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November 9, 2017 | Author: Mônica Souza | Category: Law
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1. Eugenio Raúl Zaffaroni Em busca das penas perdidas A perda de legítímidade do sistema penal Traduçâo: Vânia Romano Pedrosa Amir Lopes da Conceiçäo . . Editora Revan PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 2. PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 3. Copyright © by Eugenio RaW Zaffaroni Título original: Em busca de las peiias perdidas Ediar Sociedad Anónima Editora Comercial, Industrial y Finaoceira, Buenos Aires. 1989 'lodos os direitos oeservados no B rasil pela Edìtora Revan Ltda. Ncohutna patle destapuhlieaçao poderti ser reproduzida, seja por lacios trecünicos, clLtrûocos ou 'ja cópta xerogritica seni a autorizaçúo prévia da editora. Cooa/eriiuçdit editorial Michel Elias Jorge Ciqa e ¡)t?)(/LiÇOo grcj 't'i, Ricardo Gosi Rei'ixdo de pnn:s Miguel Villela Dalva M. Aparecida da Silveira Iloxtraçt7o de copa "A priso" de Claudio Tozzï, in "Obra em eonslritçio" Editora Revan, 1989 C'a mpo.riçdn Pixel Sislemas e Compulaço Gráflca /rnpre.r.väo Ehal CIP-Brasil. Catalogaçäo-na-Foole Sindicato Nacional dog Editores de Livros, RJ. Z22c Zaffaroni, Eugenio Raul. 927- Ein busca da penas perdidas: a perda da lcgitiiisidadc do sistema emìall Eugenio Raul Zaft'aroni: traduçao Vani:m Romnano Pedrosa. Aittir Lopci sIa Conceiçño. Rio de Janeiro: Revan, 99l 5' ediço,janeiro de 2001 Traduço de: En busca de las penas perdidas. ISBN 85 -7106 -032-0 I, Direimo penal - Filosofia, 2, Lcgitimidade (Direito pena». I. Titulo 97-0473 CDU -343.01 Suniário ApresentaÇáO Parte I A deskgithnação do sistema penal e a crise dß discurso jurídico-penal ........................................................................................ 9 Capítulo Primeiro - A situaçâo crítica do penalismo latino- americano ............................................................................................... 11 Capítulo Segundo - As fontes teóricas da deslcgitimaçäo nospaíses centrais ............................................................................... 45 Parte II Resposta à deslegitimaçáo e à crise .............................................. 71 Capítulo Terceiro - Teorias e atitudes centrais e marginais como resposta à deslegitirnaçào e à crise .................................... 73 Capítulo Quarto - Necessidade e possibilidade de urna respostamarginal .............................................................................. 117 Parte Ill A construçáo do discurso jurídico-penal a partir do realisrnomarginal ............................................................................. 179 Capítulo Quinto - Um modelo construtivo para o discurso jurídico-penal náo legitimante: o direito penal hurnanitário atualda política ................................................................................. 181 Capítulo Sexto - A limitaçâo da violência seletiva pela chamada "teoria do delito" ........................................................... 245 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 4. Apresentaçáo da Ediçâo Brasileira Aos professores latino-americanos de direito penal que iniciavam sua carreira nos anos sessenta se consentia urna pobre aventura intelectual, resumida no aprendizado - em italiano e alemâo - da dogmática jurídico-penal, ao quai se agregavam modestas excursòes a temas de filosofia do direito que tangenciassem algum pilar de nossa torre de marfim. Profligando o inimigo dócil das construçñes legislativas do positivismo criminológico, que tanto influenciara o con- tinente, incidíamos, pela via linear do tecnicismo jurídico à Rocco, ou pelos caminhos mais elaborados do neo-kantismo à Weizel, nurn outra positivismo reificador e alienante. Salvo intuiçóes ou rebeldias bem circunstanciadas, ninguém acusava frustraçöes teóricas: afinal, nosso afazer integrava outra mundo, e se nosso mundo rendilbado e fantasmagórico servia mais para afligir alunas do que para evitar penas sem prévia cominaçäo, a culpa naturalmente era deste mundo. Ao ser o que 6 do ser. O jurista era um fingidor de fa7er inveja n pneta de Fernando Pessoa. Enquanto isso, nossos sistemas penais funcionavam da maneira mais irracional, bárbara e genocida. Adoutrina da segurança nacional, que fundamentou as saninárias ditaduras latino-americanas, convertiarn o_opositor político em "inimigo interno" mediante urn processo de desqualificaçao jurithca, técnica logo absKidïeutUuiidi grupos informais da vigilância ao exniocçjaboram mepqs eufemisticamente no formidy4pcesso de controle, discriminaçâo e exclusáo em nossas sociedades. Raúl Zaffaroni é nao apenas o mais destacado penalista dessa geraçäo, corno o mais influente revisor daquela atitude que introduziao jurista, por um buraco metodológico, no país das maravilhas. Sen "Em busca das penas perdidas" contém uâo só uma resenha crítica exaustiva de todas as direçóes PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 5. teóricas que produziram a crise de legitimidade do discurso jurídico-penal, mas também uma contribuiçáo absolutamente brilhante, comprometida radicalmente corn a condiçäo de- pendente e periférica da América Latina (concebida, perante o processo original colonialista, como "instituiçäo de seqüestro" em sentido foucaltianp). Percebendo o exercício do poder penal como socialmente configurador e nao pura- mente repressivo, Zaffaroni nos habilita a compreender menos idealisticamente a funâo dos sistemas penais nas sociedades de classe em geral, e nas latino-americanas em par(ìcular. I. Ocasionalmente afastado da universidade, como outros conipanheiros chamados para um esforçode transformaçáo (e o meihor exemplo é a notavel professora Lola Anlyar de Castro, hoje Senadora na Venezuela), rejubilo-me por (er colaborado para que os juristas, criminólogos e cientistas sociais brasileiros tivessem acesso ao mais criativo trabalho de Rat! Zaffaroni. Nilo Batista Para Louk Huisman PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 6. Apresentaçáo urn panorama cra da desk- sistema penal e urna proposta de uLrelto penai. u jeitor 'ogo perecoera a enrase na iunuanientaçao antropológica do discurso jurídico-penal exposta por nós em obras aiteriorcs, incorporando agora dados da realidade social e encar- regando-nos de críticas reveladoras do exercício de poder do sis- terna penal. Este procedimento exige, é claro, o abandono da preferência preventista especial antes mantida, desembocando em outro tipo de análise que, apesar de nossa relutância a este tipo de qualificaçöes, atrevenlo-nos a denominar de realismo jurídico- penal marginal. Portanto, estas páginas são urna espécie de ensaio de realismo jurídico-penal a partir do ponto de vista de urna regiao marginal do poder planetário, assumindo um itinerário de vários anos, cujas etapas forant parcialmente expostas em trabalhos breves e disper- sos que, em razáo dos equívocos derivados da limitaçáo temática ou da imaturidade da idéia, sofreram aqui urna revisáo orgánica, em forma de enaio, para desafiar o desuso deste estilo. Um desen- volvimento posterior de nossa análise será realizado em urna apro- xirnaçâo à criminologia1 e na reelaboraçáo de nosso Manual, tarefas nas quais estarnos empenhados. Nos quinze anos transcorridos desde que esboçamos a estru- tura apresentada no Manual e no Tratado2, intensificou-se a crise de legitimidade do sistema penal, refinaram-se os instrumentos críticos e aprofundaram-se as contradiçóes e antagonismo na realidade latino-americana3, o que - devido à experiência que nos proporcionou a direçáo do programa sobre "Sistemas Penais" do 1. T.irna versâo provlsória dos primeiros capítulos foi publicada cm 1988: CriminologIa. Aproxñnación desde un margen, Ed. Temis, Bogotá. 2. ZAFFARONT, Eugenio Raúl. Manual de Derecho PenaL Pane Generai. Buenos Aires, Ediar, 1986 e ZAFFARONT, E. Raúl. IA Argentina contribuli, para este panorama corn sua tristíssirna quota de crueldade. Também multo nos fez retletir o incendio do Palácio de Justiça de Bogotá. PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 7. Instituto Interamericano de Direitos Humanos4 contribuiu notoria- mente para nossa (re)análise do discurso jurídico-penal. Com o ricorsi do organicismo (sob a roupagem de "funciona- lismo sistémico") e do contratualismo (especialmente na versäo anglo-saxônica), acreditamos que a tendência atual dirige-se ape- nas à retomada de veihas ficçöes originárias em forma reiterativa. - Diante desta situaçäo de extrema pobreza fundamentadora e dis críticas ireveladoras que desacreditarn o prOprio saber jurídico, pretendemos sustentappibilidade de reconstpçäpda dogma- tica jurídico-penal de acordo corn as diretrizes de um direito penal garantidor e ético, assurnindo plenamente a realidade de poderJo jstemapj iideslegítimaçäo, ou seja, admitindo àiài[o proveniente do abolicionismo Ipii do "minimalismo penal", se se p1firchamar"Direito Penal" ao remanescente). Aventuraiid- nos por este caminho, depararno-nos com uñi modelo "iiifejiido" de direito penal e de criminologia de corte diferente, corn urna ética básica, da quai derivamos a tática doutrinária e jurídica, e corn elementos para urna cuidadosa reconstruçäo das garantias, na quai nos utilizarnos do direito humanitario como fio condutor.iLogica- mente, náo afirmamos ter percorrido a totalidade deste caminho e, talvez, nem mesmo se trate de urn caminho mas, apenas, da indica- çào do lugar por onde poderia iniciar-se a análise. Embora possíveis erros sejam de nossa exclusiva responsabili- dade, muito do que aqui apresentamos ¿ produto de diálogos corn colegas contemporáneos5 e, também, de diálogos mais distantes que, apesar de nào poderem, por sua circunstância, abordar o terna 4. Referirno-nos em especial às contribuiçöes de penalistas e crhninólogosiatino-arneiicanos e de outras regiôcs que colaboraram, ou ainda colaborarn, corn este Programa, e que estiveram presentes nos seminários de Sao José, 1983; Bogotá, 1987; Buenos Aires, 1985; Rio de Janeiro, 1985; Salvador, Bahia, em 1988. Foram aqui retomadas algumas iddias expostas no Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina (Informe Final), Buenos Aires, Ed, Depalma, 1986. 5. Toda mençâo seria injusta, porque as omissöes seriam inevitáveis, conquanto nao possamos esquecer os fornes de Alessandro Baratta, Saarbrücken; Louk Huisman, Roterda; Antonio Beristain, San Sebastian; Manuel de Rivacoba y Rivacoba, Córdoba; Lola Aiyar de Castro, Maracaibo; Rosa dei Olmo, Caracas; Emilio García Méndez, Buenos Aires; Eduardo Novoa Monreal, Santiago; e Elías Carranza, Sao José. a partir de urna perspectiva atual, rnarcaram nosso pensamento e atitudes de modo permanente6. Agradecemos ao Prof, Francesco Pallazzo, que nos hospedou na Facoltà de Giurisprudenza, na Università di Firenze, em maio de 1988, facultando-nos, generosamente, o uso do material biblio- gráfico da Universidade. Ja nos disseram pue. com este ensaio. escapamos do sistema pário, o que, de certa forma, é verdade. Talvez seja este urn ensaio crético, urna irreverência ou um atrevimento: estamos cons- cientes de que a descriçáo da realidade do exercício do poder dos sistemas penais em nossa regiâo marginal latino-americana e a tentativa subseqüente de reconstruir dogmaticamente a teoria penal a partir desta realidace levam-nos de encontro a postulados ampiamente reiterados do saber penal.! Somente o nível de violên- cia a que assistimos e sua trágica progressâo fazem-n,os tornar a decisâo de "sair do sistema planetario". E possível pue nâo se trate de±sair" e, sim, de reconhecer que estäo nos deixando de fora. pp ajjlguer mancira, assumir conscientemente a condiçäo de mar- gjl é pressuposto iniludível pentarsuasuperaçäo. Faculdade de Direito e Ciências Sociais. Universidade de Buenos Aires E.R.Z 6. Guardaremos sempre, era nossa memóría, a lembrança de Alfonso Quirós Cuarón, Giuseppe Bettiol e dc Blasco Fernández de Moreda. 