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01 01 Bernard Stiegler Book2
01 01 Bernard Stiegler Book2
June 23, 2018 | Author: kaunpf | Category:
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Memory
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01 Bernard Stiegler17.02.10 14:19 Page 22 01 Bernard Stiegler 17.02.10 14:19 Page 23 Anamnésia e hipomnésia: Platão, primeiro pensador do proletariado Bernard Stiegler palavraschave: memória; anamnésia; hipomnésia; Platão; Marx Este texto trata da exteriorização da memória, isto é, da técnica como perda do saber. O processo de exteriorização (mnemotecnologias) se concretiza como história da gramatização, história técnica da memória, onde a memória hipomnésica relança a constituição de uma tensão de memória anamnésica. Como as questões filosóficas são questões de transindividuação, em termos de filosofia política, tratase de descrever e de criticar os processos concretos de transindividuação e pensar as hypomnémata digitais e as novas formas de otium que podem aparecer e fundar uma nova economia política da memória e do desejo. keywords: memory; anamnestic; hipomnesic; Plato; Marx This text deals with the exteriorization of memory, that is, of technique as loss of knowledge. The process of exteriorization (mnemotechnology) concretizes itself as history of grammatization, technical history of memory, in which hipomnesic memory reinstitutes the constitution of an anamnestic memory tension. Since the philosophical questions as transindividuation questions, in terms of political philosophy, it deals with describing and criticizing the concrete processes of transindividuation and thinking the digital hypomnémata and the new ways of otium that may appear and found a new political economy of memory and desire. 23 “Parafernálias” (Corpos Informáticos), 2007, componentes eletrônicos e fotografia. Foto de: Anderson França. das mnemotécnicas às mnemotecnologias. resultam no alfabeto. Mas isso também ocorreu na antiguidade grega e depois com a imprensa. que uma parte de nós mesmos (como nossa memória) está fora de nós. Aquele que.10 14:19 Page 24 A exteriorização da memória como perda do saber 1. transformandose. um aparelho: o computador de bolso. as escrituras. parece ser um falso cognato de trace. somente após o paleolítico superior é que surgem as mnemotécnicas propriamente ditas. pintar. que Hegel chama de “objetiva”. Porém. o transformar. Essa memória material. assim. é ver com as mãos dando a ver. Escrita e gramatologia. Ora. e os objetos cotidianos são cada vez mais suportes de memória objetiva. é parcial. Esse processo se torna particularmente sensível com a passagem das mnemotécnicas às mnemotecnologias. impressão ou qualquer marca em geral”. pintar e desenhar esse olho. Cf. NASCIMENTO. E passase. dos quais o churinga da Austrália é um testemunho recente. livro anotado. é formar o olho daqueles que olham e. Esculpir. relíquia. antes de qualquer coisa.psc. Hoje. esculpir. fetiche etc. Esse é também o sentido do que Joseph Beuys chama de escultura social. rever.br| Artigos|©Evando Nascimento. questionando suas organizações psíquicas e sociais. A despeito de traço corresponder normalmente a trait. desenhar é ir ao encontro da tangibilidade do visível. Somente dessa forma ele se reflete. primeiramente. também de saberes. assim como as tatuagens no corpo do feiticeiro. Evando. ser descartado desse tipo de pensamento. Outras traduções possíveis de trace seriam vestígio. tornandose repetível (Jacques Derrida diria iterável) e transmissível. feito para guardar a memória: sem dúvida. o instrumento lítico não é. isto é. não deve. Descobrimos. no entanto. A memória humana é originalmente exteriorizada. 24 Todos nós já tivemos a experiência da perda de um objeto portador de memória – pedaço de papel. Mas ela constitui a parte mais preciosa da memória humana: nela se forma o conjunto das obras de espírito sob aspectos os mais variados. Escrever um manuscrito é organizar o pensamento confiandoo ao fora. que só aparecem depois do neolítico. atualmente. Originalmente objetivada e exteriorizada. no entanto. Ela se formou.02. assim. assim. ‘traço’. a memória que não para de crescer tecnicamente e de estender o saber dos homens e seu poder. Na origem dos primeiros textos. São os mitogramas da sociedade mágica.01 Bernard Stiegler 17. constituise realmente. Suporte da memória espontânea. e isso significa que ela é. ao mesmo tempo. técnica. Disponível em: www. em português. então. o quipo (cordelette à noeuds) dos incas. já no próprio francês os dois termos trace (rastro) e trait (traço) se comunicam e Derrida tira proveito dessa relação. como instrumento lítico. Bernard Stiegler . ao mesmo tempo lhes escapa e os ultrapassa. Acesso em: 30 maio 2008. N. agenda. pois o próprio Derrida reconhece a estranheza do uso feito por ele do termo francês. que ainda hoje organiza a agenda dos empresários.T.: “A tradução de trace por ‘rastro’ não vai sem problemas. quer dizer. na forma de rastros (traces)1. há dois mil anos. em saber.rubedo. de símbolos. esse objeto calendário é. a memória se tornou o elemento maior do desenvolvimento industrial e tecnológico. cada vez mais. Dits et écrits II. parecem induzir a uma obsolescência do homem que se encontra cada vez mais desarmado e como que esvaziado do seu interior. 25 14:19 Page 25 esses saberes tecnológicos. sem os sabores que somente os saberes fornecem.10 2. ou. como hipomnésia. se for verdade que é o saber Bernard Stiegler . ligados a aparelhos mnemotecnológicos os mais variados: da televisão ao telefone. E é preciso aqui perguntar se o desenvolvimento industrial e massivo das mnemotecnologias não constitui uma perda estrutural da memória. O GPS teleguiará o veículo por um sistema de direção automática. Logo. Ora. automatizase inversamente o perdemos. Estamos. os formalizam. mais precisamente. que formaliza nossos esquemas sensóriomotores. mas no aparelho. nos fazem também perder. os modelam. aos aparelhos e aos serviços da indústria moderna. no fim da sua vida. Paris: Gallimard. saber. nosso saberviver (savoirvivre) e. menos sabemos dirigir.02. FOUCAULT. pois esses saberes. à medida que o sistema. Essa hipótese se fundamenta em uma antiga questão da filosofia exposta por Platão. Perder um telefone celular é perder o rastro (trace) de números de contatos e perceber que eles não mais estão na nossa própria memória. geram. no final de sua vida. substituí-lo-á amanhã inteiramente. com eles. mais nos tornamos vãos. Assim. funções cognitivas. em “indústrias do conhecimento” e em capitalismo cognitivo ou cultural. essas tecnologias cognitivas. O