso. em um sentido ou outro. vem das intervenções deliberadas de OeeOee do que vem da influência dos pares ou de esforços e "talentos" pessoais. hematomas de repetição nos ouvidos que produzem descolamento do pavilhão. à primeira vista. dietéticas e médicas mais avançadas estão prontos a voltar aos veneráveis métodos estabelecidos pela tradição. Mais do que qualquer outro esporte.pode-se igualmente incluir o fato de que os exercícios e as dietas alimentares que os boxeadores seguem não são objeto de qualquer tipo de cálculo ou planejamento metódicos:(43) o desinteresse total dos membros do Boys Club com relação a seu futuro oponente. o vídeo para assistir a seus combates antes. incessantemente reafirmada. para o bom observá-lo no ringue. é O "pequeno ambiente" do gym como um todo. no espaço pugilístico: lá onde outros esportes deram nascimento a complexas burocracias compostas de uma multiplicidade de funções ultra-especializadas.':I5 Se um adversário de um de seus boxeadores promete levantar problemas particulares (por ser canhoto e boxear com uma "guarda inversa". tal como é recomendado. e pode mesmo (mas é excepcional) deslocar-se para Se é que se pode dar algum sentido à noção indígena de "talento". e principalmente na disposição de seus corpos no espaço físico da acadelnia e em seu tempo específico. descolamento da retina. e talvez mesmo uma outra era do boxe que sobrevive. pugjJjstici:!. mais "moderno".e pode acontecer que a mesma pessoa assuma as três funções. sua estratégia preferida. depois da aprovação de um contrato de combate. colecionam quilômetros de estatísticas detalhadas sobre cada um dos jogadores e sobre suas tendências e vão "espioná-los" durante os treinos etc.Y7 que fabrica o boxeador. depois de tuna derrota (mas não vice-versa). essa recusa das técnicas modernas de observação e de treinamento está ligada à indivisibilidade relativa das funções de suporte e à tarefa de inculcar. a questão da racionalização do treinamento pugilístico: os mesmos que adotam as técnicas científicas. antes. lesões cerebrais crônicas que podem levar à dcmentú. a alimentação. por exemplo. do nariz e do maxilar.(4ó) Porque a energia motriz dessa máquina pedagógica auto-regulada que constitui o gym não reside nem na imitação mecânica de um gesto. articulações). O que se sabe da preparação dos campeões por meio das autobiografias e da imprensa especializada não permite decifrar.':I6 São as duas partes do corpo de um pugilista expostas às penas mais severas: fraturas das mãos (metacarpo. uma outra relação COln o corpo e com o esporte que assim se afirma. W' (47) (45) 146 - Lo'ic Wacquant Corpo e olmo - 147 . para saber de antemão qual o estilo dele. no ringue e fora dele. Em uma palavra. sobretudo profissional. no interior do Woodlawn Boys Club. uma vez feito o contrato. não se dão ao menor trabalho de conhecer o adversário de seu pupilo. no sistema indiviso das relações materiais e simbólicas que se estabelecem entre os diferentes participantes. pelo método de boxe ]ean-Claude Bouttier e Jean Letessier. se existirem fitas. o desenvolvimento bem-sucedido de uma carreira. é um princípio ético.(45l É claro que seria totahnente fútil tentar distinguir O que. o boxe continua a operar com a tríade artesanal treinador-assistente-empresário . eu devo combater o meu combate") quanto dos treinadores (que. O que tende a confirmar a hipótese da ascensão de um novo modo de preparação. "como feixe de forças físicas e morais". Sem dúvida. uma conservação meticulosa de cada uma de suas partes (muito especialmente as mãos. Eddie utiliza. cortes cutâneos. como o basquete ou o futebol americano.(47) uma atenção contínua. por exemplo). não estou nem aí. Dito de outro modo. 148 . besuntam o tronco e os braços com alboleno. de um sentido de poupança corporal adquirido insensivelmente no contato durável com os outros atletas e com os técnicos. treinadores e empresários mais inclinados à racionalização de seus ofícios. enquanto tal. Desde a maneira de banda r os punhos (e o tipo de bandagem protetora utilizada) até o modo de se respirar durante o esforço. ao longo dos treinamentos e nos combates.(4H) O pomadas. antes do treino. no limite do geren- ciamento racional do capital específico que seus recursos físicos constituem. nem por isso são menos portadoras de uma finalidade retrospectiva".e o alvo de seu adversário. a percepção prática de que há limites que não devem ser ultrapassados.. por não serem deliberadas. vaporizam a aresta do punho com uma solução à no ringue. um pescoço muito fino ou mãos frágeis). guiada por decisões individuais tomadas com pleno conhecimento de causa. cujos ossos são frágeis em relação ao soco. em seu sweat suit. de fato. sem serem ordenadas e organizadas com relação a um fim. e que permanece. 62). ou. Isso porque o corpo do pugilista é.1 ll2 base de vitamina E. cit. nem o efeito mecânico de imposições externas que agem sem mediação sobre o organismo (ao modo da "vestimenta". de suas potencialidades e de suas insuficiências. seu programa de preparação. o comportamento e a tática que adotam peão Jack Dempsey. retirada do treinamento cotidiano. as regras da vida que seguem. passando por todos os golpes de esquiva. mas de uma espécie de "ciência concreta"llIl de seu próprio corpo. não é nem o produto de uma atitude deliberadamente maximizadora. os exercícios e os regimes alimentares especiais."" mas a expressão de um sentido prático pugilístico. inacessível ao controle consciente e deliberado. p. tudo isso vem.arma de ataque e escudo de defesa . ungüentos e elixires especialmente manipulados. no início dos anos 1950. contudo.Laic Wacquan\ Corpo e alma - 149 . de tal modo ela se aplica ao que eu observei no Woodlawn Boys Club: (49) William Plummer rclara pr<Ílicas similares em uma academia de East Harlcm.I") Um outro esfrega uma esponja seca sob os hand-wraps. segundo Foucault). seu instrumento de trabalho . tira as bandagens das mãos. no fim do treinamento. terminam cada uma das sessões de treinamento com uma longa massagem [rub-down J feita pelas mãos experientes desses treinadores. assim como da "terrível experiência de apanhar e bater repetidalnente". os boxeadores do Woodlawn recorrem a uma gama extensa de dispositivos que vi- sam a preservar e a reproduzir suas reservas de energia e a proteger seus órgãos estratégicos. é acompanhado regularmente por um terapeuta de mãos. Alguns deles imitam o antigo cam- conhecimento que os pugilistas têm do funcionamento de seu corpo. uma relação extraordinarialnente eficiente. o emprego de (4!\) Lembremo-nos de que "o sentido prático orienta 'escolhas' que. nem por isso são menos sistemáticas. depois do exercício. Ashante. Outros. em Nova York (op. não da observação sistemática e do cálculo refletido da linha ótima a ser seguida. como forma de atenuar o impacto dos choques repetidos contra o saco de areia.'oo tais como Ed "Smithie" Smith ou o antigo campeão do mundo Adolphe Ratliff. a despeito dos esforços conjugados de boxistas. Os profissionais que têm meios para contratar os serviços de um trainer (técnico-terapeuta) remunerado. os trunfos e os pontos fracos de sua anatomia (uma base baixa ou uma grande velocidade de braço. Essa relação. ao mesmo tempo. um óleo que "esquen- ta o corpo e distende os músculos" (segundo a bula).I funcionamento do corpo e para sua proteção. célebre por embeber suas mãos na salmoura para endurecer a pele das falanges. E eu poderia retomar inteiramente a descrição que Weinberg e Arond fazem dos gyms de Chicago. Existem inúmeras técnicas para preservar e fazer frutificar seu capital-corpo. e que. enquanto outro. a vivacidade e os socos. beira a abstinência com relação a qualquer coisa que poderia prejudicar sua preparação. fiquem muito doloridas ou sofram fraturas. desabrido. Um deles praticava a ioga. Mas seu ascetismo. já o humor de Curtis é cambiante. Assim. De um lado. mas a administração adaptada a esse objetivo não obedece a um plano metódico e pensado. e ainda mais porque elas não são visíveis. ele sabe evitar. emocional ou profissional. suas emoções são bruscas e à flor da pele. onde ele nem sempre sabe privar-se dos mínimos prazeres da existência (bebidas gasosas. porque lhe acontece deixar de treinar durante longos períodos (sobretudo depois de um combate). estabelecida por Bourdieu para o caso da classe operária argelina. fora da aca150 Ldic Wacquant Volta-se aqui a encontrar uma oposição clássica. ao contrário de Butch. Os pugilistas têm diversas fórmulas para impedir que suas mãos inchem. Curtis faz de seu corpo um uso tumultuoso. doces. Curtis encarna o déficit de racionalidade que se manifesta por um treinamento às vezes irregular e por uma higiene física e moral flutuante. Mas os boxeadores não param de experimentar remédios e exercícios demia. em grande medida. subjetivas: de um lado. tendo sob seu "campo de visão" duas rochas igualmente perigosas. Em primeiro lugar. submetido aos ciclos de emprego dos serviços desqualificados. dia não"). qualquer desvio alimentar. a consumir suas forças até o ponto de gramação de treinamento de Butch raramente é perturbada por problemas de saúde. uma vez que eles valorizam a virilidade. Depois. seu nível de energia é bem irregular. ISO) E eles divergem até em suas expectativas econômicas com relação à profissão: Butch reconhece que suas (50) esgotá-las. o que o coloca sob a ameaça de sofrer um ataque. Tudo em sua prepara- ção minuciosa exprime um sentido agudo de equilíbrio e de longo prazo. um terceiro jejuava periodicamente. 104 Corpo e alma -151 . em seu rigor. membro da aristocracia operária. a frugalidade pugilística em forma de homem: Butch treina e boxeia com sobriedade e economia. com um humor inalterável. que. deixando cair a guarda de modo a lhe oferecer o rosto descoberto como uma forma de provocação. Esse contraste de personalidades está estreitamente correlacionada e é reforçada pelas diferenças de condição social entre os dois companheiros de clube: um é proletário. ao deixar inexplorada uma parte das capacidades do combatente. outros pesquisavam loções. de outro. comidas gordurosas) e onde sua temperança sexual conhece altos e baixos. Enquanto a pro- mas são variáveis no tempo e. O pugilista navega. a ponto de seu empresário insistir para que ele vá passar os dias mais rigorosos do inverno em sua fazenda da Carolina do Sul. O que não quer dizer que exista aí um interesse hipocondríaco. como acontece quando ele avança sobre o adversário. imprevisível. por vezes seu parceiro de sparring. sem qualquer tipo de segurança social e econômica. O par formado por Butch e Curtis oferece uma realização ideal dessa oposição. para não sacrificar preciosas semanas de preparação com uma gripe tremenda. nem que seja pelas precárias condições de vida daqueles que o praticam. Essas diferenças de meios entre os dois boxeadores são multiplicadas pelas suas constituições e seus respectivos caracteres: Butch é doce. entre dois tipos de posição social e entre dois sistemas de expectativas e de meios que lhe correspondem. aprendem a enrijecer-se e a desprezar o comportamento excessivamente cuidadoso. então. outro tornou-se um adepto do culturalismo. Ulna falta de disci- plina e de treinamento que aumenta os riscos de contusão grave e com promete as chances de sucesso no ringue. vitaminas e outros meios de fazer aumentar a rigidez. lação aos cânones do boxe racional-. Por contraste com este último. De outro lado.isto é. sexual. ele usa seu corpo para nada. 103 Esse é um dos principais paradoxos do boxe: é preciso usar seu corpo sem gastá-lo. desviante com re- que têm como finalidade melhorar seu corpo. portanto. expondose gratuitamente a um ferimento ou à ira dificilmente contida de DeeDee. o excesso de preparação que dilapida em vão os recursos e abrevia inutihnente a carreira. o outro é subproletário. durante períodos bem longos. que "marca o ponto" no clube com uma regularidade milimetrada. a treinar em excesso. quase ((louco" . tem um emprego e uma renda estáveis.Os boxeadores chegam a considerar seu corpo e particularmente suas mãos como seu capital profissional [stock-in-trade]. plácido. Curtis fica doente com freqüência (DeeDee adora dizer que "Curtis tem um resfriado dia sim. na academia. em alguns mOlnentos torna-se ansiedade e leva-o. aos 37 anos de idade. vencendo oito combates consecutivos. assim como de um agudo sentido de resposta. O empresário de Curtis. no International Amphitheater. falta a Curtis um mínimo de disciplina pessoal. o pugilista estrela do Woodlawn responCorpo e olmo 153 "Posso GANHAR UM MILHÃO DE DÓLARES NUMA NOITE" Com 56 quilos e 1. Ele é jovem e inexperiente. tornou-se profissional em 1986. justificou todas as esperanças postas nele por parte do clube. Sugar Ray Rohinson. para permitir que Curtis treine em boas condições e para controlá-lo melhor. como Johnny Branton. Essa personalidade esportiva raivosa combina perfeitamente com seu estilo. seu comportamento excepcionalmente agressivo entre as cordas. o mais famoso torneio amador da cidade. o título de campeão de Illinois. e com razão. uma espécie de zelador [jnnitor] . como uma "fera" dos ringues. 152 Ldic Wacquant . de 37 vitórias e seis derrotas. Nunca sobe ao ringue sem previamente ter rezado durante um tempo junto com seus cinco irmãos e o primo. vitorioso. mas sinto que ele pode se tornar um grande boxeador. então precisei aprender a bater. que ele sorrateiramente coloca dentro da sapatilha durante os combates e que nunca se esquece de beijar. "Como eu era pequeno. batendo por pontos um mexicano temível pela experiência e pelos golpes. antes de ganhar. arrebatou o seu quarto título mundial e a 97 a vitória entre os profissionais. Depois de seu treinamento diário. Quando lhe perguntei se ele tinha "feito a festa" depois da surpreendente vitória sobre o campeão estadual. uma heróica luta. no entanto. Se você assistisse aos filmes dos maiores boxeadores. Ele tem 27 anos e boxeia há três anos entre os profissionais.70 de altura. Curtis Strong luta na categoria dos pesos superligeiros. que tem várias fazendas e haras em minais e na Carolina do Sul. tudo isso valeu-lhe ser conhecido. Mais tarde.chances de ganho são mínimas. durante a escola e depois da escola. por ocasião de um encontro Curtis. depois de ter feito um certo nome como "vagabundo" no seu bairro. que é o de submeter seu adversário a uma pressão constante. sempre tinha um monte de caras pra me encher." E. Ele tem isso dentro dele [He's got it in him]. Sandy Saddler ou Henry Armstrong. já Curtis sonha acordado com uma ascensão fulgurante que o faça subir miraculosamente ao topo da escala social. Quando eu era garoto. esvaziar as latas de lixo e colocar em ordem as mesas da creche. após ter arrebanhado o título das Chicago Golden Gloves. aspirar o tapete de entrada." Depois de uma série. no limite da perda de controle sobre si mesmo e do regulamento. O Boys Club arrumou para ele um emprego em tempo parcial. CURTIS: cuja luta principal era do legendário Roberto "Manos de Piedra" Duran . Curtis espera a academia fechar. ia ver que ele tem alguns golpes e movimentos desses maiorais. no entanto. caindo incessantemente sobre ele e batendo de todos os ângulos. e ele nem sempre impõe a si mesmo a higiene de vida exigida por sua carreira. que brandem o recém-conquistado cinturão de campeão de Illinois. como amador. eu brigava antes da escola. que tem assento no conselho administrativo do clube e alimenta para ele grandes ambições: "em·tis não sabe o quanto ele é bom. passar o pano no chão dos vestiários. antes e depois de cada encontro. E. Boxeador felino e impulsivo. que é pastor. Precisava me defender. com cerimônia. dotado de uma grande velocidade de braço e de reação. é da fé cristã que Curtis retira sua inspiração entre as cordas: usa sempre um crucifixo pendurado no pescoço. para varrer o salão. Chegou à Nobre Alie tardiamente. posa com seus irmãos. um branco rico e criador de cães.que. tem muito pra aprender. Jeb Garney. ela trabalha pra valer." Como suas rendas são poucas e irregulares (seu emprego no Boys Club rende-lhe menos de 100 dólares líqüidos por semana e não inclui seguro social e de saúde). e os tíquetes-alimentação [food stampsJ. no limite da mendicidade (nove filhos. foi por isso que eu me casei." A ambição de Curtis é a mesma que a de muitos jovens pugilistas em ascensão. maS ainda é mais fera.Curtis. droga. melhor ainda. É tudo. boxeou durante sete anos entre os amadores. isso não. Depois. posso me concentrar na minha carreira. como garçonete em um bar que vende quentinhas. e eu agradeço. Enquanto espera. que a fa154 Lo"ic mília recebe do governo. mantido por uma família tailandesa em um setor mal-afamado do bairro negro de South Shore. eu agradeci a Deus. de vez em quando. há três anos. Vou me tornar um big man. e eu tenho a minha carreira aqui." Ele ri e finge boxear a minha barriga. embolsar os cachês. Não faço nada que Ele não tenha me mandado fazer. mãe que trabalha de modo intermitente como barmaid e que sobrevive principalmente de seguro-desemprego). esse negócio liqüida com o meu boxe também [aU this messin' around messes up my boxin']. não quero perder ela. ganhar o título mundial e uma boa bolada. É um pouco como Curtis. Mas não tem muita coisa na cachola lhe ain't got to much upstairs] . é isso. fica cansado de pensar. Todos os combates que eu perdi foi quando eu ficava azarando as meninas. Curtis concorda: "Béé. cotados em milhões de dólares. [Com um certo lamento na voz. é uma fera de verdade. BUTCH: "AGORA NÃO POSSO DEIXAR CAIR A PETECA" Wayne Hankins. DeeDee conta que "todos os irmãos dele são brigadores de rua [streetfightersl. Curtis é egresso de uma família subproletária. tam· bem. abandonou os estudos no meio do caminho. o que é bem legal é que cada um tem a sua carreira. ela ia me largar e ponto.] É pena que ele não freqüente a academia. Então eu casei com ela. Curtis foi obrigado a se casar com a mãe das crianças quando esta ameaçou-o com a separação. um emprego público muito bem remunerado (cerca de três mil dólares por mês) e devidamente protegido pelo poderoso sindicato dos funcionários da Prefeitura (o que lhe vale uma cobertura de seguro-desemprego e de saúde. Quando um amigo lembrou-lhe que "DeeDee diz que só há uma coisa pior que junk food [para um boxeador]. e depois esse negócio ferra você. Rio junto com ele. vende-me tíquetes para ter dinheiro sonante.deu-me com sobriedade: "Eu não fiz a festa. Mais conhecido no clube pelo apelido de "Butch". quando suas finanças estão totalmente a zero. Ele é duro.é seu nome de guerra . ao sul de Woodlawn. 1. é um natural [a natural]. e tudo isso. de um dia tornar-se secretária do escrivão no tribunal de polícia da cidade. "The Fighting Fireman" . desenhando um quadro tão atraente quanto improvável e regozijando-se das "carreiras" inexistentes. Tem um irmão mais velho que é menor do que ele. ela trabalha. venho perder a timidez nesse clube de boxe. Minha mulher tem a carreira dela. Mas nenhum deles vem à academia. porque eu gosto dela. cuja reputação é grande na rua.87 metros de altura e 78 quilos de músculos. de uma dureza de verdade. então eu disse. em 1985. Todos eles sabem brigar. que são as mulheres". Isso me fez pensar. pai ausente. Eu. tudo o que eu tenho que fazer é lutar pra valer. só ele. aprendeu datilografia em um curso noturno. os fins de mês são muito difíceis de atravessar. como ele. Louie. minha mulher falou que se a gente não se casasse. com a esperança. unificar os três títulos de suas categorias e. antes de se tornar profissional. " Emérito freqüentador de prostíbulos durante muito tempo e pai de um garotinho de dois anos e de uma menininha de um ano. Dediquei meu combate a Deus. Por ocasião dos encontros. um tanto irrealista. ganhar pra minha carreira. que só "vêm O céu como limite": arrebatar o título mundial ou. ele com a vassoura e a pá na mão. é um dos raros membros do clube que pode se gabar de ter uma profissão estável e invejada: ele é bombeiroencanador da cidade de Chicago. são um recurso vital . com os seus privilégios. não é como esse pessoal que um tem que carregar o outro nas costas.apresenta-se no ringue vestido com um magnífico roupão vermelho cintilante. assim como o direito a férias remuneradas). de lambuja. e Deus vai me ajudar a enfrentar a grande luta que vai fazer eu ganhar muita grana. 'com o logotipo e a sigla do sindicato Corpo e olmo 155 Wacquant . Sua mulher. "Saca só. por horror e cansaço da rotina acadêmica. enquanto eu. pelo menoS naquele dia. A única coisa que faço é executar os planos que Ele tem para mim no ringue e fora do ringue. depois de quatro anos de vida em comum difícil. jovem graduate das universidades de elite. mas a cena é antes patética. 29 anos. durante o fim de semana. depois do que eu já suei para chegar até aqui. a essa profissão manual e ao ringue? t. Mas. vai ser péssimo. "Eu disse a ele: 'Você não pode boxear assim. seu sangue-frio e o controle total sobre si mesmo. Butch. uma predisposição geral para a economia e para a eficácia com frugalidade teria levado-o. bem menos prestigioso e. para melhorar a qualidade de vida de sua família. Entre as quatro cordas. ele acumula esse emprego de bombeiro com outro. por uma vontade feroz de ser bem-sucedido. integrando a equipe norte-americana. não posso deixar cair a peteca'. antigo operário de construção . sete passarinhos e um aquário gigante"). que então lhe ofereciam. seriamente enfraquecido por uma contusão sofrida durante um treinamento (lábios cortados e língua lacerada por um uppercutlevado depois do gongo. e Butch voltou a encontrar o caminho da academia. com um tremor de admiração na voz. meu pai. o que lhe valeria participar dos Jogos Olímpicos. isso não adianta nada. o eterno plácido. tanto no treinamento como fora do ginásio. toda vez que ele aparece. cada esquiva é planejada. Mas o demônio do ringue rapidamente prevaleceu. Por agora. Em 1983. sendo quatro por nocaute e Corpo e olma 157 Wayne Hankins. e uma fiel legião de colegas de trabalho vem aclamá-lo ruidosamente das grades. já perto da luta nacional.e que prolonga a do pai.ao contrário. difícil responder. ele perdeu por um triz na final. Será que é a racionalização objetiva da existência que seu emprego de bombeiro impõe (que não tolera atrasos nem incertezas quanto a horários e à disponibilidade) o que sustenta esse pugilista. um cachorro. Foi a essa altura que ele casou-se e formou uma família. com uma vontade de ganhar reduplicada. De todo modo. perfeitamente adaptado à sua estratégia de "boxer-puncher". existe uma afinidade espantosa entre a regularidade e a previsibilidade das práticas cotidianas que sua inserção profissional demanda . ele é o arquétipo do lutador ~conômico: cada golpe é computado. ao mesmo tempo. de bagger (empacotador) em uma loja da cadeia de supermercados Jewel. soca a pêra de velocidade. E ele foi. mesmo quando não conseguia comer praticamente nada e emagrecia a olhos vistos. o sucesso entre as cordas irá decidir por ele até aonde ir. Na época. Casado e pai de uma família numerosa ("Na minha casa. Butch é famoso e admirado pela disciplina implacável que se impõe. ou. ele cortava cabelos e aparava bigodes na cadeira de barbeiro que instalou em sua garagem.e a maneira que Butch tem de empenhar seu corpo no gym e no ringue. que significaram quinze pontos de sutura na boca). DeeDee lembra-se." Depois dessa amarga desdita. ele fixa como seu objetivo tornar-se "o melhor de Chicago". em dezenas de milhares de dólares. mas também por sua fleuma. Preferiu a segurança do emprego de bombeiro. DeeDee. é preciso que você se declare incapacitado. Sua paixão pelo boxe não o impede de permanecer lúcido e realista: interroga-se sobre seu futuro esportivo e nem pensa em abandonar seu trabalho para jogar tudo no ringue. um gato. 156 - Lok Wacquant . Butch passou três anos sem boxear. depois de ter vencido heroicamente pelas quatro rodadas eliminatórias. como Butch recusara-se a desistir. tem quatro filhos. Butch também arrebatou as Golden Gloves de Chicago e passou a nutrir a esperança de ganhar o título nacional de amadores de peso médio.' E ele me respondeu: 'Nem pensar. na melhor das hipóteses. sobretudo. às perspectivas bastante aleatórias de uma carreira de pugilista profissional. cada deslocamento do corpo é milimetricamente ajustado de modo a minimizar seu gasto de energia e a maximizar o desgaste de seu adversário. Toda a sua família apóia-o nessa "segunda carreira" pugilística que se abre (cinco vitórias consecutivas. dos bombeiros do município bordados nas costas. e calcula suas esperanças de ganhos. bem menos remunerado. " DeeDee exerce uma vigilância minuciosa e contínua sobre o estado físico de seus pupilos. tanto em casa como durante os encontros. O velho treinador. (51) um espesso gorro de lã e duas calças. Big Ear! seria internado no hospital algumas semanas mais tarde. debaixo de um sol de rachar. quanto mais se sobe na hierarquia da Nobre Arte. enfiado em um grosso sobretudo. Em um verão. por razões puramente físicas de diferenças de peso (e de altura) entre divisões às quais estão associadas diferenças táticas. Quando ele chegou. assistem a todos os seus combates e são pródigos em encorajamentos. que se julga ajudar a emagrecer. e Ashante fica plantado diante do Reese. Clift perdeu mais de quatro quilos correndo a tarde inteira das vésperas de uma luta vestido com casacos. çando na frente dele hoje. para assegurar-se de que eles não estão muito longe do peso de combate. os desvios de peso raramente são decisivos. eram reticentes. mas ele ainda parecia pesado e continua a treinar no ringue. Vou conseguir pelo menos uns dois. no décimo-quarto assalto. os especialistas explicam com naturalidade a derrota de Hearns por nocaute técnico [TKO: fechniCi. a mulher e o pai. perto da ducha quente. ele. ou enrolados em sacos plásticos. nesse caso. DeeDee manifestava inquietação. DeeDee ficou inquieto: "Isso não está legal. de longe. correndo no mesmo lugar. puf-puf. que lhe parecia desproporcional ao esforço feito no salão. o caso mais freqüente. 1511 A velha balança metálica de braço que reina na sala dos fundos. logo depois. que. infelizmente.(52) Os membros do Woodlawn Boys Club recorrem a dietas draconianas ou a intermináveis corridas para livrar-se dos quilos em excesso antes de um combate. puf-puf. No plano local e regional. Louie. em voz alta. Para conduzi-los ao caminho certo da frugalidade. ou. Muitas vezes. No primeiro encontro entre Thomas "The Motor City I-litman" Hearns e Sugar Ray Leonard. para fazê-los trabalhar a técnica ofensiva. que de hábito esquivase dos jovens amadores que "atuam" com ele. que jorra às cascatas. com uma leucemia fulminante. Uma diferença de meio quilo pode bastar para influenciar o resultado de um combate muito disputado. dos pesos ligeiro ao médio. segundo uma expressão consagrada. é por isso que eu estou aqui. o Ashante. e é excepcional que um empresário decida retirar seu pupilo de uma luta no último momento sob pretexto de que o adversário está ligeiramente acima do peso regulamentar. eventualmente. em 1981. DeeDee apressa-se por fazer a pergunta basEsse foi o caso trágico de Big Ear!. como se pode constatar nessa nota de campo datada de 25 de agosto de 1990. uma doença grave). nem com movimentação lateral. ora à autoridade bruta ou ao sarcaSIno. Reese acertou O alvo em tudo o que passou balan- Sempre é possível combater na categoria superior. a ponto de parecerem um banho turco: Tony estava boxeando o ar.l1 knock-oHI]. pelo menos nas proximidades de seu peso regulamentar. encontro os vestiários fechados e saturados de vapor d'água. seja para baixo. De fato. estava certo quando supunha que Bir Ear! estava gravemente enfermo.muitas vezes. em três rounds cada vez. no início. Mas isso constitui uma desvantagem considerável. Em uma bela tarde de junho. tanto pela sua amplitude como pela rapidez. Raros são os pugilistas que podem subir uma categoria "levando seus golpes com ele". puf-puf. O folclore pugilista é cheio de relatos de boxeadores obrigados a fazer rocambolescas proezas atléticas de última hora . Havia um pouco de "carburante" demais. Uma das obsessães dos praticantes do Manly art é manter-se. provocada pelo manejo de produtos tóxicos em seu emprego como técnico de uma firma de fotocópias. com a cabeça e o tronco metidos em um colete com capuz de plástico transparente: "Preciso perder nove quilos. sobretudo nas categorias intermediárias. quando fazem parte dos torcedores mais animados de Butch. por exemplo. COIn o tronco apertado por uma cinta de borracha." É verdade que Ashante não está com a menor vivacidade. tanto amador quanto profissional. outros treinam vestidos com várias calnadas de roupas. de modo a perder os quilos a mais antes da fatídica pesagem. Ashante lutou sparring com Mark. senão no peso ótimo. mais a gestão do peso torna-se acurada. o que indicaria um perigoso excesso de treino (ou. Ele não vai conseguir se livrar de seus quilos e já não tem a menor velocidade. depois com Reese.um empate). está ali para lembrar a todos essa exigência. ainda. um peso pesado truculento que adorava "atuar" com amadores mais leves. A pesagem é amanhã de manhã. pelo fato de que ele havia dado um ponto de graça ao adversário quando subira à balança com o peso abaixo do máximo autorizado para sua categoria. como é permitido pelo contrato previamente combinado. em todos os instantes. ele recorre ora ao hUlTIOr. ora ao afeto. No entanto. caso se engorde muito. pela súbita perda de peso de Big Ear!.153) seja para cima. (52) (53) 158 - lok Wacquant Corpo e olmo - 159 . perigosas do ponto de vista médico -. por um cachê considerável. eu acho." Ashante não respondeu palavra e se mandou. Há anos. bem na tua cara." "Você está com cara de estar com 150 libras quando anda." Fim do argumento. Jacquot "colheu" Curry no momento em que este último ainda desfrutava de um grande prestígio. eu disse pra ele virar profissional. como é o caso dos promotores. onde?" "Ali. é um bom exemplo de gestão bem-sucedida por parte do pugilista francês e sua entourage. em sua agilidade e mesmo somente de observar os movimentos de seus pés. fingindo não compreender que era a ele que DeeDee se referia: "Que onda. mais de 300 encontros: "Ele já lutou demais. mas não do problema. Gould teimara a todo custo em disputar as Olimpíadas de Seul (onde o francês Laurent Boudouani venceu-o na semifinal). a "eliminação direta de um adversário obscuro e pobre". Um dia de agosto de 1990. por conta própria ou mal aconselhados. de forma a otimizar o "retorno do investimento" pugilístico do trio. de experiência pugilística. não. com um jeito bem chateado. por Renê Jacquot e Donald "The Cobra" Curry. com muita propriedade. desgastam-se na busca de uma efêmera glória regional ou nacional COlTI repercussões econômicas incertas) de modo que) quando entram na categoria de profissional. passando a fazer parte da incumbência dos agentes econômicos especializados e. disputada em fevereiro de 1989. Um bom treinador não tem a menor necessidade de pôr seus boxistas na balança para saber que eles estão mais pesados: sabe "ler" o peso a partir da aparência física deles. Essa gestão efetua-se em três ordens relativamente independentes. Não sei. mais o controle do tempo escapa aos lutadores.(54) Mas quanto mais se sobe na hierarquia do campo pugilístico. transformou-se em derrota. ISO?" Lorenzo não se dá por achado. embora sua fama já estivesse bastante diminuída (ele acabava de sofrer duas sérias derrotas antes de voltar a ganhar o cinturão de campeão do mundo). que ela deve se esforçar para fazer coincidir: a temporalidade da carreira individual do boxeador. de notoriedade e de contatos úteis com agentes que têm influência no campo. "o tempo é o inimigo" dos boxeadores.tante vexaminosa: "Que onda é essa?" (vestido de jeans e camiseta. com um tom reprovador e falsamente interrogativo. outra jovem esperança de Chicago (ex-freqüentador do Woodlawn Boys Club e campeão do mundo como amador). e que. 139 libras]. títulos e fama) claramente superior às suas capacidades pugilísti160 Lo"ic Wacquant cas. dando à França a oportunidade inesperada de "entrar na lenda" do boxe. O ideal é levar seu boxeador ao ponto ótimo (mesmo que este seja local) no momento em que se oferece a ocasião de pô-lo em confronto. O futuro de Kelcie Banks. Segundo DeeDee. nessa categoria.!O" Essa gestão da passagem do tem po começa com os amadores. portanto. com um boxeador de renome que esteja no limite de uma fase de declínio. diante dos teus olhos. já consumiram seriamente seu capital-corpo e não podem mais esperar por uma carreira longa e profícua. lOS (54) Corpo e alma - 161 . pesa-se rapidamente: "Estou um pouco acima do meu peso [ou seja. entre os quais alguns. Não sobrou muita energia pra ele [not enough peps [eft in him I. Lorenzo reaparece na academia depois de vários dias de ausência sem avisar e dando uma desculpa esfarrapada para seu treinador. esse é o caso de Kenneth "The Candy Man" Gould. disputando. na versão WBC. percebe-se facilmente que Ashante ganhou peso). deveria ser uma simples luta de aquecimento para se preparar para o "próximo evento". Eddie. de 22 anos. medindo-o com o olhar: "Você está pesando quanto. E aquilo que. mais ou menos umas 145." "Não. que recentemente ganhou uma medalha olímpica norte-americana em SeuL e desgastou-se lTIuito entre os amado- res. Como observa. a trajetória dos adversários potenciais e o "tempo econômico" dos promotores. dos promotores e dos responsáveis pelas transmissões esportivas nas emissoras de televisão que programam as grandes lutas mediáticas. Thomas Hauser. a relação entre o capital corporal aplicado e os dividendos obtidos pelos lutadores sob a forma de dinheiro. e não somente porque eles envelhecem e desgastam-se. mais ou menos. Ashante responde com um sorriso meio aborrecido. ainda desfrute de um capital simbólico acumulado (prêmios." Por que ele não fez isso? Munido de um empresário inexperiente ou mal situado nas redes de influência. observa-se dos pés à cabeça no espelho. tenho certeza de que são 145. isto é. para o Cobra. Transcendido pelo evento. do mesmo modo vencido nas preliA luta pelo título mundial dos superleves. Este diz-lhe. precisa ver. sobretudo. Uma das principais funções do par formado por treinador e empresário é modular ou ajustar a trajetória de seu pupilo no tempo. DeeDee lembra essa regra de gestão a Eddie. Alguns meses mais tarde. caso ele tivesse caí- do. interrompi meu treinamento durante duas semanas. Eu bem sabia que a gente devia ter parado. Se ele tivesse ganho os Jogos Olímpicos. "detonado" [shot]. teria ganho também um bônus de trinta ou quarenta mil dólares. quando você retoma. precisa sair da sala. para restaurar seu prestígio na 162 Lo"ic Wocquant . arejar um pouco.com o mouth-piece na boca. de jeito nenhum. guarde suas forças para o sparring. muito desgaste". DeeDee lançou a Eddie um olhar severo e. faz bem. mais vigorosos e menos cansados. Ninguém assinou nada com ele. mas ele está muito gasto. que entrou na categoria de "carne morta" [dead meat]: seu capital-corpo está muito desvalorizado para que ele possa esperar vencer lutadores mais jovens. Já falei pra você deixar esse saco de areia em paz. na bucha. mas agora ele está castigado demais [bmt upj. pior ainda. Ele freqüentou esse campo de treinamento no Texas [onde os jovens recrutas profissionais são selecionados pelos grandes agentes nacionais]. em pequenos torneios sem expressão: "Isso quer dizer um bocado de socos e um bocado de desgaste [wear and tear] para um corpo jovem . rumina DeeDee. Ele está acabado. logo que eu tinha machucado ele e estava preparado para segurá-lo. atingido por Ashante. DeeDee. Esse é o teu serviCorpo e alma 163 do clube que decidiu voltar ao ringue aos 38 anos completos. quando evocamos esse caso. Mas ele deixou que batessem nele e não pegou nada. No segundo round. Acha que pode segurar a onda e voltar a lutar. droga!" É essa mesma necessidade de deixar o corpo repousar que justifica as "folgas" periódicas. Depois que. ou. permite que esses pugilistas novos aumentem suas vitórias com um menor desgaste de seu próprio capital-corpo. mesmo depois que Rodney mal se sustentava sobre as pernas.. Na melhor das hipóteses. ninguém vai pôr um centavo num carinha que já está liqüidado." Para se designar um boxeador no final de carreira. ou." Mas os dois amigos de clube continuaram a boxear. não vai fazer nada: ele está prejudicado [washed out].. concede uma longa semana de folga para seus boxeadores depois de uma luta . com um tom vivo de reprovação: "Quando teu menino é atingido desse jeito durante o sparring. Você tira ele do ringue. com tristeza. que explica: "Vi logo. tem mais gás. devagarinho. sobretudo no dia seguinte ao de um comba- te difícil. parece estar ainda mais comprometido: mais de 600 combates amadores. Louie.] A regulação da violência no ringue faz parte integrante do dispositivo geral de preservação do corpo do pugilista. Antes. seu timing fica desregulado. perde a velocidade. Hightower é um antigo profissional bolsa de valores pugilísticos: "Ele pensa que pode voltar a lutar. Pensa só. Depois. sua profecia parece estar em vias de realização: "Kelcie? Ele não faz nada. Comprovação disso é a insistência com que DeeDee nos proíbe de fazer exercícios no saco de areia antes de subir para "jogar" no ringue: "Devagar. mas isso não adiantou de nada. Rodney ficou vendo estrelinhas. N o trecho de minha caderneta que vem a seguir. Está muito tarde. o que não parece atrapalhar em nada a compreensão de DeeDee. a superexploração de seu capital-corpo." [Nota de 17 de dezembro de 1988. DeeDee. mas está acabado. mas o carinha continua a sonhar. ele teima absolutamente em fazer sparringcom Butch. nesse caso. acabado. tal como indicam essas anotações de campo: Enquanto DeeDee ajusta minhas luvas. dirijo-lhe perguntas sobre Hightower . ninguém quer alguém que já está prejudicado. ele era um bom pugilista.minares das últimas Olimpíadas.duas semanas. o velho técnico consola-me: "De vez em quando. Senão você perde a forma. Mas é preciso não parar por muito tempo. chegando até a três encontros por semana. após um incidente de 'parring. você tira ele do ringue." [Nota de 5 de janeiro de 1989. que ele está "liqüidado" [washed up]. ainda. em geral. mastigo as palavras. sem dúvida. Está muito maltratado [beat up]. ele sempre tem esse sonho [de glória]. ele pode ambicionar que os organizadores de reuniões mantenham-no como "valorizador" de estrelas em ascensão. por ocasião das festas de Natal. embora se pudesse achar que eu estava falando como um negro norte-americano. se o combate foi particularmente duro do ponto de vista físico. Você não deixa ele levar uma surra ou que tente se virar por conta própria. porque boxeia com muita brutalidade e sem qualquer controle.] O imperativo de entesourar a energia corporal afirma-se também no curto espaço de uma sessão de treinos. fala-se que ele "já deu o seu tempo" e que "passou a sua hora". DeeDee não gosta muito dele. . enquanto retomava o fôlego estirado sobre a mesa entre duas séries de abdominais. isso não é nada. o antípoda da "gratificação imediata". são precisos. depois de uma sessão de sparring brutal. em voz baixa: "Tudo bem." "Hum. mais uma vez: "Quando você começa a sentir teu jabe. Um excesso de treino rápido ou repetido provoca contusões que. o técnico pode compensá-las impondo-as de fora. Portanto. ~'Isso leva tempo". e que contribuem para que cada qual aprenda a demonstrar seu investimento físico e moral na duração temporal específica do campo. ou amiudando suas lutas de modo a quebrar o andamento de sua rotina. O treina- tempo. O boxe é "uma escola de paciência. O treinador assistente Eddie lembra essa distância com um sarcasmo deliberadamente exagerado para um visitante que tentava desajeitadamente bater na pêra de velocidade: "Ei! É melhor você parar com isso: leva anos de serviço pra você aprender a bater nesse aparelho. é preciso um mínimo de três meses de treinamento intensivo para voltar às condições de combate. a ponto de forçar uma quebra da cadência: pequenas feridas reincidentes na aresta do pulso ou muitos vasos rompidos entre os dedos limitam o trabalho no saco de areia. e eu não consigo flexioná-lo nem pegar um objeto pesado com essa mão. [ . regula. "Aproveite o tempo". não permite que se façam abdominais. envergo- nhado. eu tiro ele logo. foi Butch que. privando o pugilista do sparringdurante um período predeterminado. entre centenas de outras que se poderiam citar aqui. em última instância.