6 - 7 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 8. FARTE I A DESLEGITIMAÇÄO DO SISTEMA PENAL E A CRISE DO DISCURSO JURÍDICO-PENAL PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 9. u CAPÍTULO PRIMEIRO A S1TUAÇÂO CRÍTICA DO PENALISMO LATINO -AMERICANO I. AS "PEINES PERDUES" -.- II. LEGITLMIDADE E LEGALIDADE I. A utópica legitimidade do sistema penal. 2. A egitimidade nâo pode ser suprida pela lega- lidade. 3. 0 sistema penal nao atua de acordo corn a legalidade. 4. A legalidade neni mesmo & respeitada no ambito do sistema penal Iorrnal. 5.0 exercfcio de poder abertamente ilícito por parte do sistema penal -111. A PERVERSAO IMOBILIZA O IDISCURSO JURÍDICO- PENAL - IV. SIGNOS TEÓRICOS DA SITUAÇÁO CRÍTICA NA AMÉRICA LATINA. 1. Crítica ao direi- to. 2. Preocupaçao corn a lcgitimidade do poder. 3. Preocupaçäo jus-humanista corn o sistema penal. 4. Cínica criminológica. - V. A DESLEGITIMAÇÁO PELOS PROPRIOS FATOS. -VI. O DESPRESTÍGIO DOS D ISCIJRSOS PENAIS LATINO-AMERICANOS EM RA/AO DE SEOS VÍNCULOS IDEOLÓGICOS GENOCIDAS. 1. O discurso jurídico-penal. 2. 0 dis- curso criminológico. I-As "Peines Perdues" O ponto de partida desta análise é a constataçáo de urna situaçào crítica no sentido mais ou menos análogo ao de geistige Situation1, ou seja, ao de urna situaçäo "espiritual", adjetivo que, aqui, nao tern conotaçâo abstrata alguma, mas que se refere, mais precisamente, ao conjunto dos aspectos intelectuais e afetivos (ou 1. Würtenberger, Thomas, Die gthtìge Siiucriwz der 4uj3chtn Strafrcchinvicsaachaft 1959. 11 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 10. e nocionais) de una situaçäo cujo sintoma mais característico é a J) rda de segurança de resposta corn que, há algurnas dócadas, l-t agia o penalismo da regiäo. Sern dúyida, este sintoma representa, l ecisarnente, a manifestaçäo externa que nos permite reconhecer situaçáo crítica, nao se podendo, de rnodo algum, pretender má-lo como a causa - como alguns pensam - de maneira a u gar-Ihes sua natureza de signo ou sintorna. Como ern qualquer emergência, à medida que a situaçäo vai :U tornando insustentável, começa a operar-se a evasáo mediante ï« ecanismos negadores que, ern nosso caso, aparentar!' conservar a iitiga segurança de resposta, embora reconheçam-se "problemas" :: ic costumam ser deixados de lado, através de uma delimitaçâo .;ì scursiva arbitrária que evita confrontar a crisç. No entanto, os mecanismos de negaçâo nao podem superar ;I.a essência e, por conseguinte, näo ocultarn a situaçáo crítica que it manifesta ern urna progressiva "perda" das "penas", isto 6, as nas como infliçáo de dor sem sentido ("perdido" no sentido de :nrentes de racionalidade)2. Na criminologia de nossos dias, tornou-se comum a descriçäo operacionalidade real dos sistemas penais em termos que nada a ver com a forma pela qual os discursos jurídico-penais su- em que eles atuern. Em outros termos, a prograrnação normativa seïa-se em urna "realidade" que nao existe e o conjunto de órgäos lie deveria levar a termo essa programação atua de forma corn- ì]etamente diferente: A verificaçäo desta contradiçâo requer demonstraçoes mais itt menos apuradas em alguns países centrais, mas, na América ù itina, esta verificaçäo requer apenas urna observaçäo superficial. dor e a morte que nossos sistemas penais semeiam estào tao »rdidas que o discurso jurídico-penal nào pode ocultar seu des- mratamento valendo-se de seu antiquado arsenal de acionalizaçöes reiterativas: achamo-nos, em verdade, fiente a um iscurso que se desarma ao mais leve toque corn a realidade. arafraseamos o título do famoso livro de Louk fluisman e Jacqueline Bernat de Cells, 'eùes Perdues. Le système pbwl en quesdon, Pañs, 1982, se bem que nele "peines" tenha caLido diverso de "penas" em castelbano. É bastante claro que, enquanto o discurso jurídico-penal ra- cionaliza cada vez menos - por esgotamento Øe seu arsenal de ficçöcs gastas - , os orgaos do sistema penal exercem seu poder para controlar um marco social cujo signo é a morte em massa. Cálculos provenientes de fontes confiáveis estabeleceram que, em nossa regiäo morrem, anualmente, cerca de duzentas mil crianças durante o primeiro ano de vida, em conseqüência de carências alimentares ou sanitárias básicas; um número igual ou major sobre- viverá, masjamais alcançará seu completo desenvolvimento biopsí- devido às seqüelas provocadas por essas caréncias. Os múltiplos poderes que sustentam esta realidade letal apóiam-se, em boa medida, no exercício de poder dos orgaos dc f05505 sistemas penais que, na maioria dos países da regiáo, ope- ram com um nível tao alto de violéncia que causam mais mortes do que a totalidade dûs homicídios dolosos entre desconhecidos prati- cados por particulares. Por outro lado, em relaçao a suas omissóes na tutela da vida, é claro que o sistema penal mostrou-se totalmente incapaz de conter os abortos3 comportando-se, ademais, com total indiferença a respeito dos homicídios de tránsito, mesmo que o número destes seja tao elevado que se convertam na segunda causa de mortalidade em boa parte da rcgiäo e na primeira em algumas faixas etárias jovesis4. Neste panorama, parece que as peines perdues náo re- querem uma demonstraçáo apurada, O discurso jurídico-penal revela-se inegavelmente como falso, mas atribuir sua permanéncia à má f6 ou à formaçäo autoritária seria un simplismo que apenas agregaria urna falsidade à outra. Estas explicaçñes personalizadas e conjunturais esquecem que aqueles que se colocam em posiçöes "progressistas" e que se däo conta da gravidade do fenómeno tambérn reproduzem o discurso jurídico-penal falso - uma vez que nao dispöem de outra alter- nativa que nao seja esse discurso em sua versâo de "direito penal 3. Os cálculos sao ditícieis, mas de acordo corn urna previsâo otimista ocorre um aborto para cada cinco nascirnentos; numa previsao pessimista, a taxa é de até um para cada trés. 4. Calculam-se, aproximadamente, cern mil mortes anuais. A Argentina registra cinco mil; o Brasil, em tomo de cinqüenta mil. $ 13 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 11. ;: de garantia" (ou "liberal", se preferem) - para tentarem a defesa ihante, em quase tudo, ao caminho enpreendido pelos países dos que caem nas engrenagens do sistema penal corn processados, centrais cnminalizados ou vitimizados A critica social contemporânea, a crimtnologia da "reaçáo : , D O discurso jurídico-penal falso nao é nem um produto de má social" - inclusive sua vertente mais prudente, ou seja, a chamada "liberal'fe nern de sirnples convcniôncia5, nem o resultado da elaboraçao -, a experiencia do capitahsrno periférico dos últimos : calculada de alguns gênios malignos, mas é sustentado, em boa cinco lustros, que acabou corn a teoi4a do desenvolvimento progres- : parte, pelaincapacidade de ser substituIdo por outro discurso em SiVO e ççntrífugo , aniquilaram a ilusao de transitoriedade do fen- razâo da necessidade de se defenderem os direitos de algumas meno Hoje, ternos consciência de que a reahdade operacional de pessoas. Esta contradiço dá lugar à dificil situaflo "espiritual" do sistemas penais jarnais podera adequar-se à planificaçao do : penalismo latino-americano6, que mantén estreita vinculaçâo corn discurso jurídico-penal10, e de que todos os sistemas petals apre- a trágica vivência do San Manuel d Unmuno3, pma vez que a sentam características estruturais próprias de seu exercício de po- ---- i denúncia de seil discurso jûrídiço &om falso pode privá-lo do derque eancelam o discurso jurídico-penal e que, por constituírem único instrumento - precárìo, mas instrumento - disponível para a marcas de sua essência, näo podem ser eliminadas, sem a supressäo -. defesa dos direitos humanos de alguns segmentos soclais. dos ppñ0s sistemas penais7A seletividade, a reproduçáo da vio- :: Na verdade, sempre se soube que o discursopenal latino-amen- lôncia, a criaçäo de condiçoes para maiores condutas lesivas, a ¡y cano éfalso. A diferença qualitativa neste momento crítico reside corrupção institucionalizada, a concentraçâo de poder, a verti- :- fl fato de que nao o mais possível saìr deste impasse com o ar- calizaçäo sociai e a destruiçäo das relaçóes horizontais ou cornu- . gurnento da fransitoriedade desta situaçáo e continuar apresentan- nitánas nao são características conJunrais, mas estturais do .H- do-a como resultado de meros defeitos conjuntuais de nossos '0depoderde todos os sistemas penais. -: sistemas penais, defeitos produzidos por nosso subdesenvolvimen- A situaçâo assinalada impede-nos de emprear a palavra .. .. to e recuperáveis mediante um desenvolvimento progressivo, seme- "crise" como ponto de inflexáo do fenómeno de contradiçäo entre o discurso juridico-penal e a reahdade operacional do sistema -: . penal. Neste estudo, o sentido de "crise" refere-se a uma brusca :: aceleraçáo do descrédito do discurso jurídico-penal. De modo : S.Seria extremamente grosseiro afirniar que ele é sustentado pelos que detén a cátedra algum acreditamos que "crise' possa indicar, aqui, um momento a partir do qual a reahdade operativa de nossos sistemas penais comece a se aproximar da programaçäo estabelecida pelo discurso y System.AcomparthonoftheideasofHulsinan,MathLcsènandFaucaul em"Contemporary Cnsis Law Cnme and Social Police Dordrecht 1956 (10) págs 39 e se também The juridico-penal - o que seria absolutamente impossível por ser . ]. .r CwwlJuthceSyst asasocialprobian abolifionSpspecdvç Medelingent bet "utópico" ( no sentido negativo da expressäo corno "nao reali- . Jundisch Instituut van de Erasmus Univcrsite,t Rotterdam, numeros 36 e 37 (no no. 36, . . págs. 27 e segs.). . 6.Quando los referimos ao "penaCismo latino-americano", nAo ignoramos a existéncia dc I,.- : urna minotia ínfima de nivel intelectual nulo que nAo se importa corn as mofles, e que s. Cf. Alessandro BaraEta Criminologia liberali e ideologia della difesa sociaiç cm "La cresce Corn O poderque a sustenta Nao levamos pois em consìderaçao este reduz,d,ss,n,o Qsu,onc Criminale 1975 janeiro abril págs 7 e segs Cf Frebisch Rau! CapaalLsmo perifénco Cnszsy bansfornmciór, Mdxaco 1981 nossoguipo de empresános e empregados de ditaduras de agéncias corruptas que nâo chega a representar um modo dc pensar urna corrente trabaiho Cnrnmalzdady desatrollo enAménca Latina, in Ilanud' anoS, numeros 13 14 7 Refenmo nos no classico e discutidissimo conto cujo personagem centraI 6 um sacerdote 1982 págs 33e scgs 1O.lmaginarnos o que sucedena em qualquer pats ocidental desenvolvido, caso seque se torna ateu, mas segue exercendo sau ministério como se Dcus existisse, por adiar que assim ¿ melborparn todos (SwiManue!Bueno mártir em Antología México 1964 conseguisse elet,vamente punir com a pnvaçAo da liberdade conforme oprewsto em Leí págs 59e ) todos os turtos a supermercados e todos os casos de posse de entorpecentes proibidos 14 15 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 12. :;eI"); "crise" para nós, portanto, to momento em que a falsidade O discurso jurídico-peúal alcança tal magnitude de evidéncia, que i e desaba, desconcertando o penalismo da regiâo. .Legitimidade e Legalidade z 1. A utópica legitimidade do sistema penal; O sistema penal t I a a complexa mani(estaçäo dopoder social. Por legitirnidade do j 5 ema penal entendemos a caracteri'nica outorgada por sua racio- I i2 idade . O poder socialnäo t alp estático, que se "tern" mas algo i II se exerce - um exercício - e o sistema penal quis mostrar- O CO!O um exercício de poder planejado racionalmente. :* 3 A construçäo teórica ou discursiva que pretende e*plicar esse I knejamento é o discurso jurídïco-penal[î(que também pode c h. imar-se "saber penal" ou, mais formalmente, "ciôncia penal" ou ciência do direito penal)JÏe esse discurso jurídico-penal fosse t ional e se o sistema penai atuasse em conformidade corn o s.sema penal seria legítimo.'j No entaMo, a expressâo "racionalidade" requer sempre urna icisáo, por ensejar uma alta margem de equívoco. O uso abusvo sa expressâo obriga-nos a prescindir aqui da totalidade da dis- C são a respeito,ira reduzir o conceito de racionalidade corn C Ui trabalhamos: a) à coerência interna do discurso jur(dico-penal; b) ao seu valor de verdade quanto à nova operatividade social. O discurso jurídico-penal seria racional se fosse coerente e vrladeiro.'7 necessário esclarecer que nao acreditamos que a coeréncia i Erna do discurso jurídico-penal esgote-se em sua não-contradi- ç c ou complexidade lógica, mis, ao contrário, requer também urna f ndamentaçäo antropológica básica corn a quai deve permanecer e n relaçäo de náo-contradiçâo, urna vez que, se o direito serve ao b nem - e nao ao contrário -, a planificaçäo do exercíclo de i Cf. Foucault, Michel, Microftsica delpodo', Madri, 1979, pág. 144. 