sistema GPS. e que Michel Foucault2 reativa. mais perdemos nosso saberfazer (savoirfaire). e perdemos correlativamente. permanentemente. os controlam. como que impotentes. uma perda de saber. que formam a trama de nossa existência. Quanto mais confiamos séries de pequenas tarefas. às quais confiamos uma parte cada vez mais importante de nossa memória. Michel. cada vez mais. um deslocamento dessa memória: um deslocamento pelo qual ela pode se tornar um objeto de controle de saberes e constituir a base essencialmente mnemotecnológica dessas sociedades de controle. cegamente. como questão das hypomnémata. saberes que se encontram delegados aos aparelhos e aos serviços que os agenciam. sobretudo. cada vez mais. Somos apenas bons para consumir. quanto mais se aperfeiçoam os automóveis. Nós exteriorizamos na aparelhagem mnemotecnológica contemporânea. que Gilles Deleuze começou a teorizar. passando pelo computador e a direção com GPS. mas talvez nos destruam. ajudando hoje o motorista na sua condução. Tornamonos incapazes. os sabores da existência.01 Bernard Stiegler 17. que nos escapam. objetivados na forma de aparelhos. no momento mesmo em que se fala em “sociedades de saber”. 1994. senão obsoletos. que a rigor só é percebido visualmente na escrita [.]. 26 14:19 Page 26 que nos dá a potência de sermos humanos. simultaneamente. 5. que é a hypomnematon. despojandoo de seu valorsaber (valeursavoir). N. e Derrida chama esse processo de “diferensa”5. Como o produtor. desindividuado: ele é apenas um poder de compra.]. a hiperindustrialização é a generalização de uma reprodutibilidade mnemotecnológica de comportamentos motores dos consumidores. infinitamente. ‘diferância’. em A farmácia de Platão3. ‘diferensa’[.T. em todos os aspectos de nossa existência e cada vez mais no sentimento de impotência... pois. Idem. cit... que parece ter se tornado reativável e acessível. que a exteriorização da memória é uma perda de memória e de saber. pela constituição de meios hipomnésicos duráveis. um consumo cego que destrói o mundo cegamente. senão de incapacidade – no momento mesmo em que a extraordinária potência mnésica das redes digitais nos torna igualmente sensíveis à imensidão da memória humana. é preciso rearticular composições dinâmicas: é preciso pensar processualmente. que necessitam dessas tecnologias. deixandolhe apenas sua força de trabalho quase animal – o que faz dele o que se chama de proletário –. que é o rastro (trace). são características de uma época hiperindustrial que reatualiza singularmente a análise platoniciana da hipomnésia. Jacques Derrida.] – différance marca o limite da possibilidade de toda tradução” (NASCIMENTO. bem melhor. A farmácia de Platão.). 1967. Op. São Paulo: Iluminuras. creio ser injustificável a proposta de algumas traduções como ‘diferência’.02. DERRIDA. De la grammatologie. o consumidor é roubado de seu saberviver (savoirvivre) encontrandose..01 Bernard Stiegler 17. A exteriorização da memória e dos saberes. no cotidiano. se for verdade que a industrialização em geral é a generalização de uma reprodutibilidade mnemotecnológica dos comportamentos motores dos produtores. onde os comportamentos são formalizados e gerados. é ao mesmo tempo o que estende o seu poder sem limite e o que permite o seu controle: controle pelas indústrias cognitivas e culturais das sociedades de controle que formalizam a ativiBernard Stiegler . différance fere o código ortográfico francês com a substituição proposital do e de différence por um a [.: “Por natureza intraduzível em outra língua. constrói a maioria de seu empreendimento de desconstrução da metafísica a partir de uma leitura de Fedro.10 3. Por esse motivo. que constitui a memória viva como sábia. As economias existentes. mostrando como esse diálogo opõe à hipomnésia sofística uma anamnésia filosófica. qual seja. quando atinge o estágio hiperindustrial. Evando. Portanto. ‘diferança’ ou. 4. Jacques. Paris: Minuit. Onde a metafísica instala oposições estáticas. segundo o que Derrida descreve em De la grammatologie4 como uma lógica deste suplemento. opor o interior a exterior: é impossível opor memória viva à memória morta. cujo gesto é reproduzido e cujo saberfazer (savoirfaire) passa pela máquina. o que Sócrates descreve em Fedro. mais precisamente.. lá onde é impossível. 1997. Esse aparente paradoxo significa que a hipomnésia é uma questão política e objeto de combate: um combate por uma política da memória. é o que experimentamos hoje. Essa gramatização do gesto – que é a base do que Marx descreve como proletarização. isto é. Bernard Stiegler . onde a memória hipomnésica relança. 1969. o processo de gramatização ultrapassa repentinamente a esfera da linguagem. a constituição de uma tensão de memória anamnésica. onde as biotecnologias são o estágio mais recente e as nanotecnologias a etapa seguinte. no sentido que Leroi-Gourhan descreve como sendo um processo de exteriorização. L’individuation psychique et collective. que não para de se deslocar. o processo de exteriorização. na forma de mnemotecnologias cognitivas. como “discretização” do fluxo da palavra.: Em inglês no original. como perda de saberfazer (savoirfaire).01 Bernard Stiegler 17. novos processos de formação de indivíduos psíquicos e sociais.10 14:19 Page 27 dade neuroquímica e as sequências de nucleotídeos. do userprofiling7 à gramatização dos afectos . uma psicopolítica.02. que tanto espantam Walter Benjamin. uma sociopolítica e uma tecnopolítica da memória. Primeiro ela “discretiza” os gestos dos produtores visando sua reprodução automatizada. 27 Não existe interioridade que preceda a exteriorização. isto é. também do logos. dessa forma. SIMONDON. Quando aparecem as mnemotecnologias. Gilbert. N. onde se configuram as épocas de individuação psicossocial: a gramatização é o processo pelo qual os fluxos e as continuidades. novos processos de individuação psíquica e coletiva6. O processo de gramatização é a história técnica da memória. e investe a esfera do corpo. ao mesmo tempo. e. Paris: Aubier.T. onde os saberes linguísticos se tornam tecnologias e indústrias do tratamento automático das línguas. que tecem as existências. distingue-o e o configura.