ço. maS agora o que eu preciso mais é fazer sparring. quando você sente que pode manter teu adversário a distância com teu jabe. é preciso continuar. continue a trabalhar e você chega lá. o resto pinta por si mesmo. Em 19 de novembro de 1988. Isso é uma questão de esforço no tempo. disse-me que eu estava fazendo progres164 Lo"ic Wacquant Corpo e olma - 165 . que bem me avisara.. mesmo quando são leves. Mesmo assim. dosar o boxistas regulares e que interdita a passagem imediata de uma categoria para outra. de 6 de outubro de 1988. Se o boxeador não as possui. seja qual for o nível do boxeador. acordei com o pulso direito inchado e muito dolorido: forcei demais a barra no saco de areia." Em 4 de março de 1989. essas são expressões que voltam sem cessar dentro da academia. e agora pago por isso! Ainda hoje ele está frágil. J DeeDee. ocultar suas emoções: estas são as qualidades decisivas da aprendizagem do boxe. esperar sua hora sem relaxar. a velocidade e a tendência da progressão. Além dos conselhos dos pares e das diretrizes do treinador. como comprova essa passagem de meu diário de campo. o resto pinta devagar. "Não se pre- cipite". não poderei trabalhar no saco de areia. batendo como um animal. Eddie vem encorajar-me. você melhorou tremendamente. isso vem com o telnpo"." "Obrigado. mas que ainda levo muitos golpes: "Você precisa se proteger melhor. eu já estou sabendo. enquanto estou pulando corda: "Eu estava te vendo trabalhar no saco de areia. logo revelam-se suficientemente incõmodas." Em 17 de dezembro do mesmo ano. para poupar o pulso. É também esse investimento corporal no tempo. É preciso trabalhar. caso ele seja muito impaciente. Isso não pinta num dia. Você vai aprender." Persistir com paciência. vou ao gym. «Persevere. tudo bem. demonstrar suas expectativas e. Louie. Butch. é o corpo que. É preciso dar tempo. dois ou três anOS de práti- ca regular antes de se dominar razoavelmente a panóplia básica do pugilista. que marca a fronteira entre os praticantes ocasionais e os sos. para minha grande tristeza. Mas leva tempo. bem conservado fIsicamente. uma costela dolorida. Eu não sabia. ao mesmo tempo. por exemplo." Para um antigo boxeador. Da próxima vez. na terça-feira. aconselha que eu me contente em fazer shadow. entendeu?" Eddie. Ontem. isso ia ser perda de tempo. para os amadores. por ele mesmo." o domínio prático do tempo é uma dimensão central do sucesso da aprendizagem do ofício de boxeador. Mais do que as contusões sérias. quarta-feira. o lento processo de incorporação da técnica pugilística e de somatização de seus princípios básicos. no mínimo." "Não confunda as coisas. 107 Testemunha disso são essas três anotações de campo. tirar ele nesse exato momento. mas em vão. um joelho doído impede que se pule corda. de disciplina e de perseverança". DeeDee. e três anos mais antes de se produzir um profissional completo. é o acúmulo de pequenas mazelas e de perturbações físicas que serve como regulador natural da carga de trabalho. Há quanto tempo você está treinando?" "Cerca de seis meses. tua coordenação melhorou. Uma parada forçada pode. para tirar as lições do combate. é só. Chego mesmo a fazer uma série no speed bag com uma única mão. portanto. [Com veemência. na reunião de Park West. treina demais. Está bem. Eu bem sabia que ele ia ser massacrado. e ele treina muito pesado. E ali. tudo bem. Você tem os caras. ALGUMAS FIGURAS DA GESTÃO DO CORPO espertos. está certo! Ele vai ver na pele quem tem razão. Ele não tinha mais nada no bolso desde o segundo assalto. Nenhum gás [no gas]. como se estivesse morto. que não parava de repetir que "esse cara era um pitbull. droga. ele ficou enjoado. Mas ele não quer escutar meus conselhos. Segundo a opinião geral. trabalhar o jabe. Curtis devia ter "arrasado" com seu oponente no segundo round. por sua vez. em lugar de ceder às provocações do adversário e Corpo e alma 167 . e me saiu com esse empate. Que este último estivesse evidentemente fora do peso (ele pesava 137 libras. Eles sentamse a distância. DeeDee. tudo bem.. Será que o adversário era muito forte? DeeDee fala com ironia: "Você está falando. sendo quatro por nocaute antes do terceiro round e com apenas um dos combatentes indo até o final da luta. já vestido em calças jeans e suéter de lã. Já disse pra ele não passar muito tempo no saco de areia depois do sparring. em vez das 130 regulamentares. tanto na academia e no ringue como na vida cotidiana. burned out]. é um excesso de treinamento. pior pra eles! Ele quis fazer sparring. ] 166 . levar a uma retomada muito acelerada. não consigo pular corda. mas Butch não conseguiu mandar ele à lona. ele está formigando. toda vez me mandam um pitbulf' não era desculpa para que Curtis se deixasse levar pela sorte. um corte feio na bochecha direita e um profundo talho no olho esquerdo. aumentando as chances de contusão e de uma interrupção prolongada. contra 132 libras de Curtis. Butch ficou enjoado de se lançar numa luta perdida. com o rosto tumefacto. Bem que ele tentou. mas não conseguiu. é preciso aprender. Além do mais. por meio de uma dosagem progressiva.Lo'ic Wacquant DeeDee sai dos vestiários móveis de madeira. queimado [worn out. Butch é ansioso. nervoso. e. a um novo excesso. Eu falei pra ele não abusar do sparring. ele passou por dificuldades ontem. Em todo caso. e. man.. Ele está furibundo por Curtis ter se deixado tocar tanto por seu adversário sem se esquivar melhor e sem se proteger. Depois do combate difícil de Curtis em Harvey [7 de dezembro de 1988] Depois do empate de Butch no Park West [8 de maio de 1989] Primeiro obstáculo para a vitória profissional de Butch: depois de cinco vitórias. [. daí. acham que já sabem de tudo. Os quatro trechos de notas de campo que se seguem ilustram as diversas maneiras como o problema da gestão do corpo. É sparring demais. eles se acham mais rounds diante do espelho. Esses caras que não querem escutar. no fundo da sala. o esgotamento físico resultante de um excesso de exercícios diminui a vivacidade e o tônus no ringue. Para boxear ao longo do tempo. de uma falta de treino. Ele tomou muitos golpes e saiu bastante arriado. mas ele arrumou um jeito de 'jogar' oito rounds no sábado passado! Resultado: ele não teve gás para o combate e precisou correr atrás do camarada o tempo todo pra nada. mantendose a distância. O outro camarada não sabia boxear. mas bem que ele poderia ter perdido. com o olhar severo. já briguei muito com ele exatamente por causa disso. a ajustar o esforço de modo a entrar num círculo vicioso em que o treinamento na academia e o confronto no ringue alimentam-se e reforçam-se mutuamente e em que suas temporalidades próprias entram em sinergia. Já briguei com ele o bastante. Está sempre com medo de não estar preparado." O velho técnico lança um olhar de aborrecimento para o teto. E assim por diante. isso não é da minha conta [that's none of my business]. E logo meu braço esquerdo também se faz sentir. que certamente iria precisar de alguns pontos. a ponto de eu ter vontade de parar apenas depois de dois "Não é o desgaste (it ain't no wear and tear] dos combates. da preservação de sua integridade e de sua energia apresentam-se para os boxeadores. para passar-lhe um sermão vigoroso. seguido de perto por Curtis. Tudo o que ele precisa fazer é descontrair. quando o havia mandado à lona com uma combinação de golpes cortantes.menta é terrivelmente doloroso: sinto uma dor medonha na mão direita. ele devia ter lutado de modo mais inteligente. porque já estava exausto desde o segundo round.] Já disse pra ele não fazer tanto sparring. inclina-se em direção a Curtis. Nunca mais ele vai lutar um combate valendo o título. Eu não brinco com nenhuma dessas coisas e me mantenho em forma. "Esse treco cobra seu preço [take a toIl on you l. cara. Ele fazia de tudo e não treinava pra valer . segundo eles. principalmente com as mulheres. ra. com a cabeça protegida pelos antebraços] e ficava parado. cara! E depois foi ele que apanhou. "Ele agora está muito velho pra esse tipo de coisa." Curtis imita golpes. você está acabado. arrasado. na ascese mundana que define o regime espartano do boxeador ideal. lançou sobre Ashante um olhar incrédulo." Novo movimento sugestivo dos quadris. Caras como esses. não se brinca com mulheres. Está acabado. Butch acompanha-o com atenção. de verdade. antes de ser posto a nocaute. junto com um colega dele. Eu vi ele sentado na platéia depois da luta. sem reação durante dez segundos. "Ele está despencando ladeira abaixo [goin' downhill]. cara. aos 33 anos." A luta fora transmitida por uma rede de TV a cabo de Chicago.169 . tragando um cigarro. rolando os olhos escandalizados: "Ele estava fumando depois de uma luta?!! Ele estava fumando nos vestiários. Ele devia abandonar os combates. Cara. Se você não se mantém afastado dessas coisas. aí eu entendi que ele nunca mais ia ser bom naquilo. exclama. cara. como se realizasse com atraso a enormidade da coisa. prn ele. J" "Não. Quando você está nessa idade. ao fundo. na platéia." Sentado em seu banquinho. que acaba de concluir sua sessão de treinamento. E com o tom de um padre que acaba de ouvir uma blasfêmia na sala da sacristia. E aí então eu saquei que. o barulho ensurdecedor que Smithie faz no speed bago Ele conta a história de um cara chamado Ray. em que A1phonso Ratliff perdeu o título nacional e. a gente tem que se livrar deles rapidinho. tendo. Não se brinca com álcool. ele imita uma cópula. depois do combate? [Como se essa fosse uma monstruosidade inconcebível. pendurar as luvas. ele fumando um cigarro logo depois de uma luta. bruscamente. com certeza. o camaradinha tem 33 anos ago168 Lo"ic Wacquant A sabedoria específica do técnico é conseguir estimular e dosar os esforços de seus pupilos ao mesmo tempo com relação a seus corpos e com relação às múltiplas temporalidades próprias Corpo e alma . ele não vai agüentar cinco rounds contra mim'. precisa se manter em forma. Mas depois. estava tudo acabado. Curtis: "O carinha conseguia encaixar todos os golpes e batia nele. cara. Alphonso contentava-se em deixar os braços assim [ele se pôs em guarda. tinha um golpe daqueles. que era "o melhor peso pesado da cidade." Os próprios boxeadores estão prontos a atribuir a queda súbita de um dos seus a uma falha na disciplina e na higiene corporais que todo pugilista deve impor-se fora do ringue. Mas Alphonso. não se brinca com drogas. Olha pra mim. e nunca nas luvas. acabado. Depois. "Ele berrava: 'Vou acabar com esse cara. será que não sabe se poupar melhor que isso? A estrada é longa. fendendo o ar com seus punhos e soltando "Hamm! Hamm!" sonoros. Seria melhor que pendurasse as luvas. ele não tomou muito cuidado com ele mesmo. Curtis e Butch concordam que ele está chegando ao final da carreira. não era sério a esse ponto.todo mundo sabia disso. esse sujeito era superbárbaro." Luke fica mudo. ou Phonzo estava mal preparado? Butch: "Saca só. Já passou o tempo dele. no quarto assalto. deixou-se tomar uma bela enfiada de golpes (foi à lona duas vezes. Mas no dia em que eu vi. com um inequívoco movimento de quadris. Toda infração. ele brinca com as três. no corpo e na cabeça. é prontamente interpretada como a causa direta de seus fracassos no ringue.aferrar-se a um corpo a corpo brutal. Levo alguns minutos para compreender que eles falam do combate da última quinta-feira. cara." o declínio físico e pugilístico de Alphonso [19 de novembro de 1988] o escândalo do pugilista que fuma [28 de julho de 1989] Ashante conversa com Luke. não nos vestiários. no quinto). o que se tornara ainda mais penoso para a reputação de Alphonso. O'Bannon confiou-me. mais tarde: "Curtis não vai muito longe se ele deixar que um tipo desses o esmurre." Curtis e Butch não escondiam sua reprovação pelo fato de que Alphonso contava muita vantagem antes da luta. e você nunca fala coisas desse gênero antes de um combate. cara. Louie." Pergunto por que Alphonso deixou-se esmurrar tão facilmente: seu adversário era tão superior assim. com meus próprios olhos. Mareei Mauss. 1963. encontra-se uma sociografia sucinta da deterioração acelerada dos bairros negros do gueto de Chicago em LOle Waequant e William Julius Wilson.ln . Guy Lagorce. Para retomar o nome dado por St. 1995.temporariamente interrompido pelo trabalho necessário à objetivação -. "Les techniques du eorps". no subúrbio de Toronto. e convidam-nos a superar as distinções tradicionais entre o corpo e o espírito. Mercer Sullivan. 368-369. de sustentáculo e de prosélito. Chicago: The University ofChicago Press. janeiro de 1989. Para essa comparação. 1987. 8. Para uma ode à Nobre Arte. Martíll Sánchez. 5. nem por isso deixa de ser objetivamente coordenada pelo ajustamento recíproco das expectativas e das demandas daqueles que ocupam diferentes posições no espaço do gym. 9. 501. 1989. Percebe-se isso à primeira vista. por exemplo. 8-25. Esses elementos de uma antropologia do boxe como "fenómeno biossociológico"IO" põem em evidência o lugar central da razão prática. 199-200). Pode-se encontrar uma recapitulação dessa dialética do culto fascinado e da condenação horrorizada do boxe no Estados Unidos no breve estudo histórico de Jeffrey Sammons (Beyond the ring: the role of boxing in American society. mas de modo constante. 1987. Berkeley: University of California Press. 214. as descrições do New Oakland Boxing Club. pode-se ler George Peters (Pleins feux sur les rings. (1945) 1994. de Oakland. 28-29. na Califórnia. p. dissimulam O trabalho anódino de treinamento e de produção contínua da crença que se efetua no dia-a-dia. Marcel Mauss. Ithaca: CorneU U. p. 17 de março de 1989 (sobre o fracasso no ringue do boxeador da Costa do Marfim David Thio). 3. embora não seja pensada ou desejada enquanto tal por alguém. 1991. Ao orquestrar as múltiplas ações que. feitas por Ralph Wiley (Serenity: a boxing memoir. p. por Stephen Brunt (Mean business: the rise ilnd fall of Shawn Q'Sulliviln. 32-53). 6. p. 2. 170 Lo"ic Wacquant Notas 1. 383.úd': youlh. grifos nossos. entre o instinto e a idéia. p. definem o gym como configuração móvel de agentes interdependentes. em Nova York. p.. lnuitas vezes geradoras de um questionamento prático da illusio pugilística. em um mesmo lnovimento. Markham: Penguin.à instituição e assegurar o funcionamento harmonioso da complexa maquinaria coletiva que transmite o saber e suscita os investimentos dos boxeadores (no duplo sentido da economia e da psicanálise). crime ilnd work in lhe inllercity. P. "The cost ofracial and class exclusion in the inner city". especificam-se e reforçam-se.. O livro da fotógrafa Martine Barrat. Cambridge: Cambridge U. Clair Drake e Horace R. (1936) 1950. na rotina cotidiana da academia. 10. pela mediação da própria organização da academia e de suas atividades. Paris: PUF (I 902-1903). Nova York: Four Walls Eight Windows. IO~ essa função moral não se manifesta apenas em momentos de crise.~eiJrch ofrespect: sdling crack in El Barrio. uma prática eminentemente social e quase culta. Do ar die (Nova York: Vicking. em que o treinador desempenha abertamente o papel de confidente.lslcwds in lhe street: gillJgS in American society. em um confronto singular de aparência rudimentar e desenfreado. 153 e ss. com as do célebre Kronk Gym de Detroit. Philippe Bourgois. mas também enfraquecem-se. 1991. 4. Shadowbox. Pierre Bourdieu.). In: Sociologic eC anthropoJogie. "Programa para uma sociologia do esporte". Chicago: University ofIllinois Press. 1970. E o pugilista emerge como O produto de uma organização coletiva que. ibid. Para um estudo histórico sobre a rígida divisão racial da moradia em ChiCorpo e alma - 171 . Nova York: Putnam. fornece uma tradução visual fid da atmosfera de um salão de boxe em Nova Yorkque não deixa de evocar o saboroso retrato que Ronald Fried fez do Stillman's Gym no seu auge (Comer Mell: Great Boxing TraiIlers. 38. P.). Black Metropolis: a study Df Negro Jife i1l a Southern city. 51 e ss. 110 mostrando como os dois termos dessas antinOlnias perenes constituem-se em conjunto e servem-se como suporte mútuo. imbricandose.Jankowski. 'Cetting p. como os dias seguintes às derrotas. nesse caso limite da prática que é o pugilismo. e do Cabbagetown Boxing Club. Paris: Minuit. p. Paris: La Table Ronde. DeeDee contribui para produzir e para cristalizar a crença pugilística. Paris: PUF. As situações críticas. p. 1972. 11. 1993. Ao final desse caminho iniciático . Ao contrário do que sugerem Weinberg e Arond. p. L'Express. t:mile Ourkheim. em que o desencanto torna-se subitamente ameaçador. do Rosario Gym de East Harlem. In: [Coisas ditas] Choses dites. n. 7. especialmente p. Cayton em seu grande livro. George Plimpton. 1989. 43-69). 1988). de maneira invisível e inconsciente. comparando-se. exatamente porque ele parece pôr em jogo somente os indivíduos que arriscam seus corpos no ringue.. AlllWls of the AmeriCC111 Academy Df Political and Social Science. 1989. o indivíduo e a instituição. por William Plummer {ButterclIps {lnd strong boys: il sojOUrll <1t the Golden Claves. Nova York: Henri Holt and Company. "Mort dans l'apres-midi?". prefácio de Martin Scorcese). o boxe revelase uma espécie de "ciência selvagem". Nova York: Viking. L 'f'ducatioJ1 morale. Englewood Chiffs: Prentice Hall. Nova York: Knopf. Peter Nids I-Icllcr. 26.. ver: Douglas G. Para uma descrição do processo de marginalização da juventude negra dos guetos.). Calhoul1 (ed. 5.Estudo sobre il marginalidilde aVil11çada. Jenkins. Hagedorn. 1890-1940". Local commwúty felCt book: Chicago metropolitan arca. Jef[rey T. (ed. People and folks: gangs. op. cit. Chicago: Chicago Review Press. 1980. p. 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Stephen Brint e Jerry Karabel. citado em Thomas Hanson. ver Arlie Hochschild. In: Arthl. cit. 54. Pierre Bourdieu. op. 20. Wcinberg e Henri Arond. 41. Genebra: Droz. também Jeffrey T. op. G. 46. 57. Une élrchéologie du regarei médici:ll. Cf. Edward Albert. In: Joyce Carol Oates e David Halpern (org. The bhJCk lights. cit. 19 e 22. Stephen Brunt. anxiety and the embodiment of masculinity". p. ver 51.lr J. p. "Riding a line: competition and cooperation in the sport of bicyclc racing". Daniel F. Brace. 3. 63. Wright Mills. LOlc Wacquant. p. 67. p. art. Nova York: Vintage. Paris: Minllit. 1-42. 69-84. op. p. 61. Chambliss. Theory and Society. Gil Clancy (famoso treinador-empresário). 463. ler Lorc Wacquant. 43.1987. Paris: La Découvertc. 48. p. Boston: Ginn. Chicago: The University ofChicago Press. 56. 39. p. 59. Ie sem pratique. p. pain. 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Nathan Hare. 30. 1992. 55. um plágio grosseiro de meu artigo "Corps 1 74 - Lo"ic Wacquant Corpo e alma - 175 . 1964. cit. R. 37-50. "The cost of racial and class exclusion in the inner city". A dominJplo masculina revisitada. Thomas Hauser. 75. Lo·ic Wacquant e William lulius Wilson.. From ritui:ll to record: the lJature of modem sports. Alfred Willener. cit. William Plummer. Mitchell. N<Jiss. 1966. 1959. Nova York: Wiley. Vidich e Joseph Bensman (org. especial. Campinas: Papirus. 43. Nova York: Prentice-Hall. The black lights. cit. Seuil. violellce du XXeme siecle. Pediatrics. Para uma crítica metódica desse verdadeiro falso conceito e seus usos sociais. bras. 1.. novembro de 1998. Cambridge: Cambridge U. p. "Avancer. Buttercups Jl1d strong boys. p.. p. p. p. p. p.Jrd work: Jifestyles in lhe ghetto. 63. pp 73-96J. "Participation in boxing among children and young adults". art.. The bbck lights. 1998. Brace and World. p. Erving Goffman. Boxe. 196. p. 135. 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Pode-se encontrar uma profusão de notações precisas sobre essa mistura de relações de autoridade e afeto entre treinadores e seus pugilistas em Ronald K. 37. On boxing. op. 73. R. 95. nota 205. bras. John Dewey. Chambliss. cit. Evanston: Northwestern U. p. 2001]. Cog1litio1l i1l pri!clice: mÍlld. em que Rauch retoma integralmcntc. fotos de Edwin Rosskam. la tiKtique. 73. 1986. Thomas Hauser. Jeffrey T. 1969. p.• p. cit. 99. 80. 85. 346. 102. 121. bras. p. nas páginas 222.. p. J'elltraínement. 74. sem qualquer habilidade. cit. 77. 1989. Mickey Rosario. (1918-1920) 1971. op. p. 166 e S5. 83. 88 e 90. 637. 1975. que copia. o supra-sumo da desonestidade foi a nota 103 (p.. Garden City: Doubleday. Paris: Plon. 103. 1988. In.. 88. 277. Emile Durkheim. fragmentos de declarações de boxeadores e de treinadores franceses retirados de L'Equipe. 90. em setembro de 1990"! Marcei Mauss.. p. 86. 225. Émile Benveniste. cit... adendo a George Herbert Mead.: Viginr e pUllir: nascimento da prisão. Boston: Faber and Faber. grifos nossos. op. 86. 82. cít.io]"lS de Minuit. 408. 1981. Fried. Boxe: la techlll·que. La pensée sauvage. nota 172). op. 223-271. p. 137. bras. Nova York: Pantheon Books. The Thrilli:l in MiJnílla. 89. 2 v. minha descrição do treinamento na academia de Woodlawl1. Structures écollomiql1es ct structures temporellcs. sobretudo nos Estados Unidos. Le sens pratique. Para um retrato intimista do South Side no meio do século. 106. cit. 98. George H. aikido". Pierre Bourdieu. Paris: Vigot. citações e números de páginas aí incluídas (ver as notas 47. op. p. São Paulo: Martins Fontes. Les formes élémelltaires de la vie rc1igicuse. Renê !<lCqUOt. From ritual to record. Economie ct societé. citado por Jeffrey T.. Peter Pasquale. La societé de couro Paris: Flammarion. a uma entrevista que Rauch tivera "com L. Cambridge: Cambridgc U. 96. Le sellS pratique. Conler mell. K. Beyond the ring. 172-196 [trad. cit. Clair Drake e Horace Cayton. "The occupational cl1lture ofthe boxer". The tacit dimension. minha análise da rdação de oposição simbiótica entre o gym e o gueto para atribuí-la . Paris: Denoe1. sem citar a fonte. <lrt. NilÍssallce de la prison. bras. BlackmetropoJis.. Me Latchie. Max Weber. especialmente capo 2. Paris: Edit. G. Norbert Elias. J'artisi. (1969) 1985 [trad. Dechanet. "The biological individual". Michel Foucault. Jean Lave. 1989. op.. Beyolld the ring. 1962. cit.. op. 1996J. Il. 362. p. p. p. Weinberg e Henri Arond. 462. op. Campinas: Papirus. Sobre o processo histórico de racionalização do esporte. 389-395). "Progrnmme pour une sociologic dt! spod'. "The mundanity of excelIence". Chicago: The University of Chicago Press.. . entremeando. p. Actes de li! Recherche ell Sciences Sociales. cit. Nova York: Charles Scribner's Sons. 1916-1930". 1989J. Sporls cI societé. Petrópolis: Vozes. 91. Experíe1lce i:lJld llatHrc. para disfarçar sua trapaça. 87.. Surveiller et punir. Mead. 14 e ss. 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Algérie 60. op. setembro de 1993. In: Christian Pociello (org.: O pens<!1ne1Jto selvagem. Nova York: Morrow. 1929. 99. .. 92. 81. NBC Sports Venture. 1990. Cf. Paris. Londres. 96-129. p. 43-51. Jean-Pierre Clément. 71. 1977. Les formes élémelltaires de la vie re1igieuse. em Actes de la Recherche ell Sciellces Sociales. il folk history ofthe Negro in the Ullited State. 105. Joyce Carol Oates. 72. Beyond the ring. 1934. 100. 108. Le vocnbulaire des institlltions indo-européennes. Daniel F. secretário geral dos Anciens de la Boxe. P. ci/. 70...1J1d society from the stand point of a social behaviorisl.). por William Plummcr (Bllttercups alld strong boys. Howard Becker. op. eit" p. compactando-a. cit. In the comer: greilt boxing traillers talk <lbollt theirart. "La force. Citado por David Anderson. Plon. Champion: loe Louis. p. Pierre Bourdieu. ler Allen Gutman. Étude comparée de trois sports de combat: lutte. p. Lo"lc Wocquant 84. p. Pierre Bourdieu.. P. 2001]. especialmente capo I. . p. e Richard Wright. 1982. 1967. 97. Mead. art. e Jeffrey Sammons.69. cit. (1912) 1960 [trad. 48. nota 185. nota 172. Tomei essa expressão emprestada de Claude Lévi-Strauss. p. "Photography and sociology". 101. 363. Gene Tunney. 347~353. black hera Íll white America. la souplesse et l'harmonie. op. publicado em 1989. 29).1ft. p. Chicago: Open Court. p. 301. art.: As formas elementares da vida religiosn: o sistema totêmico na Allstnília. "Injuries in combat sports".285-30l. cit. Lorc Wacquant. Astolfo Cagnacci. 1991. 226. Só ocasionalmente tomase consciência do sentido (seja ele racional ou irracional) da atividade.. que "na grande maioria dos casos. Nova York: Basic Books. tempo encoberto.. p.. op... mais do que conhece. .Lok Wacquant Corpo e alma - 179 . p. .-.. sobre a lógica moral e sensual das carreiras criminais (SeductioIlS of crime. e Joseph Alter. de David Sudnov. 178 ..! _ _ . 51). .r. "The oeeupational culture of the boxer".. Ele está de excelente humor: o cozido de peixe estava suculento e a meteorologia prevê que o céu vai abrir.. . pode-se recomendar a leitura dos estudos de Jean Levi sobre a aprendizagem do cálculo (Cognitioll Úl practice. . cit. "W" .00 :esL Lounge • DOO["5 Open At 7:00 CURTIS STRONG ' PAT DOWANIN DANNY NIEVES ' JAMES FLOWERS PAT COLEMAN ' KEITH RUSH ... na realidade. Berkeley: University of California Press. Joan Cassel. .. Um mês de preparação intensiva evaporado no ar.. com Max Weber. Uma noitada no Studio 104 110. P. cit.. .lI ___ . .. um caso limite" (Max Weber.: ~ nr. como fora combinado. Weinberg e Aron. O agente "sente" imprecisamente. a atividade real desenvolve-se em uma obscura semiconsciência ou na não-consciência [UnbewuBlheit] do "sentido visado"... bcollomie ct société. ... Cambridge: Harvard U. Tomara que não chova. """"_ . para irmos juntos ao gym.. .. ] Uma atividade efetivamente significativa.. esse sentido ou pensa "claramente" nele.. Passo de carro para pegar DeeDee na casa dele. 108. 104th St. cit. moral e simbólica da luta indiana tradicional (Bhé!riltiya kushti) em Benares (Thc wrcstler's body: identity and ideoJogy in Northenl IndúJ.• • • • • • • • • • • • • • ___ N o Live Prof~~~f~nal Boxing U Outdoors At S'I'-U-I>I<> 104 2814 E. .. .. .. 30 de julho de 1990.). of Torrence T MONDAY JULY 30. .: . no Illinois State Building. em pleno centro da cidade. . de Jack Katz. na maior parte dos casos. "'" nr. o que quer dizer plenamente consciente e clara. p. Despertar ansioso às oito e meia.107. .. de obedecer a um impulso ou ao costume. . . para tomar cinco universos deliberadamente diversos.. . . 1978). . op. .. sobre a organização social. .""'" L'.. """" .385. p.. ... entre outros. 123~124.. op... P. S egunda-feira.. op.. L'. .. .. Para os que duvidarem da possibilidade de generalizar essa interpretação da prática pugilística. trata-se.. sobre o ofício de cirurgião (Expected miri:lcJes: surgcons at work. op. E lembrar. Buttercups 811d strong boys..l . . D 2 Blk.. E. . 462. WILLlE McDONALD Cartaz que anuncia a reunião do Studio 104. às nove e vinte. . cit. William Plummer. 1991). 1989). a dois passos do rio Chicago. _ _ _ _ . [. 1990 W O • AI Tickcts ~20... Segundo a fórmula de Mareel Mauss.-. é apenas. . . Filadélfia: Temple U.L. sobre o improviso entre os pianistas de jazz (Ways of the hand: thc organization ofimprovised conduct. 109.. "Les techniques du corps".. 1992). cit.... seria o cúmulo! A pesagem está prevista para as onze horas.. damos de cara com Curtis. A Comissão poderia encontrar pra você um emprego de nove mil dólares por ano'. o intestino dele não quer funcionar. DeeDee havia perdido o bonde: hoje poderia ser rico. uma nota de cinqüenta dólares. observa DeeDee. e depois: 'Agora a gente está acabado. no total. com as vitórias que seus boxeadores conheceram entre as cordas ao longo dos anos. bem cedinho. "Normalmente". Barulho da descarga d'água.restam-lhe nove da quota que lhe fora dada pelo matchmaker Jack Cowen. Eu estou doente. Ele desaparece nos vestiários.. um pacotinho de 20 e de 10. porque você já se ferrou" DeeDee. surpreso: "Nove mil dólares por ano. é. sentado na sala dos fundos. ponto final. eu não." "Você tem medo que eu me ferre. "Ele me diz o tempo inteiro [imitando a voz de choramingas de Pagel: 'Você não deveria estar assim. 132 libras e meia. para um dos seus longos monólogos habituais sobre o tema recorrente do "What shoulda been" [se as coisas tivessem sido como elas deveriam ser l. com um jeito de quem está estudando. na frente: ninguém vai vir catar qualquer coisa em mim. e depois Jack vai mandar você prestar contas diretamente ao gângster. é isso. a Boxing Commission do Estado deveria ter-lhe dado um bom emprego. se eu tivesse sido esperto." E depois resmunga. E eu respondo: 'Você está acabado. depois uma grande pilha de notas de um dólar cuidadosamente colocada ao lado de uma pequena pilha de tíquetes coloridos. DeeDee.(I) (Por ocasião das pequenas reuniões locais." O olhar do velho técnico fixa-se sobre a antiga balança de ferro que reina ao lado do escritório: "O que ela nos diz?" "t. não terá quilos a mais para perder na manhã de sua luta . nessa situação. «ele arruma elas nmna outra ordem. assobia Curtis. isso sim. inclinado sobre a escrivaninha. Pelo menos desta vez. e não embaixo. assim como os ingressos restantes. porque Curtis deve lutar com 133 libras. mas pelo menos eu teria meus beneficiozinhos [cobertura de seguro médico l . Ele telefonou para DeeDee esta manhã. onde ficaria menos visível.. Na frente dele. amigos e colegas de academia. com presteza. "Não. os valores lnenores em cima. há formas de se arranjarem as coisas. mas que bosta é essa!" "Ééé. Tenho esse problema de saúde." Como resposta. DeeDee. de supetão: "Já fez a conta?" "Já". depois a gente diz a Jack que alguém agrediu o senhor na rua e te surrupiou o dinheiro. um percentual dos ingressos que eles vendem para parentes. com a porta fechada. e pegar a grana. t o dinheiro dos lugares que ele vendeu para a reunião desta noite. DeeDee. 61. certo?" "É.\ Lok Wacquant 180 - . No dia do combate. não posso trabalhar. um antigo freqüentador do gym. eu ponho eles ali. já teria ido embora há muito tempo. Teria deixado Chicago pela Philly [FiladélCorpo e alma 181 O matchmaker é o intermediário entre organizadores e empresários. monitor de boxe empregado pela municipalidade e que já está prestes a se aposentar." Curtis. além de um "fixo" bem módico . e. Curtis fala para ele: "Eu vou te espancar. Bom. Curtis aconselha-o a pôr o dinheiro no bolso de trás da calça.Ao entrar no Boys Club. com um tom cheio de lamento: "Bem que eu gostaria de ficar com essa grana pra mim. O treinador. DeeDee pragueja: "É sempre a mesma história. de modo a "completar" o programa de lima noitada pugilística. em seguida. portanto." É um peso excelente. passa a espinafrar o velho Page.. por sua vez: "Droga. Segundo ele. é por causa disso'. Curtis confia-lhe cerimoniosamente a soma. que recruta e constitui pares de boxeadores. antes de acrescentar. correria um risco lnenor: nunca se sabe ao certo o que pode acontecer na rua. No mínimo.) DeeDee pergunta-lhe.150 dólares por uma luta de quatro rounds. uma pilha de dinheiro. não é raro que os boxeadores recebam. Nunca teria ficado em Chicago.." Curtis conta de novo seu botim e coloca as notas cuidadosamente em ordem." Todo sorrisos. sendo que o preço de um lugar oscila entre 15 e 20 dólares. e entre 400 e mil dólares por um combate de quatro rounds -. não vamos mais sair dessa'. com O tronco nu sob a jardineira azul. desliza-os para o bolso da frente da calça (ele está com a camisa branca de algodão que veste nas grandes ocasiões e um (1) boné branco com aba saliente). eu bem que poderia ficar com esse dinheiro e usar ele. Ele sempre me comunica que eu deveria ganhar uma baba. porque sabia que. e cujo dinheiro correspondente à venda devia ter sido entregue hoje de manhã. que Anthony fora. embora medíocre. para ele fazer com que Bama pensasse que tinha passado um rolo em cima dele."(21 Nenhuma nostalgia na voz de DeeDee. e bateu um bocado nele. cedo ou tarde. Porra. que têm em vista um público inculto do ponto de vista pugilístico. no rádio ." "Por quê?" "Porque ele escuta esse maldito Ford [o empresário dele. Nem bem damos partida e ele começa a ouvir tantos souls melosos quanto é possível. Curtis está inquieto por causa dos sete ingressos que estão com o outro inconveniente de treinar nas salas rivais da cidade é que logo seca-se o viveiro de adversários em potencial para os encontros locais: "Se você treina nos outros gyms e dá uma SUrra nos camaradas do teu gabarito. treinar no Puller Park . Resultado. Ele faz três tentativas de localizá-lo pelo telefone . você não conseguia tocar ele. ele dançava e se esquivava dos golpes. Ford quer que ele fique plantado lá e que ele lute corpo a corpo. E mesmo que. a despeito de seu físico esguio e de sua predisposição em contrário.DeeDee tem um sacrossanto horror ao rape eis-nos dirigindo pela Lake Shore Drive. depois disso..e ainda iria tentar mais duas vezes." (Se Ford pressiona Anthony para mudar de estilo. quando chega a hora de confrontálos nas reuniões. um chefezinho afro-americano de uma empresa familiar de limpeza. há muito tempo que você já devia ter embolsado uma bolada de grana [you shoulda been in d'money]". e eu digo a ele: "Cara. para ser mais agressivo e "dar combate" ao adversário é porque. pode ser que nosso bom senhor Ford aprenda a lição . Aí. a Filadélfia é um dos cadinhos do boxe norte-americano. ele recusaria. que ele tem desde a adolescência e que lhe rende uma pequena pensão por invalidez. o que desaprova.