1.: poder do sistema penal deve pressupor esta antropologia filosófica básica ou ontologia regional do homem.'7 No momento atual, esta afirmaçäo no plano jurídico náo im- plica urna remissäo livre ao pántano da metafísica e d? opinativo, : : embora subsista um enorme campo aberto à discussäo.)Aima deste âmbito discutível, é inegável que existe urna positivaçáo jurídica mínima dessa antropologia, materializada nos mais importâMes documentos produzidos pela comunidadejurídica internacional em mattria de direitos humanos,/ A consagraçäo positiva de uma ontologia regional do homem ( que hem pode chamar-se antropologiajur(dicajus-humanista) im- pöe aconsideraçöo do honiem comopessoa.12 : Porpessoa deve-se entender a qualidade que provém da capa- cidade de autodeterminar-se em conformidade corn urn sentido7 (capacidade que pode ser real ou potencial e, inclusive, pode limitar-se à reuniäo dos caracteres físicos básicos dos que podem excrc6-la). Pessoa t o ator - a máscara do teatro grego -, o Protaqonista central da tragédia que decide sobre o "hem" e o "mal" ' À fundamentaçao antropológica permite estabelecer um nível de crítica à coerência interna do discurso jurídico-penal; o outro - nIvel, obviamente, refere-se à nao-contradiçao de seus enunciados lì: entre silFica clara a negaçáo da coerência interna do discurso jurídico-penal quando se esgrimem argumentos tais como: "assim diz a lei", "a faz pOrque o legislador o quer", etc. Estas- expressöes são frequentemente usadas ein nossa região e implicam a confissäo - - aberta do fracasso de qualquer tentativa de construçáo racional e, por conseguinte, legitiiaadora do exercício de poder do sistema penal. i2. Ver Vasak, Kamt, Lasdimensiones internacionales de losflerechosIfumalios, Barcelona, 1984; nivel continental, Instituto Interamericano de Derechos Humanos, Daniel Zovatto (comp.), LosDerechosHumanosen el Sistema interamericano, -insuumthtas básicos, 1987. ii Etimologicamente, "persona" é a máscara do teatro grego. Corn oadvento do cristianismo e do problema da Trindade surgiu a questäo da substancialidade da pessoa. A partir do século XVIII, passa a significar particularmente a relaçáo do hornet consigo mesmo e a identidade pessoal (Abbagnano, N;, Dizionario di Filosofia Turim, 1980, pág. 666). 17 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 13. Mas a racionalidade do discurso jurídico-penal nao pode es- gotar-se em sua coerência interna. Embora pareça difícil imagiñar - em razäo da interdependência recíproca dos extremos con- figuradores da racionalidade -, poder-se-ia pensar em um discur- so jurídico-penal que, embora esteja antropologicamente fundamentado e respeite a regra da nâo-contradiçäo, nao fosse racional por ser sua realizaçäo social impossível ou totalmente diferente de sua programaçáo14. A projeçáo social efetiva da plâni- ficaçáo explicitada no discurso jurídico-penal deve ser minima- mente verdadeira, ou seja, deve realizar-se em alguma medida. discurso jurídico-penal é èiaboradq sòbre1um texto legal explicitando, mediañie os enunciados da! "4ogmátìca', a justifi- cativa e o alcance de urna planificaçâo na forma do tdever ser", ou seja, como um "ser" que "nao é" mas qtie"deve ser", ou, o que.ó o mesmo, como, um ser "que ainda nAo é". Para que este discurso seja socialmente verdadeiro, são requeridos dois niveis de "verdade so- cial":' - «â) urn abstrato, valorizado em funçäo da experiência social, de acordo com o quai a planificaçao crithinalizante pode ser con- siderada como o meio adequado para a obtençáo dos fins propostos (nao seria socialmenté verdadeiro um discurso jùrídico-penal que pretendesse justificar a tipiíicaçáo da fabricaçâo de caramelos entre os delitos contra a vida); f b) outro concreto, que deve exigir que os grupos humanos que integrâm o sistema penal operern sobre a realidade de acordo corn as pautas planificadoras assinaladas pelo discurso jurídico-penal i (nao é socialmente verdadeiro um discurso jurídico-penal quando os órgäos policiais, judiciais, do rninistério público, os meios mas- 14. Geralmente, quando o discursojurídico-penal ¿ utilizado para encobrirgraves problemas sociais, gen indignaçäo, e ternos alo fenómeno em um caso típico, que tenta schar unis soluçao corn base em casosparticulares arbitrariamente selecionadospelo sistema penal. Em qualquerpafs podem-se encontrar exemplos deste tipo dc Icis que são produto de um moderno pensamento mágico. "O pintor-caçador do paleolítico pensava que corn a pintura possuía a coisa mesma, pensava que corn o retrato do objeto adquiria poder sobre o mesmo objeto; acreditava que o animal da realidade soffiaa mesma morte que o animal retratado" (Arnold 1-lauser, Historia social de la literaturay del arte. Madri, 1971, tA, pág. 20). Nossos projetos de leis, mov{dos pco desejo de acalmar campanhas pela "lei e pela ordern", ou corn fins "eleitoreiros", Iembnrn os caçadores paleolíticos. 'Rl sivos de comunicaçAo social, etc. contemplam passivamente o homi- cídio de milhares de pessoas). ., : nfvel "abstrato" do requisito de verdade social j,oderia chamar-se adequaçûo de mejo a fim, ao passo que o nIvel "con- creto" poderia denominar-se adequaçao operativa m(nima confor- me planificaçáo. O discurso jurídico-penal que nAo satisfaz estes dois níveis é socialmente falso, porque se desvirtua como piani- ficaçào (deve ser) de um ser que attic/a nilo é para converter-se em um ser que nunca será, ou seja, que engana, ilude ou alucinai o discurso jurídico-penal nAo pode desentender-se do "ser' e refugiar-se ou isolar-se no "dever ser" porque para que esse "dever ser" seja um "ser que ainda nAo 6" deve considerar o vir-a- ser possível do ser, pois, do contrário, converte-a em um ser que jamais será, isto é, num embuste. Portanto o discurso jurídico- penal socialmente falso também é perverso1 : torce-se e retorce-se, tornando alucinado uns exercício de poder que oculta ou perturba a percepçäo .0 verdadeiro exerc(cio de poder. -Em nossa região marginal, é absolutamente insustentávei a racionalidade do discurso jurídico-penal que de forma muito mais evidente do que nos países centrais, nAo cumpre nenhum dos requi- sitos de legitimidade. A quebra de racionalidade do discursojurídico-penal arrasta consigo - corno sombra inseparavel - a pretendida legitimidade do exercício de poder dos órgäos de nossos sistemas pen.ais.'Ä'tuai mente, é incontestável que a racionalidade do discurso jurídico- penal tradicional e a conseqüente legitimidade do sistema penal tornaram-se "utópicas" e"atempórais": nao-se realizaräo em lugar algum e em tempo algum. 2 - A legititnidade nao pode ser suprida pela legalidade. "Legalidade" é palavra equívoca. Em sua acepçäo positivista ou formal refere-se à produçäo de normas mediante processos previa- mente fixados. IS. No puro sentido etimológico, "perverter" relaciona-se com "verter", isto 6, "transformar", "alterar" dandovoltas (cf. J. Corominas,Diccionario Crítico Ethnolónico de la Len,ua Castellana, Madri, 1976, W, pág. 716). 19 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 14. As Leonas que se esgotam na legalidade formal permanecem, F [) entanto, como que suspensas no vazio, ao nequenerem um ponto (![ apoio legitimador do proprio processo de produçäo normativa, 3 MO que se tem procurado, quer na idéia de "soberano", quer na I ssuposta e inquestionável legitimidade da "norma fundamental" (:L1 ainda na regna última de reconhecimento'A busca tern sido, J:ii eutanto, infrutifera e as Leonas da legalidade formal nao pude- I mi eludir a legitimaçáo do poder mediante seu mero exercício. }ä0 se trata da teoria da "pleonexia"7, de acordo com a qual o i is forte estaria legitimado pelo mero fato de sê-lo, mas sim de (:u a legalidade formal também legitimaria o poder dos fracos () ¡gados. No mundo atual - e especialmente em nossa regiäo marginal a insuficiéncia legitimadora da legalidade formal é bastante (tara, a ponto de nao existir no ámbito dos discursos juridico-pe- ¡ .a:. s nenhuma tentativa séria de legitimar o sistema penal mediante i. ra construçáo que exclua Ludo o que näo seja mera cornpletitude i gica. Um discurso desta natureza somente poderia pretender cit itir a pergunta sobre a legalidade do sistema penal - ou desa- cit dita-la como pergunta - remetendo a sua desqualiflcaçao rele- al Oria à categoria pejorativa dos "pseudoproblemas". No entanto, nportante lembrar que, embora nao existam construçöes acaba- a:, tIe discursos que pretendem supnir a legitimidade do sistema j rial corn a legalidade do mesmo, deve-se reconhecer que, fre- il antemente, realiza-se um emprego parcial e incoerente deste t'p de tentativa em nossa regiäo marginal latino-americana, con- t xto no quai esta espécie de discurso mostra-se particularmente Linante (estranho à realidade). i. orrespondem às teses de John Austin, de Kelsen e de Hart, respectivamente (Kelsen, -L, Teoriapura deiderecho, Buenos Aires, 1974; Hart, LA.,Direito, liberdad4moralidad4 rad, de G. Pereira dos Santos, Porto Alegre, 1987). 4enzel, Adolf, Calicles. Contribución a la historia dc la teoría del derecho dcl n*jiiene, rad. de Mario de la Cueva, México, 1964. 3 - Q sistema penal nao atua de acordo Coni a legalidade. Da pluralidade semântica da expressão "legalidade" pode-se extrair outro sentido a operacionalidade real do sistema penal seria "legal" se os orgäos que para ele convergem exercessem seu poder de acordo corn a programaçâo legislativa tal como a expressa o discurso junídico-penalJDentro deste pressuposto, esse exercício de poder apresentaria o caráter de "legaiid.ade" e so entäo entra- riam em questáo os argumentos colocados no parágrafo anterior. Na entanto, nao o neccssário aprofundar as superficiais consi- deraçoes formuladas no parágrafo anterior porque nein sequer a este nIvel prEvio o exercício de poder do sistema penal e'"legal". "Legalidade", no sentido agora utilizado, é urn conceito do qual o discurso jurídico-penal retira fundamentalmente dois prin- cipios; o de legalidadepenal e o de legalidadeprocessual (aos quais poder-se-la sornar o de legalidade executiva, ainda insuficiente- mente elaborado) . - Oprincípio de legalidadepenal exige que o exercício do poder punitivo do sistema penai aconteça dentro dos limites jreviamente estabelecidos para a punibilidade (com especial ênfase nos limites da tipicidade, a ponto de se tentar urna distinçào entre "tipo siste- mático" e "tipo garantia")18. O principio de legalidade processual (ou legalidade da açäo processual) exige que os órgäos do sistema penal exerçam seu poder para tentar criminalizar todos os autores de açoes típicas, antijurídicas e culpáveis e que o façam de acordo corn certas pautas detaihadamente explicitadâs9. Isto significa nao apenas que o sistema penal semente exercia seu poder na medida estrita da planificaçäo legal, como também que o sistema penal sempre - em todos os casos - deveria exercer esse poder. is. Ver a bibliografia indicada em nosso livro Teoria del delito, Buenos Aires, i973, pág. 179. 