é o que conduz ao capitalismo cognitivo das economias hiperindustriais de serviços. é um estágio da gramatização. assim também o saberviver (savoirvivre). A gramatização como “história do suplemento” 6. são “discretizados” (tornados discretos). concretizase como história da gramatização. os comportamentos em geral. que é o devir técnico. Ora. ou seja. com a revolução industrial. aciona novas relações entre os indivíduos psíquicos e indivíduos coletivos. no qual essa distinção configurante. muito pelo contrário: a exteriorização constitui o interior como tal. que continua com os aparelhos eletrônicos e digitais. os substratos neurobiológicos da memória e dos saberes na história do que é preciso analisar como um processo de gramatização. Essa tensão anamnésica se exterioriza como obras de espírito. e que inscrevem. isto é. aparecem as reprodutibilidades maquínicas e aparelhadas do visível e do audível. como gramatização de todas as formas de saberes. 7. instalando plenamente a questão de uma biopolítica. a cada vez. A escritura. 2.larousse.htm. em que o consumidor é doravante lesado em sua memória e em seus saberes: é estudar o estágio da proletarização generalizada induzida pela generalização das tecnologias hipomnésicas. mãos. linguísticos. uma organologia econômica e uma organologia estética). O número desses órgãos pode ser contado pelo número de “máquinasinstrumentos” e todos os autômatos. está no coração da luta política. memória corporal e muscular. Gestos que esse proletariado não necessita mais saber fazer. econômicos etc. Disponível em : www. órgãos genitais.fr/demo/ personnage/M/MartinH eidegger. nesse aspecto. já em 1776. sistema neurovegetativo etc. através de investimentos econômicos de organizações sociais que reagenciam assim as organizações psíquicas por intermédio dos órgãos mnemotécnicos. Se reabrirmos a questão de Fedro. a memória pode ser objeto de controle sociopolítico e biopolítico.: “L’homme est un étant eksistant.T. pois sem memória: sua memória foi passada para dentro da máquina reprodutora dos gestos.). étnicos. os efeitos da máquina sobre o espírito do trabalhador). aí compreendidos os eletrodomésticos (Adam Smith analisou. Isso. dos órgãos artificiais (suportes técnicos da gramatização) e dos órgãos sociais (grupos humanos familiais. c’estàdire un existant qui est ‘d’intelligence’ avec l’être. em Marx. e a reavaliação da importância da hipomnésia em Bernard Stiegler . vísceras.). empresas e organizações econômicas. o que o fez não pensar a vida humana como “exsistência”8. memória biogenética. A verdade de Platão estaria. A luta inaugural da filosofia contra a sofística. 28 14:19 Page 28 A gramatização é a história da exteriorização da memória em todas as suas formas: memória nervosa e cerebral. isto é. mais ou menos desterritorializados – jurídicos. instituições e sociedades políticas. políticos. fiscais. clânicos.10 8. qui a une compréhension préontologique de l’être”.02. Mas isto com a condição de tirar duas conclusões suplementares: ∑ 1. Marx não pensou o caráter hipomnésico da técnica e da existência humana. tornandose novamente um servo. na época hiperindustrial do objeto hipomnésico mnemotecnológico. descobrimos que a hipomnésia constitui a primeira versão de um pensamento da proletarização. Ele deve simplesmente servir. que é a própria filosofia. tato. Assim exteriorizada. olhos. é reabrir o estudo da hipomnésia como questão do proletariado e como processo de gramatização. organizações internacionais e sistemas sociais em geral. em torno da memória e de sua tecnização. língua. uma teoria da articulação dos órgãos e sentidos corporais (cérebro. N. É por isso que o pensamento da gramatização pede uma organologia geral. hoje.01 Bernard Stiegler 17. religiosos. Examinar a memória técnica. se for verdade que o proletariado é ator econômico sem saber. e do ponto de vista de uma organologia geral (fundando uma organologia política. que deve constituir a base de um projeto político renovado da filosofia onde a técnica se torna o tema central. o inteligível pensado a partir da imortalidade dessa alma e o sensível como mortalidade do corpo. isto é.02. A questão da filosofia é a do amor ao saber. do sensível e do acidental. pela primeira vez. a alma e o corpo. que o conduz a opor: o ser e o devir. É aí que o saber é definido como reminiscência. esse amor ao saber constitui a prova de um amor perdido. A filosofia como reação ao estágio ortotético da gramatização Se for verdade que a filosofia começa com Platão. das essências inteligíveis do ser. na filosofia de Platão. na base da oposição entre anamnésia e hipomnésia. é esboçar esse passo à frente. A questão primeira da filosofia é a memória. é tentar sair dessas oposições. ela mesma atividade do pensamento. que é também o lugar das paixões e a armadilha da queda. a queda mesma. à qual Fedro opõe os artifícios da hipomnésia que aí afloram. E é a época da gramatização que provoca essa questão filosófica: a filosofia se constitui como afirmação da anamnésia como reação contra a prática sofística da hipomnésia. Esse saber foi perdido pela memória: a memória aparece. como relembrança (ressouvenir) e como corpo técnico. Inversamente. Ora. mas também retórica e tecnologias da linguagem baseadas na logografia). a episteme. Em Mênon. do philein. enquanto imutável. Tudo isso alicerçado pela oposição do logos e da teckné. a relembrança é o fruto da dialética. repensar a memória como processo de gramatização. em Mênon. onde a memória viva e a memória morta compõem permanentemente. ela se concretiza em seu combate contra a sofística em torno da questão da memória como mnemotécnica (hipomnésia. definida como tecnização da memória linguística e.10 14:19 Page 29 Platão. Em 29 Bernard Stiegler . ou seja. concebida como anamnésia. Opor memória psíquica viva e memória técnica morta é induzir toda essa série. Esse saber perdido faz do saber um objeto do desejo. E todo objeto do desejo é um objeto já perdido: ele só é desejado na medida em que ele faz falta (fait défaut). a técnica sendo em geral apreendida pela filosofia platoniciana como um pseudosaber do devir. Pensar a memória hoje. que é a escritura.01 Bernard Stiegler 17. assim como aquela da desconstrução que propõe Derrida. como tal. como falso saber (Gorgias). A gramatização é impensável no quadro dos pares constituídos por Platão. como nova questão política que constitui a técnica. isto é. o verdadeiro saber sendo colocado como saber do necessário. do contingente. assim como do Eros. significa a falta (le défaut) de origem que precederia uma origem plena. para Platão. como a alma é oposta ao corpo. na origem.). e como paixão que desencadeia a memória artificial pela qual os sofistas produzem o pithanon. elo social na individuação. esquema que se repetirá em Rousseau: a hipomnésia é a técnica em geral oposta à anamnésia. a persuasão e as falsas crenças. A queda faz a alma cair na técnica que a aprisiona no corpo. é recalcada pela filosofia. enfim. isto é. como amor de um saber perdido que exprime o irredutível não saber de Sócrates – e é isto que a dogmatização