(31 Por que eles iriam te dar combate numa luta se você já massacrou eles na academia. naquela hora mesmo lhe oferecessem cinco meninas só para ele. esquiva e contragolpe e pum!. portanto.você conhece o 'Alabama'. grande rival de Mohammad Ali nos anos 70. Mas esse não é o estilo de Anthony: ele não é um batedor. e. ele te disparava um bom soco. ) (2) co]: o senhor Hankins pediu a Bama . sobretudo para as lutas televisionadas. DeeDee observa. você pode ficar esperando: Bama nunca mais vai aceitar um combate com o Butch: pra fazer o quê?" São dez e vinte. LoTe Wacquant Ele sempre me diz: "Cara. eles iam acabar lutando. Louie . como particularmente fortes e ferozes . Na linguagem pugilística. Curtis permanece calado no seu banco e anuncia orgulhosamente que "não tocou em pussy" há dias e dias. assim como o auxílio médico gratuito (sem a qual ele estaria sumariamente reduzido à indigência. a um talentoso boxeador defensivo. tive que dizer ao Butch para fingir. eles não vão aceitar lutar com você. Você não faz isso com 'valorizadores' [opponents]. do downtown. e seus combatentes são famosos e temidos em todo o país. porque a luta vem antes de tudo. com um tom contrariado. você está ficando velho. não tem porte para isso. é incapaz de apreciar a virtuosidade técnica e tática dos antagonistas. pelo custo astron6mico dos cuidados com a saúde). estático. hein. porque a maneira como se trabalha lá não lhe parece conveniente: "Anthony não é mais o boxeador que era antes. mas não é para valer. ele se deixa desgastar por camaradas mais pesados do que ele. DEEDEE: Com uma longa tradição e inúmeros clubes que fervilham no gueto norte da cidade. A enfermidade a que DeeDee se refere é a artrose grave nos joelhos e nos pulsos. (3) 182 - Corpo e alma - 183 . o termo "opponel1f' designa um adversário de qualidade inferior que se combate justamente porque ele oferece todas as oportunidades de uma vitória fácil. Uma esquiva e um contragolpe. os organizadores sempre preferem pôr em cartaz um boxeador ofensivo. no gym. mais uma vez. cuja capota automática nunca está funcionando (ele acha isso engraçadíssimo. Antes.fia]. que é totalmente ignorante em matéria de boxe].. e. A conversa volta para as recriminações do velho Page e para aquilo que ele percebe COmo as desditas da carreira de DeeDee. nesse momento. Subimos no jipe Comanche de Curtis. porque ele não tem dinheiro para consertar a capota). O Butch prometeu combatê-lo pra valer. Agora ele fica esperando. eu estaria em Philly.a exemplo de "Smokin'" Joe Frazier. com os pés plantados no chão.a outra academia situada em pleno coração do gueto negro de South Side -.para fazer sparring com ele aqui. diga pra lnim? Foi o que aconteceu com o Butch [em um tom irôni- Lorenzo. Em vez disso. está na hora de ir embora. na sua própria cama. O antigo meiopesado de Woodlawn ganhou o título mundial WBC.. que estou no banco de trás]: Quem fabrica isso. ] 184 Lok Wacquant . em Las Vegas. ele sempre está me dizendo o que eu devia ter. e eu rio junto com ele]: Ele quer escutar nossa conversa no caminho da pesagem . que são tão encantados com você. ele deixou-se demolir em dois rounds.. Isso deve custar uma grana preta. em comparação . Em 1985. " CUtrrlS: Mas é verdade." E ele me responde: "Você não foi tratado como devia. diante do lago. e é por isso que está sempre atrás de mim. ir tirar o Ratliff da cama.]. e. para que eu não deixe passar a oportunidade. DeeDee tem uma ponta de nostalgia na voz e nos olhos: "Phonzo. eu seria rico. DErDEE: Eu sei disso. o que eu devia fazer. [.. Excitado.. DeeDee. Um dia. cara. DeeDee . porque o senhor sabe que já se ferrou [You scared I might mess up 'cause you know you messed up. não sabe? O senhor bem que sabe disso. Droga. mas o senhor detesta até mesmo pensar a esse respeito. mas jamais recebeu altos cachês. então seria uma outra coisa diferente.. O senhor agora poderia ser rico. CURTIS [e bem rapidamente.. assim. onde ele desenvolvera sua musculatura já colossal e fortalecera sua determinação. hein? LoulE: É.]." CUlrl'ls: E se o Ratlifftivesse se cuidado por conta própria? Como o senhor ia controlar um cara que é adulto e vacinado? DEEDEE: Cara. que eu "devia" aquilo. DeeDee . eu não devia estar rico. o senhor sabe disso." [... não é Um Alfa Romeo vermelho-cheguei ultrapassa-nos a toda velocidade. a respeito das respectivas vantagens dos diversos tipos de automóveis . não.. E lança-se com Curtis em um desses intermináveis papos rituais dos quais os dois compadres são useiros e vezeiros. o que eu devia ser. corroído pela droga. todos os pistolões que você conhece. por um jovem peso pesado que ascendia como uma flecha e carregava o nome de Mike Tyson. Esse calhambeque [o jipe Comanche] faz trinta e dois. Se eu tivesse que ser rico... tudo não passou de desgostos e de degringoladas. quanCorpo e alma 185 verdade. Curtis sai atrás dele e baba de admiração diante da máquina rutilante. e eu vou me divertir com o espetáculo. era uma enormidade. ] Ei. cantando pneu. droga.. DEEDEE [elevando a voz]: Estou me perguntando o que custa uma Mercedes Benz. se você não prestar atenção .mas você é cabeça dura. DEEDEE [virando-se para mim. que está ligado J: Tem um gravador funcionando aqui. principalmente aqui nos Estados Unidos.quer dizer. DeeDee abaixa o vidro para falar com o motorista. dizer que eu "devia" isso.. De volta a Chicago. no meu pé. CUlrns: Trinta e cinco? Eu diria que é um pouco mais que isso. eu sei disso. mas você nunca soube tratar ele como precisava ser tratado. vão apanhar esse aí e mandar um bom pé na bunda dele [when they get a whuppin' on his ass one day]. ha-ha! E é um cadilaque. CUlrns [sorrindo para meu gravador. E "com todo esse pessoal bem colocado. DEEDEE: Italiano. Louie? LOlilE: É um carro italiano. DEEDEE: Não estou nem aí [I wouldn't give a damn. que não rendeu tudo o que ela prometera. se eu tivesse tido família. CUR'l'IS [rindo. mas sabe-que-o-senhor-está-ferrado.. Voltamos à nossa marcha e passamos na frente do estádio mu- nicipal de Soldier's Field. em 1989. [com ênfase] O senhor tem medo que eu me ferre. Curtis aproxima-se do Alfa Romeo e buzina freneticamente. como querendo insinuar: "Eu bem que conheço as profundezas do seu pensamento"]: O senhor devia ser rico. depois desse breve momento de glória.até aí [inaudível]. hum. é bom. Quem dá mais? Todos compartilhamos da pena pela carreira de Alphonso Ratliff. Louie. você sabe o que eu disse a ele? [Com um tom aborrecido] "Você não sabe de nada: você tem cara de babaca de amigo que tinha cinco Mercedes Benz [quando ele trabalhava para um grande promotor japonês nas Filipinas ]. como você fez. Muito ereto no seu banco. LOUIE: Meu calhambeque custa 300 dólares. por assalto a mão armada. em um campo de trabalho do Sul. eu tinha um verdade? DEEDEE [desdenhoso]: Que nada. e eu digo a ele: "Estou exatamente onde eu deveria estar .] Uau. [Todos três rimos] Já te avisei. DEEDEE [na defensiva]: Bal Vê só." Alphonso tinha purgado seis anos de reclusão.não se preocupe com a minha vida".. qnando estava no auge de sua forma. DEEDEE [gritando acima dos ruídos dos motores]: Quanto custa esse carro? Quanto ele faz? [O motorista responde. o velho Page.. você tem caras que encontram uma forma de escapulir de suas cidades. portanto. em uma crise de raiva." Um outro mundo que. O gigante de Woodlawn reconheceu sua culpa. Mas são todos selvagens [heathens].. Parou com as drogas. a nova coqueluche de Nova York. DeeDee e ele examinam intensamente as mulheres na rua e soltam uma profusão de comentários licenciosos. no mínimo. sejam eles quem forem." A conversa vai para o combate entre Michael Carbajal e o campeão IBF tailandês Kittikasen. se ele estiver decidido. Curtis. entre Curtis e DeeDee. pediu perdão. espantosamente. Curtis percebe duas moças que estão se despedindo beijando-se na boca. antes mesmo de cair sobre o adversário. e que todos prevêem que vá ser o campeão do mundo em todas as categorias? "Faz muito tempo que eu não vejo ele. fosse em um registro afetuoso . nessas ocasiões. por vezes agressivo. no prime time. e imediatamente chama a atenção do treinador: "Mas isso não é nada..como se verá mais adiante. Os dois cúmplices dobram-se de tanto rir. vá se firmar dessa vez. a espera de uma luta deixa-o sombrio. e o velho treinador tomouo sob seus cuidados. sem educação nem modos. para uma matrona negra no volante de uma caminhonete que exibe um logotipo" Fish": "Eu também sou um peixe [pisces]!" Ele teima em afirmar que uma outra. meu velho! Conheço um montão de mulheres que se beijam assim. do lado de fora do Office Corpo e alma - 186 - Lo'ic Wocquont 187 . Essa era uma palavra de uso corrente na academia de Woodlawn. mas ela iria te amassar antes de você conseguir".' Durante todo o trajeto. mas outros camaradas não conseguem sair: são muito selvagens.(4) Veja só. Destino: o nono andar pelo elevador de vidro que ultrapassa em altura o centro comercial. e. nas manhãs de combate. depois que ele quebrou tudo nos vestiários. o {4} No vernáculo local. de tal modo que você tem só selvagens. como muitos meninos da cidade. sentado em companhia do velho Herman Mill na sala de espera. Mas é um menino de um bairro pobre e violento [project bay]. Alphonso tornouse indestrutível no ringue. porque estava sendo regularmente vencido no ringue. Curtis está curioso para saber quanto era o cachê de Carbajal. inofensiva . Eterno dilema do controle sobre o corpo." cidade.do saiu da prisão. que se comporta violando as normas comuns da civilidade. selvagem] designa um indivíduo tosco. Lutava como um possuído: "Nem bem levantava-se do córner e já começava a dar golpes. estava espiando para ele com um olhar de entendimento. faz apreciações circunstanciadas sobre as formas e os talentos amorosos que várias tran- O que pensa DeeDee de Riddick Bowe. trocando olhares de desafio." DeeDee grita. Ao longo dos doze quilômetros que nos separam do centro da A pesagem no IlIinois State Building Estamos muito adiantados e paramos no estacionamento pago em Randolph Street.de seus apetites até agora ocultados. após sairmos do Illinois State Building.e. no entanto. por sua vez. fazer descer ainda mais seu peso. ficam todos concentrados no mesmo lugar. Curtis não pára de cuspir dentro de um saco de papel que ele segura com a mão esquerda. Mas cinco meses mais tarde. está descontraído. só pra ver. inscreveu-se no Boys Club. também gorducha. e. e faz isso tanto por hábito como por precaução. quinze ou vinte mil dólares? DeeDee: «Você está de brincadeira?" «Trinta mi!?" «Xii. E eles não saem nunca. A partir desse momento. porque não conhecem nada além daquilo." Curtis responde. não sabem se comportar de outro jeito. Talvez. Damos de cara com O cutman Laury Myers. Como se. Cada qual. assim. Ele é parrudo. onde podia ser invocada fosse sob a forma de acusação. A mesma coisa depois da pesagem. ao alcance dos punhos . você está numa seuntes supostamente têm.. enquanto andávamos atrás de uma enorme negra com uma bunda gigantesca: "Você poderia tentar transar com ela.. é melhor deixá-lo ruminando em seu canto). pagão. que difere radicalmente dos combates anteriores (de hábito. num domingo à tarde. com uma careta excitada: "Eu devia pedir a elas que me dessem uma beijoca dessas. DeeDee mandou ele embora do gym. de dentro do carro. seis algarismos. Tem o couro duro. "É claro que eu poderia fazer isso: eu ainda consigo . fosse de praxe dar uma expressão pública . o termo "heathcn" (literalmente. para perder o máximo de água. em mim. que passou na televisão ontem. o que é que você acha? Deve ter ganho. " cadeia nacional de televisão. parece estar muito próximo. da calçada. DeeDee. cem ou cento e cinqüenta mil. para ir a pé ao Illinois State Building. com as mesmas características. ele lutou com o legendário campeão de peso-pluma Willy Peps. até três ou quatro noites consecutivas. e eu dizia. orgulhoso. no mês passado." Curtis examina o objeto barroco com interesse. Ele havia aprendido a dançar desde os três anos de idade e a boxear aos seis. Chama Curtis para um canto e exibe-lhe. 188 - Corpo e alma - 189 . "Eu nunca parei. cinemas.3 Lo·ic Wacquont Há três longas décadas. ele sofreu 35 derrotas em 37 combates. portanto. por conta do Estado). também do boxe. e. Entrego-lhe a foto que tirei dele durante a luta de Smithie em Atlantic City. mamãe." 1(0 BOXE É MINHA VIDA. seu avô era alfaiate e seu pai foi boxeador profissional e depois operário nos matadouros de Chicago (imortalizados por Upton Sinclair em The Jungle) até o fechamento deles. por um salário que lhe permite apenas fazer face às suas parcas necessidades. o que faz com que ele fique subitamente alegre.. Quando ainda pequeno. e ela me dizia.. de verdade.. de longe. então. com uma determinação que só se igualava à sua inépcia: pesadão e desajeitado.] Vamos. A grande maioria é formada por organismos que não têm autoridade nem meios: colocadas sob a autoridade do Escritório dos Assuntos Veterinários ou dos Serviços de Proteção ao Consumidor. dividia-se entre O boxe e O tap dancing. elas nem mesmo dispõem de telefone ou de telecópia para verificar a identidade e as listas de lutas dos combatentes que licenciam. como vem a cada pesagem. " Ele está terrivelmente caduco e conta-me várias vezes a mesma história _ como enfrentara um boxeador com vinte quilos a mais que ele em um bar de Minnesota. eu deixo ele pra você por apenas 75 dólares. e isso fica entre agente. com um ar moroso. com seu pai. lutei. 'Bem. e vice-versa. Na época. Quarenta e quatro dos cinqüenta membros da União dispõem de uma "Comissão" encarregada dos negócios pugilísticos. ela me perguntava. MEU AMOR" (5) Não existe. que ostenta a palavra "MACHO". e eu quero vendê-lo. depois que a caldeira da sala pifou-. organismo nacional responsável por administrar o boxe profissional. ' [Com uma vozinha triste. sem contato com as três filhas e 0$ treze filhos que teve com cinco mulheres diferentes. antes de devolvêlo para o proprietário com uma careta de tristeza: "É bacana. um dia. antes de terminar o relato tentando dar alguns alegres passos de sapateado. pulando de cidade em cidade. Aos 56 anos.] E é interessante isso. fazia um espetáculo de sapateado e. seu ignóbil colar de escudos montado com diamantes falsos que está preso a um pesado cordão de ouro. Assim. DeeDee e os outros nem ao menos fingem escutar: eles já ouviram essas histórias dezenas de vezes. o pai levava-o para as reuniões que então aconteciam nos quatro cantos da cidade. somente meu fogo foi se extinguindo pouco a pouco . onde se lê "CUTMAN" em letras garrafais. subia ao ringue. um músico que formava um dueto de violino e banjo com o irmão. em boates. Cada estado está livre para regular (ou não) a profissão. Laury dá duro cinqüenta horas por semana como vendedor na mesma loja de móveis de um bairro popular. Laury seguiu os rastros de seu pai no ringue e lutou entre os profissionais desde os 17 anos de idade. com dez graus negativos. Ele veio. as irregularidades. Nada de tempo para treinar: a dança mantinha-o em forma para o boxe. MINHA MULHER.. ele mora sozinho. galpões de esporte. quando eu voltava pra casa com a túnica e o calção que ela tinha feito para mim. vira-o e revira-o na palma da mão. divorciado. entre os quais 17 acabaram antes do término: "Minha mãe costumava me dizer. no início dos a110S 90. nos anos 40. os trambiques e as malversações são totalmente rotineiros. 'Você lutou esta noite?'. ele lutava diversos dias na semana. viajando de trem. E propõe ao boxeador de Woodlawn ceder-lhe o rutilante "MACHO" por um precinho camarada: "Sei que você adora ouro. os atletas profissionais menos protegidos do país. Curtis. em 1951. Por devoção filial. Como já provou uma Comissão de Inquérito do Senado. [Com um tom de confidência.(5) Mill é um old timer magro e grisalho que tem mais de duzentos combates na categoria de amadores e cento e cinqüenta combates profissionais em sua conta (com somente quatorze derrotas). no dia seguinte. 'Porque você está com as roupas tão limpas . pensei em mostrar primeiro pra você. oferecer seus serviços de segundo para quem quiser. Isso explica porque os boxeadores são. Sempre pronto a pôr as mãos à obra e com afinco. e um outro. por quê?'. nos Estados Unidos.Professional Regulation (o organismo encarregado da supervisão das profissões liberais. Saído de uma família judia vinda da Itália. de acordo com os princípios e as modalidades que lhe são próprios. porque a gente não falava nunca da vergonha que eu tinha. mas não estou com grana nesse momento. Laury está estirado na poltrona. É o meu amor. eu gostaria que ele estivesse vivo para ver meu sucesso e meu trabalho como cutman profissional. acabou aprendendo os rudimentos do ofício e entendeu de empregar-se como cutman. Ele assiste avidamente a todos os combates que pode. Laury retirou uma admiração fascinada pelos pugilistas que ele secunda. É preciso conservar a calma. mas sem muito sucesso. ele tentou. somente para se fazer conhecer e reconhecer ("Que as pessoas vejam o teu profissionalismo"). nesse círculo mágico: "Não há nada que eu goste tanto quanto o boxe.") Depois. ainda. frascos de produtos coagulantes (avotina. Esse novo papel. ou.permitiu que ele en190 - lok Wacquant . Para tanto. as revistas de boxe ("Eu tenho todas as revistas que saem"). se ele faz as coisas direitinho. Enquanto se você fala a ele com calma e dá bons Corpo e olma 191 Meu pai. na televisão ou em vídeo. ele dispõe de cerca de quarenta segundos. Depois que a grande publicação pugilística mensal Ringside publicou um elogioso perfil dele (e ele comprou quarenta exemplares no jornaleiro do seu bairro). Tenho uma admiraçãO tão grande pelo boxe. logo para um grande combate mediático." Pode acontecer-lhe de trabalhar por uma remuneração puramente formal. É tudo para mim. para fechar um talho. para domar uma equimose que ameace obstruir a vÍsão do combatente. mesmo quando não se trata de meros figurantes de preliminares: "A maior parte das pessoas. por ocasião dos quais chegam a caber aos segundos até 2% do cachê dos boxeadores. por força de assistir às pesagens e de acompanhar 0$ segundos. enfim.. e comparece a todas as reuniões na grande Chicago. que seja remunerado por isso. de repente. esse ficava muito mal de ver que eu não conseguia de jeito nenhum . os dois boxeadores que eu tinha estavam me deixando louco. Hoje. eu estava perdendo dinheiro." Ao final dos anos 70. eu faço muitas críticas a vários assistentes de córner. saco de gelo. teu pugilista está excitado e nervoso. Ele é a minha vida. E meu orgulho é ser um verdadeiro profissional: você nunca vai ouvir contar sobre mim histórias de como não sou um profissional. caso ela inche.Laury Myers. "Com o amor que tenho pelo boxe e com meus conhecimentos. por breve período. Se você fica nervoso ou excitado. todos os meses. adrenalina diluída a um milésimo). se ele precisasse de um segundo. Seus instrumentos são rudimentares: ataduras. dez dólares na mão. Precisa saber o que você está fazendo. Mas eles são seres humanos também. O segundo bigodudo lê religiosamente. Eu acho que um homem que sobe ao ringue para combater é uma pessoa especiaL Então. Para ter meio de se empregar. Isso ia dar a ele um bocado de força. você projeta isso no boxeador e. E se ele cumpre o seu dever. Laury alimenta a esperança de ser chamado logo.. É a minha mulher. não esquentar a cabeça." Dessa dolorosa experiência entre as cordas. vaselina. cutman. durante o minuto de interrupção entre os rounds. cessar um sangramento no nariz. Laury faz todas as pesagens da regiãO. e a aplicação precisa de pressão sobre as feridas. "Pela TV. elas não sabem muita coisa sobre os boxeadores. trabalho com qualquer um: trabalharia com o King Kong. e depois você encontra um bando de pessoas formidáveis. trasse. O essencial é permanecer em atividade. inteira-se das reuniões que irão acontecer e oferece seus serviços nos gyms. tornar-se empresário. ("Eu parei depois de uns cinco ou seis meses. em seu quarto de hotel em Atlantic City." A tarefa do segundo é velar para que seu boxeador não seja prejudicado por um eventual ferimento no rosto durante o combate. que seja tratado desse modo. um dedal de ferro. que gritam entre eles. com um jeito despeitado. para se assegurar de que ela vai realmente remeter os resultados oficiais das lutas a todos os interessados. que expedem a papelada (licenças dos boxeadores e dos segundos. também não tem mais publicidade. você adora isso. o que me faz gelar internamente. todos os combates são excitantes para mim. então. o médico habilitado pela Comissão para atestar o estado de saúde dos combatentes. toda vez que eu combatia. e minha foto pintou na primeira página da edição dominical. Eu adoro isso. ele suspira: "Mas o que é que você quer. e cerca de um em vinte demandam um atendimento mais sério. indicando que Jim Strick.). Leon Sushay. Jack se agita perto da secretária da Comissão.. que me conhece por ter arbitrado minha luta na noite das Golden Gloves. o adversário de Curtis. "Espera eu me pesar. os oficiais fazem sua entrada e a sala de pesagem. em um bom terço dos combates acontece um corte no rosto que necessita da intervenção do cutman. "O que eu gosto mais na vida? Vai parecer ridículo: fazer o meu serviço. é o meu prazer. que montou a programação desta noite. com um desprezível cartel de quatro vitórias por duas derrotas. Cada oportunidade que eu tenho de estar no córner ou no ringue. uma vez que Ed Woods. as três secretárias. Seu orgulho: em treze anos de atividade. com corte de cabelo raso. De repente. Enquanto isso." A alguns metros dali. Cada combate é excitante para mim. De estar ali com alguém que eu conheça ou não. Eu lutei pelo título de campeão das Golden Gloves. é o meu serviço. duas louras desbotadas e uma ruiva bonita. DeeDee fica impaciente e decide matar o tempo indo buscar um café. Discuto um pouco com Sean Curtin. Meu bom Jesus! É preciso ser pro-fis-sio-nal. J E você tem menos atividades. ter seu nome no jornal estimula. Quando me espanto com o fato de que James "Jazzy" Flowers seja campeão meio-pesado do estado. CurtÍs desaparece lnais uma vez nos toaletes.o único assistente de córner que figura na lista do programa da reunião é seu próprio pai. treinador e empresário nas horas vagas. vestido com uma camiseta cinzenta e um capote verde gasto. man. e outros freqüentadores das manhãs de reu192 LoTe Wocquant nião. atestados médicos. Eu posso trabalhar todos os dias da semana. recibos de responsabilidade. com um ar chateado. é por isso. grunhe Curtis. seja uma lutinha. uma grande luta ou uma luta entre iniciantes. Você pode mandar outra?" Depois. em Park West. No meu tempo. tratou de acrescentar o nome de Corpo e alma 193 . "Na última reunião. um grande retângulo com ar-condicionado e atapetado de cinza. concorda em atuar como segundo no córner de Curtis. Adivinho que é Hannah.. t a minha vida." A penúria de combatentes é tão acentuada que logo será suficiente tornar-se profissional para se ver catapultado automaticamente a campeão do estado! Curtin opina sobre o tema.. seu cutman habitual. menos combates. começa a encher-se pouco a pouco: o matchmaker Jack Cowen. os caras estão ficando de tal forma raros . onde ele foi morar recentemente. esta noite. ele vai executar a estratégia que você fixou para ele. cauções de cachês etc. Todos os camaradas que lutavam nas Golden Gloves tinham o nome escrito no jornal. ele faz sinal a DeeDee. Doc Bynum.hoje em dia. depois a gente vai beber um café e comer juntos.. O Tribuneera patrocinador das Golden Gloves. [Assobia. o árbitro Sean Curtin. fiuuu . o Comissário e seu bigode grisalho. Jack. [Ele assobia de novo para acentuar sua decepção." Mas o velho técnico está com muita fome. Eu só penso no boxe e nas lindas card girls. tinha um anúncio no Chicago Tribune [o principal jornal da metrópole J para qualquer um. e quando você é novo. organizadores. Ele não tinha oponentes. um pequeno branco espadaúdo. Eles não fazem mais isso . treinadores e comissões dos estados vizinhos.conselhos. não recebeu a cópia dele. nenhum dos boxeadores de quem ele cuidou perdeu uma luta por causa de um ferimento. para mim. muito poucos. quando eu era boxeador. e torce sua cabeça de irlandês: "Você tem poucos caras que vêm agora para o boxe.não conseguiu liberar-se do emprego para vir de carro de Indianápolis. "Onde é que você vai?". ninguém sabe quem é campeão das Golden Gloves». Às onze horas em ponto. Humm. as pessoas na rua. farmacêutico. discretamente sentado do outro lado do sofá. um rosto burilado de traços selvagens.land. Ele veio pesar-se sozinho ." Segundo sua experiência. Eles punham a tua foto. por uma razão que eu ignoro. Você tinha publicidade de monte. os velhos técnicos locais. louro. não estará lá . J É incrível como a coisa declinou! Os pais não querem que os filhos façam boxe. durante o mês anterior. com 50 e 20 lugares. da qual dois membros estão programados para esta noite). com uma colaboração estreita entre Jack Cowen e o Woodlawn Boys Club.IX) A contragosto.120 dólares com os ingressos. no Daley's. de modo a manter Curtis atento. Mais tarde. o rosto de DeeDee desanuvia. às duas horas em ponto. 20. que fica longe do canto da pesagem propriamente dita . que perambula com O fato de dar o cachê do boxeador adiantado para o treinador. Rapidamente. a portas fechadas e entre organizador e empresário. portanto. talvez ele tenha condições de passá-los de agora até de noite . onde ele oferece seus serviços de fotógrafo amador. Total? . Jack anotou em um papel o número de lugares correspondentes a cada boxeador nas vendas por "comissão". e que chegarão de ônibus na estação da Greyhound dentro de dez minutos. 70. DeeDee faz uma careta.o que ocorre sem a menor cerimônia. 6. nos Estados Unidos. Surpresa! Faltam 300 dólares. logo. Um total de 310 ingressos na conta dos pugilistas e seus acompanhantes. Vou dar a ele um pouco de grana e colocá-lo dentro de um táxi. Ataque de pânico.."(6) O que fazer com os nove ingressos que ainda cabiam a Curtis? Jack encarrega DeeDee de guardá-los. o empresário de Curtis.não vejo outra saída. um combate de rotina para a estrela do Woodlawn Boys Club: DeeDee e Curtis. Curtis aproxima-se de Cowen.'?) Vêm avisar a Cowen que o moço que deveria buscar os dois boxeadores de Milwaukee. 194 - Lo'ic Wacquant Corpo e alma - 195 . eu vou mandar Kitchen . é triplamente insólito: em regra geral. respectivamente.o que deveria cobrir facilmente a metade dos custos de organização da reunião. na eventualidade de surgir uma luta mais bem re- De fato. não põde ir: ficou engarrafado.Stirckland à lista das pessoas autorizadas a entrar de graça esta noite no Studio 104. ele não tem o dinheiro que devia entregar a Cowen esta manhã.200 dólares garantidos . "dar trabalho a ele". no entanto. E. de modo a assegurar para seu boxeador a cabeça da programação e. como sempre. Keith Rush. Informam-nos que Jeb Garney não irá comparecer à pesagem. está zanzando por ali. vamos acertar logo. Faltam 300 dólares. empilhando-as sobre a mesa. multiplicando o número de notas pelo seu valor impresso. De repente. que. é o meio de transporte de longa distância dos pobres. Pode-se ver aí um indício do fato de que essa reunião fora montada muito de última hora. [Dirige-se a Kitchen. vamos ver qual é a comissão do CurtiS. o equivalente a quinze lugares. envergonhado.. Jack rapidamente faz a recontagemo é isso aí. enquanto DeeDee entrega a Cowen a soma correspondente à venda dos lugares que estavam sob a responsabilidade de seu pupilo. se estiver careta [soberl !. Windy City.. assim. nunca se sabe. o restaurante vizinho à academia. Meio aliviado. e dois nomes que não reconheço. 150 (sala rival de West Side. arrecadaram 1. Curtis deixara de ser chamado como adversário de um boxeador classificado mundialmente. Jack decide mandar à estação Kitchen. à espera de uma ocasião para descolar alguns dólares. (11) munerada em Atlantic City . Curtis tinha certeza de que o dinheiro estava certo.por duas vezes. e que seria televisionado. e na frente de todo mundo. e avisa-lhe que Lorenzo está com os sete bilhetes que deveria vender por ele: por conseguinte. habitual freqüentador dos gyms e das reuniões. efetuam-se apenas depois da performance. ele faz as suas contas numa folha de papel. Tudo indica que essa é uma cartada sem muito valor. ou seja. Ela é usada sobretudo pelas famílias do (sub)proletariado negro e latino que não possuem carro e não têm a menor condição de viajar de avião. ele irá encontrar-se com DeeDee e (6) Curtis.. para o tradicional almoço antes da luta. Jack dirige-se a ele. Curtis vai sentar-se no fundo da sala. Jack suspira de alívio: "Ah! Está certo. O enigma está resolvido: são os bilhetes que foram confiados a Jeb Garney. Jack responde com uma brincadeira de mau gosto: "Call the paliee". então estamos de acordo. que estende a DeeDee: "Toma aí 500 para o Curtis. o que representa uma bela soma. que liga aS principais cidades do país. JACK: Bom. Curtis Strong. que o total das entradas pagas nessa reunião chegou somente a 178 (das quais 104 ingressos vendidos por Curtis e sua roda) e que o empresário de Curtis teve de pagar de seu bolso o cachê do adversário. O matehmaker conta meticulosamente as notas. Isso supondo-se que todos os boxeadores do programa atinjam suas quotas-partes. Com um tom falsamente formal e abertamente paternalista. em seguida. o que daria uma quantia espantosa. os pagamentos. um bebum crônico. eu iria saber. quando a gente voltar. A frota de ônibus Greyhouud. no (7) universo pugilístico. . para um encontro em um cassino." Ele conta quinhentos dólares. (Por um instante.) Um porto-riquenho bigodudo (mais tarde. aqui estão dez dólares." Diante da insistência lastimosa do suplicante ("Eu te imploro.. iam precisar de um substituto. man! Eu quero um desafio. o treinador de Ishmael. Ele garante a Avandano. com uma cara redonda. eles sabiam lutar pra valer. como o da assistência que comparece à pesagem: duas dúzias de pessoas. Um carinha negro encorpado.. e eu vou te mostrar como sei lutar"). eu saberia que se trata de Ishmael. e devem estar juntos.. Você está em forma? KrrcHEN [com deferência]: Sim. assim. O matchmaker afastao sem poupar o sarcasmo: "Você nem sabe mais onde fica o salão de treinamento. É. saca só. ele propõe uma luta em Cleveland. porque estava com um corte mal fechado. naquele tempo. eu treinei pra burro. Eu conheço o Anthony. é de dinheiro que ele precisa . Quer dizer. ah . a sala regurgitava de boxeadores atraídos pela perspectiva de serem recrutados de última hora: "Você sempre tinha cinqüenta. a gentduta junto: é um desafio. em um pedaço de papelnão se pode contar de jeito algum com os motoristas de táxi. Ele deve ter chegado há cerca de cinco minutos. ele tenta convencer-me de ir no lugar de Kitchen. e. porque. eles são recém-imigrados que não conhecem a cidade." Além disso. O senhor já bebeu hoje? Kn'CHEN JACK: [sacode vagarosamente a cabeça]: Eu? Não. Tão miserável. a sala ficava cheia. Tudo bem! Então. Mas a presença de Anthony só estava mesmo prevista para uma eventual substituição de última hora. ah. droga. que se mudou do centro da cidade. acaba por aceitar esse combate "no exterior" . (Oh. por sua vez. de forma a preencher os programas dos quais ele se encarrega pelo Midwest. mas nem pensar: não quero perder a pesagem. me dá somente uma chancezinha. até nos anos 60. senhor [Yessir].. Em seguida. estava com pressa pra lutar.. Eles são peso meio-pesado. é o supra-sumo do desafio.. O senhor vai me pegar um táxi agora mesmo. um peso médio de Aurora que está debutando entre os profissionais) vem choramingar para Cowen. um carinha encorpado. Kitchen não sabe onde fica a nova estação da Greyhound. e só tem duas vitórias ("O tipo é evidentemente vencível"). Fico perguntando-me em troca de que salário de fome .. ou alguém torceu uma articulação. lack não perde a oportunidade: em vez disso. como eu ia ado196 Lo"ic Wacquant rar lutar!)" Mais do que um desafio. que essa luta vai ser vantajosa para ele: seu adversário será um novato que já conta com três derrotas e um empate. por falta de alternativa. DeeDee adora contar como. Despencou-se de seu subúrbio distante. distribuição das luvas e outras tarefas subalternas. ou que O médico não ia autorizar que ele lutasse. mas. e puxa-o com autoridade pelo ombro. só uma. anda. nas décadas após a guerra. KrrCHrN [humildemente]: Alguém está me chamando? IACK [condescendente]: Eu. os dois. no fim do mês que vem. que está todo ouvidos. certamente. os cabelos finos encaracolados em volta de um rosto anguloso) vem. tentando que ele o inclua no programa. O senhor está a ponto de encontrar a grande oportunidade de sua vida. Avandano relata a informação a Ishmael com muitas sacudidas de cabeça. e deve ser uma necessidade premente para que ele tenha feito sessenta quilômetros na improvável esperança de lutar sem qualquer preparação. dizendo que talvez um sujeito não aparecesse. contando com os funcionários da Comissão. Os camaradas de agora não teriam a menor chance contra eles. e Cowen teve de rabiscar o endereço.é assim que Cowen desloca sua mercadoria de um mercado para outro. para ir até a estação de ônibus da Greyhound. ele descreve-lhe minuciosamente o aspecto físico dos dois pugilistas de Milwaukee. é . muitas vezes.ar abobado. Como é o nome dele? JACK: Sherman Dixon.. O outro menino se chama Zeb qualquer coisa." Corpo e alma 197 . na esperança de que Anthony também estivesse lá e que Jack os pusesse no cartaz desta noite. queira vir até aqui. Pra mim. com seus garranchos de canhoto. Jack aceita usá-lo para fazer propaganda. sessenta camaradas que ficavam esperando. se manda. todo mundo sabia lutar. os boxeadores de antigamente eram muito mais duros: "Éê.] Senhooor Kitchen. O jovem porto-riquenho parece ficar muito aborrecido. pedir a Jack que lhe marque uma luta. Kn'CHEN: Está bem. ah. onde o senhor vai se encontrar com uma pessoa JACK: chamada Sherman Dixon. Um jovem fracote com a pele de cor amarelada. Ishmael faz uma cara catastrófica: "Man. Nada de poses espetaculares nem de declarações intempestivas dirigidas ao adversário. os semblantes fechados. Contas como essa você deixa pra lá.Enquanto isso. um a um. tudo em ordem. Se não há um substituto de última hora. Exatamente 133 libras. Expira. enquanto Little Keith assina um contrato de apenas 200 dólares .é na própria manhã do combate que se rubricam os contratos. e que o promotor de Cleveland ainda não acertou. porque comprova a ignorância que o público tem da Sweet Science.de longe. Portanto. Os boxeadores vêm. Ele aperta a mão do seu adversário desta noite e conversa com ele um pouco. Inspira. (Assinalemos de passagem o mito mediático segundo o qual os boxeadores devem ter "ódio" de seu rival para lutar bem. Um organizador pode modificar livremente o programa de combatentes até o último minuto. a tarifa em vigor há anos. caso um dos dois não tenha respeitado o limite. isso aí não é nada. você não vai dar iInportância. É que se tornou difícil encontrar adversários para Curtis. Little Keith. caberão 500 dólares pelo seu desempenho. com um tom amigável. Curtis dá tapinhas no peito de Hannah. limitam-se a combater em seus locais de domicílio e evitam os «clientes sérios". que permanece quieto em seu canto. é comum que um ou vários pugilistas. ou seja. além do mais. Espio por cima do ombro de Jeff Hannah que ele vai receber um cachê de 600 dólares. com os ombros encostados na parede. para não correrem o risco de interromper seus cartéis de vitórias. a pesagem continua. Quando DeeDee toma conhecimento. ou modificar a margem de peso de dois combatentes. Assim. à medida que Cowen os chama . calados. porque Keith luta hoje à noite. perto de Eddie. sentados com Cliff e Eddie (em segundo plano).excedente de grana que será garfado da remuneração do combatente que está com peso a mais. Jack finge estar surpreso de que seu grande amigo Larry ainda não tenha liqüidado essa conta.7 libras. no outro dia. que se senta na fileira atrás deles. um pugilista pode exigir do organizador da reunião que ele aumente ligeiramente seu cachê. Foi preciso remunerá-lo melhor que a seu adversário. cujos nomes figurem nos cartazes que anunciam a noitada (muitas vezes. assinar seu contrato. Corpo e alma 199 198 - Lo"ic Wacquant . ele me dizia achar "justo": 50 dólares por round.