19. 0 "principio da oportunidade" limita esta obrigaçao, mas a Iimitaçao está sempre reguiada, nao flcando ao arbitrio total do órgao que a exerce; portanto, mesmo sob uma legislaçao rígida, o principio de oportunidade processual, o exerckio da açao, deve ser sempre "legal", pois a única diferença consiste em que em um caso a açâo correponde hipoteticamente, ¿ claro - a todas as informaçöes sobre um delito, aU passo que, no segundo caso, também corresponde à mesma suposiç5o, mas desde que nao se enquadre em nenhum dos casos em que se proibe ao órgao impulsor exercer a açao. 21 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 15. T No entanto, urna leitura atenta das leis penais permite corn- provar que a própria lei renuncia à legalidade e que o discurso jurídico-penal (saber penal) parece nao perceber tal fatoAtravés da nzinimizaçdo jurídica reserva-se ao discurso jurídico-penal, supostarnente, os "injustos graves"; através da "administra- tivizaçäo", consideram-se fora do discurso jurídico-penal as ins- titucionalizaçôes rnanicomiais, inclusive as dispostas pelo próprio órgojudicial; através datutela são excluídas do discurso jurídico- penal as institucionalizaçoes dos menores; atLravés do as- sistencialisnzo afasta-se totalmente do discurso penal a institucionalizaçâo dos anciöes. A perversâc do discurso jurídico-penal faz corn que se recuse, j corn horror, qualquer vinculaçáo dos rnenores (especiairnente os abandonados), dos doentes rnentais, dos anciñes e, inclusive, da própria prostituiçâo corn o discurso jurídfco-penal, embora sub- rnetarn-se todos esses grupos a institucionalizaçôes, aprisionanien- tos e rnarcas estimagtizantes autorizadas ou prescritas pelá própria lei quesâo, num todo, semelhantes - e, freqUentemente, piores - do que as abrangidas pelo discurso jurídico-penal. ro discurso jurídico-penal exclui de seus requisitos de lega- lidade o exercício de poder de seqüestro e estigmatização que, sob pretexto de identificaçao, controle migratório, contravençôes, etc., fica a cargo de órgàos executis'os, sern intervençâo efetiva dos órgâos judiciais IA lei permite, deste modo, enormes esferas de exercício arbitrario do poder de seqüestro e estigmatização, de inspeçäo, controle, buscas irregulares, etc., que se exercem cotidiana e arnplamente, à margern de qualquer "legalidade" puni- tiva contemplada no discurso jurídico-penal. 'O saber penal só se ocupa da legalidade das matErias que o órgao legislativo quer deixar dentro de seu ámbito e, enfim, de reduzidissirna parte da realidade que, por estar dentro desse âmbitojá delimitado, os órgoos executores decidem submeter-Ihe. Na realidade social, o yerdadeiro e real poder do sistema penal náo é o poder repressor que tern a mediaçâo do órgáo judi- cial. O poder náo é niera repressâo (nao é algo negativo); pelo contrário, seu exercício mais importante positivo, configurador, sendo a repressao punitiva apenas um limite ao exercício do poder20. Este ámbito, no quai a própria lei renuncia aos limites da legalidade, em que desaparece qualquer funçao garantidora dos tipos penais e do qual se exclui a intervenção normal dos órgãos judiciais, é a base indispensável para que possa operar o verdadeiro exercício de poder do sistema penal, ou seja, para que opere o poder configurador dos órgâos do sistema penal e para que só : eventualmente se possa exercer urna repressäo maior que a auto- rizada ños casos supostamente reservados ao discurso jurídico- penal. Mediante esta expressa e legal renúncia à legalidade penal, os órgàos do sistema penal são encarregados de um controle social militarizado e verticalizado, de uso cotidiano, exercido sobre a grande maioria da populaçäo, que se estende alem do alcance meramente repressivo, por ser substancialmente configurador da vida social. Este poder configurador nao se limita às funçöes que, dis- cricionariarnente - por discricionariedade legalmente outorgada ou de "fato" assumida -, exercem os órgáos executores do sistema penal e que pertencem exclusivamente aos mesmos, mas esses Or- gâos também atuam corno órgáos de execuçâo, recrufamento e reforço de outras agéncias ou instâncias institucionais configu- radoras, cujo poder é explicado por discursos diferentes, embora corn recursos análogos ao aprisionamento, sequestro e estigma- tizaçäo. Assim, os órgâos penais ocupam-se em selecionar e recru- tar ou em reforçar e garantir o recrutamento de desertores ou candidatos a instituiçôes tais como manicômios, asilos, quartéis e até hospitais e escolas (em outras épocas, conventos). Este poder também se exerce seletivamente, de forma idêntica à que, em geral, é exercida por todo o sistema penal. Os órgãos do sistema penal exercem seu poder militarizador e verticalizador-disciplinar, quer dizer, seu poder configurador, sobre 20. Ct Foucault, M., op. cii., $g. 182. 23 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 16. a 5etores mais carentes da populaçáo e sobre alguns dissidentes (( 'J "diferentes") mais incômodos ou significativos. A disciplina militarizada tende a ser igual à do quartel: a UI lormidade do aspecto externo, o acatamento ao superior, a sc iì açäo de que toda atividade prazerosa é urna concessäo da ai I.(ridade, etc., são evidentemente parte de um exercício de poder c( L igurador e näo, meramente, repressivo. Trata-se também de um p An repressivo porque tende a interiorizar essa discipliná (a to r á-la parte do próprio apareiho psicológico), atua em nivel C( il ciente e - talvez, principalmente - inconsciente, elimina a es rntaneidade e configura urna sociedade de submetidos a urna vi, ¿i2ncia interiorizada da autoridade.T Seria completamente ingênuo acreditar que o verdadeiro po- th r do sistema penal seja exercido, por exemplo, quando suas a ¿licias detêm, processam e condenam um homicidio. Esse poder, qi e se exerce muito eventualmente, de mancira altamente seletiva e I leada de ampia publicidade através dos meios de comunicçäo so: il de massa, é ínfimo se comparado com o poder de controle e os órgäos do sistema penal exercem sobre qualquer condula pCE ica ou privada através da interiorizaçâo dessa vigilância dis- ci] loar por grande parte da populaçâo? Na introjeçâo da ordern verticaiizante é decisivo o papel dos m us de comunicaçáo social de. massa, que costumam amar desde ce w na vida das pessoas (especialmente a comunicaçäo de la- ze ) l, embora nâo se deva descartar a relevância da atuaçäo da es ola, de outros grupos prisnários, etc. neste processo. A vigilância disciplinar, verticalizante e militarizada da socle- da Ji. opera deforma camuflada, impedindo que seja percebida em nl' consciente, em toda a sua magnitude. Por isso, em nivel cons- o e, as mesmas pessoasvulneráveis ao sistema penal (os setorcs ca e .ites e os dissidentes incômodos), se por um lado nao sentem tenr diante do exercício de poder do sistema penal quando este ap !Irce com sua máscara de repressäo do "inimigo", percebem co in. temível o exercício de poder dos órgáos do sistema penal 21. :. espeito da publicidade sobre diversuo na América Latina e da problemática gera! ria M iunicaçAo, Alcira Argumedo, Los laberintos de la crisis, Buenos Aires, 1984 controlando qualquer conduta realizada em lugar público ou pri- vado (como abraçar outra pessoa, vestir-se de modo diferente, beber corn amigos, caminhar na madrugada, passear com um ca- chorro, procurar um objeto sexual, recolher resIduos acumulados na via pública, sentar-se numa esquina ou num parque, usar cabelos compridos, raspar a cabeça, usar barba, fantasiar-se, tocar um irstrumento musical ou cantar, expressar suas idéias ou discuti-las, peticionar à autoridade, etc.). » Praticamente, nao existe conduta - nem mesmo as açôes mais privadas - que náo seja objeto de vigilância por parte dos órgâos do sistema penal ou daqueles que se valem de sua executividade para realizar ou reforçar seu controle, embora mostrem-se mais vulneráveis as açöes realizadas em público, o que acentua a sele- tividade da vigilância em razäo da divisáo do espaço urbano que confere menores oportunidades de privacidade aos segmentos mais carentes22. A circunstância de se perceber como a totalidade do poder do sistema o que nao passa de mínima parcela do mesmo - e exa- tamente aquela que serve de pretexto para um verdadeiro exercício de poder - nAo deixa de ser um dos (raços perversos do discurso de justificaçao do sistema penai. Uma das facetas perversas do discurso jurídico.penal consiste, portanto, em mostrar o exercício total de poder d? sistema penal como esgotado sieste ínfimo e eventualíssimo exercício que configura o denominado "sistema pe- nal formal". Em sintese, e levando-se em conta a programaçäo legal, deve- se concluir que o poder configurador ou positivo do sistema penal (o que cumpre a funçâo de disciplinarismo verticalizante) é e- xercido à margem da legahdade, de forma arbitrariamente seletiva, porque a própria Ici assim o planifica e porque o órgâo legislativo deixa fora do discurso jurídico-penal amplíssimos âmbitos de con- troie social punitivo: 22. CI. Dennis Chapman, Lo stereotipic del criminal; Turim, 1971. 24 . 25 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 17. -A legalidade nein mesmo é respeitada no ámbito do sistema s-f-- ' penal formal. I Embora o sistema penal "formal" nao seja mais do que o apêndice justificador do verdadeiro exercício de poder dos Órgãos do sistema penal, a legalidade nAo é respeitada, nein mesmo em sua operacionalidade sociaLj A estrutura de qualquer sistema penal faz corn que jamais se possa respeitar a legalidade proces- : suai. O disreurso jurídico-peual programaum número incrfvel de hipóteses cm que, segundo o "dcvcr ser", o istcma penal intervm de modo "natural" (ou mecânico). No entanto, as agências do sistena penal dispoem apenas de uma capacidade operacional ridiculamente peqiiena se comparada à magnitude do planifica do . : Ç A disparidade entre o exercício de poder programado e a operativa dos órgäos éabissal, mas se por urna circuns- tância inconcebível este poder fosse incrementado a ponto de che- gar a corresponder a todo o exercício programado legislativarnente, produzir-se-ia o indesejável efeito de se crirninalizar várias vezes toda a populaçáo. Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudaç5es, todas as falsidades, todos os subornos, todas as Iesóes, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminaliza- dos, praticamente nao haveria habitante que nao fosse, por diversas vezes, criminalizado. A realizaçäo da criminalizaçáo programada de acordo com o discurso jurídico-penal é um pressuposto tao absurdo quanto a acumulaçao de material bélico nuclear capaz de aniquilar várias vezes toda a vida do planeta. Estes dois paradoxos são reveladores de um sintoma da civilizaçáo industrial levado a seu absurdo máxi- mo pela atual - ou nascente - civilizaçäo "tecnocientífica". A difcrcnça mais importante cetre estcs dois extremos absur- dos reside no fato de que, enquanto o material bélico tern urn efetivo poder destruidor (é acumulado exatamente corn o discurso justificador de que sua acurnulaçäo anula qualquer possível progra- mação de seu uso), o sistema penal 6 uni verdadeiro embuste: prctcnde dispor dc um poder que nAo possui, ocultando o ver- dadeiro poder que exerce. Alérn do mais, se o sistema penal tivesse 26 realmente o poder criminalizante programado, provocaria uma ca- tástrofe social. Ninguém compra um apartamento impressionado por urna bela maquete apresentada por uma empresa notoriamente insol- vente; no entanto, compramos a suposta segurança que o sistema penal nos vende, que é a empresa de niais notória insolvência estrutural em nossa civilizaçâo. Diante da absurda suposição - nao desejada por ninguém - dc criminalizar reiteradamente toda a popuação, torna-se obvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a lega- lidade .processual nao opere e, sim, para que exerça seu poder com altissimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, natuTalmente, aos setores vulneráveis. Esta seleçao é produto de um exercíeio de poder que se encontra, igualmente em mAos dos ÓrgAos executivos, de modo que tambérn no sistema penal "formal" a incidência sele- tiva dos árgaos legislativo e judicial é mínima. Os órgàos legislativos, inflaeionando as tipificaçöes, nAo fa- zem mais do que aumentar o arbitrio seletivo dos órgäos executivos do sistema penal e seus pretextos para o exercício de um major poder controlador A seletividade estrutural do sistemapenal - que sópode exercer seupoderregressivo legal em um número insignificante das hipóteses de intervençöo planificadas - é a mais elementar demonstraçöo da falsidade da legalidade processual procthmada pelo discurso jurídico-penal. Os órgAos executivos têm "espaço legal" para exer- cer poder repressivo so[ne quaiqt :r habiLa?.t, mas operam quando e contra quem decidem. O sistema penal formal nAo viola apen[as estruturaimente a legalidade processual; viola também a legalidadepena4 através de diferentes caminhos: a) a duração ext raordinária dos processos penais provoca uma distorçâo cronológica que tem por resultado a conversáo do auto de prisâo em flagrante ou dd despacho de prisAo preventiva em auténtica sentença (a prisAo provisória transmuta-se em-penal), a conversão do despacho concessivo de liberdade provisórìa em ver- dadeira "absolviçáo" e a conversäo da deeisAo final em recurso extraordinário. Considerando que a análise aprofundada dos limi- 27 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 18. es da punibilidade ocorre apenas no momento da decisáo final, o Rido predominio dos "presos sem condenaçáo" entre a populaçäo h toda a região23 nao implica sornente urna violaçáo à legalidade 1 ocessual, mas também à legalidadepenal; b) a carência de critórios legais e doutrinários claros para a iantificaçäo das penas dá margem a apreciaçóes tao arnplas e :. rentes de critórios reguladores que, praticamente, entrega esse E mpo à arbitrariedade, eliminando-se a chamada "legalidade das e n as" e) a proliferaçäo de tipificaçoes com limites difusos, com :bmentos valorativos moralistas, corn referências de animo, com .:iiissóes ou ocultamentos do verbo típico etc., são outras formas it debilitar ou cancelat a legalidade penal; d) as agências executivas frequentemente atuam à margem dos :.rttórios pautados para o exercício de poder pelos ôrgãos judiciais, ¡nodo que, quando se produz a intcrvençào destes, já se con- :!Lmaram efeitos punitivos irreversíveis sobre a pessoa selecionada. s.ïò exerc(cio de poder abertatnente ilícito por parte do sistema unal. Conforme foi apalisado, o sistema penal nao respeita a e atidade porque, para o verdadeiro e fundamental exercício de :'tder (o exercício de poder positivo configurador disciplinante), a :'r Opria leise ocupa de renunciar à legalidade, concedendo amplIs- i:na margem de arhitrariedade a suas agências Conforme já assinalado, o exercício de poder menos impor- aite do sistema penal - correspondendo apenas a um pretexto E ra o exercício de poder verdadeiro - tambóm nao obedece, scruturalmente, à legalidade processual ou à legalidade penal. Até aqui, examinamos violaçöes à legalidade que operam den- T) da arbitrariedade ou renúncia planificada pela prOpria lei. No ntanto, além destas violaçöes, verifica-se na operacionalidade so- id dos sistemas penais latino-americanos um violentíssimo exer- íio de poder à margem de qualquer legalidade. Nette sentido, 3. Ver Elías cananza - Luis Paulino Mora - Maño Ohued - E.R.Zaffaioni. Elpreso sin condena al Ambica Latina, Sao Jost, 19ß3. A situaçâo descrita aeste trabalho acentuou-se nos últimos anos, tendendo a agravar-se progressivamente. basta rever qualquer. informe sério de organismos regionais ou mundiais de direitos humanos para comprovar o incrivel número dc seqücstros, homicídios, torturas e corrupçáo cometidos por agên- cias executivas do sistema penal ou por seus funcionários. A estas violaçöes devem ser acrescentadas a corrupçáo, as atividades extorsivas e a participaçáo nos beneficios decorrentes de atividades como o jogo, a prostituiçäo, o contrabando, o tráfico de drogas proibidas, dados geralmente nãc registrados nos informes dos organismos de direitos humanos, apesar de pertencerem à inquestionável realidade de nossos sistemas penais marginais. Concluindo, pode-se, então, afirmar que: a) a legalidade nao proporciona legitirnidade, por ficar pen- dente de um vazio que só aficçao pode preencher; b) o principal e mais importante exercício de poder do sistema penal se realiza dentro de um modelo de arbitrariedade concedida pela prOpria lei; c) o exercicio de poder menos importante do sistenapenal serve de pretexto para o exercício de poder principa4 nao respeitando tambéni, e nempodendo respeüar a legalidade; d) além de o exercício de poder do sistema penal nao respeitar nein poder repeitar a legalidade, na operacionalidade social de ,zossos sistemas penais, a legalidade é violada de forma aberta e extrema, pelo altissimo número de fatos violentos e de corrupçäo praticados pelos prOprios órgdos do sistema penal. III - A Perpersäo Irnobiliza o Discurso Jurídico-penal A perversáo do discurso jurídico-penal caracteriza-o como um ente que sc enrosca em si mesmo de forma envolvente, a ponto de imobilizar freqüentemznte seus críticos mais inteligentes, espe- cialmente quando estes possuem alg:ima relaçäo com a-prática dos órgáos judiciais e corn a necessidade de defesa concreta e cytidiana dos direitos humanos na operacionalidade desses órgaosCT Desta maneira, a perversáo 6 a característica que cristaliza a dinámica discursiva do discurso jurídico-penal, apesar de sua evidente fat- sidade. 29 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 19. Embora o principal exercício de poder do sistema penal tenha ligar sem a intervençäo do.órgäojudicial (ao qual se limita o poder dos juristas), quando, neste âmbito, devem ser defendidos os direi- tos humanos, seus defensores acabarn considerando verdadeiros os pressupostos do discurso jurídico-penal que devem esgrimir e, corn 1550, admitern, quase sem percebê-lo, a racionalizaçáo justificadora de todo o exercício de poder do sistema penal. >- ?/5 FA crítica nao conjuntural ao sistema penai é percebida, por- tanto, como urna arneaça aos direitos humanos no ambito do órgáo judicial e, diante disso, preocupados corn necessidades mais ur- gentes, prefere-se ignora-la, coloca-la entre parênteses, deixa-la em suspenso, atribuí-la a circunstânciai conjunturais (o que é ilma forma de negaçâo) ou refugiar-se no contraditório argumento da "impotência-onipotência" que outorga ao discurso jurídico-penal um mero valor instrumental. A aceitaçáo do discurso jurídico-penal pelos juristas, no limi- tado âmbito de seu órgáo judiciário, produz efeitos reais, embora seja falso o discurso, confirmando o conhecido mecanismo do teo- rema de Thomas: "se os individuos definem as situaçêes como reais, são reais suas conseqüências"4. Tais efeitos reais são as reaçöes favoráveis dosórgâos judiciais (em reduzida e flexível medida) em relaçáo aos direitos humanos. Definida a operatividade do sistema penal quanto à legalidade, em muitos casos o órgáo judicial reage conforme a legalidade. Nao obstante, estes efeitos reais nao são conseqüência de nenhuma operatividade legal do sistema penal e, sim, do mero efeito de se admitir urna legalidade utópica (irrealizável) no limita- díssimo ámbito do poder do órgäo judicial, ¡sto é, do poder rneùos importante que o sistema penal exerce. Se um grupo de pessoas estivesse a ponto de nos matar e nao tivéssemos possibilidade alguma de defesa e, nesse exato momento, o grito de urna coruja Ihes anunciasse a presença de urna "alma penada", infundindo-ihes tal temor que, imediatarnente, nos libe- rassem, fugindo espavoridos, nao ha dúvida de que nos felicita- 24. Robert K Merton, Teoría y estructuras sociales, México, 1964, pág. 419. lÍ] ríamos infinitamente pela acidental presença da coruja. No entan- to, isso nao significa que começaríamos a acreditar que as corujas são "almas penadas". O discurso jurídico-penal é tab perverso que, a partir da presença salvadora da coruja, faz corn que os juristas relacionem seriamente as "almas penadas" com as corujas apaixonadas. IV - Signos Teóricos da Situaçáo Crítica na América Latina Dentre os signos teóricos da situaçao crítica referida, que podem ser percebidos em diferentes ámbitos, direçoes e interesses do saber, mencionaremos a crítica geral a6 direito (apesar de sua escassa repercussâo académica no ámbito penal), a forte preo- cupaçdo corn a legitimidade do poder manifestada em pesquisas jus-filosóficas realizadas na regiâo; a acentuada preocupação das j pesquisas jus-humanistas e dos organismos de direitos humanospelo sistema penal; e, por último, e, talvez ode major importância como motor da situaçáo, a criminologia da reação socialdifundida na área e o debate dela originado. 1. Crítica ao direito. Exernplo expressivo deste signo teórico é a crítica ao direito elaborada por Novoa Monreal25 que, apesar de ser um dos mais destacados penalistas da regiào, orieflta sua crítica em direçao a conceitos básicos do direito privadoiNovoa Monreal centraliza sua crítica na recusa de que "o" direito seja entendido, unicamente, como o direito que responde apenas a uma concepçäo "liberal-individualista", que parece identificar com urna idóia qui- ritária da propriedadePor isso, Novoa recusa ao jurista a funçâo de tutor de urn pretendido "diréito natural" que determine os conteúdos do direito, tarefa que reserva à política, deixando para o trabalho técnico do jurista uma atividade interpretativa à qual nega o caráter de "ciéncia". No entanto, nao se deve entender que 25. Eduardo Novoa Monreal, El derecho como obstáculo al cambio social México, 1981; Elementospara una crítica y desmistificación del derecho, Buenos Aires, 1985. 