do socratismo. é um australopiteco data30 Bernard Stiegler . e é isto que constitui a cena de Georgia. tenderá progressivamente apagar. a filosofia se define contra os sofistas que pretendem tudo saber pela técnica (como polymathes).10 14:19 Page 30 Fedro. É esse o nó problemático que traduz a oposição entre anamnésia e hipomnésia. Mas essa origem não é a origem verdadeira. ela é apenas aquilo que Platão definiu como uma queda. onde a questão sofística dá problema na Atenas do século V. logo o erro. à oposição platoniciana de anamnésia e hipomnésia. uma interioridade. o objeto de seu desejo o saber. como desejo e como saber. o tema que Mênon recusou. para Platão. mas que é preciso distinguir da hipomnésia dos sofistas: a memória da verdade (da idéia) foi originalmente perdida. descoberto em 1959. aletheia – é precisamente o desejo (philein. E é isso que permite caracterizar a hominização pelo aparecimento de uma memória epifilogenética. e é isso que constitui a filosofia como metafísica que se trata de desconstruir nesse aspecto. philia.01 Bernard Stiegler 17. prefigurando nisso a versão monoteísta da falta de memória como desobediência e falta.02. que retoma com o mito da alma alada. o pecado original que. enquanto tecnicidade. como pecado original. A memória humana é epifilogenética À queda. uma alma imortal. episteme. a arqueologia e a paleontologia humanas permitem responder com uma teoria da memória. ou a verdade. A questão amorosa da filosofia é a de um esquecimento tal que há uma anamnésia a ser completada. aprendemos que se trata de um saber que foi esquecido por causa da queda. chamado justiça. O Zinjantropo. o que constitui a questão filosófica. onde parece que a tecnicidade é o que constitui a vida como “exsistência”. Mas tal como este desejo é constituído pela sua tecnicidade. com o mito de Perséfone. Um que constitui o Ser etc. Ora. Existe. Nesse diálogo. uma falta de origem. isto é. 01 Bernard Stiegler 17. os elementos constitutivos do organismo. O homem tem acesso a uma terceira memória que é apoiada e constituída pela técnica. do homem de Neandertal até nós. Paris: Galilée. mostra que o que faz a humanidade do homem e constitui uma ruptura na história da vida é o processo de exteriorização técnica do ser vivo. Bernard. Assim. e a memória do indivíduo. dita somática. a técnica evoluiu de maneira extraordinária. que Piaget estudou. que consistem as técnicas. O homem leva essa luta. com seus instrumentos. Seu esqueleto foi encontrado. LeroiGourhan mostra que a técnica é um vetor de memória. cujos antecedentes bipedóides. ou genoma. na garganta de Olduvai.02. Do australopiteco ao homem de Neandertal. não pode mais estar encurralada pela cena darwiniana. partindo desses fatos. ou melhor. por órgãos artificiais. Um sílex talhado se forma na matéria inorgânica organizada por essa talha: o gesto técnico engrama uma Bernard Stiegler . Mas. por órgãos não biológicos. admitese que os seres vivos sexuados são constituídos por duas memórias: a memória da espécie. é uma economia técnica do desejo sustentada por meios técnicos hipomnésicos que são também simbólicos9. L’esprit perdu du capitalisme. O que caracterizava. LeroiGourhan. que poderíamos chamar também de espiritual. os mais antigos. até então. a saber. nisto. que Weismann nomeou gérmen. o sistema cortical praticamente não evolui mais: seu equipamento neuronal é bastante parecido com o nosso. as condições de predação e de defesa. que conserva o sistema nervoso central onde se deposita a memória da experiência. fora desse “meio interior” no qual reinam. a partir deste último. seriam de 3. Ora. Isso existe desde os moluscos do lago de Léman. 2006. e isso significa que a evolução técnica não depende da evolução biológica. É um verdadeiro bípede que tem uma reentrância occipital exatamente na perpendicular do alto do crânio. O espaço de diferenciação técnica se produz fora da dimensão biológica e independente dela. O processo de exteriorização é. STIEGLER. passando pelos insetos e pelos vertebrados. Mas essa vida não é mais uma simples “biologia”. produzse a diferenciação biológica do córtex cerebral que se chama abertura leque cortical.10 9. até os chimpanzés.6 milhões de anos. para Claude Bernard. ele possui os membros anteriores da motricidade liberados: eles são essencialmente dedicados à fabricação e à expressão. o processo de constituição de uma terceira camada de memória. à exteriorização.75 milhões de anos. passa para fora dele: a luta pela vida. o ser vivo. em que é uma existência. isto é. Ele pesa cerca de 30 quilos. pela existência. Desde o neodarwinismo. e segundo os trabalhos de Weismann. quer dizer. Mécréance et discrédit 3. fruto da biologia molecular. 31 14:19 Page 31 do de 1. que os reúne como grupo humano. É isso o que a oposição platoniciana entre o inteligível e o sensível. ela é ao mesmo tempo o produto da experiência individual epigenética e o suporte filogenético da acumulação de saberes. Bernard. os efeitos figurados desse raciocínio a areia guardando como resultado a intuição e a compreensão que o escravo tem a partir “dos olhos”. Por mais efêmero que ele seja. no indivíduo coletivo. sua atenção está sempre sendo retirada de seus objetos para novos objetos e ele tem dificuldade de “intencionar” o objeto geométrico. tornará literalmente impensável nos diálogos que seguirão Mênon – e é assim que se formará a metafísica como denegação da técnica original da memória.info/revueph ilosophique 20063325. O cerne da questão filosófica da memória é a transindividuação As questões filosóficas são todas questões de transindividuação. sua necessidade. 3. Processo que não para de colocar e de individuar a questão do Um e do Múltiplo11. o desenho na areia pode conservar uma característica de um elemento da figura por mais tempo que o espírito do escravo. isto é. 11. Le temps du cinéma et la question du malêtre.cairn. como memória hipomnésica. A individuação é. isto é. que é o escravo e sua iniciativa. Referência a Jacques Garelli. uma operação de memorização psíquica e coletiva onde a transindividuação é a Bernard Stiegler . podendo receber e conservar uma inscrição.10 10. Bernard. 2001.htm.02. a possibilidade de transmitir saberes adquiridos individualmente. de visualizálo em sua identidade orgânica. na história da vida. O desenho. ele deve exteriorizálo. Essa memória técnica é epifilogenética. assim. 