(9) A Curtis. vestido em sua bermuda branca. que espera. todos. não estejam efetivamente no programa. sem qualquer obrigação de reembolso. não paga e ponto final. do outro lado da sala. mas eu sei que ele está tenso como um arco. o que permite trocar o pessoal do programa até o último instante. desde que ele começou a lutar em dez assaltos (e encabeçando o programa): há poucos boxeadores nesse nível. James Flowers e Danny Nieves passaram pela balança e voltaram a se sentar. para enfrentar um adversário com um sobrepeso notável . em caso de necessidade. fica bem chateado: "Man. que foi quebrado durante uma luta em Cleveland.) Aproveito O interregno para dar a Jack a conta que o dentista de Ashante mandou para ele. com uma ortografia um tanto duvidosa).é o pagamento que. pode-se julgar que são dois amigos que se encontraram e que estão à vontade. sozinho. em fevereiro passado. brincando. para convencê-lo a vir se bater em Chicago. mito que tem o dom de irritar DeeDee. depois de ter pesado 129. A secretária da Comissão fala com uma voz fininha: "Não tem lutadores que estejam no programa e que ainda não passaram por aqui?" Chamam: "Curtis Strong!" Ele atravessa a pequena tropa. Está dentro do intervalo combinado de antemão pelas duas partes." Eddie finge umar descontraído. Curtis e DeeDee vão sentar-se no fundo da sala. Depois. Curtis levanta-se para ir apresentar-se a JeffHannah. (9) Curtis e DeeDee esperam a pesagem. cobrando o pagamento imediato do tratamento feito no maxilar do pugilista. retira a jardineira e sobe na engenhoca sem maiores brincadeiras. pra mim. Porque é assim que nós trabalhamos. quando ele faz com Lorenzo ou Keith. vai ter um sparring duro de verdade. IIVOCÊ NUNCA PODE SUBESTIMAR UM BOXEADOR" Eddie. Pelo menos. Às vezes. • i nocaute postulantes a títulos [top contender]. LOUIE: Porque. Antes. quando o adversário mete Lorenzo ou Keith em dificuldades. Então. No ano passado. Olha só. a cada vez que você sobe no ringue. f: um mal-estar que me dá nas tripas por todos os meus meninos. com quem Keith deve se bater hoje à noite. eu digo a eles. mesmo assim é preciso que você esteja bem preparado e atento". porque uma vez que eles estão no ringue. E é isso que eu digo aos caras. em nenhum lugar. você não vai ter problema. Mike Weaver tinha nove derrotas. que está exposto bem na entrada? "Man.não interessa quem é. e quando Larry Holmes tam200 Lo"ic Wacquant Voltamos para Woodlawn. ele vai cair. eles vão ter que dar duro. Porque. Isso depende. conforme o jeito que eles fizeram no sparring. Com todos eles. Eu pus ele a nocaute no terceiro assalto. é isso aí. isso te mostra. e eles mandavam ver. é só. Você vê. não sei nem Corpo e olmo . na pesagem. depois de urna reunião no lnternational Amphitheater LOUIE: Você fica nervoso quando teus boxistas sobem no ringue. quando Larry Holmes [o campeão do mundo de pesos pesados] combateu Mike Weaver. porque isso faz parte do boxe.. é uma luta apenas em quatro rounds . Todos. Little Keith e eu. mas mandou Larry Holmes à lona três vezes. Loull:: Você fica nervoso quando? Nos dias que antecedem. na noite do combate. DeeDee. LOUIE: E você fica tenso quando? EpI)JE: Às vezes. que você nunca pode subestimar um boxeador. e o árbitro parou a luta. Mesmo com o boxeador mais forte do mundo. Eplm:: É isso aí. ele se levantou logo. quando vocês treinam para o combate ou só no dia do combate? EJ)j)IE: Exatamente quando chega a hora do combate.. Porque não existe luta fácil. mano Tá entendendo? Você tem sempre um certo cagaço .. pre-pa-ra-ção. Eu vi "aventureiros" [journeyman] pôr a bém mandou ele à lona." De todo modo. LOUIF. simulando cansaço]. eles aprenderam a se sair dessas situações na academia. Curtis. sejam quantos forem. eu fico relaxo Eu só quero que as coisas estejam bem. quando Lorenzo ou Keith sobem no ringue? Ej)J)IE: Com todos eles.. que eu insisto com eles o tempo todo: preparação. sei que estão preparados pra isso. no hall de entrada. com relevo granulado. Ao sair do Illinois Center. chamo a atenção de DeeDee para a exposição de arte. é por isso que eu digo a eles. Será que ele ia gostar de ter na sua sala esse tipo de quadro abstrato azulado. Se você puser pressão sobre ele. E Holmes mal conseguia disparar suas combinações de golpes [ele imita as combinações em câmera lenta. Porque eles sabem que se você pratica no Woodlawn. tá entendendo. é por isso que tem tantos camaradas de outras academias que vêm pra nossa e que fazem sparring aqui. você não sabe o que pode acontecer. por exemplo. Curtis lutou com o "vagabundo" de Milwaukee. Não faz a menor diferença quem seja. Curtis dá uma força para seu companheiro de academia: "Não é um cara imbatível. em nenhum momento.: Durante o combate. Porque quando você faz sparringcom Curtis.Jack Cowen e seu assistente escolhem as luvas para o combate da noite. Porque eu vi caras que o pessoal fazia vir como "valorizadores". de modo que não sei dizer pra você se ele consegue se manter a distância. Eddie. bom. "mesmo que o teu adversário pareça fácil pra você. No elevador. Porque ele estava com medo de que Weaver tocasse Holmes de novo e fizesse realmente um arraso. porque é assim que eles trabalham. você fica ainda mais tenso? EDlm:: Não.201 . segundo ordem expressa de DeeDee. em matéria de relações pessoais. a mulher de Curtis. por causa da gravidez avançada. pois o cara adora isso. porque a maioria deles . Levo Eddie em sua casa. que marcou um encontro com eles no restaurante. estabelecem a distância e a reserva. um setor do gueto oeste da cidade está sem eletricidade. eu ouvi falar nisso. Combinamos. A maior parte delas era de comerciantes árabes_(1O) E eles tinham relações tão ruins com as pessoas do bairro que foram tungados. Enquanto rodamos na Cottage Grove Avenue. você acha que a culpa é mais dos negros do bairro do que . "Se você quer a minha opinião. não vai à reunião. para tentar saber o que aconteceu com os ingressos. Os três iremos de jipe. Na rua. usando um chapéu extravagante que ostenta hélices espetadas com dezenas de bandeirinhas dos Estados Unidos. LOUIE: Árabes ou coreanos? ElmlE: A culpa é dos dois.ele sempre fica com um humor massacrante à medida que as lutas aproximam202 Lore Woequont (lO) A vasta maioria das lojas do gueto negro é mantida por microempresários com origem no Oriente Médio (libaneses. visivelmente impressionado de estar na presença de praticantes da Nobre Arte. Agora você já está sabendo. tratam-na com frieza e até com desprezo. então.meSlno te dizer o que é esse treco. Bom. ele observa: "Os jovens. sobre as lutas de ontem na televisão e sobre os respectivos adversários de Keith e de Curtis hoje à noite. [. Loull--:: Por que tem tantos botecos nesses bairros? El)!)H-:: Uma tarde de ansiedade De volta à rua 63. porque eu não o conheço . Sherry. E[)j)]E: É . você já tem botecos em todas as esquinas. ou você cai na droga. ou seja. mas ainda conserve as calorias de sua última refeição. nesse bairro.. na rua 55. dizendo que o reconheceu: "Eu vi o senhor na televisão. de tal modo que o boxeador já tenha feito a digestão. cinco horas antes do combate. É culpa de um bocado de coisas. Louie. o senhor é lutador de boxe. Ele. é uma verdadeira feira humana ambulante! DeeDee e Eddie ficam surpresos.a culpa é igual dos dois lados . é isso também.é um tipo do bairro . aí é por isso que eles não respeitam. estamos num bairro urbano.você sabe. além de "dragar" o dinheiro da comunidade afro-americana sem qualquer retorno. não é?" Ele aperta a mão de Curtis e saúda DeeDee com ênfase.e sugerem que eu vá tirar uma foto dele. se. Lmm:: É. e Curtis também não irá carregar o pessoal da sua família. ou você pára na cadeia. sírios. Loull-:: E por que eles têm essas péssimas relações? E])]l[}-:: Bom. e então eles se comportam como idiotas. Pra começar." Curtis e DeeDee ainda devem esperar mais umas duas horas. sei. polainas brancas. o que é que você ia achar?" Curtis vai ligar de novo para Lorenzo. ele conhece as mulheres. colarinho e dragonas vermelhas. LOUIl-:: Ah. então. em conseqüência de uma pane na estação de distribuição. 4 Corpo e olmo - 203 ... e Curtis também." Em compensação. que vêem os comerciantes como intrusos que. palestinos) e da Ásia (coreanos e chineses) que usam mão-de-obra familiar. Curtis rói uma barra de amendoim com chocolate e esboça alguns passos de boxe no pequeno quartinho de concreto em que aguardamos. antes de ir almoçar no Daley's com Jeb Garney. em que a maioria das pessoas são bebuns. ] Você viu o blecaute no West Side?" Há três dias. eu te digo que não se pode contar com Lorenzo. a maioria das lojas foi pilhada. Pergunto ao velho treinador se o camarada é louco: "Se eu usasse um chapéu desses e ficasse andando pela rua. A hora do almoço é calculada emJunção da hora da luta.. Enquanto o empregado da garagem desce o carro do estacionamento. Disso decorrem tensões vivazes com os moradores. não têm muita opção: ou seja. Não existe tanto entendimento assim entre as pessoas. como eu já disse pra você. as piadinhas e as olhadelas maliciosas recomeçam com freqüência cada vez maior. suas normas culturais. às cinco e meia. damos de cara com um velho caquético vestido espalhafatosamente com uma fantasia de carnaval inaudita.. que iremos nos encontrar para sairmos do gym juntos. Ele não é confiável.. DeeDee não está com a menor vontade de esperar esse tempo todo . Aproxima-se um cara. os árabes não respeitam os negros. No carro. você sabe. sozinho. discussão sobre boxe. você sabe. As gangues também mudaram. (11) Uma crack homt' é um estabelecimento (freqüentemente uma construção abandonada) em que se pode comprar e consumir. Mas agora não é a mesma coisa: se você quer brigar comigo. nas "galerias" reservadas para isso. [. tento aproveitar o intervalo para fazer minhas anotações. fora isso. você encontra na frente de qualquer boteco _ não De volta à minha casa. Hoje. Há dez anos... Só nas vezes que eu vou ao centro da cidade. Ontem. de tijolos. você deixava eles brigarem. tem grande diferença. e ele está emocionado por lembrar-se desses momentos. cercado de terrenos baldios e à sombra de dois grandes prédios de moradias populares. só que está tudo mais estragado. na Wabash Avenue. A única diferença entre um boteco e uma crack housef. eles não dão o menor valor à vida. cOlTendo.6 Ao chegar a esse bairro ainda mais arruinado que Woodlawn. mas que o deixou um pouco arriado ele está com dificuldades de se recuperar depois da interrupção de três meses. porque é a primeira vez que volta a essa área do South Side desde a adolescência. mas estou de tal modo cansado pela noite de ontem e ansioso com as lutas iminentes que não consigo continuar. Enlm:: Não. a vida não vale nada pra eles. O colégio é uma construção maciça. quando você está andando por aÍ... no Grand Park. à beira do lago Michigan. para levar a carta para a Soft Sheen Foundation (um pedido de financiamento para uma viagem de intercâmbio que estou tentando organizar junto com o clube de boxe de Vitrysur-Seine). Fez um bom treino. behê. Ele é autorizado pelo Estado. boy. mas era um contra um. quando não têm emprego. ASHANTE: Não mudou nada. Saca só.nada de fazer acordos de paz e deixar os dois moleques brigarem e resolverem seus problemas como homens de verdade.. Não sou o tipo de pessoa pra andar no Centro da cidade. eles não têm (elevando a voz bruscamente]. ali mesmo. com o porte de um quartel. por causa das lutas. Ashante grita: "Oh. Ashante chega ao apê perto das cinco horas. Pode ser mulher. pra falar a verdade. não são as mesmas pessoas. A5 pessoas mudaram. não. vendida sob a forma de "pedra". é. a gente acaba se habituando. não tinha tantas chacinas como agora. eu vou procurar meu berro e descarrego ele em você. ll ) é que o boteco é legalizado. Hoje foi treinar mais cedo. é por isso. 1 Loull":: E você já deve ter visto montes e montes dessas coisas? Epj)IE: É.. por causa da fratura feia no maxilar. elas vão dar um rolé e passar o tempo bebendo. Ashante acompanha-me em um giro de carro até o Yancee Boys Club. cujas paredes estão cobertas de pichações e cujas janelas do térreo são gradeadas. menino. a cocaína.. porque os caras. você ia achar o quê?" Ej)])[E: Porque eles sabem muito bem [com um tom sombrio 1 que quando as pessoas são oprimidas... no ginásio.. patrocinado pela cerveja Budweiser. ele é a primeira coisa em que você pensa . porque sabia que o gym vai fechar logo."Se eu usasse um chapéu desses. você não tem a menOr diferença. quando dois moleques da gangue queriam brigar. é a rotina . quer dizer. antes. ele foi ver os jogos de basquete do torneio "3 contra 3". na frente da crack house. LOUIE: E você não fica chateado. Louie. antes de abandoná-los. a coisa mete medo. é claro .5 204 - Le"lc Wacquant Corpo e alma - 205 . minha antiga escola. Porque o mesmo tipo de nego que você encontra dando bobeira na crack house. morou? E quando você tem um berro. meu bom e velho colégio!" Estamos diante do estabelecimento onde ele seguiu seus estudos. Porque todo mundo está o tempo todo com pressa.. a maior parte se dá bem. TONY: Bom. porque a resposta é mais ou menos a mesma dada por todos os boxistas negros que interroguei a esse respeito (mas não a de seus colegas brancos.11 LourE: E não era assim. Agora. gangue? ASHANTE: Não. pior. [A voz dele baixa. passamos na Coop. E outros se viram bem direitinho. Em seguida. claro que não era assim. LOUJE: Antes não havia drive-by shootings? ASHANTE [pausa para pensar 1: Tinha. só vende drogas. dando bobeira. maS uma boa parte dos meus quanto agora. ANTHONY: Eles só fazem merda .. alguns deles vão morrer. segundo a qual seria o Estado quem. mesmo assim. a droga não era nada. LoulI':: Por que agora tem tantos caraS que estão no tráfico? ANTHONY: Todos eles querem . quer dizer. é uma encrenca [it' 5 a messJ . não é isso.oU1E: Você podia ter sido um daqueles que foi parar em cana? Eu poderia.7 207 206 . [sua voz eleva-se de indignaçãO]. quer saber.t. é tudo o que eles querem: estar dentro desse filme. não tenho cabeça pra isso. por baixo do pano. Saca só. eles passam droga. é o DESTINO MACABRO DOS COMPANHEIROS DE INFÂNCIA LonEN/.bom. outros vão parar na cadeia.. mas não como agora. é pior. antes. Loulf':: E o tráfico de drogas.tem os que se dão bem.o: A maioria está em cana ou então morta e enterrada. claro. outros ainda estão na rua. " Definitivamente. onde compro frutas e filme para tirar fotos das lutas. ou um montão que vende drogas.(12) o que aconteceu com os jovens do bairro com quem ele andava na época? "A maioria está drogada.a mesma coisa comigo. L1RENZO: eles apagam três ou quatro garotos num drive-by shooting . e tem os que casaram e ralam. Porra. eu posso contar nos dedos da mão os que fizeram uma carreira. tinha. comparada com o que é agora. cerca da metade . somente fui por um outro caminho. não se sai desse tríptico macabro. vendem cocaína só pra comprar outro tipo de droga. de falar com eles. ou melhor. você tinha principalmente brigas de soco. Corpo e alma - (12) Alusão à teoria do "complô governamental" que circulou como boato e foi denunciada amplamente pela comunidade afro-americana. é mais grave do que nunca foi. eu acho. os moleques se matam a tiro por nada.porra. isso seria uma certa forçação de barra. com a finalidade de minar a mobilização de seus moradores e de pôr fim à reivindicação de igualdade racial. que têm um emprego. a maioria daqueles que eram realmente meus amigos. outros. na época em que você fazia parte da te momento. para os quais ter um trabalho operário estável é o destino modal). talvez não a metade. minha mãe falou pra mim. com o slogan de "The Plan". eles querem viver no sonho. tem os caras que estão drogados. Posso contar nos dedos de uma mão só. com a polícia nO calcanhar. eu vi isso acontecer. têm um emprego. Não tantos como agora. e tudo isso. Alguns dos meus melhores amigos. nes- um downer [depressivo). ela me disse que ia vir um tempo em que você vai ver uma porrada de amigos seus. a droga . . acho que foi quando eu tinha 14 ou 15 anos.eles chamam essa coisa de Karachi.não. E.. . antes de voltar para casa. I. CURflS: Quando eu cheguei numa idade mais madura. forneceria drogas para os bairros negros. se quiser . você rala e tenta sobreviver. agora tem caras que trabalham..alguns estão foragidos. não é só o dinheiro fácil [the quick morzey] . uma coisa ou outra. en- LouII":: O que impediu que isso acontecesse? LORENZO: Eu não sei. mas. Mas isso não impede que eu veja eles. mas com as drogas. eles querem. ê . porque andava com as gangues [gang banging].L6ic Wacquant . de cinco anos). por causa do governo e da eIA. um monte deles. com um tom morno 1E um bocado de amigos meus está em cana.t. agora t. é verdade que ele está totalmente fora do controle? ASHAN'fE: A droga. bem que poderia. que estão tentando se tornar alguém. ele pode encontrar as drogas que ele quiser. pior. amigos morreu. como o previsto. na minha época. tenho um bocado de amigos que só faz isso. eles passam drogas. quer saber. morta ou na cadeia. sacou? [Com um tom calmo] Eles fazem um filme deles. não. os que vendem drogas. amigos que terminaram o colégio. mas tentam sobreviver . tinha alguns caras que estavam no tráfico. shit! Meu menino [o filho dele. está em cana . ele só terá de pedir que me procurem. Eles vão me deixar sentado. sobre a grama. minha companheira. conversando com Anthony e Maurice. ri Ashante. porque eu achara que ia ter de pagar o meu ingresso. para seus amigos bombeiros. ele tinha uma crise de cólera e berrava feito um louco na bilheteria até que o organizador fizesse o que ele queria. sempre tinha bilhetes gratuitos e dava um jeito para que Ashante não tivesse de pagar para assistir a uma reunião. abrigo fortificado da Universidade de Chicago. sob um sol a pino. é claro. no final da tarde. ele iria me confessar: "Não suporto ficar num quarto com um animal mais fedorento que eu. para eu comprar o ingresso dele daquela quota que sobrou de Curtis. Prefere esperar até as sete horas para ir com Liz. de olhos fechados: ele tenta dormir antes do combate. eles não querem negros no bairro. DeeDee chega da loja ao lado e aguarda pacientemente que Curtis apareça. tranqüilo. Pergunto-lhe se ele quer ir ao Studio 104 conosco. com Curtis e DeeDee: é cedo demais para ele. Louie?". tá escutando? E pra ele não ficou merda nenhuma. em vez de comprá-lo na bilheteria. Louie". sua amiga Fanette e Olivier (chamado de Le Doc)." Proponho a Ashante que ele fique no apê para esperar Liz. esperando a chegada das duas moças. (Um outro dia. Já falei pra você que eu estava acostumado a ir ao Hyde Park e toda vez dava tudo errado. Quando Le Doc chegar ao Studio 104. Keith está deitado na mesa de abdominais. depois de pensar um pouco." "Por quê?" "Por quê [irritado]? Por nada. Mas Ashante não quer ir ao Studio 104. Uma vez Butch vendeu duzentos bilhetes para uma luta dele. 13) Insisto. eu era apanhado pelos canas simplesmente porque tinha atravessado a rua. antes de ser levado prematuramente por uma crise cardíaca. finalmente. você está farto de saber disso. não é verdade?" (a lista das pessoas autorizadas pelo organizador a entrar de graça). como recomendam os boxeadores (para relaxar e preservar as energias). seu tímido primo gordo que faz kick-boxing. Ele sonda-me desajeitadamente: "O que você vai fazer hoje à noite. Assim. com o qual ele está tentando entrar em contato há várias semanas. portanto. a cabeça virada para trás. e não ficar fechado na minha velha Plymouth Valiant. o antigo empresário-treinador de Ashante. logo. Louie? Quem vai à reunião? DeeDee botou você na lista. ele declina do oferecimento: tem muito medo de ficar sozinho. mas estou sem grana no momento. "Ah. a rua em frente ao prédio deve ser patrulhada pennanentemente pela polícia da cidade de Chicago e por uma viatura da segurança privada da universidade (a terceira mais importante do estado. sentado sobre uma outra mesa. sua remuneração. famosas por fazer o controle segundo a aparência física e por maltratar os jovens negros das redondezas. é claro. então. mas nada a fazer: "Eles vão me prender por 'trespassing'. mas vou entrar de graça." Charles. Vou embora. Se fosse preciso. Combinamos. comigo. fechado com Titus. mas. duzentos. caramba." (13) Meu prédio fica na fronteira entre o gueto negro de Woodlawn e o bairro branco e próspero de Hyde Park. meu cachorro esquimó de cinqüenta quilos. Louie. que ele vai pegar o bilhete que era de Olivier. e. você sabe como é que é. não estou preocupado com isso. perto do ringue. Desço a Ingleside Street a pé até o Boys Club para me encontrar com DeeDee e os outros.") Tenho apenas que abrir o carro. sem rádio nem ar-condicionado. e ele vai esperar lá dentro. deixando-o no carro. Man. "Ele não vai ter comissão nenhuma sobre a venda dos ingressos. mas pode-se perceber a ansiedade em seu rosto sonolento. na frente do prédio. Liz tem o dela. "Beleza. A porta de entrada está aberta.". por que não se sentar na sombra.Ashante evidentelnente queria ir à reunião desta noite. Já que ia ficar lá fora. em termos de derivo). assim. para aumentar as vendas de Curtis. estacionado na frente do meu 208 Lo'ic Wacquant prédio.estará lá com toda certeza. Louie." Proponho-me a comprar um lugar. "O quê? Mas isso é uma piada. Eddie está no campo de visão. você sabe que a polícia ia me prender logo. segurada por um calço de madeira. na esperança de que se torne seu empresário . Tanto uma como a outra eram. e Fanette também. ainda mais que Calhoun -um empresário e gângster do South Side. Louie? Não tem o menor problema. e com razão. porra. em frente ao espelho de parede. perguntando se este já estava a caminho? "Por que diabos você fica fazendo perguntas o tempo todo. debaixo do sol? "Fala sério. Louie. Será que ele telefonou para a casa de Curtis. Nem pensar em ficar na frente da porta. mesmo que este fique trancado na cozinha. exaspera-se Ashante. Corpo e alma - 209 . Se eu vou a algum lugar." (Mais tarde. que um representante de uma marca de cigarros ofereceu-lhe para vestir esta noite. Este é o Studio 104 (diz-se "one-o-four'). Elas são azulmarinho com um bordado em letras douradas. man. Era evidentemente melhor do que sua vizinhança de agora. Traz também. Anthony. quando levantamos âncora no jipe de Curtis. no centro de um quarteirão verde e residencial. É um trajeto curto. parecendo enganar-se de direçãO várias vezes. como se estivesse com vontade de alongar o caminho . mais crucial ainda para ele ganhar esse combate. nas costas. isso não. DeeDee sempre dá um jeito para sair muito tempo antes do horário das reuniões. portanto. diante de duas igrejas. por seiscentos dólares por mês. o famoso Lowhouse. à beira da linha de estrada de ferro. você ia ter caras. e de maneira convincente. DeeDee insistira para que eu tomasse o volante. em Aurora (é verdade que a uma hora de Chicago). sentar. uma fábrica de cerveja e um terreno baldio margeado por uma estrada de ferro desativada. e eu dizia pra mim 'Caramba!'" 210.como resultado disso. levava uma porrada e ia a nocaute) vuuU1n! Lá eu vi coisas estranhas e costumes estranhos. Descobri o lugar no mês passado. É. Ao sul de South Shore. diminuindo a velocidade para fazer o sinal-da-cruz em silêncio. as novas túnicas saídas diretamente do alfaiate filipino de seus amigos. passando sua mercadoria. dobradas no braço. em toda parte desse bairro. de quinze minutos. no início dos anos 70]: se um tipo falava muito e não sabia fechar a maldita matraca. durante uma reunião ao ar livre montada pelo proprietário. DeeDee faz uma careta: "Eles deviam ter posto um debrum dourado nas mangas. e depois fazer o que eu tenho pra fazer. ele não conseguira agüentar." Outro sinal de que este é um combatezinho presumivelmente sem dificuldades para Curtis. ele indica com o dedo um grande conjunto." Ele odeia pessoas tagarelas: "Isso é uma coisa que eu gostava nos filipinos [ele morou nas Filipinas durante cinco anos. assim coma uma parte do rico bairro vizinho de Oak Park. levamos mais de meia hora para fazer um trajeto que normalmente leva a metade desse tempo. vendendo televisôes em cores por cinqüenta dólares e tudo o mais. depois dobramos a leste em Torrence Avenue.Volta-se a falar do blecaute que atinge o gueto de West Side. de propósito. dessa vez. Detesto chegar em cima da hora e me apressar. Nada como da outra vez. gosto de chegar cedo. "Curtis Strong".Lo"ic Wocquont Curtis chega finalmente. sou eu que tenho que fazer isso. Ele passa. um restaurante-bar-discoteca situado há trinta anos nesse bairro operário em decadência. dessa vez Curtis pode dirigir. é verdade. por ocasião da defesa de seu título de campeão de Illinois. em frente a uma comprida construção de tijolos vermelhos. tratar das minhas coisas. quando caísse a noite: "Se eu vivesse nas condições em que essas pessoas vivem no West Side. e Eddie não sabe bandar as mãos de Keith. eu ia sair toda noite pra encher minha carroça de mercadorias. "Bill's Used Auto Parts". tranqüilo. relaxar. Não teve muita pilhagem. desde sábado à tarde. em que ele morara antes de se mudar para a Bennett Avenue e para a rua 72. mas. com DeeDee. Então.") Ofereço-me para guiar." Já são mais de seis horas. cheia de dealers. um notório larápio que aparentemente se serve das noitadas para lavar dinheiro proveniente dos diversos tráficos ilícitos que ele comanCorpo e olmo . se eles morassem no West Side. Conversa-se tranqüilamente na penumbra morna da sala dos fundos. espremida entre uma oficina de automóveis. mas nada de espetacular: "Foi merdinha. Se fosse. "Eu adoro chegar antes da hora. iriam fazer a festa no comércio local. Meia dúzia de lojas de produtos alimentícios foi roubada. isolado do resto da cidade. no final da rua.211 . Curtis pega ruazinhas transversais. para nos aproximarmos de dois conjuntos de casas que ficam mais adiante. caso DeeDee queira que Curtis repouse até a última hora: "Tá bom. Eddie e Ashante concordariam que. Bem-vindo ao Studio 104 Rodamos direto pela Dan Ryan Expressway até a rua 104. é isso aí. no canto do South Side. como se fossem animais. exibindo a camiseta "Salem". uma vez que. não tem outro jeito [no-how]. Maurice e eu. Você ia ter caras dentro do gym agora mesmo. Strickland não vai estar lá no começo da noitada. na mais negra miséria. Sei que eu tenho que chegar cedo pra banda r as mãos de Keith. sobre boxe e sobre histórias de crimes e da rua. ele não está nem aí e não sabe nada de nada." "Venham ouvir seu deputado: Gus Savage. duros como estacas. que passeia na platéia exibindo seu cinturão de campeão meio-pesado de Illinois (e os pontos de sutura que ganhou junto). onde vão beber com generosidade. por ocasião de minha primeira visita: O Studio 104 é um lugar de comércio. de distração e de sociabilidade particulares à classe popular afro-americana. vale uma visita. Aí o ambiente é bem distintivo: jovial." Eis a descrição do Studio feita em minha caderneta de campo. sem participar. O estabelecimento vive em osmose com o bairro e seus habitantes. desconfiado . mas também e sobretudo para encontrar os amigos. concursos de garota com "a camiseta molhada". A cerveja corre solta. Percebi que o técnico de Woodlawn não estava brincando alguns dias depois dessa reunião.(15) Um informante bem posicionado a quem perguntei se seria interessante encontrar-me com LowhollSC. ele não ia aceitar ser entrevistado. KICKAPOO Woous. velhos e apaixonados da Nobre Arte e inúmeros boxeadores profissionais da cidade. 146 TH ANU HALSTEU.' Aí é possível acompanhar os campeonatos esportivos. Se ele continuar passeando assim com esse gravador.são hipersexuadas. 212 - Lok Wacquant Corpo e alma - 213 . um dólar a lata de refrigerante. As mulheres que os acompanham . de se ver e de se mostrar. arrogantes a ponto de exibir um toque ameaçador. uma manhã dessas pode ser que a gente encontre um cadáver do outro lado da estrada de ferro. apesar do preço da consumação: 1. como é comprovado pelas filas de picapes abertas que circulam em volta dele. E os tipos que andam no bar dele são perigosos. garotos tímidos distribuem folhetos coloridos.. e isso é Pencas de moços perambulam. no fim do dia.50 dólar por um copinho de Old Style ou um cachorro-quente. com sua bancada de quinze metros de comprimento. nos fundos do estacionamento. anunciando piqueniques. O bar. um ignorante. e jovens musculosos ficam espiando. maquiladas e vestidas de maneira provocante. 50 cents o pacote de batata frita e 25 cents por um copo de água. comer e dançar. como "Jazzy" James Flowers. Ele é grosso. Na saída. Décimo Relatório Anual sobre o estatuto da nossa democracia no Dia da Independência (legislação em discussão). com suas jaquetas estampadas. aliás. Eu aconselho você a não entrevistá-lo. dos números de dança e dos espetáculos de pretensões eróticas. por si mesmo. Todos andam para lá e para cá entre o estacionamento e o bar. conversar durante horas com os freqüentadores habituais. aí afogam-se as mágoas e exteriorizamse as alegrias. onde está montado O ringue. Aliás. quase sempre sedutoras e obrigatoriamente boazudas. que vêm avaliar os possíveis rivais ou simplesmente para se fazer admirar. com decotes profundos. Na platéia. 4 TH 1 P. Jeb Gardney está todo animado e põe-se a lamentar em voz alta por não ter vinte anos a menos. os vestidos curtos. As pessoas vêm a esse bar não somente para beber. (14) HEAR YOUR CONGRESSMAN: Gus Savage 10 TH ANNuAL REPORT. STATUS OF UEMOCRACY ON INUEPENUENCE DAY! (PENUING LEGISLATION) JULY. dissera-me que eu fosse discreto com o meu gravador. é perda de tempo. de abordar e rir às gargalhadas. você não vai tirar nada dele.M. ou das "pernas mais sexy" e outras competições de strip-tease.da. numa conversa no gym: "Louie deve estar correndo altos riscos com esse gravador.. quando Jack Cowen voltou ao assunto. porque os marginais que agem na área poderiam achar que eu sou um policial undercover ou um agente do FBI.. organizados durante a festa nacional pelos políticos locais. quase familiar e furiosamente "black".. Pra ele. e cartazes impressos pelo deputado negro da circunscrição (recentemente envolvido em um obscuro caso de assédio sexual por uma de suas auxiliares). uma (15) tudo. essas lutas são apenas um busincss: de dá grana a alguém para organizá-las. todos os freqüentadores habituais das reuniões. 4 de julho .são raras as espectadoras desacompanhadas . Fica-se contente de estar aqui. seus bonés com aba de pele de cobra e os pescoços carregados de pesados colares e medalhões dourados. e os penteados glamourosos são de praxe. treinadores..(14) DeeDee. com todos esses gatunos que andam por aí. um magnífico espelho com moldura dourada. respondeu-me bruscamente: "Esse cara é um criminoso. ao ritmo da música. festejar aniversários e despedidas de solteiro. Eles não sabem fazer a diferença. por isso. porque eles nunca sacaram nada [de um combate]. flanqueada. você está entendendo o que eu estou dizendo? Elas não vêm para . apóiam-se ruidosamente os pugilistas do pedaço. uiuis. falar. eles falam de boxe. eles pagam a entrada [a voz se transforma em um assobio agudo. no intervalo dos rounds.. LOUIE: Não é um tanto desolador passar tanto tempo na acade- mia aperfeiçoando sua arte para pessoas que não têm capacidade de apreciar isso? A partir do momento em que eles pagam pela violência . A vasta maioria dos espectadores das reuniões não tem o menor conhecimento em matéria de boxe e. e particularmente os treinadores. tem pessoas que adoram isso. e não passa de blá-blá-blá. são excitantes. Os praticantes da Nobre Arte. assim como a coragem na adversidade . é incapaz de apreciar os combates nos planos técnico e tático. a não ser que se conheça pessoalmente o boxeador em ação. risos desenfreados. vociferações intempestivas. é uma explosão fanática: aplausos frenéticos. Um serviço Corpo e almo . Sejam eles iniciantes ou profissionais 214 LoTe Wacquanf sabem fazer. assobios estridentes. para enorme delícia da platéia. por uma tabela de basquete na qual se joga atirando a bola na cesta. consideramnos habitualmente como "otários" [squares] a quem se pode empurrar qualquer coisa . no meio da sala.como os músicos de jazz fazem com o público das boates em que eles tocam. ] A maioria não saca nada. Do lado de fora.elas não sabem de nada. [. televisão colorida gigantesca no final. o patriotismo local (e racial) obriga a isso. só que um camarada quebre a cara de um outro camarada.aguerridos. um banheiro de cada lado e oito mesas redondas rodeadas por cadeiras forradas de plástico imitando couro vermelho. mas é tudo o que eles GEt\'E: Um figurão e sua bela. longe disso. duas grandes negras provocantes em micromaiós que quase não deixam margem à imaginação. podes crer..qualidade que os praticantes da Nobre Arte chamam de "coração". sob o efeito da incredulidade]. seguem-se os combates com um olhar distraído. por 25 cents. em um lado. elas vêm aqui [com um tom impregnado de ironia] e não querem outra coisa. tem gente que é assim. treinador da academia de Fuller Park]: As pes- soas que vêm às reuniões são otárias [squares].9 IISÃO OTÁRIOS" GENE [69 anos. Nada além disso: não se trata de um monte de conhecedores. se é esse o caso. Os nocautes são sempre muito apreciados.215 . no limite da prostituição.. As card girls que se pavoneiam no ringue. O fato de que os combates sejam ao ar livre aumenta o atrativo do cenário. elas nem sabem direito o que estão vendo.. tudo o que eles vêem é um camarada levando uma surra. por causa do vento forte que infla a lona como uma vela logo que eles suspendem-na. DeeDee senta-se em um alto banquinho de bar (é o ideal para seus joelhos. está estacionada uma enorme limusine preta. desta vez. ele está vestido como um mendigo.uma surpresa entre as cordas nunca está excluída. e serve agora como "trampolim" para os boxeadores em ascensão. Garney também acha que está faltando alguma coisa: "Deviam ter posto um galão dourado para cada vitória. não é lá essas coisas. até que ele disponha de um cartel que o permita postular combates mediatizados nos quais os cachês tornem-se vantajosos. 10 Corpo e alma 217 . com suas três fileiras de assentos instaladas nos dez metros de comprimento. os pugilistas de Woodlawn tiveram de usar um quartinho de guardados atrás da bilheteria. os outros boxeadores (16) b assim que um empresário ou promotor "empurra" [to build] um boxeador. separada da bilheteria por uma cortina azul e apinhada de mesas e cadeiras de metal dobradas. Curtis e Jeb Garney. por obséquio. para Keith. brilhando de luxo. por causa da criação de cães de corrida e de suas fazendas. queira fechar a porta. duas máquinas de pipoca fora de uso e quatro grandes pilhas de cartazes anunciando as festas semanais organizadas pelo Studio 104: "Sexy Legs Contests". onde está o ringue.)(16) Em vez de trocarem de roupa em um microônibus. Eles têm a maior dificuldade de içá-la ao poste. JeffHannah alinha 18 vitórias por 21 derrotas e um empate. dispõem de um vestiário dentro do clube. que reclamam quando se dobram) e começa logo a bandar as mãos de Keith. Uma peça de três por quatro. filtros de café. Se é que se pode chamar isso de vestiário: como Curtis encabeça o programa. "Happy Hours" e outros "Ladies Night". Em outras palavras. Mas não tem nada a fazer com cerca de vinte mexicanos que espiam os combates aboletados sobre o muro de casa de madeira amarela. mas o boxeador de Woodlawn livra-se desta.e sobretudo àqueles aos quais ele esteja eventualmente ligado por um contrato exclusivo de patrocínio. Desembarcamos DeeDee na entrada do clube. utensílios de cozinha). depois de passar por um bom momento. como por ocasião da reunião do mês passado.) Curtis. por não poder assegurar-lhes a vitória .. de forma a impedir que os transeuntes possam ver o ringue. Kitchen teria preferido obter o aval de Curtis.uma vantagem decisiva. com um largo sorriso no rosto: "Logo vai ser a minha vez de passear num troço desses. vários toldos. senhor" -. porque já começava a se perguntar se não tínhamos nos perdido no caminho. como se verá adiante. Mal e mal montamos três cadeiras de ferro. esparadrapo. caixas cheias dos mais diversos objetos (cinzeiros. Ele pressiona Curtis para que o deixe tirar fotos do combate.de segurança privada. você vai ver. porque é o empresário quem controla a caixa. guardanapos.. na entrada da boate. é um sólido "guerreiro" deste216 Lo'ic Wacquant mido. dois minibares de madeira vermelha desmontados. mas em curva descendente. Curtis diz para ele ver isso com Garney. não tem nada de anormal: é chamando para parceiros adversários sensivelmente mais fracos que um organizador oferece aOS pugilistas locais . Rolo de gaze. cartazes de Baccardi. um rolo de mangueira de jardim. como Curtis. DeeDee pede aos meninos que não irão lutar esta noite que não permaneçam ali nos atrapalhando. Como mal conseguimos caber todos nesse espaço. entrega-lhe as três túnicas azuis "Curtis Strong". Enquanto isso. como é o caso de Jack Cowen com Curtis . os lutadores. à primeira vista chocante. embora seja milionário. composto de três espadaúdos negros bonachões. tesoura. que se dirige a seu empresário com uma deferência de dar dó . atrás de vidros fumês. "nutrindo-o" [to [eed] de oponentes inferiores. que teve quatro vitórias em cinco lutas. para em seguida fazer pressão moral sobre Garney no sentido de comprar o máximo de fotos." Espero que ele não me esqueça no ponto quando chegar essa hora . porque exibe um cartel de zero vitórias em treze combates. no estacionamento. Dou uma olhada no programa oficial da noitada e descubro que o adversário de Little Keith. diante do qual Jeb Garney está saltando de impaciência. (Como de hábito. Louie. que vai lutar primeiro. vizinha ao estacionamento. Curtis cochicha para mim. controla para prevenir os incidentes e evitar os trambiques. O olhar de Keith está velado de apreensão. Cruzamos com Kitchen e sua eterna máquina fotográfica a tiracolo. Na frente da porta do clube. (Esse tipo de disparidade."Mister Garney. enfeites." Os empregados do restaurante estão estendendo uma lona azul para separar o estacionamento da rua. muito obrigado. enquanto DeeDee e Eddie ausentam-se temporariamente. astutos e duros no combate. o Michael Jackson: vê só [murmurando de admiração]. pensa só. Louie. como os pugilistas adoram dizer. 