31 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 20. :;ovoa Monreal caja em um simples positivismo ultrapassado e ronsagrador da onipoténcia legislativa, urna vez que subordina (.Xl)ressamente o legislador aos limites das direitos humanos, con- ideramos como conquista da cultura universal independente do 'direito natural", independência que fundamenta na gestaçäo his- tórica do jus-naturalismo corno ideologia que aceitava e racio- r alizava a escravidaot A crítica jurídica de Novoa Monreal é irrefutável em seu z specto central, isto é, no que se refere à negaçào do direito como ilcologia justificadora de um conceito quiritário de proriedade. Lntreta1.tto, nao acreditamos que este signo técnico permita supe- tar a situaçào crítica sobre o discurso jurídico-penal e a desle- gitimaçâo do sistema penal como exercício de poder. Pelo menos, t o fica suficientemente claro o caminho pelo qual se possa realizar esta superaçáo26. Apesar de compartilharmos corn Novoa as dúvidas sobre o caráter de "ciéncia" do direito - embora, para nãs, essas dúvidas cao derivem tanto da problemática do direito, quanto do práprio conceito de "ciência" enqianEo produto de uma rnanipulaçâo do ç oder ao longo da historia ' -, fica em suspense a funçao que esta crítica geral do direito atribui ao penalista quando, ao descobrir a f Usidade do discurso jurídico-penal, encontra-o, por sua vez, per- vnso. Se o legislador deve respeitar os limites que the irnpöem os direitos humanos - como postula corretamente Novoa Monreal - cabe perguntar como pode limitar-se o jurista à funçäo técnica que the é destinada, se isso implic4 fortalecer a lógica interna de um b. Nao é nosso propósito, aqui, avahar toda a crítica jurídica de Novoa Monreal. Urna poss(veh hipótese a respeito dela ¿ que talvez siga o mesmo destino de outras tantas tcorias, de diferentes sentidos, mas que resultaram nao aptas pan abarcar todo o direito penal, fenómeno possivelmente derivado,justamente, do fato deque o direiLo penal nao "resolve" os coriflitos, isto é, nao é um "modelo" pan soluçâo de conflitos. 2 LFan nAo mencionar os autores contemporáneos e, em particular, o tantas yeses citado trabalbo de Foucault (La verdad y las fornas jurídicas), vale a reniissao a autores já distantes no tempo, comoWilhelm Wundt,Jnrrot a lafilosofia, trad. de Eloy Luis André, Madri, 1911, t. 1, págs. 35 e segs. Na área penal, cabe recordar que em 1961 Luciano J'ettoelho Mantovani pos emdúvida ovalorda "ciencia penal", entendida, como dix-Camas, em sentido "formal" ou "tecnocrático" (Za. ed., il valore problematico della scienza pcnalisxico,1961-1983. Contro dogmi ed empiris-n4 Milan, 1983). discurso que será usado para difundir as peines perdues. Se o discurso é perverso, se é baseado em falacias acerca da realidade operacional dos sisternas penais, se esta realidade é um verdadeiro : genocidio em marcha e se o exercício de poder mais importante do sistema penal fica fora do campo abrangido pelo discurso jurídico- penal, o penalista que limita sua função à rnera técnica nao fará outra coisa senâo aperfeiçoar um discurso.que racionaliza a con- tribuiçäo do árgäo judiciário a sernelhante empresa. . A tese de Novoa Monreal é adrnissível no ambito do direito privado, mas, ao menos nos termos em que está exposta, nao parece poder estender-se facilmente ao âjnbito do direito penal, já que se mostraria sumamente contraditária ao converter o jurista em um racionalizador da violaçäo de direitos humanos que consuma a operatividade real de nossos sistemas penais. É muito provável que esta diferença provenha do fato de Novoa Monreat nao levar sMi- cientemente em consideraçäo alguns pressupostos quanto à operatividade real dos sistemas penais, nao percebendo uma con- tradiçäo estrutural entre a ideologia dos direitos humanos e a ideologia justificádora do exercício de poder dos sistemas penais. 2. FreocupaçUo corn a legiliniidade dopoder. Nos últimos tem- Pos, a questao da legitimidade do poder converteu-se em tema quase reiterativo na filosofia jurídica da nossa regiao marginal28,. sendo impossível abordar aqui este fenomeno em toda a sua mag- nitude e, menos ainda, analisar suas contribuiçóes. A título meramente exemplificativo, devem ser mencionados os trabalhos de Hernández Vega29, que recusa terminantemente que a legalidade possa proporcionar legitimidade e conclui desqua- lificando qualquer pretensäo de isolar o direito e o exercício do poder de um marco ético Hernández Vega demonstra que o poder 28. Por exemplo, a revista "Contradogrnáticas" (Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul - ALMED) Santa Cnn do Sul; M. Celeste C. Leite dos Santos,Poderjurldico evioténcia sïmbólic4 Sáo Paulo, 1985; LuizEernando Coelho, Teoria crítica dodLreito, Curitiba, 1987; Luis Alberto Want, A pureza do poder. Urna análüe crítica da teoría jurídica florianópolis, 1983; (autores divenos), Uniyersidade de Brasilia, Educaçâo â distancia, O direito adiado na rua Brasilia, 1988. 29. Raúl Hernández Vega, Problemas de legalidad y legitimidad delpoder, Xalapa, Ver., 1986. F - 33 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 21. apresenta-se nao apenas como um fato social, mas também, como urna realidade moral (idealidade ético-racional), o que na verdade, nao poderia ser diferente, urna vez que o poder se exerce mediante açöes humanas. Nesta duplicidade, na permanente tensào entre real e ideal, que procura expressâr mediante urna lógica dialética, está a raiz, pata Hernández Vega, do "enigma" do poder, sua "afona" 3. Freocupaçöo jus-hunianista corn o sistema penaL Os grupos e iniciativas civis latino-americanos manifestam crescente preo- L cupaçäo corn o sistema penal.Muitos desses zúcleos apareceram como resistência civil ao terrorismo de estado e, ños países onde essa etapa parece superad, nao se pode deixar de perceber a permanência quase intacta dos órgâos que executaram esse ter- rorismo, corn seu próprio poder administrado e forma mais pru- dente ou dirigido para outros setores sociais. O assombro, ou a busca de explicaçöes conjunturais face à caréncia de um marco teórico, costuma ser a primeira reaçâo ingênua, à qual, paulatina- mente, vai sucedendo um forte interesse pelo sistema penal. Atéstando esse interesse no plano institucional regional, cxc- cuta-se pela primeira vez um programa especial na regiâo con- vocado por um organismo hemisférico que reúne penalistas e criminólogos latino-americanos30. Mais do que qualquer proposta concreta, essa investigaçáo demonstrou, de forma consideravel- mente circunstanciada, a disparidade éntre o discurso jurídico- penal ea realidade operacional do sistema penal. 4. Critica criminológica. Os signos teóricos da situaçäo crítica referida sâo, sem dúvida, importantes, mas à sacudida teórica mais formidável - e praticamente precipitadora desta situaflo - recul- tou da difusào da criminologia da reaçäo social na região, prota- gonizada por numerosos autoresTM, que pôs fim a um lento processo 3OE Inst. lot, de Derechos Humanos, Sistemapena/es, cit.; entre os trabathosparticularcs, cabe mencionar, dentre os mas recentes, o de Contalo D. Femnándcz, Derecho Penal y Derechos Humanos, Monteviddu, 1938. M.A bibliografia critica latino-americana é consideravelmente extensa. Entre os mais no qual se foi eclipsando a ingênua confiança - que alcançou sua expressào ideológica máxima corn o chamado "Código Penal tipo latino-americano", elaborado na década de sessenta - nos resul- tados operacionais de um mero aperfeiçoamento técnico-legisla- : Corn o aparecimento da criminologia da reaçào social na América Latina, manifestou-se - coni maior evidência do que nos países centrais, em razào da violência operativa mais forte ou menos sutil de nossos sistemas penais marginais - a falsidade do discurso jurídico-penal. Por outro lado - e, talvez esta tenha sido sua contribuiçao mais importante - esta criminologia neutralizou por completo a ilusão do suposto defeito conjuntural, superável num nebuloso futuro. - : Se nos países centrais, o discurso jurídico-penal pôde susten- tar-sc por certo tempo scm maiores variantes, ignorando a crítica criminológica ou sociológica, para o penalismo latino-americano essa situaçäo revelou-se particularmente insustentável, em razão da gravidade dos resultados práticos da violentíssima operacio- nalidade dos sistemas pcnais. -Somente o próprio exercício do poder pode tentar neutralizar a situaçäo crítica na América Latinamas nao pode fazé-lo gerando unI "saber" prOprio porque, também neste caso, trata-se de um fenômcno derivado do poder planctário ou enxertado na sua rede em posiçào marginal.O saber das fábricas ideológicas centrais, ao transnacionalizar-se, torna-se disfuncional para o exercício do po- der dos sistemas penais marginais, restando, como único caminho para que suas agências escamoteiem seu poder, a desinformaçdo teóricìJ'Nao é em- väo, portanto, que os órgaos dos sistemas penais latino-americanos favoreçam a reiteraçáo de discursos criminológicos administrativos, do discurso jurídico-penal mais tradicional e da estigmatizaçâo como "estrangeinizantes" dos dis- apresentados teoricamente, vale citar Lola Aniyar de Castro, Rosa dcl Olmo, Roberto Bergalli, n malogrado Emiro Sandovatllucrtas,Emilio García Méndez, etc. Uminteressante debate que também sintetiza a história do movimento pode ser acompanhado em "Doutrina Penal" (1985-1986). Os trabaihos de que participaram (Novoa Monrcal, Aniyar de Castro, Rosa del Olmo, Roberto Bergalli) estAo reunidos em "Criminalià", 1987, págs. 7-á7. 34 - 35 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 22. ( ii SOS centrais, em funçao de um ¿hauvinismo "científico" que I ! ete discursos seculares, etc! Um dos caminhos mais eficazes para conseguir a desliz- f :r maçäo teórica é a "satanizaçáo" de qualquer crítica des- i gitimante do sistema penal como "marxista". Nos países centrais, C SC qualificativo tem urna conotaçäo consideravelmente ampia e C s;utida pelas diferentes vertentes que pretendem instituírem-se -J C DILIO as verdadeiras intérpretes de Marx. fÑa América Latina, no C nl auto, o termo "marxista" sofre urna transformaçäo que ignora a gaiia de cores e matizes dos países centrais32, ampliando-se seu Sn tido até limites absurdos de forma a designar-se como "marxis- t V' tudo o que constituí ou ameaça constituir uni contrapoderpara a V r icalizaçao militarizada de nonas sociedadesperiféricas. De for- na sucinta, "marxista" representa, na América Latina, qualquer p isamento ou conduta que, tendo ou nao relaçäo corn o discurso d N{arx ou corn qualquer dasmúltipias versóes que se pretendani d r ivar de seu pensamento, é percebido como urna ameaça para seu p.:Ler pelos órgaos locais de controle social ou como disfuncionais pita o exercício do poder periférico, pelas agéncias do poder c iftral. Este to conteúdo minimo da constataçdofuacjonal-delagórja d 'marxismo", mas este conteúdo pode obviamente, ampliar-se s g indo o grau de terrorismo de Estado que impere e segundo as c nunstâncias que possam permitir a qualquer inimigo pessoal ii ioduzir variáveis ainda mais insólitas, de maneira a convencer a g ima agéncia contro1adorj Desta forma, "marxista" abrange, p aLicamente, todo o varidvel campo do suscetível de delaçao, con- sig undo-se assim separar em nossa regiäo por mais discutiveis que si rn estes limites nos países1centrais sua funcionalidade delatária d eus limites ideológicos.JEm outros termos, o conceito "rnarxis- t" converte-se num instrumento funcional de delaçao, que nao é sl::;etível de qualquer delirnitaçäo ideológica e cujo conteúdo varia a eaas em funçáo de sua eficacia delatória conjuntural. (Em outros ci uLextos, funçoes análogas podem ser cumpridas por outros quali- 32 S tie este fenómeno, Constantino Láscaris, Deganollo de ¡as ideasfilosóficas en Costa R ca, San J0&é, 1983. ficativos que se esvaziam de conteúdo semântico para exercerem um mero papel instrumental, em razäo de sua variável eficácia delatória: "fascista", "burguês", "liberal", etc.). Como nao podia deixar de ser, acríLica social ao sistema penal .