12. entre o logos e a tekhné. pois. A posição de Simondon sobre este assunto é ambígua e hesitante (Cf. La Revue Philosophique. Ele é retencionalmente finito. L’apolitique de Simondon.01 Bernard Stiegler 17. constituindo o phylum cultural intergeracional. é indispensável a esse filósofo em potencial. Disponível em: www. sua anamnésia. A transindividuação é o resultado do processo de coindividuação dos indivíduos psíquicos. La technique et le temps. pois seu saber procede dessa exterioridade primordial da memória. STIEGLER. Para pensar seu objeto. Sua memória fracassa sem cessar. sua essência íntima: seu eidos. organizando a inorganicidade da areia que se torna. 2006. O desenho constitui uma bengala da razão. O escravo Mênon traça na areia a figura de um objeto geométrico. à medida que se dá seu raciocínio. superfície plástica. n. pois seu espírito é essencialmente móvel: seus pensamentos não param de passar e de se apagar.3. 32 14:19 Page 32 organização que se transmite via o inorgânico. o espaço e o suporte de projeção de um conceito geométrico. um espaço de intuição inteiramente produzido por gestos que o escravo traça na areia. e sobre os quais eles podem prolongar e construir o raciocínio geométrico10. tomo 131. mas por uma via não biológica. STIEGLER. Paris: Galilée. abrindo pela primeira vez. Michel. Coloquemos que o indivíduo psíquico é um eu. 1992. igualmente individuação de um sistema técnico (o que estranhamente Simondon não viu). Ele se constitui adotando uma história coletiva que herda e na qual se reconhece uma pluralidade de eu. tornar meu como francês ou como americano. p.02. Essa herança é uma adoção no sentido que eu posso. O sistema técnico é o que sustenta a possibilidade de constituição de dispositivos retencionais que são resultantes do processo de Bernard Stiegler . segundo Foucault14. Disponível em: www. ótimas análises do problema da disciplina no exército e nos ateliês. Isso só é possível porque esse nós é igualmente um tal processo. E. como sistema aberto. a transindividuação é o que. O que liga o eu e o nós. 1006). indivisível. “Marx faz. cit.. no exército. A individuação do eu e do nós é. mas essa tendência não se realiza nunca (é isso que Kant interroga em Paralogismes. enquanto.info/revueph ilosophique 20063325. isto é.htm. que é a condição do encontro do eu e do nós.cairn. que é um falta original (défaut d’origine).01 Bernard Stiegler 17. praticamente. na individuação. Op. é a possibilidade de constituição de uma sociedade disciplinar. Esse processo é uma in-dividuação enquanto tendência a tornarse um. Qu’est ce qu’une nation? Paris: Presses Rocket. 14. neguentrópico e dinâmico. e não um estado. o fim do século XVIII? Uma enorme transformação que fez que. até então constituído essencialmente de pequenas unidades de indivíduos relativamente intercambiáveis. suboficiais e técnicos. a individuação do nós apenas se completa através daquelas. é o meio préindividual segundo suas condições positivas de eficácia advindas de dispositivos retencionais pelos quais ele se forma como meio mnésico. 2006. enquanto essencialmente processo. Nanomutações. essas unidades fossem substituídas por uma grande unidade piramidal. Assim. grammatisation. 33 14:19 Page 33 metaestabilização de significações. Esses dispositivos retencionais são sustentados pelo meio técnico. O que aconteceu no exército a partir do século XVI e no começo do século XVII até. inversamente. a outros objetos técnicos: é o que Simondon chama de “conjunto técnico”). nisto. eles mesmos constituídos e sustentados pelas formas hipomnésicas12. como neto de um imigrante alemão. Isso. O sistema técnico é um dispositivo que possui um papel específico (onde todo objeto está preso: um objeto técnico só existe agenciado. Revue Nanomutations. e que eu posso. Esse processo de adoção estruturalmente artificial é uma memória intrinsecamente artificial13. no entanto. RENAN. A análise que vou fazer da disciplina no exército não se encontra em Marx. Ernest. e que o indivíduo coletivo é um nós. nesse sentido. o devirtécnico com o qual ele faz sistema. uma contratendência com a qual ela forma um equilíbrio metaestável: um equilíbrio no limite do desequilíbrio em um meio mnésico préindividual onde o eu se coindividua no nós. por exemplo. o fuzil. através dos indivíduos psíquicos. 13. hypomnéta. porque uma descoberta técnica havia acontecido: o fuzil relativamente rápido e ajustável” (FOUCAULT. no seio de um tal dispositivo. com uma série de chefes intermediários.10 e Idem. e mais geralmente. reconhecerme em um passado que não foi aquele de meus ancestrais. individua coletivamente fundos préindividuais. O eu só pode ser pensado como pertencente a um nós. dos eu que o compõem. é também o que abre o jogo do eu. A individuação do eu é sempre processualmente inscrita na individuação do nós. na Crítica da razão pura) porque ela encontra. processualmente polêmicas. organizados em torno de um chefe. Essa artificialidade. perfeitamente. vários eu. onde a gramatização é um subsistema da técnica). e saindo assim da época présocrática – é então saber em quais condições é possível transindividuar na artificialidade. Bernard Stiegler . Esse pensamento políticofilosófico do Um e do Múltiplo é o da transindividuação como tal – a partir de Platão que funda assim a metafísica. também político. idealidades. mnésica. como universal. 2002. ele mesmo.10 15. A questão política que se forma. que os filósofos pensam como eidè. atravessada pela tekhné. em subconjuntos processuais (por exemplo. ou la guerre des esprits. para falar como Husserl16. transindividual das significações vindas da individuação psicossocial. ao mesmo tempo. mas também epistêmicas. o sistema técnico. individua também os sistemas mnemotécnicos ou mnemotecnológicos onde bifurcam os estágios da gramatização etc. ao Um – que ele se chame água (Thales) ou ser (Parmênides) – que funda o nós. isto é. esse se divide em regiões que constituem disciplinas: os saberes fundados nas “ontologias regionais”. isto é. 34 14:19 Page 34 gramatização: este desabrocha no seio do processo de individuação do sistema técnico. Quando o Um se torna o Ser. Edmund. La technique et le temps 4. De Thales a Platão. coletiva e técnica (isto é. O começo do pensamento présocrático é o aparecimento do pensamento do Um e do Múltiplo. até seu mais vasto horizonte. e cada ramo se divide. FOUCAULT. abre a krisis da qual surge esse novo processo de individuação psíquica e coletiva. Paris: PUF. essa krisis inaugura a era do pensamento crítico.)15. isto é. A questão filosófica – passando pela krisis sofística. que conduziu à alfabetização. fisiólogos. são o que condiciona os agenciamentos entre a individuação do eu e a individuação do nós.02. Os dispositivos retencionais dos meios mnésicos. precisamente por essa distinção onde ele se destaca como singularidade de direito. poetas e legisladores – nomotetas) é a que articula o Múltiplo. que geram cada novo estágio da gramatização. enquanto horizonte comum. HUSSERL. a questão dos primeiros pensadores présocráticos (simultaneamente geômetras. 