218 - Corpo e olmo . que eu tivesse as habilidades exigidas. com suas pretensas contusões no braço. com Curtis no programa. Louie.. Essa atração pelo palco não é particular aos boxeadores: os ofícios do corpo e o sentido de performallCe ocupam um lugar de epicentro na sociedade urbana dos negros norte-americanos. E passa a explicar que os adversários que mais o preocupam são os "aventureiros" [journeyman] valentes. que subitamente paralisava-lhe o braço. com seus vasos malcheirosos rodeados de pingos de urina. Curtis queixara-se várias vezes de um misterioso mau funcionamento do ombro. Eddie dá a orientação tática a Little Keith: "Vamos ver o que ele tem nas tripas no primeiro round. "no escritório" ou "at home". depois. do empresário) para sua situação financeira desastrosa." Os boxeadores de Woodlawn trocam conselhos. e isso teve um papel muito importante na minha vida. que a reunião no Studio 104 não seria suficiente para resolver. Sei que estou dando o máximo e que ele [meu adversário] está dando o máximo dele também. isso tudo não te deixa excitado? Não te dá vontade de lutar entre os profissionais?" Sim. CU!fns: Isso. porque hoje de manhã. enquanto defeca ruidosamente: «Ah.. Ele desaparece em um dos cOlnpartimentos. e todo mundo vai virar um fã . (I?) Nas duas semanas anteriores ao combate. no gym. é preciso que alguém ganhe. que conversam e bebem. encostados em um dos três balcões. ele tinha um jeitão bem pesado. mas eles estavam sempre cansados. vamos descerfundo [downstairsJ. Curtis cochicha para mim.. você pressiona e trabalha no corpo. passando pelo esporte. eu sinto que preciso estar no meu máximo. não é verdade? E a platéia vai ver o camarada que ganha. no público. ver o que ele tem. Curtis retoma a confiança em si mesmo. ele está em seu elemento. no meio das pessoas. é excitante. como eu queria: sempre quis ser um artista de palco [entertainer]. eles não queriam cantar. na frente dos clientes. e eu posso falar. nada de ansiedade e de fuga. de onde continua a conversar comigo." É simplesmente para acompanhá-lo ao final do corredor. até o banheiro. e eu De volta ao quartinho que se faz de vestiário por uma noite. há eletricidade no ar. exatamente por suas trajetórias de perdedores. eles estavam na geladeira. I I Lo"ic Wacquanf Kr:rrH: A única coisa que me preocupa é que esse cara bate forte. onde pode exercer seu talento de "artista de palco": uma vez entre as cordas.como ele desabrocha feito uma flor. Meus irmãos e meus amigos.(17) Os dias mais penosos são os que precedem a luta. eu pegava eles. eu posso ter a atenção da platéia para mim. vê corno ele é bem preciso . primeiro. É verdade que. pela comédia e a política. com uma cara misteriosa: "Vem. a gente imitava os Jackson Five. para que eu dê o meu melhor espetáculo. como eu estava precisando descarregar. Eu quero ser exatamente um entertainer quando estou no ringue. como acontecera nos últimos dias." A gente ia pro quarto e repetíamos o passo juntos. acho que quando eu tinha uns 13 anos. mas para lutar entre os profissionais seria necessário. porque ele não conseguiu me tocar (I!\) de verdade quando lutei com ele. que não é nada reluzente. quando se aproxima o momento do combate. mais ou menos. eles ficavam logo cansados. eles não eram .219 . de cara. na pesagem. hein? Então. se estou dando o máximo. e tudo o mais.trocam de roupa na sala de dança vizinha ao bar principal. eu só tenho que subir no ringue e fazer o meu serviço. na televisão. quer dizer.. Você vê. mais do que se eu dissesse [com urna voz abafada]: "Sentem-se e escutem! Olhem pra mim!" Então. sacou.eu acho que eles não queriam dar um show. uma forma de chamar a atenção do treinador (e. vem comigo. CUR'rrs: É importante à beça ser um performer. Conversa de cozinha. 00000 [são peidos em cascata I todos esses gases! . Sabe que vai subir ao ringue. Aí. da música à religião. Ele está com um jeito sereno.(18) "SEMPRE QUIS SER UM ARTISTA DE PALCO" pegava eles Icom um tom superexcitado J: "Venham! Venham ver esses passos que eu quero mostrar pra vocês. Então. indiretamente. Antes. [abaixando a voz para dramatizar melhor] de Curtis Strong. Então. queria ser cantor. na cozinha. na porta. ele nunca lutou com um sujeito de classe mundial. isso queria dizer que ele nunca lutou com alguém além de uns malucos. e nunca manifestara o menor interesse por ele.CUlfns: Você se lembra daquele combate que você perdeu . esta noite.imagine que o cara seja o B: Não estou nem aí. agora . É por isso que eu levo Hannah a sério. Ao que OB (apelido de O'Bannon. Arrumei um emprego pra ele e um emprego pra mulher dele . que se fala "ô-bi") objeta que. hein. "E por que não? Você pode ir ver ele.o pai de Curtis abandonou-o e aos sete irmãos quando ele era pequeno. você quer ver ele?" Silêncio glacial.] Eu ia buscar ele para ir à academia e levava ele de volta pIa casa todas as noites. O carteiro dá a partida. se Curtis se dá bem no ringue. Eddie. Bernard. os três lançam-se em uma disputa verbal sobre o que diferencia negros e brancos.." DeeDee intercede em favor de seu pupilo: "E por que ele iria ver o pai? O que eles vão fazer." Todos os estereótipos do negro entram aí. seu boxeador de estimação. esses carinhas têm essa experiência. o pedaço de Craig "Gator" Bodznianowski (um boxeador local muito popular. que luta a despeito de um pé amputado em conseqüência de um acidente de moto e que comprou uma sala de musculação nessa povoação branca operária com o dinheiro ganho no boxe). a ponto de perguntar sempre se ele estava precisando de dinheiro e tudo o mais. Cliff. Curtis. é isso que faz a diferença. Ago- pada e um ar aluado. Curtis.. figura um profissional iniciante de Tinley Park. que o carteiro patrocina) como já perdera. "é porque você tem uma mulher forte atrás de você. Lamont. você tá sacando o que eu quero dizer. No programa desta noite. assim. e é assim que ele se tornou invencível: o empresário dele "empurra ele pra cima" [builds him upJ. e os outros também soltam a sua quota-parte. você está vendo onde eu quero chegar? Tudo isso é experiência. DeeDee?" Este último argumenta que a comunidade negra mal sustenta seus próprios boxeadores. Isso deixa Curtis perplexo: "Mas como eles fazem pra trazer todos esses brancos de tão longe pro South Side assim. Você tirou algumas lições desse combate. porque Steve não fica muito na academia. DeeDee pede que todos os recém-chegados evacuem o local. Um ônibus inteiro de meninos de sua sala está ali para apoiar o lutador. não é isso? [Keith faz sinal que sim]. até que sua carreira no ringue começara a deslanchar. não apanhei esse entrecho de bravura retórica em meu gravador. Strickland (que vestiu a túnica "Curtis Strong" e será o terceiro assistente de córner. porque não se dispensa um pai assim. Para minha maldição. meu Deus! [Ele gira os olhos. o machão. nunca fui à colheita de algodão. um a um: Derrick. sem dúvida por falta de renda. se quiser. nunca fui uma besta de carga". Esses caras que perdem todos os combates é que me preocupam . Agora. direção a DeeDee]. eu tenho pessoas que ficam de olho nele [com um olhar carregado em invencível. e não iria arriscar-lne a transcrevê-lo de lnemória! Os irmãos de Curtis vêm cumprimentá-lo. de repente. olhar um pra cada lado? Não estamos precisando disso agora." Curtis prontamente oculta-se por trás da autoridade de seu técnico: "Diz a ele que DeeDee não quer ninguém aqui. Se ele tivesse um cartel . diz pra ele que não. antes. fica assombrado: "Não. agora. saindo-se com essa: "Mas eu não sou de cor [I ain't colored].. esta noite). não quero ver ninguém até o fim do combate. com sua cabeça ras220 Lo"ic Wacquant OB: Oh! Mas Cliff era como um filho meu. eu não me preocupo mais com esse tipo de cara. E você cuida- va muito bem do eliff. pra falar a verdade. "Era isso que você devia gravar. cacareja OB." E. O carteiro bigodudo insiste enfaticamente no fato de que.. é Curtis quem reúne a maior parte da platéia: "A atração é você. ra." Aliás. seguidos por meia dúzia de amigos que lhe desejam boa sorte na luta. Garney. pensa em todos os combates que esse cara perdeu e em todas as lições que ele tirou dessas derrotas. da escravidão ao gueto." OB acha que Curtis deveria falar com ele..você só perdeu um combate. porque estamos literalmente uns em cima dos outros. As coisas que fiz por ele. Quando ele está na academia. você tem um nome em Chicago. Anthony e Maurice. Louie". Curtis pergunta a OB se ele não tem medo de perder Steve Cokeley (uma jovem esperança do clube." Eddie interrompe-os para dizer a Curtis: "Teu pai está aí.. o falso tímido. de verdade. Este último enfia-se no vestiário de modo que o serviço de segurança do clube não o encontre: ele entrou de penetra e Corpo e alma 221 . de repente. Keith. CUR'l'ls: Mas é exatamente por isso que eu estou perguntando. . E eu respondo: "Mas antes vou fazer eles experimentarem meu devastador gancho de esquerda". na esquina da 63 com Wabash Avenue. Louie. um par que sirva em Curtis. aí?" Ele me olha intensamente e eu fico quieto. eu direi a eles: 'Cuidado. que foi noticiada no Chicago Sun Times. ele cochicha. Curtis engana sua ansiedade crescente me enchendo o saco. Corpo e olmo . Peço a DeeDee uma entrada da quota de Curtis." Que estranha profecia! Depois de dois anos entre eles. Eddie inclina-se para me cochichar discretamente: "Quando é que você vai escrever teu livro. nos vestiários do Boys Club de Yancee.. e não registros orais (para não correr o risco de levantar suspeitas do pessoal do bar. daqui a dez anos. Ashante e Liz acabam de chegar. Fala-se menos e mais baixo. porque você escreve demais. Alguns segundos de espanto silencioso e.desta vez. com Fanette. é exatamente pegado ao centro."Você está escrevendo o que. Explico o plano. Quando me vê puxar o gravador. que passeia na porta. Vou entregá -Ia ao Doc. com a porta do clube fechada à grade com cadeado pelo lado de fora. vai ser uma tremenda roubada. você vai se suicidar. vem nos distribuir as luvas . a organização do intercâmbio com a municipalidade de Vitry. A tensão aumenta imperceptivelmente." Curtis acrescenta: "Ééé. porque você nunca vê um branco na rua nesse bairro. às apalpadelas.223 . Procura-se. é a última. para evitar que um deles se arrisque a sair durante a noite pelo bairro. caso contrário. aquele é um lugar barra-pesada. decidi fazer notas manuscritas detalhadas. Curtis surpreende-me quando estou tomando notas em meu diário de campo . todo mundo dizendo palavrão. a viagem. Curtis descarrega: "Sabe de uma coisa? Um dia. não poderá assistir aos combates. Louie está com o gravador ligado.pares usados. Não é verdade. meus amigos do gym ainda ficam espantados de me ver agindo como um sociólogo. 222 Lok Wacquant Durante essa hora de espera." Os pugilistas franceses não têm a menor idéia do universo em que vão se meter. eu vou ser seu conselheiro técnico. dá medo. os seis jovens franceses e seus três acompanhantes dormirão em camas de lona. o que contraria os regulamentos do Estado. isso vai depender sobretudo da quantia que vamos conseguir reunir para cobrir os custos das passagens de avião. não há a menor chance de eles saírem seja para onde for no South Side sem uma escolta. bem perto do centro da cidade? Man. Essa é uma coisa que jamais cai com naturalidade. ééé. nós vamos saber por quê. Louie.não tem dinheiro para pagar o ingresso. podemos estar certos de que vamos enterrar uns dois cadáveres na mesma hora . "E quem vai pra lá?" Curtis corta-o: "É DeeDee quem decide. DeeDee. uma grande gargalhada. dentro da enorme mochila militar. esta manhã. E depois. DeeDee? As pessoas vão perguntar [com uma vozinha inquietai: 'O que aconteceu com o Louie?' Mas nós vamos saber por que. Volto ao vestiário. De todo modo." Eu contraponho-lhe uma de suas tiradas favoritas: "Então. e vai ter de ficar perambulando lá fora até o fim da noitada. Anthony mostra-se incrédulo: "O quêêê? Em Yancee. a não ser pela maneira com que as faço. no último domingo. em seguida." De fato. se barram ele na porta. os encontros esportivos e os debates públicos previstos. com um tom bem sério: "E eles vão te espancar até a morte. eu sou o main mande DeeDee Armour. lnas mesmo assim aumenta. ha-haha!" DeeDee aproveita para ironizar de novo o fato de que os bandidos [hoodlums] da esquina vão arrancar meu couro se algum dia me surpreenderem gravando no bar. com meu gravador) . (I':!) O jovem de cor amarelada que Jack não quis engajar em uma luta. onde Ashante está exortando Curtis e Keith à batalha. no quartinho transformado em vestiário. vocês estão interessados em me machucar? Ele comanda (19) De fato. Toma-se cuidado para não exigir nada dos dois boxeadores que se preparam. fingindo fazer uma confissão: "Xiii! Vamos. E onde vão ficar os seis pugilistas de Vitry que devem chegar no mês que vem? Está previsto que eles vão dormir no Boys Club de Yancee. porque as lutas previstas para as sete horas só vão começar às oito. eles não são brothers [quer dizer. valeu?" O'Bannon está curioso para saber mais sobre a vinda de boxeadores franceses a Woodlawn. embora agora eles já estejam habituados a me ver passeando com o gravador na mão e já não se aborreçam mais com minhas perguntas. Eles não perderam nada. negros I: eles não vão poder sair na rua como eu e você. que estipulam que se devam usar obrigatoriamente luvas virgens em todas as lutas oficiais. Medem-se os gestos. rindo. Devem-se passar coisas na cabeça e no corpo dele (eu não gostaria de estar na sua pele. que me beija avidamente. eu já te avisei. coquilhas. o mandamento do catecismo profissional do "sacrifício". Geralmente.. (21) Corpo e alma . eu volto pra casa. tenho medo. here. Tantas brincadeiras e conversas fiadas servem para despistar o medo e cortar a tensão. Top Rank Inc. Joe Mauricello. subir no ringue. nem amanhã). do Department of Professional Regulation.. tenho medo". amarra as sapatilhas. Eles trocam de roupa em silêncio.matadores'. são do Professional Boxing and Wrestling Board of Illinois. de cabeça inclinada. para passar direto à costumeira apresentação dos oficiantes. ela vai te amolecer de tanto te beijar assim. que insensivelmente sobe. Eddie pega-me pelo ombro. Todos sentamse onde dá . "no pedaço" 224 LoTe Wacquant são: os juízes Bill Lerch. assisto a um canal a cabo. feita por um locutor gordo e barbudo. um dos quatro principais organizadores que dividem entre si o mercado nacional. Gino Rodriguez e Stanley Berg. cujo presidente é o senhor Gordon Bookman. nos quatro cantos do ringue. boxeador do FuIler Park. árbitros e cronometrista." O velho técnico balança a cabeça e não diz palavra. junto com o Don King Promotions."(20) Os projetores improvisados. e os árbitros. o Rising Star Promotions não passa de um nome-fantasia local para Cédric Kushner (através de Jack Cowen). O espetáculo vai começar. Você nunca vai estar preparado para a próxima luta. Só eu sabia disso. cada vez que passo entre as cordas. jeffHannah está sentado sobre uma mesa. e era assim que eu ficava. eu me sinto melhor. mesmo que sob o disfarce de uma brincadeira. Começo a comer aos poucos. jogando as roupas e os equipamentos (bandagens. não saio do quarto. (20) Os treinadores nunca deixam escapar uma oportunidade de lembrar a seus pupilos. de manhã. e o responsável de esporte. cronometrista. [. portanto. juízes.225 .nada de cadeiras numeradas nem de "ala VIP" em torno do ringue para uma reunião desse naipe. ] Eu nunca consegui dormir na tarde do combate. luvas. antigo portador do título mundial de meio-pesado: Sei o que isso exige. até [Mohammad] Ali reconheceu isso. de paletó negro: Ladies and Gentlemen. Toda vez que subo no ringue. pula-se o hino nacional. o secretário-executivo. o senhor Nick Kerasiotis. mas eles estão do rival. eles deitam. como um policial que prende um malfeitor: "Vamos. o senhor Frank Lira. eu tento . Os carinhas não dormem antes das lutas.. Louie. Tim Adams e Pete Podgorski.. tenho medo. de modo a não enfraquecer esse instrumento de luta viril que é seu corpo. ] Depois do meu footing.(21) Os oficiantes Preliminares lastimáveis Os adversários dos boxeadores de Chicago acabam de se preparar na sala-bar em que está a pista de dança. diante de um público fiel a seu adversário e de juízes que não irão lhe dar nada de presente.. A noite é produzida por Rising Star Promotions. Esse é o destino comum dos opponents que "atuam" no circuito: a única oportunidade que eles têm de ganhar. toda vez que subo no ringue. calções. ah. é pondo-o a nocaute. on Chicago's beautiful Southeast Side! Os combates que figuram no programa de vocês foram organizados e ficaram sob a supervi- tremendo de medo Ifull ofbutterfliesJ. com gestos lentos e cuidadosos. "ELES ESTÃO TREMENDO DE MEDO" Comentário de LeRoy Murphy. túnicas) sobre as costas de uma cadeira. é uma coisa que você guarda em segredo. porque estou nervoso e o meu estômago fica enjoado. enquanto conversa em voz baixa com o pai. e. ele tinha medo quando lutava. descansam. lá no fundo de você mesmo. como se estivesse querendo se destacar melhor de um ambiente que ele adivinha ser hostil. todos os boxeadores. depois da pesagem. nem hoje à noite. não. e eu gosto disso: se você não tem medo. (a firma de Bob Arun) e Main Events (dirigidos pelo promotor de concertos de rock Shel1y Finkel e pelo treinadorempresário Lou Duval). agora já chega.. Ao sair do bar. são ligados. e. que reza que o boxeador limite estritamente qualquer contato erótico. já que não é de hábito. pára com isso. pendurados em postes metálicos. sabe que tem todas as chances de perder a luta. welcome to Studio one-o-four. I. Sabe que é a vítima sacrificial oferecida à grande esperança local. é porque tem alguma coisa que não está rolando legal. dou de cara com Liz. o ar ausente. com as pernas balançando. Elijah e Eddie aproximam-se de Keith e erguem-lhe os braços. vendo que suas admoestações não têm efeito. quando a luz rasante do sol anuncia o fim do dia. e a confraria dos pugilistas reprova seriamente aqueles que faltam assim publicamente com a moral dos combatentes. mesmo assim. sob os olhares frustrados de Keith e do árbitro. retira o protetor bucal do lutador e manda-o para seu córner. vai perder. e vela pelo seu gado. e depois. e logo atira-se ao chão. ralha. mas que é capaz de combater mais ou menos com qualquer um. no corredor.O'Bannon está na primeira fila. o elegante Elijah (proprietário de uma cadeia de tinturarias no gueto) forma um grupo com DeeDee e Eddie. Nem bem Keith toca nele com algumas direitas no corpo. em algumas noites. com Michonne. 'J\VENTUREIROS. e que. Seu empresário. de técnica rudimentar. É Little Keith quem vai boxear na luta de abertura. Laury não está por ali. atrás do córnervermelho. na maior parte das vezes. 226 LoTe Wacquant Corpo e alma . Liz. epergunto-me se ele vai receber seu pagamento . Não é nada convincente. que tem visivelmente uma única pressa: "deitar" logo e voltar para casa com seu "paycheck". MALANDROS E MERGULHADORES II Um "aventureiro" [journeyman] é um carinha que. Anthony e Ashante. Porque eles levam uma luta de vez em quando e porque eles ganham dinheiro. depois uma segunda vez. com toda probabilidade. uma primeira. nunca será um campeão. sinal de que não conseguiu ser contratado para hoje. mas um autêntico "mergulhador" [diver]. mas que pode ganhar. E defendem-se bem. sob os assobios e os aplausos da multidão. O árbitro ajoelha-se perto dele. O adversário é um pequeno negro troncudo de Milwaukee. Mas nada feito: quando o boxeador de Woodlawn coloca uma série bem fraquinha.os juízes têm autoridade para suspender a remuneração de um boxeador que se recusa a lutar. Fanette e Le Doc sentaram-se nos lugares vizinhos. com a família de Curtis. que o instiga a lutar. ficamos felizes por ele. em sinal de vitória. jack está de pé.227 . o saco de batatas de Milwaukee cai como uma jaca e simula um nocaute. mas. Esse cara não é um simples "vagabundo" [bum]. quando conseguem. no córner. Isso é a metade do número exigido para que os organizadores cubram suas despesas. com a finalidade de manter seus boxeadores em atividade e fazer com que eles ampliem seus cartéis. dia de semana. eles levantam os punhos ao mesmo tempo. por brincadeira. "Vai nessa. é uma coisa que não tem lugar no boxe. incita os dois combatentes com gritos de ânimo exagerados: "Dispara aquela bomba!".esses são os "vagabundos" [bums]. usando um pompom vermelho que lhe dá um ar tremendamente efeminado.. porque é evidente que sempre têm lugar. A simpatia do público não é apenas racial: o carinha de Milwaukee simplesmente não está à vontade no ringue. uma vez entre as cordas. Você tem camaradas. eles percebem que não são melhores que os próprios bums . consegue lançar alguns golpes mais ou menos carretos. o único que consegue retirar algum ganho financeiro nesse jogo é o matchmaker. de tanto que sua barriga estica o calção). Só que os dois estão aterrorizados por estarem no ringue. segundo uma expressão consagrada. O segundo combate é lamentável a ponto de se tornar cômico. É o nocaute surpresa! Consternação no córCorpo e alma 229 . que estão começando. no início da reunião. o gerente do Studio 104 desistiu de estender uma lona na frente da casa para bloquear a visão deles. a platéia toma francamente o partido do bum negro. 80% masculina e etnicamente mista. A cada break gritado pelo árbitro. e eles precisam de adversários medíocres para ir adiante e para ver que eles são capazes. e acontece o impre- coordenação. porque é claro que ele foi servido "como repasto" a seu adversário.. ameaçando tempestade. sem contar os cerca de quarenta mexicanos que estão apertados contra o muro da casa vizinha ao estacionamento (depois de uma tentativa infrutífera. antes de cair de joelhos.. JACK: Bom. mesmo quando parece que eles se dão bem. Estima-se que o branco de Tinley Park. Parecem dois retardados que brincam de boxe. e ele vai de novo se fazer nocautear no primeiro assalto. um percentual sobre os ganhos dos boxeadores (10%) e um fixo para se encarregar da cansa. e cer- A luta de abertura não foi legal. Ele põe em confronto dois "vagabundos" de primeira categoria: um branco gordo e flácido de Tinley Park. Não falo desses . que é mais truculento e que. tudo o que ele faz é aparar os golpes de seu oponente estendendo os longos braços para adiante e deslocando-os para a direita e para a esquerda. coberto de banha (parece que ele está esperando neném. ele ganhou suas duas primeiras lutas. LOUIE: Não tem lugar. iniciantes. eu não devia dizer que eles não têm lugar. como se estivesseln lançando um encantamento. A platéia rola de rir e. dando as costas ao adversário! Como defesa. Nesse nível do mercado pugilístico. enquanto o adversário debuta entre os profissionais. tenta levantar-se. com uma ligeira predominância de brancos e latinos: 300 pessoas no lnáximo. que insiste que se deveria cobrar deles mesmo que estejam sentados no jardim de sua própria casa). esfria razoavelmente a atmosfera. exibe uma série de caretas contraídas de surpresa e dor ao mesmo tempo. às vezes. campeão!". incapaz de controlar as próprias pernas. e depois a gente vai encontrar ele no programa em outro lugar. com o movimento de um pêndulo irregular que faz com que ele se pareça com um limpador de párabrisas humano. (22) pendem as hostilidades com um alívio tão flagrante que chega a ser embaraçoso . 14 228 Lo"ic Wacquant visto: o branco gordo e flácido cai de costas. ele dispara no adversário Ulna direita seca no queixo. por acidente. Mas o velho com O pompom anilna-se e seu tape-tape torna-se mais preciso. No terceiro assalto.Não estou falando de alguém que é um "mergulhador" [diver] e que vai subir no ringue aqui e se fazer nocautear no primeiro rouna. enquanto o outro se O déficit da transação é absorvido pelos empresários que investiram o dinheiro inicial para montar a reunião. e o vento que sopra. daqui a três dias. titubeia.(22) E há menos cores do que da última vez: muitos dos grandalhões que controlam o tráfico nesse setor do South Side não vieram esta noite. de vez em quando.nunca se sabe! Começo a fazer uma contagem rápida da platéia. contra um velho negro de Milwaukee. Mas. para grande aborrecimento de Ashante. ele joga os punhos com as costas das mãos para a frente (como se oferecesse flores) antes de fugir nas pontas dos pés. uma vez que ele não investe nada de seu próprio bolso e leva uma comissão como intermediário. vá ganharaliás. É evidente que este último jamais "sentira O contato de uma luva" antes dessa noite: incapaz de manter a guarda corretamente.. mas eles existem. e sus- ca de 450 no final. e não são poucos . para ganhar confiança e se testar: e. uma casa de produção de espetáculos de music-hall. Mas era difícil. caso se dê o contrário. e os cérberos da porta estão barrando-o na entrada do clube. como observa o célebre 11latch11laker do Madison Square Garden. Então. antes não tivesse dito nada! Com a expressão congelada. com a bunda pregada na cadeira. e aquilo foi ficando cada vez mais brabo. e as tendências da música mudaram." Durante três décadas.(23) (Mais tarde. Para preencher o tempo livre. Teddy Brenner. a contração do mercado local e a nacionalização dos circuitos de comercialização . ele vai conduzir pessoalmente os negócios de lavagem a seco e a direção de um pequeno "curral" de combatentes. e o Chica- go Stadium disputava com o Madison Square Garden de Nova York o título de Meca da Nobre Arte. a quem eu sugerira vir assistir à iuta de Curtis. Jack assumiu a direção da empresa familiar de lavanderias e lançou-se na fabricação de cosméticos. quando me desculpei por ter dado aquela mancada. pedindo que viesse alguém oferecer a eles um combate para seus bo- "Sou COMO ALGUÉM QUE VENDE E COMPRA AÇÕES NA BOLSA" Filho único de uma família judia imigrada da Rússia nos anos 20. Eia pede-me que ihe apresente a Jack Cowen. logo fiquei completamente fascinado e implorei a ele que me levasse de novo. que fizeram legenda. a mim. e isso tornou-se um hábito. então eu disse a ele: 'E aí? E se a gente pegasse um boxeador?' E foi isso que fizemos. e vai dar ordens para que iiberem a entrada do moço. jack está em pleno conciliábulo com os carinhas de Tinley Park. lançavam suas últimas flamas sobre o ringue. E Kitchen está radiante. ia a todas as reuniões que podia. do final da fila. Ai de mim. E quando as transformações econômicas do pugilismo .fizeram surgir a necessidade premente de um intermediário capaz de suprir o desgaste das redes tradicionais. o que irá vaier-ihe aiguns tostões. Depois de ter obtido seu diploma. de modo que é. o "homem mais impopular da cidade". em sua autobiografia OnIr the riJlg was square. Era o tipo de coisa em que organizávamos algo em torno de oito a dez shows por ano. Nada de mal: sua exposição precoce à Nobre Arte valeu-lhe o desenvolvimento de um juízo pu- gilístico indubitável. morrendo de rir: "Espero que você tenha gravado essa luta em vídeo: é uma luta antológica. Jack está 110 meio pugilístico há cerca de meio século." Jack logo iria calçar as luvas no YMCA do bairro e disputar alguns combates amadores. credita-se o resultado na conta dos boxeadores e de sua entourage. aquela em que os combatentes judeus. talvez você tivesse problemas. Quando era pequeno. (Isso é típico da arrogância dos jornaiistas: eia não quer pagar nem um ingresso para assistir à primeira iuta que vê em sua vida?) Cowen não quer dispensar a ocasião de um eventuai artigo na imprensa.] Não dava mais grana. porque conseguiu se meter na cena como segundo do vencedor. a partir de 1957. que tenta explicar-lhes como foi que o cara feio de Milwaukee pôde derrotar seu herói. Foi aí que me vi como empresário de boxeadores. e o match11laker desaparece no cenário. sacudindo a cabeça de incredulidade. a jornaiista do Chicago Sun Times. mas sem sucesso. em toda parte. "Era uma espécie de hobby.231 . é por tua causa: é melhor que você não tenha que se explicar depois com esses carinhas. Foi assim que ele conheceu DeeDee e as principais figuras locais do pugilismo. logo que cresci o bastante pra ir assistir às lutas por minha própria conta. Depois.o encolhimento das vocações e o desaparecimento dos clubes de bairro. seu pai. porque quer que seu namorado entre de graça. gargaihadas entre o resto da piatéia. [Ele faz uma careta. 'O Combate dos superbums!'''. Ashante e Eddie só faltam cair no chão de tanto rir. 15 LoTe Wacquant (23) 230 - Corpo e alma . eis que surge Wylie. desistimos. com um amigo de infância. nem continuidade. a desqualificação dos empresários. mas queríamos fazer alguma coisa juntos. E o meu amigo era um fanático por boxe. jack repreendeu-me: "Isso não me atrapalha. leva-o para assistir às noitadas de boxe da Chicago da grande época.") Nisso. A coisa funcionava bem. "Meu pai me levou com ele pra uma reunião quando eu tinha onze anos. Interpelo jack Cowen. quando ainda era garoto. quando jack prometera uma vitória em um assalto. espremidos e ameaçadores em torno dele. Louie. montou. esperando. é ele quem concentra todos os descontentamentos e as recriminações. e havia lutas de monte nesses anos. em conjunto. Jack estava bem situado para lançar-se no matchmaking: "Muitos empresários contentavam-se em ficar ali. Ilustração concreta do dilema com o qual todo ma tchmaker se vê confrontado pela própria natureza de sua atividade: quando os combates dão certo. que tem uma cadeia de lavanderias.ner dos brancos de Tiniey Park que vieram apoiar o amigo. de repente. qualidades que Jack tem. de sua origem étnica e de seu contato precoce e prolongado com a Nobre Arte. e. nada. mas você Corpo e alma . "Eu entrei no boxe pelas beiradas. J Eu ligo para as pessoas. As qualidades exigidas para tanto são um acentuado sentido de organização e boas noções de contabilidade. pra que essas pessoas se encontrem. Johnny Boz. o giro pelas salas da cidade. dando uma certa vantagem aos boxeadores aos quais ele está ligado.. você pode passar a manhã inteira. o valor. pelo nível de tolerância). sou como alguém que vende e compra ações na bolsa. me telefonam. Ele passa seis semanas do ano "na estrada". E depois. para se manter por dentro da forma e da disponibilidade dos pugilistas locais. A atividade principal de Jack Cowen consiste em "completar o cartaz" das reuniões da região. e não acontece nada. Depois. o público e a confiabilidade dos organizadores e de outras partes interessadas. além de serem matchmakers ou promotores. em vez disso. E uma rede. você está sempre negociando alguma coisa com alguém. na montagem de um "card": primeiro. em função das condições 232 Lo"ic Wocquont dos pugilistas: "É como fazer a lista das corridas de cavalo: eu estou procurando isso e alguém está procurando aquilo. oriundas.empresa ria. e sua mulher . desde então. em Indiana.xeadores. Às vezes. Enfim. cerca de trezentos combates por ano no Midwest. e você fecha três combates em algum lugar e dá um tapa em mil dólares. A busca e o emparelhamento de boxeadores efetuam-se de acordo com um processo interativo em cascata. à noite. Finalmente. as transações são feitas consecutivamente umas às outras. E eu era mais agressivo. para boxeadores a quem vende seus serviços nos mercados nacional e internacional (com seu colega da Flórida. várias dezenas de lutadores medíocres para a França e a Itália. a cada ano. de sua experiência como empresário da lavanderia." No final de dois anos de tentativas. uma das majors da economia pugilística mundial. [. ou talvez como um bookie que anota as apostas das corridas de cavalo.. o estilo e o profissionalismo dos boxeadores engajados. [. ele exporta. o lugar. jack decidiu. a luta se dá no plano econômico. depois [ele franze levemente o supercílio]. para assistir às noitadas que promove nos estados vizinhos e no exterior: é vital avaliar de visu a qualidade dos boxeadores. hoje.. na qualidade de agente. assim. as barreiras sociais e raciais e um bom "olho pugilístico" para determinar. à tarde. bilheteria. e nova fornada de negociações por fax e telefone. das seis às onze da manhã). porque não vamos trazer um boxeador da Ilha de Tonga para uma luta de quatro rounds em Gary. e talvez eu procure outra coisa. onde eles servem de trampolim para as estrelas do Velho Continente). a capacidade de vencer. aos quais se juntam os encontros que ele arma. com precisão. as pessoas me ligam. é co-proprietário da "franchise" das Chicago Golden Gloves.. se você quiser assim. Seu sucesso. valeu-lhe. com sucesso. há necessidades que se combinam e. recrutando oponentes para o boxeador-vedete e montando as lutas preliminares (que se chamam undercard). liqüidar seus ativos no ramo de lavanderias e tornar-se matchmaker em tempo integral. Isso não pára.que é afro-americana . ele tem de cumprir as regras burocráticas estabelecidas pela Comissão do Estado em questão (o que não é nada difícil. Concretamen"te. Tenho pessoas que precisam de alguma coisa e você tem pessoas que precisam de outra coisa. dois boxeadores. Há um certo número de pessoas que são agentes de boxeadores. ele deve "emparelhar" boxeadores de forma a produzir lutas que agradam a quem as assiste e que sejam relativamente equilibradas." Um matchmaker tem de levar em conta três tipos de imposição. Bom. e peguei os números de telefone e fiz os contatos. em 1977. ] É isso que eu faço: estou sentado na minha sala. Também funciona como representante da Cédric Kushner Promotions. sob sua supervisão. Jack produz. como eu. publicidade. a jornada de trabalho de Jack divide-se em intermináveis transações telefônicas com empresários. barracas de bebida e de cachorro-quente. na medida do possível. Por vezes. ou.233 . e a gente tenta combinar isso. promotores e outros agentes (várias dezenas de chamadas. ele encarrega-se da organização material da noitada: ringue. respeitando o orçamento estabelecido pelo promotor que o contrata. e depois você perde o controle da coisa: você pode entrar facilmente no boxe. viajando sem parar com meus lutadores. dois ou três telefonemas. para a qual ele assina contratos com os boxeadores que são as grandes esperanças de Illinois. respectivamente. administração. ele deve garantir que os encontros sejam economicamente viáveis. exercer um quase monopólio das reservas de combatentes na Grande Chicago. que sejam até mesmo rentáveis. Louie. mas este está muito ocupado para conversar com ele agora. você está dentro de verdade. Com um curto "lneias e sapatilhas") DeeDee ordena a Curtis que se apronte. ao mesmo tempo. com calma. antes que ele calce as luvas. de modo a não contrariá-lo. para satisfação de DeeDee. ficar perto de Curtis. Até o dia em que vomitou tudo no ringue. DeeDee. nos vestiários e no córner. na dureza. Curtis deixa que eu o fotografe em seu "camarim" exatamente antes de uma lutanova prova de que ele está relativamente descontraído esta noite." tendo confiança nele. Depois que você está lá dentro. Aí. ainda é bem divertido: vou fazer isso pra sempre. não consegue sair. porque tem a pele muito clara). eu estou satisfeito.] Isso não é um problema. brother Anthony. ele sabe bandar bem direitinho. sem nada dizer. como pagamento de seus serviços desta noi- te. pra correr e tudo o mais. nos dois anos que o acompanho." Eddie acrescenta: "Agora você já esteve nos combates de Curtis e em três lutas de Ashante. "Toma. em ter- mos de alimentação e de sexo. "As pessoas devem aprender por elas mesmas. Eu gosto do que faço. há alguns anos. E brother Louie. Eu dei a ele bandagens de gaze e ele me fez um bom trabalho com elas. e Corpo e alma 235 . cujas mãos foram mal bandadas pelo auxiliar de córner. Fico num vaivém entre o vestiário e o estacionamento para seguir as lutas preliminares e. "Nada de sapatilhas de boxe. mas duvido muito que Calhoun vá pintar lá. Curtis adquiriu o