- r T foi "denunciada" como "marxista". Em hoinenagem ao mínimo de seriedade que merece a análise de qualquer ideologia, torna-se necessário precisar: a) que a deslegitimaçào teórica do sistema penal e a falsidade do discurso jurídico operam de modo irrever- sível através da teoria da rotulaçáo que responde ao interacionismo simbólico: b) que a pertinência da crítica à teoria da rotulaçäo, por parte daqueles que a consideram limitada33, em nada diminui seu valor deslegitimante e demolidor do discurso jurídico-penal, con- signando-se que o interacionismo simbólico e a fenomeno1gia nada tém a ver corn o marxismo e, sim, com o pragmatismo/ - particularmente de Mead34 - e com Husserl35. Esta explicaçäo seria obviamente ridícula nos países centrais, onde se trabaiha corn um conceito de "marxismo" que, apesar de confuso e discutível, pretende referir-se ao nível ideológico. Da mesma forma, esta explicaçáo resultará completamente inútil em nossa regiâo; nela, a crítica criminológica continuará vendo-se en- volvida no couccito de "rnarxismò jue conscrvará scu valor deja- tário enquanto o- poder näo encontrar outro instrumento de delação mais idoneo. De qualquer maneira, os esforços do poder do sistema penal nao conseguiram evitar a situaçäo crítica - que se sobrepöe a estes esforços - como um impulso ético que, a partir da autenticidade do ser humano em qualquer emergência negativa, tenha conseguido transpassar a força de todo o exercício genocida do poder. 33Um dos seus críticos mais irnplacáveis é Alvin W. Gouldner, Crisis de la sociología occidenta Buenos Aires, 1979. 34. George Herbert Mead,Esplritrg, personay sociedad desde el punto de vista del conductismo socïa trad. dc Floreal María, Barcelona, 1982. 35. Como fonte direta desta vertente, em sociologia, Peter Berger-Thomas Luckman, La constnacción social de ¡a realida4 Buenos Aires, 1986; Alfred Schutz, El problema de la realidad socíal Buenos Aires, 1974. 37 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 23. V - A Deslegithnacáo pelos Próprios Falos Näo existe "teoria que, por si mesma, tenha força suficiçnte para vencer urna estrutura que se interioriza, dçsde cedo, na vida das pessoas, se nao vier acompanhada de urn fato de particular evidência, que opere como "choque" corn a reaidade. A percepçäo de determinados fatos notórios pode ser perturbada, mas nao pode ser negada:Desta maneira, estes fatos atuam como curto-circuitos do mecanismo inventbr da realidade, iluminando-a corn relâm- que, frequentemente, kvam à açáo como opçâo de cons- ciôncia aberta. Entre;sses fatos, o mais notózio,e.rn noss regáo marginal, e do qual pode derivar-se toda urna ética' deslegitimanté, é a morte. Trata-se de urna dcslegitimaçäo qUe está além dos limites teóricos porque atinge diretamente a consciência ética, näo requerciido qualquer dernonstraçâo científica porque é "perccptível": ninguém seria tolo a ponto de negar que os mortos estäo rnortos. A tdcnìca te-rrorista do Estado de desaparecimento forçado de pessoas, ao invés de ocultar o fato à consciEncia ética, nao fez mais do que apresentá-lo, em cores mais vivas, pois, ao evitar o ritual da morte e do luto, tornou mais incerta a auséncia da morte, rebaixando a incerteza do nivel das escatologias religiosas ao nivel da escatologia intramundana. Os esforços do saber jurídico e da cornunicaçäo de massas para inventar uma realidade que evite a deslegitirnaçäo provocada pela percepçäo direta dos fatos, e que opere de forma imcdiata sobre a consciência ética, são cpnsideráveis, podendo-se afirmar que dificilmcnte se encontra um esforço semeihante na civilizaçAo tecnocientífica, apesar da insistência de alguns em comparar aque- les esforços corn os realizados pelo poder no campo do controle da sexualidade. No entanro, embora admitam certo grau de coinpa- raçäo - considerando-se, mesmo, que nao são, em verdade, abso- lutamente independcntes -, nao se pode negar que, quanto ao poder do sisterna penal, a clicácia dusses esforços na invenção da realidade, apresenta-se mai01, pois, cte alguns niveis, causa a im- pressào de perturbar a percepçâo de fenômenos a ponto de supri- mir, eventualmente, a prOpria senso-petcepçáo. No ámbito do controle da sexualidade nao existe um saber especia' institucionalizado capaz de normatizar a questâo corn o mesmo grau de prestigio e confiança do sistema penal. Por mitro lado, os que denunciam a realidade neste ámbito náo se acham de maos atadas por uma perversäo que faça temer urna percepçáo mais adequada e crítica que aumente a repressäo. Apesar de formidávcl, o esforço de invençäo da realidade, que parece ter muito êxito nos países centrais, em nossa área nao consegue ocultar completamente a realidade operativa dos sis- ternas penais. o número de mortes causadas por nossos sïstern Denais, an aproximar-se e,: às vezes, superar o total de homicidios de "ini- ciativa privada"; o já mencionado fenomeno de mortes culposas pelo tránsito e a indiferença do sistema; a mesma indiferença pelos abortos e pelas mortes por carências alimentares e assistenciais; os processos de deterioraçao de pessoas, rnobilidade e condiciona- mento para posterior morte violenta; a morte violenta direta nas prisôes e entre o próprio pessoal de algumas agências executivas -tudo isso torna claro que a magnitude dofato da niorte, que carac- teriza o exercício de poder de nossos sistemas penais, pode ocul- tar-se das instâncias conscientes mediante algunas resisténcias e negaçöes introjetadas. No entanto, náo é possível impedir total- mente sua captação, por mais intuitiva e defeituosa que seja, ein nivel de consciéncia ético. Diante desta constataçáo - à quai se acrescenta o enorme volume de violéncia provocada pelos órgáos do sistema penal na forma de corrupçâo, degradaçao, morte violenta de seus prOprios integrantes, privaçôes de liberdade, cxtorsöes, etc. -, costuma-se sustentar ser esta violéncia preferível a urna suposta eclosäo incon- tida do delito de "iniciativa privada" e da "justiça pelas próprias máos", resultante da ineficácia do sistema penal. Adiante, analisa- remos pormenorizadamente essas respostas36, interessando-nos por enquanto assinalar que stes argumentos implicam várias confis- sOcs scm subterfúgios: 36. Ver infra, págs. 95 e segs. 38 . 39 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 24. a) admite-se implicitamente que já nao se pode afirmar que o rwuopólio da violéncia pertença ao Estado, sendo mais adequado al: mar que seus órgaospretendem o monopOlio do delito; b) admite-se epressamente que a legalidade é u,naficçäo; c) o sistema penal converte-se em urna espécie de "guerra sijs" do momento da política, na quai ofim justifica os meios; d) em razáo da seletividade letal do sistema penal e da conse- c úr:nte impunidade das pessoas que nao lhe são vulneráveis, deve a Juiitir-se que seu exercício de poder dirige-se à contençáo de pos bem determinados e nao à "repressào do delito". Na verdade, nao existe uma formulaçào teórica latino-ame- r ma que torne pública, de maneira séria, esta confissâo, embora s: costume expressar corn sinceridade, em voz bain, em quase t c os os círculos académicos, numa espécie de funcionalismo teori- cii iente subdesenvolvido; "a lei é boa para conter os excessos, mas s a lei náo nos leva a nada porque nao se pode acabar corn os nros"; o inquestionável mérito da sinceridade desta formulaçao C!I( outra-se ainda "à procura de autor". Ji - O DesprestIgio dos Discursos Penais Latino-ainericanos em Razâo de seus V(ncu los Ideológicos Genocidas 1. 0 discurso jurídico-penal. Durante muitas décadas, o dis- c .i so jurídico-penal predominante foi o positivista-periculosista, i: i :grado om a criminologia positivista. Superada esta fase, o d s:urso jurídico-penal passou a asscntar-se numa base neokan- t a:ìa super-heterodoxa, que toma elementos de todas as variáveis d' neokantismo, na medida em que lhe são úteis. Apenas nas duas U i mas décadas, com grande resistência e admitindo mais as conse- q :uncias dogmáticas do que a base realista, este discurso sofreu u ma relativa fragrnentaçao com a introdução do finalismo37. 3 .1 [ans WeIzel, Kausalität und Handlung m "Abhandlungen zum Strafrecht und zur Rechtsphilosophic", Berlim, 1975 (como trabalho pionciro). Mais especiflcamentc: I facht widliechç idem, pág. 288; Natwrechl und Rechtspasitïvismus, idem, pág. 274. Nao obstante, nunca foram aprofundadas as conseqüências teóricas das teorias da estrutura lógico-objetivas no campo jurl- dico-penai, dirigindo-se as poucas tentativas de aprofundamento da filosofia do direito no sentido de se criticar e descartar esta teoria38. Desta maneira, a tendência dos últimos anos caminha na direçáo de se adotar um "finalismo" formal - por assim dizê-lo - centrado quase que exclusivamente em requerimentos de corn- pletitude lógiça da construção teórica do delito. Em um marcojurídico mais ampio, o neokantismo foi o recur- o mais eomúmente utilizado, na América Latina, para legitimar os regimes "de fato", sua legislaçao (inclusive a penal) e os próprios "atos institucionais" dos poderes de "fato". Da mesma forma, a América Latina conhece, há muito, o fenomeno de constitucio- nalismo formal com ditadura real; cujas modalidades de terrorismo de Estado também apelam à ruptura provocada pelo neokantismo entre realidade e normatividade, Esta particular preferéncia pela rnanipulaçào heterodoxa do neokantismo nao é de se estranhar. A ruptura que, com maior ou menor intensidade - segundo suas variáveis ou escolas - o neo- kantismo permite ou impöe, faz com que o discurso jurídico-penal se separe cuidadosamente da realidade, podendo-se, portanto, ad- mitir um "realismo transcendente", no sentido de que as coisas se situam fora do sujeito, sendo independentes de seu conhecimento. No entanto, como o conhecimento só pode ter acesso às coisas através do valorjuríd.ico, que atua como único ordenador que torna o conhecimento acessível à razäo, é o valorjurídico - que em nossa razäo é sempre um ato de poder, por mais arbitrario que seja - que nos diz "como são" as coisas39. Esta manipulaçao da heterodoxia teórica, que caracteriza as decisöes judiciais, com implicaçao política em nossa regiäo mar- ginal, tern como resultado um verdadeiro renaseimento da teoria 38. For esempIo: Ernesto Garzón Valdez, Derecho y naturaleza de las cosas, córdoba, 1970; Luis Recaséns Siches, Experiencia fun'dic4 r:aaualeza de la cosa y Lógica "razonable", México, 1971. 39. A descriçao nao resulta igualmente válida para todas as versöcs do neokantismo em filosofiajurídica. Nao obstante, mesmo o idealismo moderado abre caminho para realçar o idealismo. 41 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 25. medieval da "dupla verdade", permitindo urna estranha esquizo- frenizaçáo do saber jurídico, que se erige nurn campo esotérico carente de contato corn a realidade e que se inventa até limites nos quais o jurista fica reduzido a um racionalizador dos conteúdos verdadeirarnente delirantes do legislador40. Torna-se óbvia a impossibilidade de os setorcs populares e despossuldos de nossa regiäo marginal depositarem algurn nivel de confiança nuÑ direito assirn concebido de acordo corn antiga tradi- çáo consagrada ampiamente no folclore de nossos poyos41. 2. 