1996. no momento em que a gramatização. que é a polis – que substitui a sociedade basílica do “padrerei”. Antes mesmo da filosofia (chegada tardiamente). 16. Paris: Galilée. Michel. Symboles et diaboles. como processo de individuação psicossocial: processo onde o cidadão se distingue do grupo como estruturalmente inacabado e em devir.01 Bernard Stiegler 17. um processo que comporta três ramificações. Recherches logiques. em um mesmo processo de individuação psíquica. assim. em se individuando. como anamnésia e hipomnésia. é a das condições da metaestabilização das leis jurídicas. como mnémè. E a transindividuação é a questão do espírito tal como ele se tornará princípio da unidade do monoteísmo cristão. que constitui a massa de cidadãos. STIEGLER. Mécréance et discrédit.01 Bernard Stiegler 17. Paris: Galilée. assim como sua distinção da retenção secundária. a que resulta da individuação filosófica. Descrever o que eu chamo. A retenção primária. Pensar essa seleção necessita passar pela fenomenologia husserliana do objeto temporal (Zeitobjekt) e da crítica por onde parece que a transindividuação. eu constituo uma memória. desconstruída desde Marx até o pensamento da gramatologia. a nota presente somente pode ser uma nota. 35 14:19 Page 35 Eles definem o que se transindividua entre o psíquico e o coletivo e a legalidade dessa transindividuação. isto é. La décadence des démocraties industrielles. quer dizer que eu transindividuo ou eu participo de um processo de transindividuação. a questão da individuação permanece primeira. fundamentais da transindividuação que define a ontologia formal da lógica e/ ou da metafísica. conforme as regras. em Mécréance et discrédit 1. aquela que a precede etc. que é a melodia que eu escutei.02. que toda seleção é uma questão de memória.1. acontece nas condições organológicas de retenções terciárias formadas pelos suportes hipomnésicos dos meios préindividuais. por sua vez. e esta é. de regimes de consistência. La décadence des démocraties industrielles. e que formam a trama da vida anamnésica. no momento presente de um objeto musical que transcorre. é a que Husserl retira de uma análise fenomenológica da melodia. As ontologias regionais são. passando por Freud. quando eu falo ou eu calo o que não falo). na medida em que ela retém nela a nota precedente. A epifilogênese é o processo de produção dessas retenções terciárias hipomnésicas. onde o que permite transindividuar as existências são justamente as consistências (Cf. diferentemente. como “metatransindividuação”. além dessa desconstrução e aquém (como na era présocrática). nota precedente ainda presente que retém nela. Mas. 2004). com a retenção secundária. por exemBernard Stiegler . A transindividuação como retenção A transindividuação como atividade da memória. Quando eu seleciono (por exemplo. mostra que toda memória é uma questão de seleção e. comportando as retenções primárias e secundárias definidas por Husserl. onde o psíquico e o coletivo se conjugam. As operações tramam a história da metafísica tal como ela foi. inversamente. Bernard. segundo os regimes de individuação que formam também paridades (dos coletivos de pensamento e dos nós transcendentais. que pertence ao presente da percepção. É por isso que a filosofia não terminou. E é preciso não confundir essa retenção primária. e não um som. que permanece presente. e a da transindividuação na tensão anamnésica do Um do Múltiplo permanece o objeto da filosofia propriamente dita17. por sua vez.10 17. sendo psicossocial. sempre para falar como Husserl). No agora de uma melodia. é descrever regimes de transindividuação. anamnésico. uma história do suplemento como gramatização. os objetos temporais terceirizados (fonograma. • Por outro lado. Mas existe uma terceira espécie de retenção. com o conceito aristotélico de ato. em geral. e que constitui o passado de minha consciência. ele gera dois fenômenos temporais diferentes. 19. e que eu posso reescutar na imaginação pelo jogo da lembrança. Mostrei alhures como os três níveis organológicos se articulam com as três formas de retenções. e nisto controlados. mas uma seleção tal que ela é determinada pelas retenções terciárias hipomnésicas. A diferença tanto pode ser intensificada pela repetição terciária quanto anulada por ela: a repetição pode gerar indiferença. filmes. emissões radiofônicas e televisivas). sendo o de uma seleção. krinein) os processos concretos de transindividuação. Isso é verdade. onde a potência forma o préindividual. torna-a evidente. percepção (retenção primária) e imaginação (retenção secundária). Produzir uma lei é transindividuar ao pé da Bernard Stiegler . A anamnésia deve ser pensada desta forma. duas vezes seguidas. a repetição idêntica de um mesmo objeto temporal se tornou possível. O jogo das retenções primárias e secundárias. que Kant estabelece na Crítica da razão pura. ultrapassando a oposição da forma e da matéria resultante de um esquema hilemórfico. que é o fonograma. E o que aparece como resultado é: • Quando o mesmo objeto temporal acontece duas vezes seguidas. Antes da invenção do fonógrafo. diz Husserl. É preciso não confundir. E o pensamento da retenção terciária. técnica e social19.02. o jurídico é um processo concreto de transindividuação – concreto significando que ele pertence a uma época da gramatização que o determina. Em termos de filosofia política. era absolutamente impossível escutar. melhor compreender os processos retencionais. A repetição hipomnésica produz uma diferença. 