mau hábito de comer um Mars e beber um suco de laranja exatamente antes da luta. DeeDee esmera-se ao bandar os punhos de seu pupilo. você viu como se faz. mas sem nunca lhes explicar as razões disso: cabe a cada um aceitar os "sacrifícios" necessários) DeeDee banda as mãos de Curtis no mafuá-vestiário. na hora de lutar. Enquanto calça as meias. com a gente. a roda de um boxeador esforça-se por satisfazer seus caprichos." jeb Garney sugere que ele envolva a planta dos pés com fita adesiva. ou sofrer as conseqüências da falta de ética profissional. sapatilhas de gym. eles estão me dando bolhas. o lutador mostra ao empresário que irá precisar de novas meias de treino. Este não cessa de lembrar a seus boxeadores as regras que se devem seguir. inteligente como ele é) talnbém deveria aprender a bandar. e desliza uma nota de vinte dólares eln sua lnão. No capítulo gastronomia. (N as horas que precedem o combate. e o lutador de Chicago teve de abandonar a luta no quinto assalto por causa de uma dor insuportável no pulso. está vendo." Ainda bandando os punhos de Curtis. DeeDee anuncia que "Anthonyvai começar a bandar as mãos no gym. combinaram de se encontrar amanhã. para se dopar rapidamente com açúcar. para não correr o risco de prejudicar sua concentração. Ashante viu Calhoun. a despeito da interdição formal de seu treinador. Depois de todos esses anos." DeeDee e Strickland lembram-se de um combate de Young joe Louis. Porque esses aí [ele indica os tênis semi-esburacados]. eles estão me fazendo um mal danado aos pés." Quando um oficial da Comissão chega para verificar as bandagens das mãos de Curtis e rubricá-Ias. Eddie aproxima-se do velho treinador e lhe faz um sinal discreto 234 Lo"ic Wacquant mostrar como é.) Mas o bar não vende chicletes. Pela primeira vez.» "Certo) se você me Depois dos primeiros combates. no gym. DeeDee conversa sobre boxe com Strickland (que poderia facilmente passar por branco. Curtis enfia o crucifixo e o cordão dentro da sapatilha (é seu amuleto). volto para os vestiários. [Ele sorri. no outro dia. Curtis quer chewing-gum e pede para eu ir buscar. Estou estabelecido.com a cabeça em direção a Keith." "Awright. . para compensar seu tamanho pequeno e a falta de porte. seu rosto torna-se púrpura e deforma-se sob um ricto que dá a impressão de que ele está chorando. Depois. A platéia torce por Blake. observo que conheço menos gente do que Eddie.para dar confiança ao cara. está entendendo? Depois. e deixa que lhe batam como a uma pasta. preciso avaliar ele: será que esse cara pode se tornar um combatente de valor ou ele não passa de um boxeador entre muitos outros? E depois. no Estado de Washington. um jovem colosso negro do Tennessee em plena ascensão. olha só. Quando volto ao vestiário com um pedaço tomado emprestado de um carinha de Tinley Park. boxeando tranqüilamente a distância. aí! Eu preciso arrumar com o que pagar meu aluguel: eu pego os 1. como um Curtis Strong: esses são caras que querem dar certo na profissão. em Park West. 236 Lo"-c Wocquont Ross demonstra uma técnica clássica impecável: usando plenamente sua vantagem de altura e de envergadura." Ou. de um "aventureiro" dos ringues. então. eles não têm dificuldade de subir ao ringue. portanto. que abriu a reunião desta noite. mas sem sofrer sérios desgastes . é sempre a mesma: durante os dois ou três primeiros assaltos. Eddie passou a minha frente. "Mas você conhece todo mundo aqui. antes de voltar a se dobrar sobre si mesmo. mas se tornam "aventureiros" [journeyman l. para um boxeador que tem seu próprio público. volta e meia interrompida por ele. ele se planta no chão. vamos pegar Rodney Wilson. O terceiro combate é um mismatch rude. passivo. os próprios boxeadores se dividem em categorias. ou.500 dólares se você for lutar em Seattle. ele cobre o rosto com as luvas e avança em crouch (joelho flexionado e o corpo meio inclinado para a frente) para perto do adversário. A primeira coisa é isso. querem chegar a ser alguma coisa. poderia elevar-se acima da posição de um reles trampolim. eu já vi caras que vão para a Europa. procurando adversários à sua altura. Blake "engole" uma enfíada de diretos com as duas mãos. é preciso avaliar o boxeador. Mas oh! Espere: eu estou disposto a te dar 1." E um organizador sempre tem um lugar. grita para ele: "Pula em cima dele. eu sempre tento. um negro quarentão corpulento. ) A tática de Blake. com cada tipo que passa para profissional. que. já é muito tarde. Um grandalhão com camisa pólo. qualquer motivo para "protegê-lo". em Chicago. com isso. e lá eu acho que suas chances de vitória também são boas. em diferentes níveis. antes de acrescentar. em vez do combate de 300 dólares. no melhor dos casos.. com lástima: "É pena esses carinhas do Tiley Park. gorgeia DeeDee. só que com um ser humano no lugar da punching-ball. invicto em treze lutas. porque eles querem ir para a Europa. porque têm sempre dois ou três ônibus cheios de camaradas para torcer por eles. Eles nunca viajaram. Eles iriam lutar com o King Kongsó para viajar e ver Paris.também não encontro ninguém na platéia que tenha um. do que uma competição. eu penso que. não encontra a menor dificuldade para arrematar todos os rounds. nos cartazes. mas não representa perigo algum para seu oponente. e a velha raposa dos ringues Danny Pegue um boxeador que passa para profissional. que sai da casca para disparar uma direita no corpo. A luta parece mais um exercício com o saco de areia. Mas O combate é vil e triste. absorve uma chuva de socos. isso dá um montão de ingressos. Corpo e alma 237 . contra um sujeito que eu acho que você pode vencer. seu cartel como amador. quer dizer. tento fazer ele começar com duas ou três vitórias . "ELES MESMOS SE CLASSIFICAM" E você tem outros boxeadores que têm qualidades.seu ofício permitelhe bloquear e amortecer a maioria dos golpes com as luvas. cujas quinze derrotas consecutivas indicam que sabe lutar. Alguém como. vovô!" interessados em "Aí. na minha cabeça. como um Lorenzo Smith. afinal. eu posso te pagar 300 dólares para lutar aqui." Eles diriam: "Vamos pegar a luta de Chicago". Não estão Blake. Você tem uma leve idéia de como ele vai se comportar examinando seu cartel entre os amadores. Para me defender. sentado ao meu lado. protegido por sua guarda. os ombros e os cotovelos. A idéia deles é: "Bom. Depois. eles são bons lutadores. em janeiro último. Mas não conseguimos entender direito como o gordo branco de Tinley Park. em certos casos. toda vez. Eles mesmos se classificam. jack não tem. porque eles estão construindo uma carreira. Louie. porque põe em confronto Loren Ross. Aqui comigo. caricaturada por sua fisionomia e pela falta de flexibilidade. e ataca no corpo. e. durante todo o resto do combate. (Smithie ganhou dele por pontos. e todo mundo te conhece!".500 dólares. e tudo isso. um grandalhão de pele branca e gordurosa. pra provar que eu sou um bom boxeador. o velho coach comenta: "Blake.. toda vez eu poderia tocar as luvas com você dez vezes. Quer ele perca. mas o boxe faz falta.. mas.em detrimento do boxe. Se você perdeu. e eu adoro isso. Você vai ouvir um bocado de gente que vai te dizer que é dinheiro. quer seja um profissional que luta dez ou doze rounds: se ele está preparado.Quando resumo o combate para DeeDee. num esboço de passo de dança. e Tony Lins.. Ele era um bom boxeador no seu tempo. e acabou. se dá o máximo e está preparado para isso. De vez em quando. toda vez ia ser um combate diferente. por mais medíocre que ele seja." A quarta luta preliminar opõe ainda duas nulidades: Danny Nieves. é um bode. você vê eles. [. é como um high. Ao final de quatro assaltos. É preciso que eu mostre sempre alguma coisa pro meu público. detesto quando você vai pro meio do ringue e o árbitro levanta o braço do outro cara [resmungando de raiva]. com as costas viradas para o adversário. se ele segura a onda. ] [Depois de uma luta]. Louie. como estar no palco do teatro: você dá um espetáculo para o teu público. O pior é que Nieves faz bonito no ringue! Ele se balança como um pato dentro do seu calção azul. Mas a platéia não gosta nada do seu showboating e começa a torcer por Lins. porque teus colegas estão perto de você. pra mim. É como . É por isso que DeeDee jamais pronuncia palavras como" bum" e "stiff'. Louie. eu deveria fazer uma entrevista com Danny Nieves. mas. ain- da falta pra eles os holofotes [the limelight]. se é que isso é possível.. [. ] Se divertir. chocam -se e amassam -se de todos os jeitos possíveis.. com as quais geralmente designam:-se os pugilistas ineptos. os dois adversários abraçam-se e dão a volta no ringue. acho que eu prefiro ir a no- caute do que perder urna luta [por pontos]. ele sabe lutar. num segundo.. agarramse. sacou. eu. como que o desafiando. se você ganhou.todos esses camaradas têm uma posição na vida. Logo procura agradar a galeria com suas palhaçadas . é isso que eu gosto no boxe: sempre acontece o imprevisto. e essa excita- Corpo e alma - 239 . uma grande satisfação. isso é excitante: você nunca sabe o que vai acontecer no ringue. mesmo que seja um amador que lute três rounds. ] [A reação do público I. quer dizer. pra mim. é como se sentisse um grande alívio. porque sempre é preciso uma dose mínima de coragem para calçar as luvas. quer ele ganhe. esse cara luta há um tem pão.. é quase como se drogar. é isso que te toca totalmente. eu dou os meus cumprimentos. nunca se esqueça disso . Mas ele ganhou. "Cada camarada que sobe ao ringue é um boxeador.. eu me sinto mal de verdade quando perco.. Aí. Ele. que parecem mais de luta livre do que de boxe. Eles empurram-se. fazendo a mesma coisa o tempo todo... E. aí. é fun [.. que trabalha como monitor de esportes municipal. Olha só o Sugar Ray [Leonardj. andando desajeitadamente. Eu odeio isso com todas as minhas forças. sob as vaias da platéia. eu me sinto mal durante uma semana inteira. quando eles ficam por muito tempo no ringue . você ouve a voz deles. E com o boxe. estar no ringue. você nunca sabe quem vai se sair com um golpe devastador. mas isso não acontece com eles. é como ser ator.. que é visivelmente mais fraco. como leão-de-chácara de uma boate e como eletricista. Nieves dispara-lhe um golpe em pleno rosto e podemos ver as gotas de suor voando sob as luzes dos refletores. é tipo como se você decepcionasse eles. Meses mais tarde. Eu tiro o meu chapéu para qualquer um que suba no ringue. " E insiste que nunca devemos debochar de um boxeador. uma espécie de break. fingindo estar à beira do nocaute depois de se enfurecer. à noite. É como Buster Douglas e Tyson: ninguém achava que Buster Douglas ia vencer o Tyson. principalmente quando você está no ringue e as pessoas gritam teu nome. Detesto ficar me aborrecendo. você pode mandar ele. e é por isso que estar no ringue é como uma segunda natureza pra mim: eu fico à vontade entre as cordas - eu conheço muitos carinhas. Isso acontece até com os melhores dos melhores. é a única coisa que faz com que valha a pena. E você. é por isso que você tem tantos boxeadores que fazem um comeback. mesmo quando esses carinhas ganham centenas de milhões. e foi assim que eu sempre lutei.. um brancão totalmente sem técnica. O cara pode te mandar pro espaço. o Larry Holmes e os outros . [. em meio expediente. Você precisa ser um homem bom de verdade para ser um boxeador. ] Principalmente com os pesos pesados. sacou. explica sua atração pelo ringue nesses termos: 238 LoTe Wacquant Eu me sinto bem. detesto perder. "trial horse' ou "tomato can". E tinha uma chance de 50 contra uma. hoje à noite. no momento em que ele vai subir no ringue por 500 dólares..ção que sobe te dá um rush. valorizadores medíocres. uma das "dançarinas exóticas" do Studio 104 bem que tentou abocanhar a oportunidade: ela subiu ao ringue com o seu biquíni minúsculo. No início do quarto combate. o valor deles no mercado vai para o brejo: um organizador que procura carne às toneladas não vai cair numa de se arriscar. CUHTIS [ele estica o pescoço para admirar melhor a máquina]: Verdade. ele vale cinco mil dólares. Esses 'oponents' não têm qualquer necessidade de encorajamento para perder. Eles põem o mesmo logotipo no fundo do relógio.. grita: "Não consigo ver essa merda!" A platéia mais ri do que aplaude as lutas. Strong vence Hannah com nocaute técnico no quarto assalto Estamos no intervalo. Volto ao quartinho onde Curtis. você não quer dar ele pra mim."16 Lo"'c Wocquont 240 - . [Digo a mim mesmo que é chato fazer uma brincadeira dessas nas barbas de em·tis. dois pelo preço de um . fazendo "dois" com os dedos em forma de "V" . é medíocre: ele precisa ler o texto. Faz tanto tempo que eles vão de derrota em derrota que isso já se tornou sua marca registrada. "Vau. é isso que eu quero. temos para vocês um show extraordinário! Não percam! E para os que não têm ingresso. E.. vamos. TEB GAI~NEY: Você está vendo isso? Sabe o que é? [Para os outros) Vocês sabem o que é? São diamantes de verdade. não tem a menor dicção. as conversas de antes das lutas vão se extinguindo. O cara é inconscien te.mas será que o boxe é um esporte? Mesmo o locutor. que está nervoso. por que o senhor não dá ele pra mim? JEB GARNEY: Você está brincando? Não. os que têm ingresso podem assistir ao grande espetáculo oferecido no Studio por nossas exotic dancers. Mesmo Wanda. desta vez. (24) Pouco a pouco. eles ainda podem ser comprados. ha-ha-ha!)) Risos amarelos. e o resto é de ouro. fiquem de joelhos para rezar. A tensão sobe até se tornar quase palpável. tudo bem. Eles fazem a imitação lá.. DeeDee e Eddie dissertam sobre as felicidades e infelicidades de William "The Corpo e almo 241 f: assim que chamam a meia dúzia de salões e "campos de treinamento" espalhados no local e que fornecem. Enquanto esperamos ansiosamente o momento em que Curtis vai subir ao ringue... e elas são mais verdadeiras do que os verdadeiros. gagueja as palavras.. COIUO não havia cartaz para anunciar o assalto seguinte. eu vou te contar como é que eu consegui ele [rindo sozinho por ter nos enganado I: eu comprei ele em Singapura por 29. só isso. Não vai ser assim que ele irá criar um público cativo no South Side. é como . que atende pelo belo nome de Angelo Buscaglio (é um nome que não se inventa). COlno na última reunião. a irmã louquinha dele. visto que a metade dos combatentes do programa é formada por caras do Windy City Gym. É vexaminoso para Curtis ligar-se à produção de um cartaz como esse. por encomenda ç em quantidades industriais..95 dólares. ela só conseguiu se sacudir estupidamente. e o silêncio instala-se no quartinho. porque ele nunca ousaria pedir isso a sério]: Vau! Eu acho ele demais. E. para cúmulo de tudo. não há nem a desculpa de ter se deixado enganar por um "açougueiro"( 24 1 que ele não conhece. Curtis fala: "Todo mundo aqui está comigo? Vocês estão comigo? Então. que têm tanto de circo como de esporte .. COln um enonne mostrador luminoso cor de violeta) rodeado de pedras.. O que Cowen nos empurra não são nem produtos sem marca." Um pouco de perigo . Volta ao quartinho. olha só . pois ele aspira legitimamente a combater em reuniões televisionadas em nível internacional. mas. senhor Garney. Esta noite. que não entende nada de nada. Jeb Garney chama a minha atenção para o enorme relógio tiquetaqueante que ele usa no pulso. no bar. senhor Garney? JEB GARNEY: Você não sabe o que é [com um tom cerimonioso]. Com um monte de vitórias. O locutor berra: "Depois do show de boxe. mas mercadoria estragada. é um Rollex Presidential. Garney. ou o quê?] Anoto em meu diário de campo: essa reunião não valeu nada. não há card girls. CUtrl'lS [com um tom que é um misto de admiração e riso. "daqueles que se pode ter certeza de que vão perder para o boxeador da casa. " E lembra que os bilhetes de entrada para as lutas também dão direito a duas bebidas pelo preço de uma. estupefação! Curtis leva uma direita seca no maxilar que o faz cair com um joelho ao chão. pulando e batendo uma perna na outra. com os irmãos. Um sopro de consternação misturada com incredulidade percorre a platéia. O dinheiro. sobretudo dos irmãos e dos amigos. lutando em shadow. escorre pelo seu torso nu. Strickland massageia-lhe o pescoço e coloca-lhe protetor bucal. o fato de que The Refrigerator dera uma BMW de presente ao pai .. para as últimas advertências do árbitro. antes de converter-se. que fazem uma zona 242 Lok Wacquant Curtis sobe ao ringue sob os vivas da platéia e o olhar do árbitro. foi condenado pela incapacidade de controlar o apetite pantagruélico . a glória deslustrada. Os golpes nervosos estalam sob o olhar interrogativo dos clientes do bar vizinho. sem olhar para Curtis. Curtis levanta-se e começa primeiro a dançar.5 milhões de dólares. porque seu agente "segurou" um dinheiro mensal.243 . a oração foi feita. Nós nos impacientamos na porta. O suor brilha nas têmporas do boxeador do Woodlawn. apertados no córner oposto. e Strickland. Está na hora do aquecimento. "Eight rounds Df boxing!" Atravessamos o bar em fila indiana. Corpo e olmo . Ele dá uma volta no ringue. depois finca-se no lugar. antes mesmo que os espectadores tenham tempo de se sentar. Eddie põe os pads e estende-lhes como alvo. DeeDee endireita o corpo para ver como seu boxeador vai reagir. à luta livre.Refrigerator" Perry. a hora do "main evenf' soou. as contusões. Jabe. Curtis ftlosofa: "Como todo dinheiro e glória que você tem podem te fazer cair mais fundo ainda. Hannah joga a cabeça para adiante. com uma admiração invejosa. DeeDeeconvida-nos a sair. depois de ter sido adulado. para deixar Curtis orar com calma no vestiário. boxeando em shadow no outro canto. para forçá-lo a economizar. Depois. a música fetiche de Curtis.ele será dispensado no ano que vem por excesso ponderável tenaz. com Jeb Garneya reboque. Delírio dos fãs. o divórcio e as desventuras imobiliárias fornecem assunto para a crônica local: The Refrigerator teve de interromper a construção de sua casa de 2. Nós desembocamos no estacionamento sob os aplausos da platéia." Mas não consegue deixar de mencionar. durante todo o tempo que demora o anúncio do combate. "Dingue!" A luta começa. jabe. que fecha a ftleira. "Let's Get Busy!". imprensa Curtis até as cordas e. vestido com a túnica azul. escondido atrás das luvas. gancho. um gigante bonachão. faz os alto-falantes vibrarem. membro da equipe de futebol dos Chicago Bears. Curtis sai para o corredor e começa a pular sem sair do lugar e depois a descontrair. os dois combatentes encaram-se no centro do ringue. que. Vêm nos avisar que dentro de cinco minutos é a nossa vez. DeeDee destila suas instruçôes. o rosto enrijecido de concentração. Excitação. O velho técnico murmura para Jeb Garney: "Vai dar uma olhada se acabou!" Acabou. Curtis volta ao seu córner. Hannah está se aquecendo. O boxeador do Woodlawn sobe de quatro em quatro a escada e emerge entre as cordas. Tensão.. DeeDee e eu atrás. tendo em "Vista os impostos prediais que isso significa. direita. Hannah começa a socá-lo. lamentavelmente. DeeDee observa que é preciso ser idiota para construir uma casa assim tão cara. a cabeça baixa sob o capuz. Bato no punho fechado de Curtis e ele corresponde a essa saudação ritual pré-combate. Curtis saltando sobre os pés. uppercut. Apreensão. incrível. de roupão branco. Elas invariavelmente consistem em lembrar os fundamentos (manter a guarda alta. mas sem por isso ficar para trás. DeeDee vocifera: "Get of! the rapes. Hannah força a barra e multipli'ca as séries no corpo e no rosto.: LOU1E Começa. que inexplicavelmente permanece impassivo e parece ter sentido o golpe. Curtis!!! Com as duas mãos!! DEEDEE LOUII-: [calma. senão seu corpo pode esfriar de repente. mas toda vez Curtis está sentindo ou não. contentando-se em bloquear os golpes. para ele. porque ele deixa que o adversário esmurre-o de perto.) c. Hannah tem experiência e sabe como quebrar o ritmo do rival. durante um combate. ele ainda está com o seu "macho bog" de ficar imóvel. Corpo e alma - 245 . "Como é que você está se sentindo?". Curtis!!! E])])IE: Sai das cordas! [com uma voz histérica]: Sai das cordas!!! Get ofthe ropes!!! Get ofthe rapes!!' E[![)!I-:: Vamos. em que cada qual tenta encurralar o outro "de dentro". que o afasta sem qualquer delicadeza: água sobre ele. Curt!!! Combata~o! LOUIE [Horror! Mas que merda ele está fazendo? Fica encostado nas cordas e deixa que Hannah soque-o à vontade. para que se impusesse. numa exibição. sem respondê-los. se for o caso. quando já caiu uma vez. o boxeador de Woodlawn passa à ofensiva com uma velocidade que põe o adversário em dificuldades. a guarda cruzada no rosto. com a cabeça abaixada. bater em séries etc. em seguida. como convidando-o a lutar. à lona. 244 Lo"ic Wacquant ele precisa fazer com que uma luta fácil fique difícil!" Aos poucos. mas firmemente]: Vamos. deslocando-se lateralmente e. onde uma tempestade de golpes no tórax e no rosto manda-o. aos gritos. são sempre sim~ pies e repetitivas ao extremo. Cowen escorrega para a minha direita e guincha suas frustrações: "Não sei o que está acontecendo com esse maldito Curtis. Gritamos para Curtis: "Afaste-se das cordas. Finalmente. Este fecha-se de novo atrás das luvas e deixa-se encurralar no canto (o Iurrando com uma voz rouca 1: Vamos. bater priIneiro. sem. DeeDee aconselha-o. deixando o adversário bater. coloca o banquinho do córner. conter os automatismos que foram pacientemente criados no treinamento." Eu passo. pronto para criar um caso fenomenal. exatamente quando soa o fim do round. Terceiro round: DeeDee implorou a Curtis para que ele reto- masse o ritmo. Não se sabe se refletor improvisado que está pendurado ao poste balança e ameaça se espatifar no ringue!) Vivas trocas em corpo a corpo. com as duas mãos.] Percebendo que agora tem uma oportunidade. Curtis. atrair a atenção do pupilo para uma falha técni~ ca ou para lima falha tática mais gritante do oponente. Isso tudo para concentrar a energia mental do boxeador. gel of! ma"! Strickland escorrega entre as cordas. mande o direto. ao trabalho! Go to work! LOUIE [gritando em uníssono]: Go lo work! Go to work.(25) Segundo round. trabalhe com as duas mãos. agora está bom. com isso. de que é capaz de absorver os melhores golpes sem sentir! Não quer ouvir o que estão dizendo a ele." Strickland comete o erro de querer passar a esponja molhada no pescoço de Curtis. agora está bom. com lllna calma que destoa da [gritando em eco]: Vamos. O outro faz um clinche e leva-o de novo às cordas. pergunta DeeDee. boxear a distância. Ele chega mesmo a baixar a guarda. nunca. no qual Curtis veln sentar-se. avançar depois do direto. Hannah atira-se do córner Como um touro de sua baia e cai em cima de Curtis. suas instruções para Curtis. Curtis sai da casca e força Hannah a ir até o centro do ringue com uma série de diretos e ganchos. com um tom calmo: afastar-se do corpo a corpo. Mas Curtis não se deixa desconcentrar._. boxeie!" Mas ele só faz o que lhe passa na cabeça. (25) As instruções dadas pelo treinador.) A resposta chega fulgurante: Curtis contra-ataca com a velocidade de um raio e acua Hannah no canto oposto. Durante o minuto de intervalo. fazendo para Curtis uma careta medonha. A luta fica animada.DEfDH. saia das cordas!!! [Merda. encadeando golpes diretos. por sua vez. Estou com o coração na boca: será que ele está mal em pontos? (Estou prestes a atirar-me ao ringue para salvá-lo da derrota.] E[)])IE eletricidade da atmosfera. combata! L()UIE: Combata~o. [berrando o máximo que consegue]: Saia das cordas! Va~ mos. Curtis nos reconforta: "Estou ótimo. : Avança depois do jabe. mais perto. J Elllm. bloqueios e recuos para atenuar ou anular as séries de Hannah. Ashante. Trabalha ele com jabes! LOUIE [urrando]: Saia do canto! EDlm:: No meio não. nem de pensar na tristeza de seu caminho de volta. Mas não: ele faz o sinal-da-cruz e parte com valentia para a porrada. LOUIE [urrando]: Mais perto. sinalizando para o árbitro que fora atingido. Mas o gongo soa e ele é 246 .LoTe Wocquont mandado para o seu córner. Curtis começa a afirmar-se como o "dono" do ringue. antes mesmo de subir ao ringue. os irmãos e irmãs de Curtis. que. [Mais alto. depois. Ele se dá bem nos corpo a corpo. girando os punhos em sinal de vitória. Acredita-se que Hannah irá se recusar a "sair do seu córner" ao chamado do quarto assalto. ele indica o pescoço com a luva. você bate duro. como para indicar que está contundido. tudo não passa de formalidades: Hannah está tão mal que Curtis irá "liqüidá-lo" no próximo ataque. Curtis mistura ataques. contra o poste do ringue.Belas combinações de um lado e de outro. Dança em volta do adversário. Confusão. indicando. a título de cumprimento: "Bom trabalho. Curtis pega-o com um gancho de esquerda em pleno pescoço. (Não posso evitar de ficar comovido por causa de Hannah. com as pernas flexionadas. O outro quase rola para fora do ringue. (Jack Cowen iria confirmar. sons surdos de golpes. essa tática do desespero é conhecida como" to go for broke". que o combate está terminado. Contentamento das primeiras filas. gritos e suspiros da platéia. em série! [aborrecido]: Vamos. é. No momento em que o boxeador de Indiana cai para a frente. chama o árbitro e mostra-lhe a mão direita. com a voz rouca. man! Se aproxima dele! Com as Krn:Hr:N: Work! Work! DEEDEE duas mãaos. Sabe que está liqüidado e vai. Um joelho em terra. Agora. por baixo agora. e lança ótimos uppercuts com as duas mãos. O boxeador de Woodlawn dá reviravoltas em torno de Hannah. Parece um jogo de pega-pega.. Torna-se evidente que Curtis é muito rápido e muito potente para o adversário. atrai-o para si. vamos!! Uma série cruzada de esquerdo-uppercut de direita manda o boxeador de Indiana à lona pela segunda vez. Curtis sacode Hannah nas cordas com uma tempestade de golpes que terminam com uma direita curta na cabeça. e levanta os braços para o alto. e Hannah cospe um fio grosso de sangue sujo bem na minha frente. fingindo abrir a guarda para melhor se esquivar e mandar diretos secos que atingem O alvo. exausto. Curtis pula nas cordas. respirando com dificuldade. depois do jabe! [Ruídos da luta.) O árbitro abaixa-se para falar com Hannah.'2ó) Curtis responde a essa última ofensiva desajeitada com uma enfiada de golpes de uma violência insuspeitada.: t. LOUIE: Por baixo! DEEDEE [insistindo]: Dá um passo pro lado. o punho esquerdo erguido para adiante.: Manda uma esquerda. portanto. No final do assalto. Hannah vem lhe dar um tapinha nas costas. Use o jabe. com um gesto. Curtis posa para os fotógrafos amadores de ocasião. visando ao nocaute. o árbitro (2fi) No jargão pugilístico. com o rosto tumefacto. Desaba sobre o banquinho. depois volta-se para a mesa dos juízes. Mas ele sabe apanhar e levanta-se sem titubear. uma careta feroz. Liz. Curtis aperta-o entre os braços. que ele tinha sérios problemas no ligamento do ombro.. "Senhoras e senhores. é. rangidos das sapatilhas que deslizam no chão. só consegue se proteger atrás das luvas e tentar um clinche. Le Doc. Mas o adversário. o que confirma seu estatuto de opponent perfeito. Curtis. Com o rosto retorcido de agonia. no meio não! DEEDEr:: Está bom. Ela consiste em jogar todas as forças e arriscar tudo em um último assalto. ajoelhado.. Ele dá a volta ao ringue pulando de alegria. com uma derrota a mais em seu cartel. mais perto.) Enquanto o médico da Comissão examina o boxeador de Indiana e aguarda-se o anúncio da decisão oficial. cara". Curtis imprensa Hannah nas cordas e manda-o ao chão. botar para quebrar.] Um passo pro lado! EJ)[)[J'. Corpo e alma - 247 . girando para um lado e depois para o outro. Que alívio depois do susto do primeiro round . sob os vivas do público. é isso. DEEDEE: UlUI>. com as duas mãos. a segunda. para a revanche de defesa de seu título. seguidos por uma fotógrafa que metralha Curtis em elose e pela jornalista Wylie. e o vencedor de vocês. Curtis explica que está pronto a combater com qualquer lutador. Curtis está exuberante e loquaz como um pombinho volúvel. seja em seis rounds. Curtis em plano americano. "(27) Depois desse epílogo arrasador.) A platéia flui pelo bar. no córner azul. mas então o que é que a luva dele estava fazendo no teu queixo? Você nos deu o maior susto. Hannah. seja em dez rounds. e a platéia fervilha diante da ünica porta que dá acesso à boate. é Cuuurtiiiis Strooong! Curtis Strong . )eb Garney ri às garga1hadas. sabia?" Um dos membros da Boxing Commission..parou o cOlnbate aos dois minutos e dez segundos do quarto assalto. em Atlantic City. em Aurora. t. se o empresário quiser: "Não interessa. Ele agradece a Deus imediatamente e defende-se com vigor por ter sido mandado à lona logo no primeiro assalto. parentes e fãs. 248 LoTe Wacquant (27) Diz o uso que os locutores do ringue devem sempre pronunciar duas vezes o nome do vencedor. é isso. Jeb Garney orgulhoso. Curtis é assediado ao pé do ringue por seus amigos. que se enche de festejadores. Nós manobramos assim. fazendo perguntas infmnes. contra Torres. que se encarrega de fazer reportagens esportivas para um jornaleco local. jeb Garney enxuga-lhe o rosto e DeeDee apressa-se para voltar o mais rápido possível para o clube. com entonação c ritmos codificados. Sugiro que ele segure as minhas costas e forço passagem em meio à onda de espectadores. brevemente e com uma voz mais grave. que o felicitam. Mas as pessoas param-no para abraçá-lo. a primeira vez alongando as vogais com um grito. vem entrevistar o boxeador de Woodlawn COln seu pequeno gravador. que se apressa em demonstrar toda a sua ignorância a respeito da Nobre Arte. (Estou orgulboso de trazer o campeão a reboque.. aproveito para gravar a conversa. . Hannah aliviado. até o quartinho que faz as vezes de vestiário. "Tá bem. Corpo e alma - 249 . apertar suas luvas de passagem. technical knock-out]. para que Curtis não apanhe um resfriado. a qualquer hora. argumentando que não passara de uma" escorregadela". em qualquer lugar. [TKO.. por nocaute técnico Strong vs. Curtis feliz. contanto que eu me mantenha em li. me dou conta de que há três mulheres no vestiário.. me avisa.. bravo pra você." LE Doe [Ele passa a cabeça pela porta do quartinho e diz]: Foi o máximo.é verdade. Não foi a coisa mais bonita que eu vi na vida . Curtis. eu segurei o meu tempo. no fim do primeiro round.. você tem toda a razão. GARNEY: Ah! É claro. tudo isso foi graças a Deus. na cara do teu gancho de esquerda .. mas você estava desequilibrado. isso deu um pouco de Está bem. STRICKJ. é por isso. mais cedo ou mais tarde. o que acontece pela primeira vez depois de uma luta . mano! CURTIS: Ajudo-o a tirar a co quilha protetora e seco seu tronco e seus braços com uma toalha. mas isso já tem anos. às perguntas que elas fazem. gumento]: Awright. Ele estava frio. quando se levantou. ele despe-se e veste suas roupas comuns (sem tomar banho. CUlrJ'IS: fiquei perturbado. inscreveu uma vitória a mais em seu cartel e deu demonstrações de sangue-frio e de um excelente domínio tático diante de um adversário experimentado. Logo que ele acaba de vestir as calças.oUIE: E. é tudo o que eu quero. você...AN]): Era a estratégia dele. GARNEY: Se você se deixasse levar numa troca golpe a golpe com um sujeito experimentado como aquele. não foi um golpe terrÍvel.. e de todos os prazeres!" Risos. Ele está excitado como um piolho e saltita no lugar.isso não perturbou a ele [Curtis J. não agüentava mais. isso foi graças a Deus. que quase pôs ele a nocaute no mesmo round. eu só estava falando que eu não gostei dos primeiros vinte segundos .. então o prazer e a determinação de boxear vão embora.. Bom. Seu empresário não pára de repetir que JeffHannah enfrentou três ex-campeões do mundo . quando você quiser que eu tire uma foto sua com essa menina ali.] 250 Lo"ic Wacquant EJ)[)n-:: Depois esse palhaço veio se plantar na frente da tua direita. no entanto. eu sabia que estava imprensado. exclama: "Oh.. foi considerado um knockdown. Depois. Ele não estava aquecido. Se eu não estou em atividade. a bilheteira empurra a cortina e atravessa o quartinho.. Curtis está radiante com a presença delas e tem enorme prazer em responder. é isso aí. e ele perdeu todas as três vezes. no quarto round. Eddie chega acompanhado por Ashante. e Curtis também. CURns: É.e. ele já não tinha recurso nenhum. durante um tempo. EDlm:: Ele estava frio. sem a menor ceri- mônia.. porque não há instalações para tanto).. com uma ingenuidade espantosa -.] gás pra ele. já estava bem. Curtis. [Todo mundo ri às gargalhadas. l. mas eu Quando ele me mandou à lona [sic] . é isso. Curtis.atividade. Mas como o árbitro contou oito pra mim.] CUlrrIS: Combinado. [Apontando para uma gatinha que fazia caras e bocas perto da porta. Curtis ainda não estava aquecido quando ele . não . Eu sabia que eu ia atingir ele.·:: E talvez você tivesse preferido um outro tipo de excitação.percebe-se que DeeDee não está por perto. oh! Essa é a noite de todas as dores . que dá tudo o que tem . Aquele sujeito parecia um touro furioso na arena! CUlfl'!S: Bom. envergonhado. hein? GARNEY [rindo a valer]: Eu posso passar sem isso! Talvez você tenha gostado disso. [Eu rio. Louw: E você. Lou.. é claro. Cada um dos dois dá sua interpretação sobre a "escorregadela/knock-down" de Curtis no primeiro round e colabora para a redefinição coletiva de um incidente embaraçoso como um simples incidente. GARNEY: Oh. Curtis. KrrcHEN: Ei. com a persistência com a qual Kitchen batalha para abocanhar alguns dólares. Depois. com muitos detalhes e trejeitos . de tanto contentamento. e eles retomam os comentários técnicos e táticos. Porque não foi um knock-down de verdade. ha-ha-ha [sorriso de alívio].. Corpo e alma . obrigado.251 . GAHNEY: Ele te pegou com uma esquerda. quando você tiver trocado de roupa. E tem motivo: vendeu cerca de mil dólares em ingressos. CURTIS [com segurança]: Não estava com a menor pressa de ficar a descoberto e de correr o risco de ele me mandar um golpe que me atingisse de surpresa. GAI~NEY: Não. CURTIS [satisfeito que seu empresário concordasse com seu ar- De repente.. mas eu não achei os primeiros quinze ou vinte segundos nada engraçados. apesar das aparências. 2 Blocks East of Torrence 312-768-7109 Free Birthday Party. mas DeeDee. porque. mas. Ele repete. que agora está cheio de gente. DeeDee está sentado um pou252 Lok Wacquant \f . ele jogou a toalha. LOUIE: Man. que o knock-down do primeiro round não passara de uma simples escorregadela. Curtis não presta a menor atenção a ele. Confesso a DeeDee que eu estava prestes a me atirar no ringue e mandar Hannah à lona para impedir que ele pusesse Curtis a nocaute no primeiro round. depois disso. hein? LOU!F: Sabe o que foi? Foi o gancho de esquerda no pescoço que pôs fim à luta. ele só disse pra eu fechar minha guarda e recuar direto. você estourou ele de bombas! EVERY NITE ~ ~ATURDAY CUlrns: Eu conseguia te ouvir gritando pra eu sair das cordas. l04th St.