0 discurso criminológico. Até anos muito recentes, o discur- so criminológico latino-arnericano nasceu e se rnañtcve estrita- mente vinculado ao positivismo criminológico, particularmente italiano, sendo seus vínculos ideológicos genocidas muRo mais es- tremecedores do que os do próprio discurso jurídico. O fundador da criminologia argentina, confrontado durante urna de suas viagens à Europa corn os habitantes de Cabo Verde, ao mesmo tempo em que afirmava que cstes cram "farrapos dc carne hurnana" mais próximos dos antropóides do que do homnem, defen- dia a escravidáo como instituiçäo tutelar, submergindo o exercício dos dircitos civis ao prévio alcance de um grau suficiente de evo- luçào biológica42. Enquanto isso, seu colega brasileiro afirmava na Bahia - de acordo corn a linha da psiquiatria racista francesa de Monrcal - que os mulatos cram desequilibrados morais e que a responsabilidade penal deste grupo deveria ser diminuída ou ex- 40- Um born exemplo deste tipo de "delirio legislativo" a pretensSo deque os subordinados no realizam "açöes" nos casos em que a obediéncia é de'4da. - 41. E clássica a passagem do lino "Martín Fierro': "A lei é leita para todos/mas só so pobre obriga/A lei é teia de aranha/em minha ignosSncia tcntarei explicar.Jnào a temam os ricos,/nem jamais os que mandam/pois o bicho grande a destr6iìe s6 aos pcqueninos aprisiona./A lei como a chuva,/nunca pode Ser igual para todos./Quem a suporta se queixa,/mas a explicaçao ¿ simples;/a lei ¿como a faca que nao fere quem a empunhai'Nao rnenos eloqüente L o tradicional texto equatoriano: 'Urna belesa o meu chefe;/parece-se corn aquele cao,/quesó morde o ponchojmas a casaca,jamais" Ou ainda: "Se nasentença dosjuízes/percebes algurnajustiça,!v ospés do delinqüentele descobrirás que usa botas" (Juan León Mera, Cantares de/pueblo ecuatoriano, Quito, ed. facs., s.f. [1980?I). 42-E José Ingenieros, Las razas inferiores, em "Crónicas de viaje (Al margen de la ciencia) 1905-1906", "Obras Completas", vol. V, Buenos Aires, 1957. cluída conforme os postuladores do discurso penal tradicional43, o que, em outros termos, classificava a major parte da populaçäo brasileira como em "estado perigoso". No último pós-guerra, urna discussao semelhante teve lugar na Bolivia, a respeito do Indio, tentando-se igualmente considerar em "estado perigoso" a maioria dos segmentos populares44. Desde o final da última guerra mundial - e apesar dos tardios surtos racistas, como o boliviano e alguns outros -, o discurso criminológico moderou suas expressöes abertamente racistas, man- tendo-se numa linha "etiológica" que, apesar de pretensamente niais "científica", nao oculta, de forma alguma, sua raiz positivista e periculosista. Prova dessa tendôncia é a ampIa accitaçäo, em nossa regiâo marginal, da traduçäo da obra de Exner45, na qual o autor sustenta que a crirninalidade negra nos Estados Unidos deri- va da exigéncia pela soeiedade branca de um esforço dos negros para o qual estes nao estâo biologicamente preparados. O periculosismo criminológico receben um novo impulso eom a chegada à América Latina - e, especialmente, a Cuba - da criminologia soviética que, ao menos em suas versöes traduzidas46, perfila-se nesta corrente, coincidindo com a longa tradiçäo peri- culosista do pensamento penal cubano. Tendo sido primeiramente racista (o discurso sob medida das minorias proconsulares das repúblicas oligárquicas, que entram em 43. Raimundo Nina Rodrigucs,Asraçashumanasearesponsabilidadepena1noBrari Babia, 1957; Os africanos no B,-asi4 1982. Fo professor de Medicina Legal na Universidade da Babia e considerado o pioneiro da criminologia brasileira (1862-1906). 4-4, 0 debate acha-se resumido em Criminologia, de lluáscar Cajías IC, La Faz, 19M; seus protagonistas (omm Lìbpez-Rey Arrojo e Medrano Ossio, este últïrno. corn a tese perigosista; participaran do debate outras famosos penalistas da década, tantobolivianos quanto de outros países. 45. Exner esteve nos Catados Unidos na década de 30 e regressou à Alemanha satisfeito corn os estudos dos colegas norte-ameticanos, cujas teorias nAo diferiam muito dobiologisrno dos nazistas, 56 que aplicadas à polftica imigratória e corn leis para esterilizaçao de delinqüentes recém-admitidas pela justiça (a respcito, Stephan-L Chorover, Del gEneric al genocidia, Madri, 1985; Franz Exner, Biologia crimina4 trad. de Juan del Rosal, Barcelona, 1957). 46. G. Avasenov, Fundamentos de la criminologia, Moscou, 1985; geralmente nao difere multo da criminologia da República Democrática Alerna (Sozialistiche Kriminologie, Berlim, 1971). 42 43 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 26. -ise a partir da Revoluçáo Mexicana), a criminologia etiológica L tino-americana, sem deixar de ser positivista, converteu-se logo CAPITULO SEGUNDO n ) complemento ideal de direito penal mais ou menos neokantiano. Enquanto o direito penal ocupava-se apenas do "deve ser", corn o q ial o poder assinalava os limites do saber criminológico, a crimi- n )!ogia ocupava-se da "etiologia" das açôes das pessoas selecio- AS FONTES TEÓRICAS DA DESLEGITIMAÇÄO NOS n tdas pelo poder do sistema penal; no entanto, acm o direito penal, PAÍSES CENTRAIS n m a criminologia ocupavam-se da realidade operacional do sis- Ltma penal, cuja legitimidade nao era questionada. O discurso A SITUAÇAO FAVORAVEL OBRADA POR UM ridico-penal neokantiano nao corna risco algum, e até sala for- DISCURSO EMPOBRECIDO. I. As antropologias lccido corn o aparente escoramento dos dados dc uma "clência anacrónicas. 2. O jogo das ficçóes - II. A nìtural". DESLEOITIMAÇÀO DO SISTEMA PENAL NO MARCO TEÓRICO MARXISTA. 1. Dificuldades para delimitar o marco teórico marxista. 2. A deslegitimaçáo de Pasulcanis e a relegitiniaçao stalinista. 3. A teoria crítica da sociedade. 4. A verso dcslegitimante de Quinncy. 5. O "minimalismo' penal de Alessandro Baratta. 6. Pavarini e a m consciencia do born criminólogo - ITT. A DESLEGITIMAÇÄO PELO TN- TERACIONISMO SIMBÓLICO E PELA FENOMENOLOGIA - IV. A DESQUALIFICAçÂO FOUCAULTIANA - V. O PARADIGMA DA - DEPENDENCIA - VT. BALANÇO DA DESLEOITTMAçÀO TEÓRICA CENTRAL. I - A Situaçáo Favorável Gerada Por Um Discurso Empobrecido 2 1. As antropologias anacrônicas. A deslegitimaçao dos sis- temas pcnais e o desprestigio dos discursos jurídico-penais náo se produziram abruptamente no marco teórico dos países centrais, mas resultaram de umlongo processo de rcvelaçäo de dados reais, acompanhado de um paralelo empobrecimento filosófico do dis- curso jurídico-penal, que permitiu asobrevivência - quast intactas ueste discurso - de concepçöcs do homem ou de antropologias 45 44 j PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor 27. filosóficas ha mullas décadas desaparecidas das correntes gerais do pensamento. o penalismo de nIvel médio foi abandonando sua veiha pre- tensäo de coeréncia filosófica e empobrecendo seu discurso até tornar comum a mistura arbitrária de elementos de ideologias in- compatfveis. Cabe assinalar que os suplementos oferecidos ao pe- nalista a partir do próprio campo filosófico foram menos significativos na medida em que muitos des cultores da filosofia renunciavam às perguntas fundamentais através do cientificismo reducionista. Assim, enquant o discurso jurídico-penal empobre- cia-se, a filosofia descuidava-se de sen tradicional objeto de inte- resse-' Consthqüentemente, nao foi afilosofla que col'ocou em crise o discurso jcotl, porque nao dispunha de urna atalaia a partir da qual fazô-lo; mas a dcslcgutimaçáo dcste discurso foi obra, principalmente, do saber sociológico. De qualquer maneira, ao operar-se a deslegitimação, a debi- lidade antropofilosófica do discurso jurídico-penal - convertido ein verdadeira reserva de sobrevivência de espécies extintas do pensamento - facilitou consideravelmente esta tarefa. As antropologias filosóficas (ou ontologias regionais humanas) que dominam o discurso jurídico-penal sáo, basicamen- te, as seguintes: a) apositivista (ou seja, a reducionista-biologista ou grosseiramente materialista), que nutre o discurso racista-peri- culosista; b) a kantiana, que dá fundamento a todas as formas de retribucionismo; c) a hegeliana, que limita o retribucionismo aos setores sociais "incorporados" aos valores que o poder consagra; e d) a neoidealista (gentiliana), que oferece a base para a super- posição do retribucionismo corn a neutralizaçäo periculosista. Para a antropologia positivista, o hornem é um ente deter- minado causairnente; para a kantiana, é sempre um ente livre que escoihe conforme sua consciEncia; para a hegeliana, é livre sempre que nao deva ser considerado "diferente", em cujo caso a liberdade é apenas potencial; para a gentiliana, sempre está em certa medida determinado e, em certa medida, é livre. Estas antropologias deram lugar a discursos jurídico-penais que só admitem medidas neutralizantes (positivista), que sá ad- mitem penas renibutivas (kantiano), que permitem que as medidas neutralizantes façam as vezes - "vicariantemente" - das penas restributivas (hegeliano) ou que permitem acumular penas retri- butivase medidas nejitralizantes em um "duplo binario" (gen- tiliano). Recordemos que o positivismo de Spencer, Haekel ou Moles- chou foi a expressão do discurso racista neocolonialista do século XIX1, que o criticismo kantiano do século XVIII foi uma expressão do despotismo ilustrado2, que o idealismo dialético hegeliano foi o equivalente alemáo do etnocentrismo colonialista e neocolonialista inglés de Spencer3 e que o neo-idealismo gentiliano foi ou preten- deu ser a filosofia oficial do fascismo italiano4. Parece-nos bastante claro que um discurso jurídico-penal que, neste momento, pretenda exibir, como garantia antro- pofilosófica, Cesare Lombroso, Inn,anuel Kant, Goerg Friedrich Wilhelm Hegel ou Giovanni Gentile, pode ser qualificado como filosoficainente anacrônico, anacronismo qUe näo se pode dissimu- lar sob urna ignorância filosófica que amontoe arbitrariamente elementos tomados das quatro antropologias filosóficas e que, me- nos ainda, pode renunciar a qualquer aproximaçâo filosófica. 1. Esta característica está muflo bern explicadaporMarvin 1-Inris no estudo que ele faz sobre Spencer ein El desarrollo de la frotta antropológica Historia de las teorías de la cuirurc Madri, 1983. 2. A recusa kantiana a toda possibilidadc de resistencia à autoridade, qe faz revíca- c fantasma de Hobbes em scu túmulo, é bastante clara neate senUdo, cOr. -i' .0 Se fOgtUmC esqucc-lo, prcferindo conferir a Kant o papel dc garante do liberalismo renal. O verdadeiro "garante" do liberaUsmo penal foi Feuerbach, que rebateu a tese kantiana em seu "Anti-Ilobbes", na realidade um anti-Kant, como bem o assinalou Cattanco (Mario Cattaneo.Fnacrbach:Jilosofo egiuthta liberatç Milo, 1970; o "Anti-I-Iobbes" pode serlido em italiano: ,4nti-lfohbcs oncro i limiti delpotcre supremo e il thritto coattivo dei cittadini contro ¡1 sò vrai, o, Milâo, 1977). 3. Georg Luka, t1 asalto a la razón. La trayectoria dei irracionalismo desde Sc/telling hasta Hitler, México, 1983. 4.É sabiCa que o idealismo atual ou neoidealismo italiano teve duas correntes principais: a de Beneirtto Croce cade Giovanni Gentile, sendo este último ministro dc Mussolini e considerado o filósofo do fascismo. Gentile foi ministro da república títere instalada na Itália pelos alemA e morreu assassinado em 1944, cm Florença (Abbagnano, Nicola, op.eit., 111, pág. 428; Ugo Spirito, Giovanni Gentile, Plorença, 1969). 46 47 PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor Recommended Office 365 for Educators Online Course - LinkedIn Learning Learning Management Systems (LMS) Quick Start Online Course - LinkedIn Learning Teaching Techniques: Project-Based Learning Online Course - LinkedIn Learning AI and Machine Learning Demystified by Carol Smith at Midwest UX 2017 Carol Smith The AI Rush Jean-Baptiste Dumont 10 facts about jobs in the future Pew Research Center's Internet & American Life Project 2017 holiday survey: An annual analysis of the peak shopping season Deloitte United States Harry Surden - Artificial Intelligence and Law Overview Harry Surden Inside Google's Numbers in 2017 Rand Fishkin Pinot: Realtime Distributed OLAP datastore Kishore Gopalakrishna English Español Português Français Deutsch About Dev & API Blog Terms Privacy Copyright Support LinkedIn Corporation © 2017 × Share Clipboard × Email Email sent successfully.. 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