36 14:19 Page 36 plo. uma época do suplemento.01 Bernard Stiegler 17. são constituídas por uma quarta síntese protética e a posteriori. isto é. ontem. tratase de descrever e de criticar (de discernir. que é um caso de retenção terciária. o que permite. e como as três sínteses da imaginação transcendental. e ela é hipomnésica. tornadas secundárias. Por exemplo. são o tempo materializado que sobredetermina as relações entre retenções primárias e secundárias em geral e permitem. controlálas. mas a retenção terciária. o que quer dizer que as retenções primárias variam de um fenômeno para outro: as retenções da primeira audição. de energeia e de entelecheia: a partir de um par não oposicional do ato e da potência. gravados ou teletransmitidos. Ora. assim. advém da organologia geral onde a história do suplemento só é pensável em sua tripla dimensão fisiológica. como mostra Simondon. atuam na seleção das retenções primárias da segunda audição. aliás. é o que constitui a realidade concreta de toda operação de transindividuação18.10 18. desde a aparição do fonograma. e um estado da gramatização. a mesma melodia. não pode colocar a questão da técnica – como se vê. e é por isso que Bernard Stiegler .01 Bernard Stiegler 17. Ao contrário. pelo privilégio que dá ao tempo. Bergson. por outro lado. como mélétè. como mostram as Recherches logiques de Husserl21. Mas não é possível opor a anamnésia à hipomnésia. em Le diagramme. fabrica um par oposicional diferente daquele de Husserl. isto é. É por isso que é preciso constituir um novo horizonte filosófico. até agora. E a filosofia política consiste em descrever as legalidades que permitem a transindividuação do jurídico. isto é. Assim que aparece o logos. Desse ponto de vista. o problema é que o pensamento freudiano não chega a pensar as retenções terciárias.02. Nietzsche. levar em consideração a hipomnésia na formação da anamnésia torna impossível e caduca a compreensão transcendental. no sentido filosófico. leis constituídas por uma lógica transcendental. como trabalho transindividual do espírito. da constituição. que passa pela desconstrução. Este opõe a retenção primária às retenções secundárias. que ele opõe ao espaço. como processo de produção de significações. E não é por simples coincidência que a filosofia. a priori. 2005) mostram que. pensador do rastro (trace) e da inscrição. Esta transindividuação se faz segundo leis constitucionais. mas a condição de que se faça uma história técnica do suplemento concebido como retenção terciária no processo de individuação de uma organologia geral20.10 20. o que o leva a uma fabulação neolamarkiana. entre em crise no momento em que novos estados da gramatização aparecem. Esta idealização espontânea (entendida aqui no sentido freudiano) é uma condição da transindividuação. excluído. é o filósofo que introduz a questão da genealógica e nisto organológica da seleção. e estes não mais somente aqueles da letra. supõe a ideação. Há ideação quando há linguagem. um pensamento como o de Bergson. em processos judiciários. nem a técnica. idealiza seus objetos. Deleuze é mais bergsoniano que nietzscheano. o e da individuação psíquica e coletiva. como “rainha das ciências”. 37 14:19 Page 37 letra – e o início recente de gravações da imagem sonora em movimento. as relações entre apolíneo e dionisíaco já deixam de lado as questões de técnica e de indústria. logo. através das hipomnésias próprias a cada época da gramatização – as metatransindividuações sendo determinadas pelas características técnicas ou tecnológicas das retenções terciárias. a saber. e seu trabalho. onde a tecnicidade esteja no coração da transindividuação. não para aí: esta não é um impasse. a partir desta constituição que condiciona também as matemáticas etc. coloca novas questões sobre a transindividuação jurídica. Mas. A partir daí. que se parece com o do luto. por exemplo. Capitalismo e gramatização do desejo A memória trabalha. sua crítica das sociedades de controle é desesperada. Dizendo de outra forma. na segunda dissertação da Généalogie de la morale. que domina ainda Deleuze. importa saber quem se apropria e quem controla os processos de transindividuação denominados metatransindividuantes e que permitem controlar as metatransformações socioeconômicas e sociopolíticas. Ora. como otium. Em se tratando de filosofia política. Freud faz disso a questão do inconsciente. em Nietzsche. o trabalho da memória. Deleuze permanece preso ao par oposicional bergsoniano que ele opõe ao par oposicional husserliano. onde se formam as condições de transindividuação. Os trabalhos de Bárbara Stiegler (Nietzsche et la critique de la chair. Esse caminho. mas exclui as retenções terciárias pelo mesmo motivo. Paris: PUF. a transindividuação. passa da ideação à idealização pela elaboração conceitual entendida como anamnésia: é a dianoia como skholè. elas são espaciais e não temporais. é a técnica – e é precisamente isto que a filosofia havia. antes de tudo. Reciprocamente. Hoje. Bernard Stiegler . aí. consequentemente. que a l’hipomnésia. que são também mnésicos. o controle hipomnésico da letra permite também a logografia. um diálogo. isto é. como fatores de perda de saber. Os gregos pensavam no interior de um processo de individuação psíquica e coletiva fundado na letra como retenção terciária ortotética: a transindividuação. 38 14:19 Page 38 Foucault22 pode mostrar que o otium é uma prática das hypomnémata. 1996. Op. como exteriorização. o controle industrial da memória pelas hypomnémata. e que Platão chama de dialética – que é. aparecem as engramagens ortotéticas mnemotecnológicas. L’écriture de soi. que são as mnemotecnologias.10 21. Interiorizada pelos locutores. No século XIX. não acessar a transindividuação. 22. são todos determinados pela hipomnésia alfabética que rege a cidadania. uma vez que ela permite engramar sem ambiguidade uma significação linguística pelo princípio de uma decomposição (análise) e de uma recomposição (síntese) fonética. Edmund. é preciso de novo analisar o discurso de Platão sobre as hypomnémata e a hipomnésia.02. Michel. o conjunto de técnicas da linguagem que consiste em manipular a opinião pelo pithanon (a arte de persuadir) curtocircuitando a anamnésia. e das quais ele faz tecnologias de controle retencional. cit. Fedro antecipa as questões que reaparecem em O Capital. FOUCAULT. Se individuar é individuar o grupo: é o transindividuar e se transindividuar. isto é. No estado atual da hegemonia que o capitalismo financeiro exerce sobre as tecnologias hipomnésicas. que é a transindividuação. nós perdemos o poder de transindividuar. A identificação textual dos enunciados. Paris: PUF. é uma desindividuação. tanto quanto de saberfazer (savoirfaire). sua objetivação hipomnésica. HUSSERL.01 Bernard Stiegler 17. constitui uma perda de saberviver (savoirvivre). A memória objetivada alfabética é ortotética (orthotès significa exatidão). com os primeiros aparelhos de gravação analógicos. ela gera uma nova relação com a língua e. ao mesmo tempo. perder o poder e o saber de transindividuar é se desindividuar – é arruinar a psique e a precipitar para a psicose. São questões de uma economia política da memória. e uma perda de saberes teóricos (de transindividuação das idealidades). torna-se hegemonicamente literal no que os meios simbólicos. e que essa questão é política (então é a questão da sofística). Mas. Do ponto de vista de uma história da gramatização. Dits et écrits. Fedro diz que a memória pode se proletarizar. gera uma intensificação de sua subjetivação: de sua individuação anamnésica. é o que salienta Platão. No entanto. um novo processo de transindividuação de significações: ela coloca o sentido à prova de uma nova “diferensa” (no sentido de Derrida). 