\ Wm$200 2814 E. ele não disse pra eu sair das cordas: ele sabe que o camarada manda golpes fortes. STUDIO 104 PRESE~ diretos do Curtis..Foi ele mesmo que terminou o combate. Corpo e olma . na mesa que fica no meio do salão. "Não. ele tinha levado muito." Abram alas para as "dançarinas exóticas" Saímos para o bar. ele dominara o combate do começo ao fim. ele sabia. isso não dependia dele . assim. Declara-se frustrado por Hannah ter abandonado a luta: teria preferido "terminar o serviço" quando este último estava à beira do nocaute. o pai de Curtis está ali. BirthdaJ Cale &: ChampagM. senão você não vai mais vir às reuniões. "O quê? Mas o que é isso? Você tem que ficar calmo no teu canto. Ele levou um monte de ganchos de direita também. e que.. escondido. com isso chega. felicitar Curtis pela vitória. no quarto round. é. KrrCHEN: Ah. L)UIE: Ele se machucou no ombro. Jeb Garney saboreia uma cerveja gelada em companhia da mulher e da esposa de Jack Cowen. Voz não identificada: Era demais. não. é. ele voltou pro Córner e fez um sinal. calado. CURTIS: Ele machucou a mão. ele levou a sua parte. o quê? Ele estava machucado? EDlm:: Mas foi principalmente porque ele começou a sentir os CUlrrIS: KrrcHEN: É." CUlfns: Ééé.253 . para quem quer escutar. Louie. pra eu girar. Cada qual vem. por sua vez. bem. "George Henderson Production. reclinada no meio de um mar de almofadas de náilon. manifestado pela força e pela violência. Em vez de "dançarinas exóticas". como que de comum acordo. depois. porque a sessão com as exotic dancers começou. dizia-me que é "preciso resistir à tentação. no registro do sexo. todo sorrisos. estóico. As assim chamadas dançarinas revelam-se as mesmas moças que atendem na bilheteria e que de hábito servem como card girls. usa para abaná-los). Video and Photography". DeeDee e um sujeito corpulento que eu não conheço. Vários carinhas saem. e recuam. discretamente. Mergulhada em uma penumbra alaranjada. em seguida. manda lllTI uísque por debaixo do pano -lllTI pano autenticamente verde: é a garrafa que lhe dei de Natal. com Ashante e o gordo rodeando-o. conversando com os veteranos. mais tarde. na sala ao lado. diante da qual os fregueses posam). As manobras são de tal modo agressivas que vários espectadores que permanecem ao fundo ficam perturbados. ele enfia uma nota de um Corpo e alma . um disc-jockey toca rap à toda e. porque esse espetáculo estava acontecendo na nossa presença. como dois cérberos. durante uns bons vinte segundos e. porque não querem ser provocados tão brutalmente assim. expressamente para essa finalidade) ou no biquíni. (Ê verdade que ele é muçulmano. volúvel. antigos e atuais). O velho treinador reina em uma poltrona de vime. à esquerda da pista. A tela da televisão exibe um jogo de beisebol. resistir ao pecado. grasnando de horror "[ dan't want nane afthat". não tem muito sucesso: por quinze dólares a foto montada em um quadro de papelão. fechado nos braços tentaculares da dançarina. e eu faço o mesmo. o que é raro. de vestido azul. O bar agora está meio vazio. afável. mas sem grande sucesso. Ela esfrega-se langorosamente em seu tronco e depois enrola-se em volta dele. inclinado. dança langorosamente no palco. com uma plástica de manequim já meio ultrapassada. surpreendentemente permanece em seu lugar. diante de umas sessenta pessoas. quando ela o liberta. durante os combates. grupinhos bebem no bar. Somente dois casais sacodem-se freneticamente ao som agressivo da música. que tira retratos coloridos com uma grande polaróide sofisticada sobre um fundo de jardim tropical (uma pintura cuidadosamente esticada. Há pouco tempo. ele iria se indignar em voz alta. do qual ela se desembaraça prontamente. velho amigo de Charles.co mais adiante. antes de vir provocar os espectadores da primeira fila com os seios nus e rebolando o traseiro. de sua divisória de vidro que fica ao alto. para um strip-tease mútuo. de um chapeleiro de Saint-jean-de-Luz. Ashante fica assim. Ela está vestida com um biquíni fio dental prateado e com um sutiã combinando. mas quando a moça avança para ele. trata-se mais de "dançarinas pornográficas": a moça não hesita em sentar no colo dos clientes para esfregar neles todo o seu corpo. No outro salão. de tal forma que literalmente o envolve com seu longo corpo quase nu (ela tem duas vezes a altura dele). Nem bem ela esboça vir para nosso lado. O fotógrafo da casa. e Eddie já se manda. finalmente. a equipe encarregada de desmontar o ringue já terminou o serviço. com os 254 Lok Wacquant cotovelos apoiados sobre os dois bares que ficam na parede oposta. do trio formado por Ashante. e o pessoal do Studio 104 dobrou as cadeiras. No salão de danças vizinho. enrolou as lonas e rebobinou as cordas. Foi ele quem insistiu para tirar um retrato com DeeDee. em ajoelhar-se entre suas pernas para simular uma felação e em montar a cavalo nos seus ombros (em volta dos quais ela passa delicadamente um guardanapo de limpeza duvidosa. não é de se espantar! Ele tira o retrato de uma moça gorda. mantendo ostensivamente o rosto deles entre as coxas. Enquanto isso. comprada em Montpellier. Depois da exibição do capital corporal masculino. começa a exibição de seu equivalente feminino. uma grande negra magra. convida os clientes a dançar. quando a tentadora avança em sua direção. o que eles fazem de modo obediente. Por que eu deveria olhar para outras mulheres quando tenho minha mulher em casa?") Passemos à fase da remuneração: os homens nos quais a dançarina vem se esfregar agora são convidados a escorregar notas de dinheiro em seu sutiã (que ela vestiu de novo. que se digna até mesmo a sorrir para a teleobjetiva. DeeDee. Anthony permanece com prudência à porta. ou porque têm medo de serem atraídos à força para o palco.255 . Ashante está com uma cara totalmente embaraçada diante desse espetáculo. que. sobretudo homens (muitos boxeadores. Curtis circula de grupo em grupo. COm uma luminosidade parcimoniosa (nem mesmo um estroboscópio ou uma bola espelhada girando). onde?" Quando percebe que é uma brincadeira. . não se atua com delicadeza artística.. eu não acredito! Man. Ela berra que ele está com medo dela e que não é macho o bastante para uma mulher como ela. de todo modo [no-Iww].- ' - .. ela só tem de seguilo até o banheiro. Tim não se faz de rogado e imediatamente abre a 256 LoYc Wocquont Eddie. Liz e DeeDee posam para a tradicional foto depois da luta. ~ '..• '\. No Studio 104. com muitas caretas e expres- sões de êxtase sim uladas.1 •• . "Uuu! Dá um tempo. _. onde ele terá o maior prazer de lhe mostrar o que sabe fazer. ~ . . "O que. ' . já que Tim Adams está acompanhado pela sua namorada do momento. fazendo strip-tease com a dançarina.J~ .~II 'I!" ~' . assisto a uma provocação sexual entre a grande dançarina exótica (ela se sacode com um vestido de franjas desabotoado que deixa à mostra as nádegas nuas) e Tim Adams. na frente dela e de todo mundo.. "Estou ferrado! Eu punha o rabo dele a nocaute.I 1 . li' i' j '. Ela senta-se a cavalo sobre os clientes e imita evidentemente uma cópula. -. nem segundo o simulacro baudrilladiano. desafiando-o a abrir a braguilha ali mesmo. .. knock him cald as a milkshake.'cr • Liz. j- • ." DeeDee levanta-se rapidamente do banquinho. e eu não perco a oportunidade de brincar com ele: "Vimos os seus joelhos tremendo e seu rosto inchando" (ê assim que se fala de um boxeador que se deixa esmurrar). a descontração e o prazer no bar do Studio 104. { . "oi. que já conheceu muitas outras mulheres e que é ela quem está negaceando. DeeDee e Louie.'. o árbitro negro que oficiara a luta pelo título de Curtis. o outro bebe." Pergunto ao velho treinador por que brather Woods (o co-empresário de Curtis e antigo responsável pelo Boys Club de Woodlawn) não está aqui esta noite: "Eu não sei. era só uma lutazinha de aquecimento. ele devia ter vindo..dólar no biquíni dela. (Isso tudo é muito incoerente. ~''' . . Mas isso não tem a menor importância. um ri. "para mostrar o que você tem aí".'- <. Enquanto o espetáculo continua. . Saio do salão de dança e combino com Eddie de dizer a DeeDee que Curtis está no palco. Curtis está pelado com a gata. Visto que está tão segura assim de sua feminilidade." A segunda menina que faz um número de dança é mais «exó- da luta. Corpo e olmo 257 . Ele responde com veemência. .. em Aurora. começa a rir junto com a gente.) A dançarina devolve-lhe a resposta. . Eddie e DeeDee.. chega a deixar que um dos felizes escolhidos a amasse e dê um beijo guloso no rosto. com O copo de uísque na mão.-''''-~:". Está vermelho como um pimentão. . . deixa eu ver isso. tica" ainda que a primeira. mas COln um sorriso nos lábios. Ela excita-o verbalmente: "Tira. "sacola para cachorro") é LIma sacola de papel na qual os comensais de um restaurante levam os restos de scus pratos. ao boxeador. .Opa. Hammer . e eu paro de beber" Nós nos distribuímos em dois carros: Ashante vai para o North Side com Ernie Terrell e dois dos veteranos. sem saber. tem certeza? Você não vai ficar nem um pouco decepcionada. vamos ver quem sai primeiro. Não estou correndo. Ela aproxima-se e mete-lhe a mão no baixo ventre. em contrapartida. pedira às pessoas que se afastassem para me liberar a pista. .na pista. .braguilha.') Já passa da meia-noite. essa coitada da Wanda.minha já consagrada imitação do rapper M.Tira. Eles fazem umas reviravoltas sozinhos pelo salão . fcito esse passo de dança "patenteado') pelo rapper M. a dançarina seminua sai com um andar resoluto e felino.]. eu posso garantir! Você quer? .(2ll) Risos unânimes dos amigos e curiosos que estão em volta dos dois. brincalhona: "Mas eu estou correndo? Estou correndo? Você disse que eles iam ver eu sair do quarto correndo." . entra aí.Combinado. Fanelte. com os cabelos em tranças e vestida com um collant vinho muito flashy. Só restam ali o grupo do Woodlawn e a família de Curtis. vem pra esse quartinho aqui. Você pode me mostrar.Ah! Você quer ver.1291 DeeDee também começa a se balançar no lugar e. está sentada no banco de trás. para grande alegria de Ashante e de Lamar. A última mulher que pôs a mão nele teve que ir buscar um doggy bag pra levar a sobra pra mamãe. Eddie e a moça gorda da rua 63. Tiro fotos no bar e ensaio alguns passos de dança. "Você derruba mais dois caras. eu sigo com DeeDee e Curtis. para roubar-lhe Wanda. há duas horas apenas.Tira que eu faço um [inaudível]. .259 . escondida no escuro. apertam-se na minha Plimouth Valiant. estou avisando pra não me tocar. vamos ver quem vai sair correndo. replica. Liz.. DeeDee cochicha para mim: "Ela é feia mesmo.acho-a tocante com seu grande sorriso de coruja e seu longo vestido vermelho -. Olivier.Okay! Tim finge que vai tirar o seu membro viril da calça entreaberta. dá um toque em Lamar. rim. desencadeando a hilaridade irreprimível do amigo de Tim. Os dois desaparecem no quartinho que. eterno amante das mulheres bonitas. com um gesto teatral que dá a impressão de que se trata de algo de um tamanho excepcional. Apresenta-nos. mais uma vez. Está na hora de levantar acampamento. pronto a exibir seus atributos de macho. estou dizendo pra tirar. membro da equipe olímpica norte-americana de 1960. servia-nos como vestiário. mas. com os quadris de plástica. Eu aposto que você não vai tirar.Não estou com medo de nada que você tenha pra me mostrar. quando ele segura-a vigorosamente pelo braço. Sua namorada.Vamos. desafia a dançarina a tocá-lo. Mas quando subo no jipe. o que ela prontifica-se a fazer. Lo'ic Wacquant Por ocasião de uma noitada dançante cm um clube do South Side. C. DeeDee subitamente toma consciência da presença imprevista dessa jovenzinha e pede explicações a Curtis. C. Isso valeu-me o codinome de" The French I-lammer" ("O Martelo Francês"). onde de poderia designar minha potência de soco . no fim da refeição. Hammer com tamanha perfeição que o D.. está lívida! Dois longos minutos lnais tarde. a mim e a Liz. junto com Ernie Terrel e Mohammad Ali. seguida de perto por um jovial Tim. 258 - Corpo e alma . . tira. para comê-los mais tarde em casa. Este lança para a geral: "Vocês viram quem saiu primeiro?" A moça (24) (2!{) Um doggy bi!g (literalmente. minha querida. porque você não tem nada pra mostrar de verdade. . depois. que merda. deixa eu ver. deixa eu ver o que você tem aí. então vem. que querem a todo preço que eu faça para eles o "Running Man" . descubro que temos companhia: uma pequena jovem negra. )) DeeDee conversa um instante com um velho campeão de peso médio. eu tinha. carregado de ironia no contexto da academia de boxe. Herdou muita grana. ela é feia. o senhor é selva- Os dois compadres brigam violentamente. ela tem até bigode. acompanhando o CD de soul music que toca no rádio. hein.'ns: Bom. não me faz pagar o pato: eu estou nessa que nem você. CUln/. essa não.. é dirigido a Curtis. mas ela é bem servida também [Ioaded]. Durante todo o trajeto. D"D" [incrédulo]: Sozinha? CUlrl'lS [como se o caso estivesse encerrado]: Isso responde à tua pergunta. CUlrns [interrompendo DeeDee aos gritos. de permitir-se os prazeres da vida (os mesmos de que Curtis deve se privar) por causa da sua idade avançada. [fingindo surpresa]: Bom. Segue-se uma longa argumentação a respeito do direito de que DeeDee desfruta. Curtis: Man. você não sabe como ela entrou aqui dentro? DEl'DEE [controlando o exaspero com dificuldade J: Não. CURTrs [subindo de tom. Em voz baixa. não posso fazer nada"]." Apesar do ruído infernal da música. mas o senhor estava sozinho no carro. Tentando tomar o lugar de Derrick. por sobre a música. Curtis ri mais aindaH D"D" [indignado]: Tomar o lugar de Derrick? CU1U'IS: Éééé! D"D.. encolerizado e tentando inverter os papéis]: Mas então como é que ela entrou? DEr:DEE: Ela já estava aí dentro quando eu entrei. Eu deveria ter ficado de olho 110 senhor a noite toda. eu consolo a pobre menina: "Não fique preocupada.: Ele e Wanda? CURTIS [jovial]: Éééé! DEEDEE: Estava me divertindo um pouco. é como um casal de velhos. DeeDee e Curtis brigam também para decidir onde e quando o boxeador deve deixar a menina. é verdade. que finge cantar aos berros. O treinador chega mesmo a ameaçar descer do carro e voltar para casa por conta própria. quando cruzamos a South Chicago Avenue. eu não vi esta senhorita subir aí dentro! 260 Lok Wacquant Corpo e olma . o senhor ." Ela está bem intimidada com a implicância manifesta de DeeDee. Currns [com um tom de zanga]: Por que o senhor está sempre bebendo? D"D" [aborrecido]: Não tenho mais nada pra fazer. lembrando-se da senhora Garney: "É um verdadeiro bicho... você não está na mesma que eu . Essa é uma forma de dizer a Curtis que DeeDee não aprova esse gentil convite de última hora. Nasceu rica. ninguém entrou no carro assim: ela entrou com o Louie . consigo gravar a conversa. eles discutem assim o tempo todo. é. na verdade. (Creio que ele tem uma tendência a ficar cheio de si depois de uma luta: não enxerga seus erros. de vez em quando. A pobre adolescente permanece imóvel. a DeeDee e a mim. E eis que os dois começam uma longa disputa para saber se foi Curtis quem disse à garota para voltar com ele ou se ela subiu no carro antes ou depois do velho treinador. que urra nos alto-falantes do estéreo]: Me divertir? Me divertir? Mas isso não é divertido! carro. é. [ele ri com gosto do xingamento. com certeza. O boxeador de Woodlawn defende-se das críticas de seu treinador. Trechos escolhidos: Dr:r:DEE: Eu bem que gostaria de saber como é que ela entrou no gem [healhe"].enquanto este se prepara para dar a partida. assustada por ser a causa de uma rixa verbal virulenta que vai durar boa parte do trajeto. não estou na mesma.) Os dois riem juntos. carro?") com um tom agressivo que. CU1U'IS [virando-se para a moça]: Você entrou no carro com quem? GAROTA [timidamente]: Sozinha. DEFDEE: É.. só isso.. DeeDee. Ele e Curtis voltam a falar brevemente sobre o combate. é isso aí [subtexto: "Eu atraio as garotas.'. DeeDee insiste para que Curtis vá deixá-la em casa primeiro. hein? Então. CUlrrls: Não. e depois uma discussão para saber se Curtis vai deixar a menina em casa antes ou depois de nos deixar. É por causa daquele copo [inaudível]. ela já estava aí quando o senhor entrou? DEEDEE: Estava. D"D" [calmamente]: Claro que nlio.. já falei pra você. e eu rio com ele l. DeeDee. subentendido: nada de fazer bobagem com ela depois que você me deixar em casa. essa daí.261 . Não estava [inaudível]. e tudo o mais [quando DeeDee dançara com Wanda." "O que você quer dizer com isso?" "Ela é cheia da gaita. para poder ser ouvido. DeeDee cobre-a de perguntas ("Quem é você? Você é namorada de quem? Quantos anos você tem? O que você está aprontando aqui? Queln disse pra você entrar nesse Cur<." "Ééé. Quantas vezes você mandou o cara à lona? Cülfns [virando para mim. a gente pode seguir nesse sentido. paralisada de medo no banco de trás]: Eles batem boca assim o tempo todo. mas pra isso você tem que flexionar os joelhos.] Bom. [Ele eleva a voz para impedir que DeeDee inú:~rrompa-o.. CUlrl'lS: O senhor tem certeza? Daquela vez.. Corpo e alma 263 .DEE: Ele mandou você à lona. Curtis imediatamente aproveita para lhe passar uma nova lição de moral. eu sei. [Breve pausa. como se ele tivesse sacado um grande lance]: Você ganha mais duas lutas. demais.. estamos na South Chicago Avenue. é. CUlfJ'lS: Precisava de alguém que desse uns bons tapas nele [somebody better slap him upside. o senhor é tão demais. ele vocifera. [Referência a uma luta do ano anterior. 1 isso! 262 Lok Wacquant DeeDee anuncia que vai passar para tomar um último gole e terminar a noite em um bar perto de sua casa. DEEDEE [rindo. E isso não está com nada! CURl'IS: O que é que não está com nada? [Erguendo a voz como forma de se defender..toda vez. com seu orgulho recuperado J: Louie. o senhor voltou . pára aqui. DEEDEE: É. ]. e uma vez o árbitro achou que era um escorregão. eu posso saltar! Merda! Eu sei como chegar em casa sozinho. ha. Você leva a senhorita primeiro. bum. CURTIS: De repente.] DEEDEE: Você foi à lona... você se levanta da lona e põe o cara a nocaute no mesmo round. de longe. [ele está um bocado nervoso]: Merda. CUIrI'!S: Saca só. Mas o golpe me pegou na hora que eu ia pegar ele. o senhor não tem necessidade de beber! [Elevando a voz em um tom de cólera fingida. LOUIE: Só faltou ele passar pelas cordas pra se estabacar lá embaixo. ele tem bem uns quarenta combates pra trás.era um knock-down. [. DEEDEE [interrompendo-o]: . que evidentemente não queria ouvir nada das suas explicações. bum! Você levantou e mandou o cara pro chão. e eu paro de beber. CUlnIS: Mas o que é que é isso. Ele é um cara calejndo.. vira aqui à esquerda e estaciona. DeeDee. você sacudiu ele e finalmente mandou ele pras cordas.] E é sempre a mesma coisa . LoulI':: Aqui não pode parar. ha. DEEDEE [interrompendo-o de novo]: . DEF.: E depois você leva o Louie em casa. porque você precisa de muito tempo prrz meter uma coisa tia tua cabeça [get your mind jacked up]. estou dizendo..DEEDEF.] CURTIS: f:. o árbitro computou como um knock-down. ali.] O senhor é demais. [Pausa. não precisa se preocupar... ] A conversa acaba voltando para a luta desta noite. demais que está passando da conta.. depois você me leva e depois vai deixar o Louie em casa: eu não estou maluco. é como com o cara vermelhão que estava acima do peso . mas em vão. ao lado do [inaudível]. [ .] Ao mesmo tempo .. eu não conseguia desviar a guarda dele e passar por ela. é. [Chateado com a atitude indiferente de DeeDee. você derruba mais dois caras. ele mandou uma saraivada de golpes pra todos os lados.] E uma outra vez. ele estava totalmente desorientado. DEEDEE: E você também precisa de muito tempo pra entrar no corpo n corpo. CURTIS [interrompendo-me]: Ele me enfiou uma cabeçada no olho.. quando eu caí. [para a garota. como se fosse um knock-down. e ele dava cotoveladas também. Não tem nada demais nisso .. você está entendendo o que eu estou dizendo pra você? [Pausa.. o mais forte. não é uma escorregadela . Pega a direita. E eu queria . é. o árbitro começou a contar.eu estava tentando alinhar meus pés. pára com isso.. não interessa. eu sei disso. está bem. durante a qual Curtis foi levado à lona por um breve instante por um adversário dez libras mais pesado do que ele. então precisava que eu fizesse de conta que . LOUIl-. DEFDEF [rindo devagar e sacudindo a cabeça]: Ha. [Como Curtis finge que não está escutando. CUlrrrs: Man.. e foi aí que eu saquei que estava na hora de começar o serviço [get busy]. DeeDee. mas com um tom neutro. seja um flash knock-down [quando o boxeador reanima-se imediatamente] ou um knock-down de verdade. E você é. mano Eu vou ter que pôr o senhor pra fora do carro! DEEDEI'.] É.não era um knock-down! Eu estou te falando. Ninguém vai me dar tapa nenhum.] Os fãs adoram DEEDEE: É. três vezes. e toda vez que alguém vai à lona. quantas vezes eu mandei ele à lona? L(lUIE: Ih. eu já falei pro senhor parar com esses porres.. f~ a namorada de Milkman.. então eu teria logo sabido que a coisa estava acabada para nós. o telefone toca um pouco depois do meiodia. ela não tinha nada o que fazer lá dentro do carro. Apresentei pra ele esse animal do Curtis. Dr:EDEE: Ah.. talvez pegue um dia de folga .. uulala! DnDEF [solta um grande arroto]: Se você se levantasse todo mole. eu ouvi. é. Antes eu já espantei um monte delas do gym." Depois. Disse que brigou com ele. ~~~~ c_ "" ~ - ~ -------. que quer contar as novidades. Curtis avisa. depois vai deixar a menina. com certeza.---~ ~ -~I mulher está te chamando no telefone!" [Gargalhadas.. você derruba mais dois sujeitos e eu paro de beber. tua CUlrrrs: Eu me levantei de uma vez só. no gym. hein? LOUIE: É. e eu mandava bem alto: "Curtis. DEEDEF: Mais dois. e que foi por isso que se mandou. éé. antes de ir levar a menina que estava conosco.. no bar da esquina da rua 69 com a Indiana Avenue. quando estou datilografando minhas anotações. Tinha meninas que vinham à academia. Mas eu sabia que você não estava tocado. não há nada que me faça ficar ansio- Uma rua de comércio típica do gueto. De toda forma [no-how]. este deixara-o em casa.265 .. LourF: Eu sou testemunha. "Não fiquei muito tempo. deixando DeeDee por último. [Destacando as palavras. como James Brown rresmungando entredentes]. que vai me levar primeiro.] Você não se levantou bamboleando como [ames Rrown [[ames Brownin'] e tocado [wobbly]. Quem diria . você ouviu isso. No dia seguinte. você ouviu o que ele acabou de dizer.CURTlS: É. é. e como ele ainda não tem nem 16 anos . DeeDee [triunfante]: E de fumar! CUlrrrs [orgulhoso de constatar que DeeDee atribui tanta importância assim ao sucesso de sua carreira 1: O senhor teve medo quando ele me derrubou? DEFDFE [com um tom indiferente 1: Claro que não. Lourr:: De todo modo. ------.. DeeDee. com medo de mim. Hoje. a tensão nervosa que envolve um combate é sempre extenuante. E ela é ainda mais nova do que estava dizendo. e eu perguntava [com uma voz fria e dura]: "No que é que vocês estão se metendo aí?" Tinha uma menina que vinha para ver Curtis. salto para a calçada e dizemos até amanhã. assim. todo satisfeito. Shit. 264 Lok Wacquant Corpo e alma . só eu e o garçom.] Ele ficava puto [pissed] . É DeeDee. "E não vão ficar pensando que vocês vão me dizer onde é que eu tenho que ir: o único lugar onde vocês me dizem o que eu tenho que fazer é no ringue!" O jipe Comanche faz escala diante do meu prédio. não vou à academia. CUlrrrs: Por que não? DEfDEE [sacudindo a cabeça]: Uh. Ela se sentava perto do ringue. Ainda está de ressaca do uísque de qualidade duvidosa que tomou ontem à noite .. desde a pesagem até a volta do Studio 104. não tinha ninguém.-_o __-----.terminou a noitada em companhia de Curtis e da menina. uh! Curnrs [incrédulo]: Por que não? Por que não? DErDEE: Por quê? Porque eu vi como você se levantou. você fez ela passar um mau pedaço. É verdade que estamos todos precisando de descanso: foi uma longa jornada. Quando chegamos à Cottage Grave Avenue. e mesmo que DeeDee afirme que não ficou preocupado com nada. DEr:DEF: Eu vou cair de pau em cima dele e lhe dar uma boa por causa dessa menina. é isso! Louie. "Oh! Não estou ansioso. porque já estava muito velho (ele tinha 24 anos. Ele mandou Hannah à lona no mesmo round. se deitar nas cordas e. Sei muito bem o que ele faz no ringue. enquanto Mike Tyson estava apenas com 14). por pouco eu não estava achando que era Jesus Cristo que estava na cidade'.quer dizer. sentado em sua cama na cozinha. O velho treinador queixa-se novamente do velho Page.o que vai acontecer pela primeira vez nos três anos que eu freqüento a academia. depois você fica relaxado. e eu sei que ele sabe. ele é legal [awright]. não estou nem aí. isso não me afeta em nada. levantou e meteu o rabo do cara na lona. mas ele sabe o que faz. quando ele lutou com esse sujeito grandalhão [big boy]: deixou-se levar à lona. permanecer passivo nas cordas de modo a deixar o adversário se cansar de bater em suas luvas." Talvez DeeDee vá ficar descansando em casa e deixar o gym fechado hoje . Ele estava na reunião de ontem à noite. com muita reticência: "Não sei se Eddie vai estar lá. atualmente. que telefonou para ele esta manhã outra vez: "Queria me dizer que AI Evans está na cidade [com uma voz falsamente excitada]: 'AI Evans está na cidade. cujo único título de glória foi ter posto Mike Tyson a nocaute há cerca de dez anos. [I don't let nuthin' bother me. e depois que terminou Corpo e alma 267 . Eu sei que ele sabe o que faz.] O que tiver que pintar pinta. As pessoas não sabem.estes sempre têm necessidade de um peso pesado para servir como punching-ball para seus pupilos. Essa luta não foi nada." DeeDee é da opinião de que Curtis não tem. Eu disse pra ele: 'Man. e o locutor do Studio 104 apresentou-o à platéia. Não há muitos caras com quem ele possa calçar as luvas e trabalhar duro . um nin-guém [no-thin'. E você está aí todo excitado. sabia que ele não sentira o golpe. e teria mandado ele a nocaute se tivesse mantido a pressão. Não é nada demais. alguém com quem possa treinar em seu próprio nível: ele bate muito seco. Depois de cinqüenta anos dessa coisa. não pode trabalhar duro com ele. a maneira como se levantou. "É um carinha simpático. Mas por que diabos eu iria ligar pra alguém de manhãzinha pra dizer que AI Evans está na cidade? Isso nunca me passaria pela cabeça. e não tem paciência com seus parceiros de sparring.so. ele tornou-se profissional e colecionou cinco derrotas em seis combates. "vende-se" como parceiro de sparring nos campos de treinamento dos grandes promotores nacionais . depois. quando você calça as luvas. nem quero saber. Ele fazia isso com Keith na academia. na luta. no-bo-dy]. de um jeito ou de outro [no-how]. DeeDee!' Mas. e Ashante ainda não está pronto. isso vem do gym: ele não pode esquentar a coisa como quiser na academia. quando treina com Keith. Mas isso. Foi o mesmo que aconteceu em Harvey. Isso vira um hábito. Mas depois. por ocasião de um torneiozinho de amadores do qual 266 Lo"ic Wacquant DeeDee. Nada com o que se assustar [nuthin's the matter]. ele não deveria nem ter participado." AI é um boxeador local de segunda linha. por que você está me contando isso. ele não consegue fazer nada. quem vai se deitar é você. Depois disso. Não esquento a cabeça com nada. conversa sobre boxe ao telefone. no gym.Rodney e Tony não estão lá agora. porra.] Se você faz isso muito tempo. Louie. quem é AI Evans? Um nada de na-da. e a coisa quase parou por aí. muito rápido. Faz as mesmas palhaçadas habituais da academia [pull that shit . Mesmo quando Curtis foi à lona. eu observei bem ele. Theory 8Jld Society. Down Notas 1. Berkeley: University ofCalifornia Press. Mcall busilless: the risc and fall of Shawn O'Sullivan. prizefighting economy". no~ vembro de 1998. Michael J. Patricia A. Encontra-se também uma versão no relato que um "traficante de ruas" faz de sua vida no South Si de (Lolc Wacquant. 3. Urbana: University of IIlinois Press. 1988. v. 22.1992. em matéria de alimentação. 1993. Perguntei a Anthony se tinha sido ele. 16. I. "Cultural brokers: race-based hiring in inner City Neighborhoods". LOle Wacquant. Steve Brunt. Reading (Massachusetts: Addison-Wesley. 6. e Thomas Kochman. p. Becker. pode-se consultar Roger D. AUgHSt 11-12. 15. I heard it through the grapeville: rumor in AfricanAmcricall culture. mais de uma vez. Body Language.: "A Zona". 1972). La misere du monde. 1993. 4. n. que entrou lá e pegou as luvas. "Sacrifice". 27 de outubro de 1990. Lo"ic Wacquant. In: Pierre Bourdieu cC aI. 14. 41. p. 1997.269 . 9. 471. 181-204 [trad. Abrahams. "The prizefighter's three bodies". 1·42. fevereiro de 1998. 10. sumiu um par de luvas. Não gosto nem um pouco que eles entrem na academia e mexam no material. Lo"ic Wacquant. In: Gerald Early (org. Ethnos. Englewood Cliffs: Prentice Hall. 1995. A miséria do mundo.47·59. Talvez tenha sido um desses. 1963. abril de 1998. em LOle Wacquant. Montpellier. 1993. art. p. The world fram Brown's lounge: au echnography ofblack middie·dass piar. 2.). ler "Bienvenlle au ghetto". United States Senate. Sobre o local das disputas verbais e a importância da arte de bem falar na cultura e na sociabilidade afro~americana urbanas (da qual o rap é o recen- te avatar na esfera comercial). ler o belo livro de 268 - Lo"ic Wacquant Corpo e olma . 1983. cit. Les Cahiers de l'IRSA. 223-233. Howard S. 3. p. v. p. "'The zone': le métier de 'hustler' dans le ghetto noir américain". Petrópolis: Vozes. Teddy Brenner e Brian Nagler. "A flesh peddler at work". ele nunca trabalha com os outros rapazes. 27. 1981. Sobre eSSa ética do domínio corporal diante da qual o boxista deve curvarse e sobre as privações que ela implica. pp 177-201]. 1992). Harmondsworth: Penguin. I1. 325-352. OnIr the ring was square.. 6-14. p. "A tlesh peddler at work: power. Para um breve relato dessa experimentação sociológico-pugilística. Paris: Sellil. Minnesota: GraywolfPress. Saint Paul.. 201.Jin Yoon. Já. the permanent Committee ou GovernmclltaJ Affairs. American Behavioral Scientist. In. e ele me disse que não. p. esse Eddie. Nova York: The Free Press. p. 2. n. "La boxe et le blues". Washington: Govemment Printing Office. v. On my OW1J: Korean business and race relations in America. One Hundred Second Congress. P. 1963). 63. 7. In Pierre Bourdieu eC ai. ler LOle Wacquant. Cf. Crackhouse: notes fram the cnd of the linc. 5. Hearing Oll corruptioI1 in professionaJ boxing before the jrlllgle. 12.. Bell. dt. p. L'Equipe Magazine. Cambridge: Cambridge U. Scarching for rcspect: sel1ing erack in El Barrio. art. Lo"ic Wacquant. de vida familiar e de comércio sexual. 8. n. 1997. pain and profit in the 13. E sempre há os garotos que vão se encontrar lá. fevereiro de 1998. em seu gym." DeeDee está em seu elemento. Philippe Bourgois. 23-30. 927-937. 7. Pode-se encontrar uma análise desse ofício. Outsiders: studies in the socioJogy of deviance. bras. Turner. Jennifer Lee.com Lorenzo e Keith. p. p. Chicago: Thc University of Chicago Press. Sobre o papel-chave desses estabelecimentos na reprodução da sociabilidade expressiva da comunidade negra norte-americana. Rappillg' aud stylin' out: commullication i11 urball bIack America (Urbana: University ofIllinois Press. 11. 1987. 68·71 e 75. assim como da organização econômica e financeira do boxe profissional nos Estados Unidos. n. Ver Terry Williams. "A flesh peddler at work". Negro narra tive folk1ore from me streets ofPhiIadelphia (Nova York: Aldine de Gruyter. Sacrifício! A palavra retorna sem cessar à boca do velho treinador DeeDee. DeeDee vagueou por todos os gyms do South Side antes de exilar-se durante vários anos na Ásia. por vezes ínfimos. e outro tanto de golpes dados. Osaka e Manila. milhares de gestos. subo ao ringue. Tony Zale. Sonny Liston. simples ou com- "Busy Louie" em seu córner. Ernie Terrell. incansavelmente repetidos e apurados.271 . Hora da verdade. Los Angeles. Aprendeu seu ofício sob a batuta de Jack Blackburn. para curar-se de um desgosto amoroso. encaixados e não encaixados. Ansiedade. Chegaram as Chicago Golden Gloves. Corpo e akna . o mais prestigioso torneio amador da cidade. na miséria do gueto negro. mas sempre caprichados. antes do combate. que fazia seu passeio diário no Parque Washington. conhecido na matéria: meio século devorado nos bastidores dos ringues de Chicago. recebidos. Orgulhoso de seus quase setenta anos. impaciência. Esta noite. tudo misturado. Cassius Clay aí poliram suas primeiras armas e aí provocaram as primeiras devastações."Busy Louie" nas Golden Gloves ete semanas de preparação: Cinqüenta dias de labuta e de suor.' Dez quilômetros percorridos a cada manhã. de caretas. plicados. exatamente onde vou correr toda manhã. preparar-se para um combate é como ingressar em uma religião. carregando em seu rastro a legenda das horas de glória da Nobre Arte. De volta a Chicago. Rápido. o treinador de Joe Louis. no curso de uma vida com o perfil de uma montanha-russa. quando o Chicago Stadium e o Madison Square Garden de Nova York disputavam as luzes do palco pugilístico. de "devoção monástica". no frio polar do inverno de S Chicago. de dúvida e de entusiasmo. como bem diz Joyce Carol Oates. está chegando! Tornar-se boxeador. assobios. Todo dia. ao mesmo tempo refúgio e oficina. ou num cinema de subúrbio. sapatos fechados. segundo a minha experiênciaque. esgrimir (os olhos. para deixar o saco de bater passar. de escudo e de alvo para o pugilista. breve e intensa: dois campeões do mundo. Que impregna o corpo por todos os poros. os pugilistas são pessoas cheias de doçura. economia da vontade e do corpo que ele produz aos poucos. se virando. depois segui-lo com um direto de direita. o norte-americano Alphonzo Ratliff. onde os freqüentadores habituais arrumam seus instrumentos de trabalho ao fim do dia: luvas gastas. a um verdadeiro ritual de mortificação. esculpe-o no combate. feito de sons. quando evocava o es272 Lo"ic Wacquant Corpo e olmo - 273 . É aí que ele simplesmente é. mas uma belíssima embrulhada!". Preparar-se para um combate é submeter-se. retomá-lo no vôo com um gancho de esquerda a meia altura. seus ritmos que. Até mesmo nos domingos de véspera de combate. Esquecidos antes mesmo de se terem tornado conhecidos do grande público. no cruzamento de Halsted com a rua 43. "Você ganha seu combate no gym"." Na verdade. sussurros. dia após dia. Não muito aUo nem mais amplo. imprevisível e temida. sobe ao longo do teto despencado. Não se arrepende de nada. DeeDee sobrevive como pode. ou melhor. a tado da natureza. tem dias que não consigo suportá-lo. visam tanto a fazê-los esquecer os combates como a prepará-los para eles. ácidos. não é tanto a brutalidade das lutas que leva os profissionais no final de carreira a repor as luvas. depois de ter conhecido sua hora de glória. no International Amphitheater. roupões rasgados de cores outrora audaciosas.e com razão. abre o gym em uma hora determinada e fecha as agressivas grades exatamente às sete horas. como se estivessem ávidas de exteriorizar essa gentileza que lhes é proibida entre as cordas. desliza sobre os sacos de bater. respirar. estirado até o infinito. ao mesmo tempo. sobretudo os boxeadores. sorrindo. deslizar um passo para um lado. onde se fabricam essas mecânicas de alta precisãO que são os boxeadores. planejada. A vida do boxeador no ringue é essa existência "miserável. uma atmosfera espessa. alimenta-o e excita-o por todos os nervos. "Essa droga de gym. O gym. bandanas manchadas de suor. Se você quer fazer a coisa direito. Por comparação. mas de uma violência desejada. mas sim os rigores intratáveis e incontornáveis do treinamento. Trabalhar no saco de areia é fabricar uma peça com esses instrumentos grosseiros que são os punhos dentro de luvas. pesada pela sua própria monotonia. Redobrá-lo no rosto com um movimento curto e seco. Sua vida não passa de um enorme sacrifício a essa ciência da luta. fora do ringue. seus ritos impregnados de minúcia. os pés). Ela alimenta-se não de uma violência sofrida. consentida. 3 Encontrar a distância certa. (1) Freqüentemente destaca-se2 . não pode fazer outra coisa. repetem os veteranos até a saciedade. brutal e curta" de que falava Thomas Hobbes. batidas de luvas no saco de areia. Instrumento e peça fundem -se nesse mesmo corpo que serve de anna. que se forja o combatente. penetra-o e modela-o. A academia do Woodlawn Boys Club será sua última escala. auto-inflingida. a vida que ele leva no gym parece feita de langores e de doçura.l l ) Ela tem seu tempo próprio. porque controlada. Cinzenta. segundo métodos em aparência arcaicos. Atualmente.em um andamento sincopado e persistente. Domesticada. que oscilam na ponta de suas correntes. Hoje. as mãos. quase sufocante.ou daquilo que resta dele." Mas nada poderia arredá-lo do gym. "Minha vida não passou de uma gigantesca embrulhada. Ele que o diga! Sacrifício! A palavra destaca-se contra as paredes amareladas da academia. capacetes de sparring. Porque o gym é usina. quando seus pupilos se apresentam no Park West. é antes de mais nada. ranger de correntes. "ra-ta-ta-ta-ta" inimitável da pêra de velocidade . para não deixar que adivinhem o seu gesto. à qual ele se dedicou totalmente e que lhe rendeu tanto e tão pouco. paradoxalmente. esses homens que sonham acordados com a imortalidade. ressoa nos armários metálicos. Nada escapa ao tempo. os ombros. Esqueçam o ringue: é na penumbra anônima e banal do salão de treinamento. mas quão sábios e já comprovados. É preciso que você tenha isso na cabeça o tempo todo. É um microclima. o filipino Roberto Cruz. de uma sinfonia de ruídos específicos. compreendo melhor do que antes por que DeeDee sempre grunhe que "ser boxeador é uma profissão que toma vinte e quatro horas por dia. São também odores tenazes. imediatamente reconhecíveis entre milhares . fechada e rudimentar. galope regular do pulo na corda. diz-me ele. Na América. é isso aí. Assim. A municipalidade prometeu derrubar o cinema Maryland. como marido e mulher". Tente manter a mão esquerda mais alta. que não se tem tempo algum para recuar no ringue. não é nada bom ser jovem. Cresci num canto barra-pesada. ao trabalho. "Mexa a cabeça. O gym é o antídoto contra a rua. "É Corpo e alma . Sim. porque ele serve. boxe. transfere-se o peso do corpo para a outra perna. encouraçado. nunca se sabe.os brancos. Me proteger da rua. estar se candidatando ao título mundial WBO entre os pesos meio-médios. hesitante. tenso. quando você sai do corpo a corpo. os policiais. Secos! Mira bem o pescoço e bata como se quisesse passar através dele. E. para resumir-se ao máximo a um corpo fechado. Pensar! f' com a cabeça que agente boxeia. Porque quando você está no gym. um lugar em que vou todos os dias. ou certamente morto em algum lugar. trocam-se. gente boa! Não é um saco de bater que está na tua frente. os negros" bourzois") COIno diz meu camarada Ashante. futebol americano. . nem de se defender dos tiros. sobretudo. ainda estou sentindo meu maxilar. Depois de dez anos de ringue. prisão. explica-me Eddie. poucos gestos inúteis na academia. O pé de trás gira levemente. Lorenzo espera.. O gym é um lugar protegido. todas as pessoas estabelecidas que se afastam com um arrepio quando você entra no ônibus." E. "Isso aqui não é uma sala de visitas. 