1911. Sempre existiu retenção terciária na atividade motora de produção. Os aparelhos analógicos. É o que faz aparecer o que se chama. Mas todo o management24. que permite o controle de todas as formas de movimento. 39 14:19 Page 39 Os aparelhos mnemotecnológicos se tornam numéricos na segunda metade do século XX. pela organização científica do trabalho.01 Bernard Stiegler 17. “tecnologia experimental” aplicada à reconstituição da talha dos sílex de Neandertal. de emoção e. pois a indústria é um novo estado da gramatização. advindo da teoria tayloriana do trabalho. a partir do século XX. intensificar a individuação e. no processo de individuação – seja o corpo do proBernard Stiegler . no início da revolução industrial. Esse capitalismo cognitivo e cultural constitui uma nova organização hipomnésica integrada. que constitui o processo de proletarização generalizada como perda de saberes.10 23.O gesto gramatizado é um gesto terciário: sua reprodução maquínica intervém como retenção terciária na atividade motora de produção. Acontece aí um novo estado de exteriorização de saberes e de hipomnésia. a gramatização dos gestos a serviço da produção e a gramatização dos sentidos a serviço do consumo. A gramatização dos meios mnésicos e simbólicos. 24. produzse de fato. simultaneamente. N. as formas da hypomnémata analógicas e digitais relançam as mais velhas questões da filosofia no contexto capitalista e mercadológico que a atividade mercantil dos sofistas sem dúvida prefigura. O controle do trabalho. Os corpos. controlavam reproduzindo a motricidade do gesto. e depois digitais. ao mesmo tempo. Várias edições. Onde as hipomnésias literais controlavam. A fotografia e o cinema participam desta gramatização do gesto. do corpo. A gramatização literal é posta a serviço da concepção. em Principles of scientific management23. que constitui uma hipomnése do gesto pelo qual o trabalhador é transformado em proletário e privado de seus saberes. Assim. controlá-la no sentido de uma desindividuação. mas onde a dimensão industrial introduz novas questões. afetam não somente os modos de produção. desde a Antiguidade. que se apoia na gramatização é teorizada por Frederick W. isto é. mas também os modos de consumo.: em inglês no original. pelos aparelhos tecnológicos. as funções intelectivas do espírito. as hipomnésias audiovisuais controlarão suas funções sensitivas. de inconsciente. é um pensamento e um controle do gesto por um tipo de retenção terciária ortotética e maquínica. As hipomnésias. Taylor. aí. logo. As mnemotécnicas e as mnemotecnologias ortotéticas digitais permitem. para a préhistória.02.T. enquanto a “máquinainstrumento” desenvolve uma outra forma de ortotese pelo controle dos gestos. que se desenvolvem na linhagem do maquinismo industrial e das “máquinasinstrumentos”. constituindo um limite para o qual. da anamnésia: o capitalismo consumista. como mostrou tão bem Jean François Lyotard: uma anamnésia pensada a partir do narcisismo. se nada acontecer para mudar esse estado de fato. no momento em que vivemos. na medida em que estes são formas da libido. Freud não soube articular um pensamento da hipomnésia em psicanálise. por uma exteriorização. Em nossa época – tal é o caráter eminentemente estranho e inquietante do capitalismo contemporâneo –. em particular. embora seu pensamento seja o da anamnésia. A questão que nos é hoje colocada como política da memória é a de uma política do desejo. O processo de individuação é a economia do que. intensificar a individuação e produzir desindividuação por perda de saber e por proletarização. significa que. enquanto ele mesmo é constituído ou destituído hipomnesicamente e segundo estados de gramatização. mimético. o cerne da questão que a sofística coloca à filosofia. que Aristóteles chamou de philia. os saberes são destruídos e. para seu desmoronamento e para sua autodestruição. O inconsciente é o que articula corpos sobre retenções terciárias e suportes hipomnésicos. isto é. desde então. do ideal do eu e da sublimação como poderes de transformação das pulsões animais e. que esse capitalismo caminha. como fenômenos surgindo do inconsciente. à democracia. desde Freud. através deles. Procura-se. amor. é uma reelaboração da questão do desejo.01 Bernard Stiegler 17. ao mesmo tempo. em um poder de individuação e de transformação espiritual do psiquismo e do coletivo. em geral. da pulsão sexual. em outras palavras. a libido também é destruída. isto é. é reelaborar um pensamento hipomnésico e anamnésico da economia. permitindo um controle e uma intensificação dos processos pulsionais. sendo uma verdadeira gramatização do desejo.10 14:19 Page 40 dutor controlado pelo gesto ou o corpo do consumidor controlado pelos sentidos – aparecem quando se formam os pensamentos nietzscheano e freudiano do desejo e da pulsão. dos saberes. Pensar hoje a questão da memória. gregário e pulsional reativa as técnicas sofísticas a um ponto incomparavelmente mais potente e perigoso. pela constituição de um processo de transindividuação. acionar programas de busca da econo40 Bernard Stiegler . é evidente. isto é. tal como ela foi originalmente exteriorizada e permite. e nas formas que tomaram uma dimensão industrial e tecnológica colossal e mundial. o reaparecimento da anamnésia e da hipomnésia. constituindo o corpo como poder técnico. chamase de desejo: é a economia libidinal. como potência do fantasma. uma política do inconsciente. como telecracia. como poder da imaginação. em detrimento da economia libidinal.02. 10 14:19 Page 41 mia hipomnésica do desejo que permitem as mídias digitais. Estes são portadores de possibilidades anamnésicas. 41 Bernard Stiegler . diretor do Instituto de Pesquisa e Inovação do Centre Georges Pompidou e professor na Université de Technologie de Compiègne. diretor do IRCAM. Paris. e diretor do departamento de desenvolvimento cultural do Centre Georges Pompidou. Tradução de Maria Beatriz de Medeiros. é filósofo e Doutor pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales. assim como hipomnésicas de individuação e de transindividuação totalmente inéditas. diretor adjunto do Institut National de l'Audiovisuel (INA). Tratase de pensar as hypomnémata digitais e as novas formas de otium que podem aí aparecer e fundar uma nova economia política da memória e do desejo. Bernard Stiegler. Foi diretor de programa do Collège International de Philosophie. Paris.01 Bernard Stiegler 17.02.
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