16 vitôrias e um empate entre os profissionais. "Quantas vezes eu já disse a você que precisa pensar. Butch assume o ofício de conselheiro técnico espontâneo: "Um batedor que cai em cima de você. o assunto é inesgotável. Somente dura. como Torres." Depois que um ferimento na mão interrompeu sua carreira promissora. "Dispara esse jabe! Manda brasa! Faça o couro ressoar com tua esquerda! Redobre o jabe e manda uma direita depois. mulheres. O gym é também covil. é possível fechar-se sobre si mesmo. 4 No estreito reduto de paredes de gesso gordurosas.. Um passo para a esquerda. por força do hábito. boxe.virando bem o punho à maneira de uma chave de fenda. brigas. Aí vem-se encontrar refúgio. descansar da luz e do olhar crus e cruéis que lhe lançam de fora . então. esse direto de esquerda em torno do qual tudo revoluciona. e se o gym fechasse? Curtis nem quer pensar nesse assunto. entre os seus. Do exterior. Fica-se não sabe se defender. e encadeia-se Uln jabe. Keith. quando o bairro branco e próspero de Woodlawn foi brutalmente transformado em gueto negro. do comodismo. ele "tem muita fome". justo na hora do impacto. é bOln pensar no que vou fazer antes de fazer. Comenta-se o sparring: "Você me tocou com a direita. os patrões e os chefetes. como instrumen to para afastar (defesa) e alvo (ataque). você não está aqui para conversar. É que a cabeça está no corpo e o corpo está na cabeça. risos e. como os punhos. Holyfield subiu de categoria de peso com o limite mínimo. mas a voz de DeeDee. Boxear é um pouco como jogar xadrez com as tripas. E depois. onde tudo é mandado por reflexos. tapinhas." Aposta-se em Holyfield a três contra um: o jamaicano "Razar" Ruddock tem soco. exatamente o necessário para dar ao corpo o ângulo que minimiza a superfície atingível oferecida ao adversário. Provavelmente em cana. no íntimo. ao mesmo tempo. você deixa ele vir em cüna e contra-ataca com jabes secos. o treinador assistente da academia. para lnim. Giro de quadris de novo. em algumas frações de segundos.275 . sentados sobre a única mesa de madeira que serve como banco. confia-me ele. pelo menos." É preciso não se enganar: o trabalho no saco de bater é tanto mental como físico.boxe. "O gancho de esquerda e o direto de direita caminham juntos. de modo a alinhar a aresta do pulso horizontalmente." E se o gym fechasse? Corre o boato. rap music. é um homem!". no entanto. Coloca-se entre parênteses uma vida que nem mais se considera injusta. em breve. ressoa xa a guarda de verdade. Louie. no gym. com uma parcimônia pudica. boxe. COln certeza. sempre. Nunca se bai274 Lo"ic Wacquant bacana para mim. produzindo arrepios. de si mesmo.. Você ainda leva muitos golpes. Cliff. que ocupa o prédio ao lado. olhares. você sabe onde você está. "não sei onde eu estaria . todo mundo sabe. esse santuário último. Cada hora passada entre as paredes da academia é sempre uma hora subtraída do asfalto da avenida 63. palavras. pobre e negro. Poucas palavras. mesmo atrás das portas do vestiário. work!" Todos esforçam-se para endurecer. A própria distinção dissolve-se no Suor acre que me escorre pelos olhos. por ter sofrido na carne. não tem que se preocupar com as encrencas. uma carcaça de tijolos e de pranchas condenada desde meados dos anos 1970. "Se não fosse pelo boxe". ainda e mais. pintadas de azul berrante. Conversase furtivamente . Conta-se que Alphonso Ratliff ganhou esse famoso milhão. está tudo aí! Sair 276 Lok Wacquant do anonimato.. A verdade é bem menos dourada: O maior cachê que recebeu não ultrapassou os trinta mil dólares.. do promotor. bem longe disso. pelos amigos ou pelos garotos do bairro. Pra mim também . talvez um dia . refrigerantes nem pensar. ir dormir cedo. o alimento de suas bocas.(2) Um boxeador. você precisa ganhar ela no ringue. de tirarem o presente de Natal dos meus filhos. vou mudar tudo isso. com todo o seu coração e com todo o seu corpo: "Quero ser alguém.como tirar a casa das crianças. Evitar pão. perseverança. com força de vontade. o gym é uma máquina de retirar da in-diferença. você sabe o que ela tem de especial? Eu vou dizer pra você: você não pode comprar ela numa loja. reconhecido. De glória.tomar cuidado com o teu corpo. com certeza. ex-boxeador que diza seu irmão. de sucesso. Vou abrir lojas com grandes cartazes de néon. pelas pessoas da vizinhança. Eu poderia ser alguém. "Você não entende? Eu poderia ter tido classe. Ela não é temida. essa personagem pungente de Leonard Gardncr. largar as mulheres de lado e tudo o mais ." O gym é também. percebeu? É o sonho de uma vida! Golden Gloves! Você não sabe que você vai aparecer na televisão e tudo o mais? Man!" Curtis dá tapas frenéticos no peito de Chears. E tem carinhas mais velhos que tentam parar com a bebida e com a droga. Curtis fala em reconstruir esse corredor do desespero que é a avenida 63: "Você vê esses edifícios queimados.5 levado à tela por John Houston no filme de mesmo nome. isso só dependeria do tempo de alguns poucos rounds. "O serviço no gym é a metade do trabalho. de dinheiro. a duras penas." E das Golden Glove ao Caesar's Palace. e um pouco mais se o Telemundo. em uma famosa cena de On the Waterfront. é só. e que anda a pleno vapor. ela não é evitada a qualquer preço" .. antítese e antídoto do dealerda droga que todo mundo conhece e inveja. no ringue. como aqueles que brigam para carregar a mochila de Curtis e que seguem suas idas e vindas com olhares de admiração. peito de frango e filé de peru. Mas o sacrifício não começa nem pára no limiar da academia. ao mesmo tempo que o despreza. Lembramo-nos do solilóquio de Marlon Brando. Que importa se a bolsa dos pugilistas que são chamados de boxistas "de clube" não ultrapassa. não existe . sexo: a santíssima trindade do culto pugilísticoJ DeeDee prescreveu-me um regime de peixe branco. A derrota não marca o homem com um ferro em brasa. "somente o fato de subir ao ringue é uma promoção.. um centro de desintoxicação. do público. sem descontar a parte dos empresários' do treinador. F<lt City. mas isso não quer dizer nada! Isso está na sua cabeça. que ficam zanzando na rua e vêm ao gym exatamente para escapar da rua. uma máquina de sonhos. sacrifícios e com conexões bem-feitas. e sobretudo.277 . sacou. Nada impede! Enquanto espera. em último caso. açúcar. Eu poderia ser um pretendente. Você está falando de me tirarem minha razão de viver. todos esses terrenos baldios. nem que seja. as duzentas notas por uma luta de quatro rounds. Mas as Golden Gloves são muito mais que isso. e que vêm à academia tentar se desintoxicar. as pessoas sem trabalho e que se drogam. isso já é o bastante. esse areópago que fervilha e multiplica-se desde que se começa a pôr a cabeça um pouco para fora. mil dólares para um combate que encabeça um programa atraente. é só Wll passo. por si mesmas. é isso. conhecido. Quando eu for campeão do mundo. Eu existo. uma cadeia hispanófona da cidade." Quando eu for campeão do mundo . comparado com a privação na (2) Segundo o paradigma dado por Tully.. antes de se deixar demolir por Tyson em Las Vegas. em dez rounds. é um ser que grita. da má sorte.. Estamos longe dessa conta.. uma galáxia.é UIna cisma..fi Corpo e alma . É como se estivessem tomando alguma coisa das pessoas daqui. esse torneio é um título que todos os homens sonham ter. digna-se a deslocar suas câmeras. Como escreve Jean-François Laé. "Saca só. Isso não é possível. elas são." Mas privar-se na alimentação não é nada. Você tem um bocado de jovens no bairro. Tem um grande significado." Ser alguém. é claro. Ser um role model." Alimentação. acompanhados por legumes cozidos e frutas. Ganhar um milhão de dólares em uma noite . da in-existência. levantar cedo para o footing. A outra metade é a disciplina: comer como é necessário. Quem sabe se. E se eu ainda tiver fome? Ele pragueja: "Ter fome. um serviço de emergência e depois um clube para os jovens." Que morre de vontade de ser visto. sono. do cutman. tudo o mais. regados a chá e água natural. "Essa camiseta das Golden Gloves. boxear-suar. você fica tão impressionado que nem sabe o que fazer. "Boxhead" john ficou descontente. Anthony está sentado atrás da lnesa de DeeDee. É espadaúdo. "Machine Gun" Ashante. É preciso que eu seja mais esperto durante a luta com sparring.o que é um bom sinal. ele daria um bom boxeador. com esse regime draconiano. um feixe de nervos e de ódio que se esfalfa irremediavelmente no segundo round. ele tem medo que Bonnie. depois Corpo e alma . não vou agora botar tudo a perder pra ficar com uma gata. E com razão: "Quando você goza. deixou-se esmurrar belíssimamente por ocasião de sua Vinte e nove de janeiro. Faz dez anos que ele espera esse encontro. pode-se dizer que ele é um Marvin Hagler em miniatura. metade do caminho já está percorrida. Louie. você perde o sangue que vem da coluna vertebral. Isso não é vida. Afirma-se e acredita-se piamente que é preciso ficar sem sexo durante as longas semanas que precedem o combate. O Fred. de hábito." Ashante chama-me à ordem: "Agora você deixa a tua mulher em paz. mas sem conseqüências. É que vai fazer cinco semanas que ele não toca na noiva. Louie. Às vezes. no ano passado. Que saco." Dia D menos dez. "É uma puta pena. "Não vou agüentar." Pior de tudo. gabava-se de transar todas as noites f. Todos os dias. eu digo porque já experimentei. começo meu primeiro mês de treinamento intensivo com três frustrantes rounds com Ashante como sparring. vá buscar consolo natural nos braços de um outro. Resumindo: "Nem me fale dessas mulheres. mas sinto-me mais resistente. porque transar amolece. e Ashante não tem a menor dificuldade de atravessar minha guarda para me encher o tronco de ganchos curtos. Lorenzo "The Stallion" Smith. Termino um tanto zonzo. Perdi quatro quilos desde o Natal. Ashante acalma-me e avisa-me de que vou entrar em pânico logo no começo: "No teu primeiro combate. Eu poderia te dar uma lista de boxeadores que foram enterrados pra sempre pelas mulheres. Não consigo encontrar meu ritmo. A academia está cheia e fervilha como uma colméia.cama. Não sei o que dizer. Eu estava tão deprimido depois que queria largar tudo. pouco a pouco. a cara sombria. É uma verdadeira tortura esse roadwork. de longe. que tentou arrancar minha cabe- saber. com sua cabeça raspada e seu famoso olhar. a doce Bonnie. todos os dias! Estou realmente de saco cheio. então. o sacrifício mais penoso. Big Earl e mesmo "Rockin'" Rodney Wilson vieram expressamente para fazer trabalhar os candidatos às Golden Gloves. como conseqüência prevista por todos. Faz-se ma para vestir as luvas. nem conter seus ata- primeira luta."(3) (3) Declaração de Paddy Flood." Esse é." O pequeno Reese não é menos categórico: "Esse sexo é um monstro. Ele contra-ataca com um tape-tape-tape e me atinge a garganta com uma combinação em pleno rosto: pum-pum! A cabeça voa para trás. Estou furioso com Aaron. bate bem e sabe encaixar. A tensão aumenta a cada dia. enfraquece. Cinco de fevereiro: uma hora de corrida com o cachorro. Suas direitas na parte de baixo do crânio fizeram-me ver estrelas. O ringue não esvazia durante duas horas.. Louie? Estou cansado. precipitados. boxear-suar. sob uma fina chuva fria. o velho Smithie. é melhor largar tudo agora mesmo. A mulher é o objeto de todos os desejos e de todos os terrores. fragiliza. Debaixo do chuveiro. R ça durante três rounds. hoje de manhã. Meu corpo habitua-se. "Quer ques. Foi assim que perdi minhas duas primeiras lutas como amador." Fat joe.279 278 - Lore Wacquant . nunca o vira nesse estado. Todos os dias boxear-suar. você tem dois adversários: o cara que está na tua frente e o público." Seu olhar fugidio pára no teto. que. Meus golpes são desajeitados. a mesma história. só faltam três semanas para a luta. treinador de Sugar Ray Leonard entre os amadores. Digo a mim mesmo que nunca serei um boxeador. é transbordante de energia e treina com um afinco que beira a histeria. o tronco nu. desordenados. ele. semigrogue nos vestiários e deixo o gym exaurido física e mentalmente. uma lista tão longa que ia cortar o teu coração. Consegui mandar-lhe uma esquerda na têmpora.. ou então não vou conseguir chegar lá. Os conselhos e as broncas de DeeDee fazem -se mais vivos e mais consis- tentes à medida que se aproxima a data fatídica . Mas gosta demais de mulher. Os profissionais. não vou agüentar. que. mano Isso te mata. e vai lutar novamente daqui a duas semanas. agora prepara-se com a seriedade de um papa: "Disse pra minha namorada: nem pensar! Espera até depois do torneio. não é?" Deplora-se a falta de continência de Fred. Deixei de pegar esse serviço de 300 dólares por semana pra treinar pra valer e ganhar o título. mede as diferentes combinações possíveis. Louie?". Dois superligeiros da cor de café com leite conversam ao meu lado. Fique preguiçoso e relaxe. o invencível. Meus golpes saem certos. antes de fannar os pares mais harmoniosos. Ereto. biscoitos Peperrideg Farm e um sorvete. "Você ainda não ouviu a novidade. com vagar. esse Tyson que parecia tão pouco humano de tanto que aterrorizava os adversários antes mesmo que eles subissem ao ringue. Eu "luto» quatro rounds no ringue. Você viu a gordura que ele tem nas costas? Não estava preparado. James e Mark já se pesaram e vestiram.281 . no carro. Isso só faz agravar meu mal-estar. estou mole e sem forças. Todos os tamanhos. Completo a sessão com três rounds no saco de bater. sonda Anthony. humilhado até a raiz dos cabelos. A pesagem. Tomo um longo banho quente e tento acalmar-me atacando os chocolates recheados com menta. custavam a acreditar. Há baixinhos massudos que só usam os óculos escuros e o calção. todas as cores. com um jeito de contadores desgarrados. De volta. o carteiro bonachão que nos acompanha à pesagem em seu microônibus. freqüentava prostíbulos. Que novidade? Tyson deixou-se esmurrar por "Buster" DougIas! O quê? "Iron" Mike Tyson. Cento e trinta e sete libras. Não desperdice energia. para não cansar as pernas. tentando convencer uma imprensa incrédula de que Tyson. Tenho vergonha de estar entre eles. Agiote parece dar um nó. imprensada em camadas moventes em um subsolo sem abertura para fora. é preciso conservá-Ia até a luta. espremidos contra a parede. impávido. tomo uma ducha em companhia de Smithie: "Na véspera da tua luta. tem alguma coisa de irreal e cômico. não fique de pé. DeeDee inquieta-se para saber se Rico vai poder lutar de barriga vazia. Rico luta como um velho soldado no saco de uppercut. Subitamente. vigorosos. todas as formas. É no domingo. com seu minúsculo sexo ao ar livre. Agora. cheio de concentração. com deleite. uma angústia difusa invade-me. três pulando corda e uma série mortal de abdominais. Um grande peso pesado da cor de ébano exercita seus músculos. balança de um lado para o outro completamente nu. consigo melhorar a defesa. liqüidado? Mesmo os que assistiram ao combate. depois do almoço.que deixou o seu Alabama natal e calçou suas primeiras luvas no Exército. Tempestade no céu do gym. dois com Reese e dois com Ashante. boca pastosa. os emparelhamentos ótimos para o sparring. O negativo de 280 LoTe Wacquant I Don King. permaneça o máximo possível na cama ou alongado num sofá. Aborreço Liz perguntando-lhe a todo instante que horas são. estou na balança. acabado. A cena apresenta toda uma combinação de circo. Um porto-riquenho engordurado. não treinou com seriedade. acalma Cliff. Há uma semana não se vê Fred. a minha mão com um desses soul shakesdos quais ele tem o segredo: "Alright. foi vítima de um erro de arbitragem. por vezes. não têm o que comer em casa. com uma cara de leitão rodeada por longas suíças e cabelos oleosos. Isso vai dar uma boa lição nele: você não brinca com a ciência do boxe. três na jab-bag. DeeDee pesa. Alguns minutos mais tarde. para grande prazer de seus companheiros. enquanto um branco com a barriga flácida exibe um enorme calção dentro do qual parece estar escondido um gordo esquadro. Tenho a impressão de que peguei um resfriado: dor no pescoço. "Mighty" Mark Chears empapa sob o capuz. Certamente está treinando com seus companheiros da gangue dos Discípulos. bem tarde) por mna cadeia paga. lançando olhares coléricos a seus adversários potenciais." Anthony aperta. enquanto espera para subir na balança de metal. de querer boxear por curiosidade instruída e por espírito de jogo. Com o corpo dolorido. todos os gabaritos estão representados. ontem. uma dor de barriga vaga me enlouquece. Isso é superimportante: agora você está cheio de energia. não houve nada de misterioso: "Tyson got his ass whipped. chama Rico. em alguma parte na avenida 73. Corpo e alma . Rico. pensando na luta. que explodem de rir. tem algo que faz temer e rir ao mesmo tempo. Primeiro. sinto-me fraco. que fico cada vez mais nervoso. na lona. que gesticula e espuma de Tóquio. Louie vai lutar amanhã à noite!" Podese pensar que ele espera o meu combate com mais impaciência que os dele próprio. pugnazes. porque sei muito bem que tudo isso é péssimo para meu organismo. em um ginásio do North Side. de museu de anatomia e de matadouro: essa carne humana. interpela-me O'Bannon. soberbo. nariz escorrendo. Foto. Nelson Mandela emerge de 23 anos de cativeiro para todas as telas de televisão do mundo. No entanto." Dia D menos um. mau sinal. contam-me que os pais de Rico e de Reese passam tanta necessidade que. explodindo de dignidade. esse cara. protetor bucal?" Ele remexe o fundo da sacola e retira uma pequena garrafinha amarronzada. a idéia de ser um dos portadores das esperanças do Boys Club acalma-me. molha delicadamente um dos cotonetes no frasco e estende-o para mim: "Enfia isso nas narinas. A adrenalina refresca minhas cavidades nasais. ao mesmo tempo. no dia seguinte. Encontro na academia para ir em grupo ao Saint Andrew's Gym. por causa da tempestade de neve que caiu sobre a cidade. "Busy Louie" faz fila para se pesar. brancos com o ar miserável) veio para se distrair ou para ver um bom boxe. uma pletora de hispanófonos. Ao sair.(4) você vai ganhar esta noite!" DeeDee não brinca com nada. Há muita gente circulando. Com gestos de cirurgião. Entramos no grande hall. uma vez chegados ao cruzamento de Addison com Paulina. às onze horas.Entre o circo. ri-se às gargalhadas. os de Alphonso. "Hey. com gestos de carniceiro: "Você vai dar uma desenferrujada em alguém esta noite." Ou. e pincele toda a volta. começa o refluxo. levar uma desenferrujada. essa pasta vai impedir que meu nariz sangre muito. cerca das quatro horas. depois da derrota de seu ídolo em Tóquio.bano" [The BrOW11 Bomber]. man. O vendedor de camisetas e flâmulas com a efígie de Tyson lamenta-se por trás da bancada: o valor de seu estoque afundou-se.283 . seguido por Rico. antes de pegar dois cotonetes de uma bolsinha de couro. Louie. Dormi como um leitão e mal posso crer que vou subir ao ringue hoje à noite. você tem tudo? Bandagens. talvez. A onda de medo sobe à medida que chegamos perto. Porque os combates são vistos de modo diferente. E quando surge um "animal". Mas. Sinto-me. Quatro dólares a entrada. o museu de anatomia e o matadouro: Big James sobe na balança. Cada qual me acolhe com uma palavra de encorajamento. longe de 282 ldic Wacquant ficar arrasado e intimidado. pela comédia. Estranhamente. e levamos cerca de uma hora para chegar ao Saint Andrew's Gym. coquilha. mexicanos e porto-riquenhos. Os profissionais são os mais (4) Referência ao apelido de Joe Louis. e pinta uma irreprimível vontade de lutar. seus confrades da categoria" open". contando os pugilistas e sua entourage sempre numerosa) relativamente poucos negros. o Bombardeiro Francês. um dólar o cachorro-quente e o copo de cerveja. Uns acalmam os outros como podem. pela técnica e pelo "coração". bem fundo. que termina de se vestir diante do armário. então. calmo e tenso. e regurgito energia. segundo a divisão: os boxeadores "noviços". mas nada desagradável. Eu? Esforço-me para engolir um peito de peru e uma laranja. "O Bombardeiro de :t. rindo ou exagerando o medo. Sóbria e sem brincadeiras. O público familiar e bem-comportado (oitocentas pessoas. Acordo. "Você está pronto." O cheiro é forte. Louie. Corpo e olmo . nos anos 1930-1940. recebo ainda os últimos encorajamentos. como sempre. Smithie se oferece para bandar minhas mãos com os handwraps azuis com velera que DeeDee entregou a ele. dissimular sob um fino verniz de bravura e de falsa segurança. Passa várias camadas sobre a aresta do pulso e envolve cada dedo separadamente. na cola do adversário. simulacro de exame médico. "Coa per? Está. exibindo uma máscara de ansiedade no rosto que eles tentam. é aquele lá. 284 lok Wacquant Já está na vez de Fred. que o tecido está bem esticado. ele é um grande negro com a musculatura felina. motherfucker. babacas! Vamos mexer aí em cima do ringue!" Verificação da licença. que ele castiga durante dois rounds como um selvagem. jight!" Uma última enfiada de ganchos e diretos desordenados e Fred consegue uma vitória gritante. Meto minha coquilha dura debaixo da bermuda preta. mas sobe. antes da subida ao ringue: "Don't forget you're from Woodlawn. Deve ter bem um metro e oitenta e cinco. está bom?" A espera angustiada e angustiante nos vestiários. "Agora fecha a mão. Vou lutar em oitavo lugar. ele não teria essas sapatilhas se Corpo e alma - 285 . Dois negros patibulares. esse cara sabe boxear! As sapatilhas! As sapatilhas! Elas custam pelo menos 60 dólares. Curtis "levanta o astral" dele de uma vez por todas. No terceiro round. DeeDee e Eddie rejubilam-se discretamente. cinqüentões atléticos. assegurando-se. e logo Ashante chama-os à fala. por vezes. um jovem mexicano atarracado. e todo o Woodlawn com eles." Magro. ele parte velozmente com direitas e uppercuts. atabalhoado.difíceis de se satisfazer. murmurando em seus ouvidos sei lá que estratagema dissimulado. depois de Fred e Chears e antes de Big James.jight. com o máximo de aproveitamento. Logo digo a mim mesmo: "Merda. com sua voz grossa: "Vamos nessa. que Ashante me deu. nem muito frouxo. Curtis está abraçado ao poste do ringue. Tive a péssima idéia de perguntar ao oficial que amarra minhas luvas se meu adversário está ali. Dois combatentes medíocres assumem poses afetadas. Na sala nua que serve de vestiário improvisado. os boxeadores trocam de roupa em silêncio. nem muito apertado. as longas meias vermelhas e as botinhas brancas e o casaco azul do "Ringside". fazem massagelTI em seus Olnbros. o exame médico "de minuto". Ele executa os gestos com uma precisão de enfermeira maternal. de onde berra loucamente: "Come on. nigger!" Fred está assustadoramente nervoso. tudo acontece muito rapidamente. chamamento à mesa dos oficiantes para receber um par de luvas novas. e não tenho o menor tempo de ficar preocupado. a cada passada. com longos braços moles como um cipó e pernas finas que saem retas de seu calção impecavelmente passado. Cooper tem a vantagem da altura e respondeme COIn vivacidade. severo. soprando o ar. o legendário treinador e "inventor" 286 Lo"ic Wacquant "Busy Louie" saudado por DeeDee e encorajado por Ashante e Le Doe. os punhos fendem o ar e os golpes são mais fortes. jabe. "Mãos no ar. antes de me atingir com uma marretada no meio do nariz que faz com que eu me sinta liqüefeito. chama-me para o centro do ringue. «bombeando" lneu jabe. Eddie molha meu mouthpiece COln o líquido de uma garrafinha e mete-o em minha boca. para as últimas instruções. um oficial do Exército norte-americano aposentado. sempre rodeado de gente. com o olhar fixo sobre o córner oposto. agora é comigo. antes de esguichar água fria no fundo de minha garganta. mais leves e menos acolchoadas. nenhuma palavra escapa entre seus lábios apertados em um sorrizinho impassível. O medo é feito o fogo. muito tenso. Talvez seja por inconsciência.r I não soubesse boxear pra valer. Shit. John Bo11ino. tudo acelera-se e funde-se em minha memória. mas o fato é que não estou sentindo o menor medo. mãos no ar. Ele envolve-me com um olhar paternal. onde meu inimigo de uma noite agita seus membros filifonnes e gira os dois pulsos no ar. Você tem de conhecer o medo para dominá-lo. na minha cabeça. que está terrivelmente ressecada. Saltito nervosamente. O gongo que marca o início do assalto bate. Com meu punho enluvado. Logo que nos aproximamos. em uma rapsódia louca. Estou decidido e raivoso. Os gritos da platéia misturam-se com a tempestade de golpes lançados e recebidos. São claramente mais fortes! E esse puto do Coa per bate duro. Estou com uma pressa danada de subir ao ringue para o momento tão esperado e tão temido durante todas essas semanas. Disparo uma bateria de diretos bem encadeados. o que não me impede de contra-atacar. Passa. os quais toco com as luvas. Terminou. Cus D'Amato. com trêmulos dramáticos: "Busy Louie" contra Larry Coa per. Com as luvas de competição. à minha passagem. Louie!" E eis-me sozinho no ringue. Fico alucinado ao ouvir meu nome seguido por uma explosão de aplausos que avançam em minha direção. de trabalho árduo para chegar até aqui. enquanto Eddie dobra seu tórax roliço para separar as cordas. Você pode usá-lo a seu serviço. partindo das grades contra as quais se apertam meus colegas do gym. sob uma imensa bandeira estrelada. Meu coração está tremendamente quente. recita a identidade dos combatentes. para cima e para baixo. Ashante e Smithie ficam perto de mim. Tropeço com DeeDee ao pé do ringue. bato no punho fechado que ele estende para mim. que estende para mim os dois punhos juntos. antes de atirar-me sobre ele. Subo rapidamente a escada. mas cheio de afeição. Avanço resolutamente para Cooper. Coa per prontamente recua e evita meu gancho de esquerda. mãos para cima!". Louie. soprando-me alguns conselhos. dizia que "o boxe é um esporte de self-control. esgoela-se Smithie. ele fecha meus punhos com esses tentáculos que usa Corpo e alma 287 . no momento de subir ao ringue. jabe. Estou muito concentrado. dessa vez é para valer! Babei tanto naquele maldito gym que só tenho uma vontade: lutar. não? Aqueço-me fazendo shadowno fundo do ginásio. vou levar uma surra!" Mas recomponho-me em seguida. um filme dessas longas semanas de espera. direita. Jabe. Eddie fala para eu relaxar bem. Levo um direto no meio da cara. A voz do locutor."9 O referee. um mexicano barrigudo com uma cabeleira vigorosamente emplastrada. Os projetores suspensos sobre o ringue são cegantes. de Mike Tyson. batendo. Só recordo-me de fragmentos que são difíceis de reunir. Não decepcione! A partir daí. pensando nas horas de treino com sparring no gym: esse camarada não é mesmo melhor que o Ashante ou o Lorenzo. "Ao trabalho. O mais assustador de tudo isso é que . ele continua contando. estou de bunda no chão. com um inglês cantante: "Três. Meu rosto tumefacto lateja e está molhado de suor. Ele pendura-se em mim. que ele enxuga COln seu suéter cinzento. tento vencer sua guarda. mais rápidas e mais fortes. 288 LoTe Wacquant "Busy Louie" vs. estou okay. de repente. Boxeio "instintivalnente" e acentuando a pressão. logo-me de novo sobre ele. O árbitro pega meus punhos. "Break!" depois "Box!" Troca de jabes e de diretos.. vigio Cooper. Nada de tempo para pensar. e faz-me recuar para o córner neutro. falando.. Cooper está de novo na minha frente. Toca o gongo de advertência.j olho." Nem ao menos perdi o fôlego.. como em um filme acelerado. "Dingue!" O gongo interrompe nossos movimentos. frustrando minhas veleidades de trabalho no corpo. De pé. cinco . as luzes do teto ofuscam-me e." Gargarejo. Tento vários ganchos de esquerda em seguida ao jabe. "Como é que você está?" "Bem. C01TI seus óculos grossos e sua boina preta en- fiada na cabeça. Estou terrivelmente envergonhado. Bloqueia a direita e chega mais pra perto. em um segundo. Larry Cooper. e. Fartos aplausos. você está se virando bem. Distingo a cabeça de DeeDee à minha esquerda. Tenho a impressão de que levei uma granada no meio da cara! Não vi nada acontecer. jabe contra jabe. Os punhos de Coa per parecem ser de aço temperado quando me tocam. " Merda. "Está bem.como braços... atirando-se sobre mim com sua gran- de boca mole que conta. quando volto a mim.me com uma voz doce: "Você está muito longe. o ringue aderna. Respondo com uma bela direita no plexo. quatro. não estou nem um pouco assustado! Estou com uma pinta de veterano dos ringues quando Eddie retira o protetor bucal avermelhado e lava-o em um instante. "Dingue!" Segundo round.. Corpo e alma 289 .• • t _______ • X" f ---'. BUM! Está tudo girando. que está soprando no seu córner. maltrata minhas costas. onde Eddie já colocou o banquinho. precisa dar dois passos pra frente. e eu já estou de pé) fui posto em knock-down. por várias vezes. isso não foi nada!" Com o canto do ~ -----. na extremidade do ringue. está bem. os auxiliares de córner descem do ringue. Fecha bem o punho e não fica crispado. Ele irrita-me. Ataco novamente com um jabe no tórax e. antes de cuspir a água no balde de Budweiser que está entre as minhas pernas. Retomamos nossas manobras. Volto para meu córner. em que todas as sensações fossem exageradas. dançando. boa luta. labe. Bruscamente revigorado. "Uuuuu! Uuuu! Bullshit!" Smithie e Eddie vociferam para os juízes. Mil emoções agitam-se elll mim.pelo menos tere. depressa. bem perto do meu córner. vencer a guarda dele e mando-o de costas às cordas. o que não é tão mau assim . os assobios aumentam. afinal. Larry Coooopeeer! Larry Cooper. deslizo ao longo das cordas. em delírio: "Com as duas mãos. bate-me no corpo. Cooper tenta empurrar-me e depois refugia-se atrás das luvas. Levo muitos golpes. é isso aí. aliviado. "Dingue!" Fim do segundo assalto. vamos.esse mal- dito Coa per batia como uma britadeira (mais tarde. tento recompor minha respiração. volta ao córner. arrasado. assustado. e batemos os punhos. Mas mantenho a ofensiva e mando três esquerdas que acertam o alvo.. tronco contra tronco. por baixo. para recuperar o fôlego e evitar os diretos de Coa per. de Bessemer Park. "Dingue!" Fim do terceiro round e da luta. que traz a menção recém-escrita: "Derrota: Cooper. com as duas mãos! Por baixo. o Woodlawn 80y5 Club vitorioso: Big James e "Míghtj' Mark exibem orgulhosos suas copas. orgulhoso. OOOba! Estou vazio. Tudo foi tão rápido. "Respire fundo. Mesma manobra no banquinho. boa sorte da próxima vez. Estou. «over and under'. Estou com uma enorme vontade de rir de tudo isso. pendura-se em mim e. antes de voltarmos para os respectivos córneres. três minutos no ringue são uma eternidade! labe. desta vez. cara. "Manda o primeiro! Não espera! Combinação!" Lembro-me. Bato o mais depressa possível: fazer pontos. porque o alvo prontamente dera um passo atrás." As vaias do público abafam o anúncio. no corpo e na cabeça. Liz. Estamos os dois cansados. tenta manter a distância. mais uma vez. Eddie puxa o elástico do meu calção. Li-qüi-da-do. Abraçamo-nos rapidamente. Terminei inteiro. direita. cuja reputação é tão invejada pelos outros clubes. Corpo e olma - 291 . que está radiante de satisfação: "Boa luta. Woodlawn ulula de felicidade.1 1 sem muito sucesso: meus golpes fendem o ar.. por sua vez. estou bem "busj'. mais uma vez. surpreso. com sua voz cavernosa: "E nosso vencedor. sobretudo. jabe." O árbitro faz sinal para que eu desça do ringue. esticando o braço esquerdo com a mão aberta como uma forquilha." Estou com falta de ar e desvio de um jabe raivoso. feito por merecer meu nome de guerra! Quando Eddie urra "Trinta segundos!". e os gritos superexcitados da minha torcida aumentam essa excitação. vá fight!" DeeDee está todo sorrisos. rodeados por Eddie e DeeDee. Gol! Está correndo tudo bem. lnas também mando meu bocado. Louie. Cooper. eu iria saber que ele já contava com nove vitórias por uma única derrota). O árbitro chama-me para o centro do ringue. com clareza. Eddie. Ashante e Smithie proclamam a minha vitória. Cumprimento Cooper. incrédulo. a helluva 290 LoTe Wacquant pontos. gratificado por ter honrado o gym. ganchos com as duas lnãos. Bollino lê o veredicto dos juízes.~I . jabe duplo. Eddie aperta-me febrilmente os ombros e retira meu capacete com gestos excitados: "You fought a helluva fight. estou batendo tantas vezes quantas meus punhos permitem. de uma ampla esquerda no tórax que me corta a respiração quando eu estava saindo de um clinche. Louie. fazer pontos! Quero mandá-lo a nocaute. onde. feliz. no córner vermelho. por ganhar ele pra nós!" lÔ a reta de chegada: atiro-me sobre Cooper e ataco sem refresco. antes de cair de novo sobre o Cooper com uma direita que ele bloqueia com as luvas. Eddie e Ashante quase pulam sobre o ringue. por decisão". Então. tão rápido. Um oficial rapidamente desamarra minhas luvas e estende-me meu passbook. para desapertar meu ventre. consigo. Ele debate-se. Paddy Flood. LolcWacquant. com essa saraivada do último round. dezembro de 1989." (Acho que ele está mesmo é aliviado de que eu não tenha me machucado. parcialmente fechado pelo direto que me levou à lona no primeiro round. por causa das costelas. sou definitivamente um deles: "Yep. Sociologie eC Societé. você já tem material demais pra escrever esse maldito livro. 47·59. Nova York: Vintage. Louie's soul brother. quando DeeDee corta o barato: "Não vai ter próxima vez." Nem eu! Estou espantado como tudo aconteceu tão rápido. "Você foi muito gatunado. De agora em diante. p. esses babacas roubaram!" DeeDee está com uma calma olímpica: «Pra mim. discipline et honneur: une saBe de boxe dans le ghetto américain". 1988. eu não sonhei. Subir ao ringue não é pra se divertir. 129. pelo modo como sou brindado com apertos de mãos. On boxing. Liz vai colocar gelo em um saco. Você teve a sua luta. piscadelas. p. não há dúvidas. "Sacrifice". sorrisos. Paris: Stock. Mark. roxo e com uma equimose na comissura. Nova York: Bantam. "Pugs at work: bodily capital and bodily labor among professional boxers. 1969. despertar doloroso. Você não tem a menor necessidade de subir ao ringue. v.). "Chausser les gants pour s'en sortir". 1998. 8. DeeDee finalmente desabafa. Leonard Gardner. que estão moídas. Não. Esse trabalho de fabricação corporal do habjtus pugilístico é destrinchado em Loic Wacquant. Dormi como um justo e não me lembro de mais nada da luta. De la boxe. 5. "Protection. É depois do combate que a gente se diverte. perdida de emoção: "Lo. Louie!" Surpreendi todo mundo no ginásio . Fire 811d fear: the jnsidestoryofMike TyS011." em pé'. Bodylanguage: Graywolf Fonlm Two. Por exemplo. com vivacidade. é isso aí. que incham de maneira inquietante. 1. n. 65·95.Olivier. Rico. o cara não se defendia. Será que sonhei? Sinto-lne doente. 1989. 6. Meu olho esquerdo. E sinto dificuldade de respirar fundo. n. fisicalnente esvaziado. p. Reese.: "Boxing is never Jun. franco 2. 521. Eles 'contaram você próxima luta. In Gerald Early Corg. 7." No dia seguinte ao do combate.a começar por mim. Agora. Boxers. p. Joyce Carol Oates. Aaron. você ganhou esse cOlnbate. Saint Paul: Minnesota: Graywolf Press. sobre minha 292 Lo'ic Wacquant Corpo e alma 293 . O lábio inferior também está inchado. Pareço um soldado que retoma à caserna depois de ter estado no Jront. Um corte rodeia o supercílio esquerdo. sempre do lado esquerdo. p. trad. 1977. 1987. 60. Ashante iria me contar que ele hesitara até o último instante em deixar-me subir ao ringue: "Não quero que o Louie se mate.") Liz abraça-me. Jean·François Laé. Ivan. p. o velho Scottie e seu hálito de vinho apertam-se à minha volta: "Man. Pete Hammil. março de 1995. como um limão Notas 1.!. Lo! Você lutou feito um leão." Ashante pergunta-me. clllnprimentos e comentários indignados sobre a arbitragem. O espelho devolve-me a imagem de uma face tremendamente inchada. n. você levou esse combate e com justiça. v. 3. Les Temps Moderlles. 27. Nova York: Warner Communication Books. 75·89. 32. Olivier e Eddie insistem para que eu ponha gelo sobre o olho e o nariz. tapas nas costas. Nova York: McGraw-Hill. primavera de 1995. na minha volta triunfal ao gym. Nada bonito de se ver. Sugar Ray Leonard and other noble warriors. Citado por José Torres. Ashante. citado por Sam Toperoff. eu não estava acreditando no que eu estava vendo. Garden City: Doubleday. Body and Society. 1. no bar. 9. 1987. espremido do qual só resta a casca amarelada e murcha. Mas todos esses males evaporam. Loic Wacquant. Fat cicy. 4. A ponta rosada do meu nariz dobrou de volume: apalpo-a delicadamente para ter certeza de que não o quebrei de novo. está ficando acre e arroxeado. -=!J@ .


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